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Espaço-Lixo - Rem Koolhaas

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ESPAÇO-LIXO
«Aeroporto Logan: um melhoramento de nível
mundial para o século XXI».
artaz publicitário dos finais do século xx
o coelho é a nova carne de vaca ... Porque detestamos
utilitário, condenámo-nos a uma imersão por toda a
vida no arbitrário ... LAX [Aeroporto de Los Angeles]:
orquídeas de boas-vindas -possivelmente carnívo-
ras- no balcão do check-in ... A «identidade» é a nova
comida lixo dos deserdados, o pasto da globalização
para os privados de direitos ... Se o lixo espacial são os
resíduos humanos que conspurcam o universo, o
espaço-lixo é o resíduo que a Humanidade deixa sobre
o planeta. O produto construído (voltaremos a este
caso mais adiante) da modernização não é a arquitec-
tura moderna, mas antes o espaço-lixo. O espaço-lixo
é o que resta depois da modernização seguir o seu
curso, ou mais concretamente o que se coagula
enquanto a modernização está em marcha, o seu resí-
duo. A modernização tinha um programa racional: par-
69
tilhar as bênçãos da ciência, universalmente. a es \
ço-lixo é a sua apoteose ou a sua fusão. Embora c 11
uma das suas partes seja o resultado de inventos bll
lhantes, lucidamente planeados pela inteligência
potenciados por computação infinita, a sua som I
augura o fim do Iluminismo, a sua ressurreicão com I
uma farsa, um purgatório desvalorizado ... Ó espaço
lixo é a soma total do nosso êxito actual; construímo
mais do que todas as gerações anteriores juntas, m l
de certo modo não nos registamos nas mesmas esca
las. Nós não deixamos pirâmides. De acordo com O
novo Evangelho da fealdade, há já mais espaço-lixo
em construção no século XXI do que o que sobreviveu
no século xx... Foi um equívoco inventar a arquitectura
moderna para o século xx.A arquitectura desapareceu
no século xx; temos estado a ler uma nota de pé de
página com um microscópio, na esperança que se
transforme num romance; a nossa preocupação com
as massas impediu-nos de ver a Arquitectura do Povo.
a espaço-lixo parece uma aberração, mas é a essên-
cia, o principal. .. o produto de um encontro entre a
escada rolante e o ar condicionado, concebido numa
incubadora de Pladur (as três coisas faltam nos livros
de história). A continuidade é a essência do espaço-
lixo; este aproveita qualquer invento que permita a
expansão, revela uma infra-estrutura ininterrupta:
escadas rolantes, ar condicionado, aspersores, portas
70
11111 -fogo, cortinas de ar quente ... É sempre interior e
I () extenso que raramente se vislumbram limites;
[nmerrta por todos os meios a desorientação (os espe-
11\0,os brilhos, o eco)... a espaço-lixo é selado, man-
11 m-se unido não pela estrutura mas pela pele, como
lima bolha. A gravidade permaneceu constante,
1i1 ente no mesmo arsenal desde o princípio dos tem-
po ;mas o ar condicionado -um meio invisível e que
portanto passa despercebido- revolucionou real-
11\ nte a arquitectura. a ar condicionado lançou o edi-
lrcio sem fim. Se a arquitectura separa os edifícios, o
111 condicionado une-os. a ar condicionado impôs regi-
1118S mutantes de organização e coexistência que a
ruquitectura não pode acompanhar. Um simples cen-
1\ o comercial é agora o trabalho de gerações de plani-
licadores de espaços, técnicos de reparação e monta-
dores, como na Idade Média; o ar condicionado
mantém as nossas catedrais (sem se aperceberem,
I dos os arquitectos podem estar a trabalhar no
mesmo edifício, separados por grandes distâncias,
mas com receptores ocultos que posteriormente farão
om que tudo resulte coerente). Como custa dinheiro,
deixou de ser grátis, o espaço condicionado transfor-
ma-se inevitavelmente num espaço condicional; mais
cedo ou mais tarde, todo o espaço condicional se
transforma em espaço-lixo ... Quando pensamos no
spaço, só olhamos para os seus contentores. Como
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se o próprio espaço fosse invisível, toda a teoria para t
produção de espaço se baseia numa preocupaç
obsessiva pelo oposto: a substância e os objectos, Oll
seja, a arquitectura. Os arquitectos nunca consegui
ram explicar o espaço; o espaço-lixo é o nosso castigo
pelas suas mistificações. Muito bem, falemos então
de espaço: da beleza dos aeroportos, especialment
depois de cada ampliação; do brilho das remodela
ções; da subtileza dos centros comerciais. Estudemos
o espaço público, descubramos os casinos, passemos
o tempo nos parques temáticos ... O espaço-lixo é o
corpo duplo do espaço, um território com problemas
de visão, expectativas limitadas e uma reduzida serie-
dade. O espaço-lixo é um Triângulo das Bermudas de
conceitos, uma placa de Petri abandonada: suprime
as distinções, corrói a determinação e confunde a
intenção com a realização; substitui a hierarquia pela
acumulação, a composição pela adição. Mais e mais,
mais é mais. O espaço-lixo é ao mesmo tempo dema-
siado maduro e desnutrido, um colossal manto de
segurança que cobre a terra com um monopólio de
sedução ... O espaço-lixo é como estar condenado a
umjacuzzi perpétuo com milhões dos teus melhores
amigos ... É um império emaranhado de confusão que
funde o elevado com o mesquinho, o público com o pri-
vado, o direito com o torcido, o saciado com o esfome-
ado, para fornecer um mosaico ininterrupto do perma-
72
w
nenternente desconexo. Sendo aparentemente uma
ipoteose, espacialmente grandiosa, o efeito da sua
I iqueza é uma vacuidade terminal, uma paródia per-
versa de ambição que sistematicamente destrói a
redibilidade do edifício, possivelmente para sem-
pre ... O espaço criou-se empilhando matéria sobre
matéria e unindo-as para formar uma sólida totalida-
de nova. O espaço-lixo é aditivo, estratificado e ligeiro,
não está articulado em diferentes partes mas sim
ubdividido, esquartejado como a carcaça de um ani-
mal -pedaços amputados de uma condição univer-
al. Não há paredes, apenas partições, membranas
reluzentes amiúde cobertas de espelho ou de ouro.
A estrutura range invisível debaixo da decoração; ou
pior, tornou-se ornamental; pequenas e brilhantes
redes tridimensionais resistem a esforços simbólicos
enormes vigas transmitem as cargas ciclópicas
destinos insuspeitados ... O arco, noutros tempos a
besta de carga das estruturas, transformou-se no
esgotado emblema da «comunidade», que dá as boas-
vindas a uma infinidade de populações virtuais a luga-
res inexistentes. Quando não existe, aplica-se sim-
plesmente -a maioria das vezes em estuque- como
um acrescento ornamental a uns super quarteirões
erguidos a toda a pressa. A iconografia do espaço-lixo
é 13 % romana, 8 % Bauhaus e 7 % Disney (quase
empatados), 3 % art nouveau, seguido de perto pelo
73
-
estilo maia. Como substância que se poderia conden-
sar em qualquer outra forma, o espaço-lixo é um domí-
nio de ordem fingida e simulada, um reino de transfor-
mação morfológica. A sua configuração específica é
tão fortuita como a geometria de um floco de neve. Os
padrões implicam uma repetição ou, em última ins-
tância, regras decifráveis; o espaço-lixo está para
além da medida, para além do código ... Como não se
pode captar, o espaço-lixo não se pode recordar. É exu-
berante mas não memorável, como um protector de
ecrã; a sua recusa em formar-se garante uma amnésia
instantânea. O espaço-lixo não pretende criar perfei-
ção, só interesses. As suas geometrias não são imagi-
náveis, mas apenas realizáveis. Embora seja algo
estritamente não arquitectónico, tende para o aboba-
dado, para a Cúpula. Algumas partes parecem desti-
nadas a uma absoluta inacção, outras estão em per-
pétua agitação retórica: o mais adormecido reside
junto do mais histérico. Os temas lançam uma cortina
de atrofia sobre interiores tão grandes como um Pan-
teão, produzindo nados-mortos em cada canto. A es-
tética é bizantina, esplêndida e obscura, dividida em
milhares de fragmentos, todos visíveis ao mesmo
tempo: um universo quase panóptico, no qual todos os
conteúdos se recompõem numa fracção de segundo
peranteos olhos aturdidos do observador. Os murais
costumavam mostrar ídolos; os módulos do espaço-
lixo estão dimensionados para mostrar marcas; os
mitos podem partilhar-se, as marcas preservam a
nura à mercê dos grupos de interesses. No espaço-
lixo, as marcas desempenham o mesmo papel que os
buracos negros no universo: são essências através
cI s quais desaparece o significado ... As superfícies
I ais brilhantes da história do género humano reflec-
1 m a Humanidade no seu aspecto mais superficial.
Ouanto mais habitamos o palaciano, mais simples-
mente parece que nos vestimos. Um estrito código de
mdurnentária -um último rebate da etiquetai'-> rege
() acesso ao espaço-lixo: calções, sapatos de ténis,
I; ndálias, fato de treino, fibras sintéticas, calças de
/\ nga, parka e mochila. Como se o Povo entrasse de
núbito nos aposentos privados do ditador, o espaço-
lixo desfruta-se melhor num estado de deslumbra-
mento pós-revolucionário. As polaridades fundiram-
:; ,e não ficou nada entre a desolação e o frenesim.
( néon significa tanto o velho como o novo; os interio-
I s remetem ao mesmo tempo para a Idade da Pedra e
para a Era Espacial. Tal como o vírus desactivado de
lima vacina, a arquitectura moderna continua essen-
cial mas só na sua manifestação mais estéril, o high
I ch (que parecia morto ainda há uma década!). Esta
expõe o que as gerações anteriores mantinham em se-
Wedo: as estruturas emergem como molas de um col-
chão; as escadas de emergência pendem de um tra-
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pézio didáctico; sondas atravessam o espaço p 11"
proporcionar laboriosamente o que afinal é ornnipu
sente, o ar livre, hectares de vidro pendem de um em I
ranhado de cabos; peles bem retesadas encerr 111
débeis não-eventos. A transparência só revela tu 11
aquilo em que não podemos tomar parte. Com I
badaladas da meia-noite, tudo se pode transform 11
em gótico taiwanês; dentro de três anos pode deriv 1I
para o nigeriano da década dos 1960, para o ch I
norueguês ou para cristão por omissão. Os habitant
da terra vivem agora num grotesco infantário ... O e
paço-lixo melhora com o desenho mas o desenh )
morre no espaço-lixo. Não há forma, só proliferação ...
A regurgitação é a nova criatividade; em vez da criação,
veneramos, apreciamos e adoptamos a manipula
ção... Supercordas de gráficos, emblemas transplan
tados em franchisings e cintilantes infra-estruturas
de luzes, LEDs e vídeos descrevem um mundo sem
autor, para além da pretensão de cada um, sempre
único, completamente imprevisível mas intensamente
familiar. Oespaço-lixo é quente (ou subitamente árcti-
co); paredes fluorescentes, dobradas como vitrais que
se fundem, geram um calor adicional para elevar a
temperatura do espaço-lixo a níveis que permitiriam
plantar orquídeas. Fingindo histórias à esquerda e à
direita, o seu conteúdo é dinâmico mas estagnado,
reciclado ou multiplicado como numa clonagem: as
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101mas procuram função como os caranguejos-ererni-
111 procuram uma concha livre ... Oespaço-lixo despe-
II se da arquitectura tal como um réptil muda de pele,
I renasce todas as segundas-feiras de manhã. Na
construção anterior, a materialidade baseava-se num
I stado final que só podia modificar-se à custa de uma
ti struição parcial. No mesmo momento em que a
nossa cultura abandonou a repetição e a regularidade
I; mo algo repressivo, os materiais de construção tor-
1i rarn-se cada vez mais modulares, unitários e estan-
clardizados; a substância vem pré-digitalizada ... À me-
dida que o módulo se vai tornando cada vez mais
equeno, o seu estatuto tornou-se o de um cripto-
píxel. Com enormes dificuldades -orçamento, dis-
ussão, negociação, deformação- a irregularidade e
singularidade constroem-se a partir de elementos
idênticos. Em vez de tentar extrair ordem do caos, o
pitoresco extrai-se agora do homogeneizado, o singu-
lar liberta-se do estandardizado ... Os arquitectos pen-
saram pela primeira vez no espaço-lixo e chamaram-
no de «mega-estrutura», a solução final para superar
o seu descomunal impasse. Como múltiplas torres de
Babel, as enormes superstruturas perdurariam até à
eternidade, transbordantes de subsistemas não per-
manentes que mudariam com o tempo, fora do seu
controlo. No espaço-lixo tudo mudou drasticamente:
só há subsistemas, sem superstrutura, partículas
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órfãs em busca de uma estrutura ou um padrão. Tod
a materialização é provisória; cortar, dobrar, rasgar,
recobrir: a construção adquiriu uma nova suavidade,
como se feita por medida. Ajunta já não é um proble-
ma, nem uma questão intelectual: os episódios de
transição são definidos com agrafos e fita adesiva, as
enrugadas tiras castanhas apenas mantêm a ilusão
de uma superfície ininterrupta; verbos desconhecidos
e impensáveis na história da arquitectura -agarrar,
grudar, dobrar, vazar, colar, agrafar, duplicar e fundir-
tornaram-se indispensáveis. Cada elemento cumpre
a sua missão num isolamento negociado. Onde antes a
pormenorização indicava uma junção, talvez para
sempre, de materiais díspares, agora há um acopla-
mento transitório à espera de ser desfeito, desapara-
fusado, um abraço temporário com grandes probabili-
dades de separação; não se trata já de um encontro
orquestrado da diferença, mas sim o final brusco de
um sistema, impasse. Só os cegos, lendo com as pon-
tas dos dedos as suas linhas defeituosas, poderão
compreender as histórias do espaço-lixo ... Enquanto
milénios inteiros trabalharam a favor da permanência,
das axialidades, das relações e da proporção, o pro-
grama do espaço-lixo é a escalada. Em vez de desen-
volvimento, oferece entropia. Dado que é interminável,
há sempre infiltrações em algum lugar do espaço-lixo;
no pior dos casos, cinzeiros monumentais recolhem
gotas intermitentes num caldo cinzento ... Quando dei-
xou o tempo de progredir e começou a desenvolver-se
em todas as direcções como uma fita de cassete
desenrolando-se sem controlo? Desde a introdução do
Real Time®? A mudança divorciou-se da ideia de
melhoramento. Não há progresso; como um carangue-
jo drogado com LSD,a cultura não pára de titubear de
lado... A vulgar lancheira contemporânea é um micro-
cosmo do espaço-lixo: uma fervorosa semântica de
saúde -pedaços de beringela cobertas de rodelas
grossas de queijo de cabra- anulada por um bolo
colossal lá no fundo ... O espaço-lixo esvazia e é esva-
ziado em troca. Por todo o espaço-lixo há conjuntos de
assentos, filas de cadeiras modulares e até sofás,
como se a experiência que o espaço-lixo oferece aos
seus consumidores fosse significativamente mais
fatigante do que qualquer outra sensação espacial
anterior; nas suas zonas mais perdidas encontramos
buffets: mesas utilitárias com toalhas brancas ou
negras, misturas apressadas de cafeína e calorias -
requeijão, bolos, uvas não amadurecidas- represen-
tações teóricas da abundância, sem chamariz e sem
abundância. Cada espaço-lixo está associado, mais
cedo ou mais tarde, às necessidades fisiológicas:
encaixados entre partições de aço inoxidável, sentam-
se filas de romanos queixosos, com as suas togas de
ganga envolvendo os seus enormes sapatos desporti-
78 79
vos ... Como se consome intensamente, o espaço-lix
tem uma manutenção zelosa, o turno da noite desfa
os danos do turno de dia numa interminável repetiçê
à maneira de Sísifo. Tal como nós sobrevivemos ao
espaço-lixo, o espaço-lixo sobrevive a nós: entre a
2hOOe as 5hOOda madrugada, outra população dis
tinta, esta desapiedadamente informal e apreciavel
mente mais obscura, dedica-se a limpar, rondar, var
rer, secar, repor ... O espaço-lixo não inspira fidelidad
àqueles que o limpam ... Dedicado à gratificação ins-
tantânea, o espaço-lixo contém o gérmen da perfeição
futura; uma linguagem apologética está entretecida
na sua textura de euforia enlatada; letreiros de «per-
doem o nosso aspecto» ou minúsculos cartazes ama-
relos de «desculpem» assinalam as manchas de
humidade e anunciam umaincomodidade momentâ-
nea em troca de um brilhantismo iminente: o encanto
dos melhoramentos. Em alguns sítios, para reparar as
partes danificadas os operários põem-se de joelhos
como se estivessem a rezar, ou quase desaparecem
nos vazios dos tectos para resolverem defeitos obscu-
ros, como se estivessem a confessar-se. Todas as
superfícies são arqueológicas, sobreposições de dife-
rentes «períodos» -como denominar a fase em que
era comum alcatifar tudo? =, como se pode apreciar
quando são removidas ... Tradicionalmente, a tipologia
implica delimitação, a definição de um modelo singu-
-
l r que exclui outras disposições. Oespaço-lixo repre-
senta uma tipologia inversa de identidade acumulati-
va e aproximativa, relacionada menos com o tipo do
que com a quantidade. Mas a ausência de forma con-
Linua a ser forma, o informe também é tipologia ...
Vejamos o exemplo de uma lixeira, onde os camiões,
uns atrás dos outros, despejam a sua carga para for-
mar um montão, um todo, apesar do arbitrário do seu
conteúdo e do seu carácter essencialmente amórfico;
u da cobertura de uma tenda de campanha, que
dopta formas diferentes para albergar volumes inte-
riores variáveis; ou as amorfas bifurcações da nova
eracão. Oespaço-lixo pode ser absolutamente caóti-
co o~ espantosamente asséptico -como um best-
seller-, sobredeterminado e indeterminado ao mes-
mo tempo. Há algo de estranho em relação aos sal~es
de baile, por exemplo. Enormes espaços desaproveita-
dos, sem pilares para conseguir a máxima flexibilida-
de. Como nunca nos convidaram para esse trpo de
ctos, nunca os vimos em uso; só os vimos a ser prepa-
rados com uma fria precisão: uma incessante grelha
de mesas circulares que se estendem até perder de
vista e com um diâmetro que impede a comunicação;
um estrado suficientemente grande para conter o
politburo de um grande Estado totalitário; alas que
anunciam surpresas ainda não imaginadas -hecta-
res de organização para dar apoio à embriaguez, ao
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caos e à desordem posteriores. Ou a exposições d
carros ... O espaço-lixo descreve-se com frequênci
como um espaço de fluxos, mas este é um termo pouco
adequado; os fluxos dependem de um movimento dis-
ciplinado, de corpos que são coesos. O espaço-lixo é
uma teia de aranha sem aranha; embora seja arqui
tectura de massas, cada trajectória é estritamente
única. A sua anarquia é uma das últimas maneiras
tangíveis que temos de experimentar a liberdade.
É um espaço de colisão, um contentar de átomos, acti-
vo, não denso ... Há um modo especial de nos mover-
mos no espaço-lixo, ao mesmo tempo errante e decidi-
do. É uma cultura adquirida. O espaço-lixo mostra a
tirania do esquecimento: por vezes todo um espaço-
lixo se desagrega devido ao inconformismo de um dos
seus membros; um só cidadão de outra cultura -um
refugiado, uma mãe- pode desestabilizar todo o
espaço-lixo, exigir-lhe um resgate por um simplório,
deixando à sua passagem um rasto invisível de obs-
trução, uma desregulação que acaba por ser transmi-
tida até às últimas consequências. Quando o movi-
mento se torna sincronizado, coagula-se: nas escadas
rolantes, próximo das saídas, das máquinas do esta-
cionamento e das caixas de multibanco. Por vezes, sob
pressão, os indivíduos são apanhados no fluxo, são
empurrados para uma única porta ou forçados a nego-
ciar o intervalo entre dois obstáculos ocasionais (uma
82
_______________----_0------------- =~ .••
1
cadeira de inválido que apita e uma árvore de Natal): a
evidente má vontade que provoca ridiculariza a ideia
dos fluxos. No espaço-lixo, os fluxos conduzem ao
desastre: os grandes armazéns no primeiro dia de sal-
dos; os tumultos provocados pelas hostilidades entre
adeptos do futebol; corpos mortos junto das saídas d~
emergência, fechadas, de uma discoteca; tudo ISSO e
prova da difícil engrenagem entre as entradas do
espaço-lixo e o exíguo calibre do velho mundo. Os
jovens evitam instintivamente os dantescos contenta-
res/manipulações aos quais o espaço-lixo condenou
para sempre os seus mais velhos. Dentro do meta-
campo de jogo do espaço-lixo existem outros campos
de jogo mais pequenos, espaço-lixo para crianç~s
(habitualmente na área de superfície menos desejá-
vel): sectores de miniaturização repentina -geral-
mente debaixo das escadas, sempre próximas de um
beco sem saída- agregações de estruturas de plásti-
co de pequenas dimensões (escorregas, balancés e
baloicos) recusadas pelo seu próprio público -as
crian~as- e convertidas num nicho-lixo para velhos,
perdidos, esquecidos, dementes ... um último espas-
mo de Humanidade ... Otrânsito é espaço-lixo desde o
espaço aéreo até ao metro; todo o sistema de au:o-
estradas é espaço-lixo, uma ampla utopia em poten-
cia, obstruída pelos seus utilizadores, como se pode
observar quando finalmente desaparecem para ir de
83
-
férias. Como os resíduos radioactivos, o espaço-lixo
tem uma insidiosa vida média. O envelhecimento no
espaço-lixo é inexistente ou catastrófico; por vezes,
todo um espaço-lixo -grandes armazéns, um club
nocturno, um apartamento de solteiro-transforma-
se num antro da noite para o dia e sem avisar: a potên-
cia eléctrica diminui de modo imperceptível, as letras
caem das tabuletas, os aparelhos de ar condicionado
começam a gotejar, aparecem fissuras como se fos-
sem terramotos não registados; alguns sectores apo-
drecem, deixam de ser viáveis, mas permanecem uni-
dos ao corpo principal por meio de passagens
gangrenadas. Julgar o construído supunha uma con-
dição estática; agora, cada arquitectura encarna
simultaneamente situações opostas: velhas e novas,
permanentes e temporárias, florescentes e em peri-
go... Alguns sectores sofrem de uma deterioração
como na Alzheimer, ao passo que outros são melhora-
dos. Como o espaço-lixo é interminável, nunca é fecha-
do... a renovação e o restauro foram procedimentos
que ocorreram durante a nossa ausência; agora somos
testemunhas, participantes relutantes ... Ver o espa-
ço-lixo em remodelação é como inspeccionar uma
cama por fazer, de outra pessoa. Suponhamos que um
aeroporto necessita de mais espaço. No passado,
acrescentavam-se novos terminais, cada um mais ou
menos característico da sua época, deixando os anti-
1\ s como um registo legível, como prova de progresso.
.orno os passageiros demonstraram definitivamente
(\ sua infinita maleabilidade, a ideia de reconstruir
.orn o aeroporto em funcionamento ganhou adeptos.
I ssadeiras rolantes são lançadas em sentido inver-
"O, as tabuletas fixam-se com fita adesiva e as pal-
meiras em vasos (ou grandes cadáveres), cobertas em
acos mortuários. Divisórias de Pladur coladas com
íita adesiva segregam duas populações: uma húmida,
utra seca; uma dura, outra mole; uma fria, outra
demasiado quente. Metade da população produz
spaço novo; a metade mais próspera consome espa-
ço velho. Para albergar um mundo inferior de trabalho
manual, a esplanada transforma-se subitamente
numa Casbah: vestiários improvisados, pausas para o
café, fumo de tabaco e até fogueiras verdadeiras ...
Otecto é uma chapa rugosa, como os Alpes; grades de
zulejos instáveis alternam com lâminas estampadas
de plástico negro, perfuradas de modo inverosímil por
grelhas de candelabros de cristal. .. Os tubos metáli-
cos são substituídos por têxteis que respiram. As jun-
tas escancaradas revelam enormes vazios no tecto
(antigos desfiladeiros de amianto"), vigas, tubagens,
fios, cabos, isolamento, protecção contra incêndios,
cordas: arranjos emaranhados subitamente expostos
à luz do dia. Impuros, torturados e complexos, só exis-
tem porque nunca foram planeados conscientemente.
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o pavimento é uma manta de retalhos; diferentes tex-
turas -de betão, de pelo, densas, brilhantes, plásti-
cas, metálicas, lamacentas- alternando ao acaso,
como se estivessem destinadas a espaços diferen-
tes ... O solo já não existe. Há demasiadas necessida-
des básicas queprecisam de ser satisfeitas num só
plano. Abandonou-se a horizontal absoluta. A trans-
parência desapareceu, para ser substituída por uma
densa crosta de ocupação provisória: quiosques, car-
ros, carrinhos de bebé, palmeiras, fontes, bares, sofás,
tróleis ... Os corredores já não unem só A com B, mas
transformaram-se em «destinos». A vida dos seus
inquilinos é geralmente curta: as montras mais monó-
tonas, a roupa mais rotineira, as flores mais inverosí-
meis. Perdeu-se qualquer perspectiva, como numa
selva tropical (também a desaparecer, não param de
dizer ...).Oque antes era recto enrola-se em configura-
ções cada vez mais complexas. Só uma coreografia
modernista pode explicar as viragens e as voltas, as
subidas e descidas, as súbitas inversões que incluem
o típico caminho desde o ctieck-in (nome falacioso) até
à pista no típico aeroporto contemporâneo. Dado que
nunca reconstruímos nem questionamos o absurdo
destas dérives forçadas, submetemo-nos docilmente
a grotescos itinerários que passam junto a perfumes,
asilados políticos, obras em curso, roupa interior,
ostras, pornografia, telemóveis - incríveis aventuras
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para o cérebro, a vista, o olfacto, o gosto, o útero, os
testículos ... Houve em tempos uma polémica sobre o
ângulo recto e a linha recta; agora os 90° passaram a
ser um entre muitos ... Na realidade, os restos de anti-
gas geometrias criam sempre uma nova confusão,
oferecendo desgarrados núcleos de resistência que
criam instáveis redemoinhos em novos fluxos oportu-
nistas ... Quem ousaria exigir responsabilidades por
esta sequência? A ideia de que antes uma profissão
impunha, ou pelo menos julgava prever, os movimen-
tos das pessoas agora parece risível; ou pior: irnpensá-
vel. Em vez de desenho há cálculos: quanto mais errá-
tico for o caminho, quanto mais excêntricos forem os
circuitos, quanto mais oculto estiver o projecto e quan-
to mais eficaz for a exibição, mais inevitável é a tran-
sacção. Nesta guerra, os designers gráficos são os
grandes vira-casacas: enquanto que antes a sinali-
zação prometia levar-nos onde queríamos ir, agora
confunde-nos e enreda-nos num emaranhado de pre-
ciosismo que nos obriga a seguir por desvios não de-
sejados, e voltar atrás quando nos perdemos. O pós-
-modernismo acrescenta uma zona enrugada de
poché viral que fractura e multiplica a interminável
frente de exibição: um invólucro peristáltico, crucial
para qualquer intercâmbio comercial. Os percursos
lançam-se por rampas, tornam-se horizontais sem
aviso prévio, intersectam-se, dobram-se para baixo e
87
emergem de repente numa varanda vertiginosa S 111'
um grande vazio. Um fascismo sem ditador. Des I Ii
beco sem saída onde fomos lançados por uma esc ul,
monumental de granito, uma escada rolante condu
nos a um destino invisível, de frente para uma pals I
gem provisória de gesso, inspirada em fontes pou I
memoráveis (não há nível de referência; habitam
sempre numa sanduíche. O «espaço» escava-se 1111
espaço-lixo como se este fosse um bloco de gela )
escorregadio que passou demasiado tempo no cong
lador: cilíndrico, em forma de cone, mais ou meno
esférico, seja o que for ...) Os núcleos dos lavabo
transformam-se em lojas da Disney e depois met
morfoseiam-se e passam a ser centros de meditação:
as transformações sucessivas tornam ridícula a pala-
vra «projecto». O projecto é um ecrã de radar em que
os impulsos individuais sobrevivem durante imprevi-
síveis períodos de tempo em tumultuosos bacanais.
Neste impasse entre o redundante e o inevitável, um
projecto teria realmente piorado as coisas e ter-nos-ia
levado a um desespero imediato. Só o diagrama ofere-
ce uma versão suportável. Há uma fidelidade nula -e
tolerância nula- no que respeita à configuração, não
existe uma situação «original»; a arquitectura trans-
formou-se numa sequência de lapsos de tempo para
revelar uma «evolução permanente». A única certeza é
a conversão -contínua- seguida, em raras ocasiões,
1" 10 « restau ro», o processo que reivi nd ica constante-
1I1I nte novas partes da história como extensões do
I p co-lixo. A história corrompe, a história absoluta
I (li rompe absolutamente. A cor e a matéria elimina-
uun-se destes enxertos anémicos: o insípido transfor-
meu-se no único ponto de encontro do velho e do
IIOVO ... Pode amplificar-se o insípido? Exagerar-se o
1I1 nótono? Com altura? Com profundidade? Com
I xLensão? Variação? Repetição? Por vezes não é a
, obrecarga, mas precisamente o oposto, uma abso-
111 a ausência de pormenores, que gera o espaço-lixo.
r uma condição vazia de uma alarmante escassez,
prova escandalosa de como se pode organizar tanto
r:om tão pouco. Um vazio risível infunde a respeitosa
di tância ou a vacilante aceitação que os arquitectos-
o trela mantêm na presença do passado, seja autênti-
G ou não. Invariavelmente, a decisão primordial é dei-
x r intacto o original; o que antes era residual é
eclarado a nova essência, o foco da intervenção.
Como primeira medida, a substância que se tem de
conservar é envolvida num denso pacote de locais
comerciais e restauração -como um esquiador relu-
tante empurrado ladeira abaixo pelos vigilantes res-
ponsáveis. Para mostrar respeito, as simetrias são
mantidas e exageradas inutilmente; as antigas técni-
cas de construção são ressuscitadas e apuradas com
um brilhantismo irrelevante, as pedreiras reabriram-
88 89
se para extrair a «mesma» pedra, e os nomes de doa
dores indiscretos são cinzelados ostensivamente n
mais inocente caligrafia; o pátio é coberto por uma
magistral «filigrana» estrutural -enfaticament
pouco competitiva- de modo a estabelecer-se a con-
tinuidade com o «resto» do espaço-lixo (galerias aban-
donadas, escaparates degradados, conceitos jurássi-
cos...). Aplica-se o acondicionamento, a luz natural
filtrada revela grandes extensões anti-sépticas de
reticência monumental e que recuperam vida, vibran-
tes como uma imagem infográfica ... A maldição do
espaço público: um fascismo latente suavizado de
modo seguro com conjuntos de símbolos, os bancos, a
simpatia ... O espaço-lixo é pós-existencial; faz-nos
não ter a certeza do lugar onde estamos, oculta para
onde vamos e anula o lugar onde estávamos. Quem
pensamos que somos? Quem queremos ser? (Nota
para os arquitectos: pensávamos que podíamos igno-
rar o espaço-lixo, visitá-lo às escondidas, tratá-to com
desdém condescendente ou desfrutá-lo indirecta-
mente ... como não podíamos entendê-lo, deitámos
fora as chaves ... Mas agora a nossa própria arquitec-
tura está infectada, passou a ser igualmente suave,
inclusiva, contínua, retorcida, pormenorizada, repleta
de átrios ...).A Assinatura-Lixo" é a nova arquitectura:
a antiga megalomania de uma profissão contraída
para adaptar um tamanho manejável, espaço-lixo sem
fl sua salvadora vulgaridade. Qualquer coisa alongada
-limusinas, membros de um corpo, aviões- trans-
forma-se em espaço-lixo, já que abusa da sua concep-
ção original. Restaurar, reconfigurar, recombinar, reno-
var, reformar, rever, recuperar, redesenhar, retornar
-os mármores do Partenon- refazer, respeitar, ren-
tabilizar: os verbos que começam por «re» produzem
spaco-Iixo ... Oespaço-lixo será a nossa tumba. Meta-
de da Humanidade contamina para produzir e a outra
metade contamina para consumir. A poluição combi-
nada de todos os carros, motociclos, camiões, auto-
carros e fábricas clandestinas do Terceiro Mundo pa-
rece uma insignificância em comparação com o calor
gerado pelo espaço-lixo. O espaço-lixo é político:
depende da eliminação centralizada da capacidade
crítica em nome do conforto e do prazer. A política tor-
nou-se num manifesto graças ao Photoshop, projec-
tos contínuos do que mutuamente se exclui, arbitra-
dos por opacas ONG. O conforto é a nova Justiça.
Países diminutos inteiros adaptam agora o espaço-
lixo como programa político, estabelecem regimes
de desorientação planificada, instigam uma política dedesorganização sistemática. Não é exactamente o
«vale tudo»; na realidade o segredo do espaço-lixo é
ser promíscuo e ao mesmo tempo repressivo: à medi-
da que prolifera o informe, o formal atrofia-se e com
ele todas as regras, os regulamentos, os recursos ...
90 91
Babelfoi mal-entendida. A língua não é o probl 1I11
mas sim a nova fronteira do espaço-lixo. A humanl 11
de, dividida por dilemas eternos, pelo impass li
debat~s aparentemente intermináveis, lançou uru I
n~va língua que transpõe linhas divisórias inultra I
sav~ls como se fossem uma frágil ponte pedon l ri
designer ... cunhou uma onda proactiva de novos p I I
doxos para suspender a antiga incompatibilid j
vida/estilo, realidade/TV, mundo/música; museu/loJ I,
comida/sala, saúde/cuidados, espera/vestíbulo. 1\
denominações substituíram a luta de classes, am I
gamas sonoras de estatuto, conceitos elevados e hi(
tória. At~avés de acrónimos, a importação insólita, \
supressao de letras e a invenção de plurais inexisten
tes pretendem despojar-se de significadoem troca d
uma nova e espaçosa amplitude ... O espaço-lixo
conhece ~odas as nossas emoções, todos os nossos
desejos. E o interior do ventre do Big Brother. Antecipa
as sensações das pessoas. Apresenta-se com uma
banda sonora, um odor, legendas; anuncia descarada-
mente como quer ser interpretado: rico, sensacional
glamoros~, enorme, abstracto, «minimalista», históri~
co. Patrocina um colectivo de ressentidos consumido-
res em atitude de sombria antecipação da sua próxi-
ma compra, uma massa de períodos refractários
apanhados no Reino Milenário de Razzmatazz, num
paroxismo de prosperidade, O sujeito fica despojado
dll privacidade em troca do acesso a um nirvana de
I I dito, Somos cúmplices no rastreio das impressões
lill',itais que deixam as nossas transacções; sabem
IIICJode nós, excepto quem somos, Os emissários do
I upaço-uxo perseguem-nos até à intimidade, antes
nnoenotrávet. do quarto de dormir: o mini bar, os apa-
I ( lhos de fax pessoais, a televisão paga que transmite
lima pornografia comprometedora, véus de plástico
icabados de pôr que envolvem a sanita, preservativos
ti cortesia: fontes de receita em miniatura que coe-
xistem com a Bíblia da mesinha de cabeceira ... O es-
paço-lixo pretende unificar mas na realidade divide.
ria comunidades não a partir de interesses comuns
u da livre associação, mas sim de uma estatística
idêntica e de uma demografia inevitável, uma teia
oportunista de interesses instalados. Cada homem,
cada mulher e cada criança torna-se num alvo indivi-
dual, espiado, separado do resto ... Os fragmentos
recompõem-se só na «segurança», quando uma gre-
lha de ecrãs de vídeo reagrupa de um modo decepcio-
nante as imagens individuais num cubismo banaliza-
do e utilitário que revela a coerência global do
espaço-lixo ao olhar desapaixonado de vigilantes
pouco qualificados: vídeo-etnografia em bruto. Tal
como o espaço-lixo é instável, a sua propriedade real
está sempre a mudar com uma deslealdade seme-
lhante. Oespaço-lixo ocorre espontaneamente graças
92 93
à natural exuberância empresarial -o livre jogo d
mercado- ou é gerado através da accào combinad \
de «czares» temporários com longos historiais d
filantropia tridimensional, burocratas (com frequên
cia antigos esquerdistas) que liquidam alegrement
grandes extensões de frente ribeirinha, antigos hipó
dromos, bases militares e aeródromos abandonados
promotores ou magnatas imobiliários que podem
encaixar qualquer défice em balanços futuristas ou
mediante a Preservação por Omissão" (a manutenção
de complexos históricos que ninguém quer mas que o
Zeitgeist declarou sacrossantos). À medida que a .su
escala se expande rapidamente -rivalizando com
do espaço público e até a superando- a sua econo
mia torna-se mais impenetrável. O seu financiamento
é um nevoeiro deliberado que torna mais turvos acor-
dos pouco claros, duvidosas infracções fiscais, incen-
tivos insólitos, isenções e legalidades pouco consis-
tentes, direitos aéreos transferidos, co-propriedades,
áreas de zonamento especial e cumplicidades entre O
público e o privado. Financiado através de títulos, lata-
ria, subsídio, esmolas, doações, um errático fluxo de
ienes, euros e dólares cria pacotes financeiros que são
tão frágeis como os seus conteúdos. Devido a um
incumprimento estrutural, a um défice fundamental
ou à contingência de uma bancarrota, cada centímetro
quadrado converte-se numa superfície avara e neces-
itada que depende de apoios abertos ou encobertos,
de descontos, compensações e recolhas de fundos.
Para a cultura, «placas em honra do doador»; para
Ludo o resto, dinheiro vivo, arrendamentos, usufrutos,
isenções e apoio de marcas. O espaço-lixo expande-se
com a economia, mas a sua pegada não se pode con-
trair ... quando já não é necessário, diminui. Devido à
ua débil viabilidade, o espaço-lixo tem que engolir
cada vez mais programas para sobreviver; em breve
poderemos fazer qualquer coisa em qualquer lugar.
Ierernos conquistado o lugar. No final do espaço-lixo, o
Universal? Graças ao espaço-lixo, a velha aura é
impregnada de um novo brilho para gerar uma súbita
viabilidade comercial: Barcelona amalgamou-se com
os Jogos Olímpicos; Bilbau com o Guggenheim; a 42nd
Street nova-iorquina com a Disney. Deus está morto, o
utor está morto, a história está morta, só o arquitecto
continua de pé ... uma insultuosa piada evolutiva ...
Uma escassez de maestros não deteve uma prolifera-
ção de obras-primas. A «Obra-Prima» transformou-se
numa punição definitiva, um espaço semântico que
protege o objecto perante a crítica, deixa as suas qua-
lidades por provar, o seu comportamento por testar e
os seus motivos por questionar. Uma obra-prima já
não é uma casualidade inexplicável, um lançamento
de dados, mas sim uma tipologia coerente: a sua mis-
são é intimidar, a maioria das suas superfícies exterio-
94 95
res é cu rvada, enormes percentagens dos seus m '11Ij
quadrados são disfuncionais, as suas componanu
centrífugas apenas permanecem unidas pela forç dI I
átrio, temendo a eminente chegada da contabilid I
judicial. .. Quanto mais indeterminada é a cidade, m ,
específico é o seu espaço-lixo; todos os protótipos 1i
espaço-lixo são urbanos -o Fórum Romano, a Metl(l
pole; é só a sua sinergia inversa que os torna suburb
nos, ao mesmo tempo inchados e encolhidos. O esp I
ço-lixo reduz o que é urbano na urbanidade ... Em v I.
de vida pública, Espaço Público": o que fica da cidad
depois de se eliminar o imprevisível ... Espaço par
«honrar», «partilhar», «cuidar», «sofrer», e «curar» ...
civilidade imposta por uma overdose de serifas ... NO
terceiro milénio, o espaço-lixo assumirá a responsabi
lidade pelo prazer e pela religião, pela exibição e pel
intimidade, pelo público e pelo privado.lnevitavelmen-
te, a morte de Deus (e do autor) gerou um espaço que
se tornou órfão; o espaço-lixo não tem autor, contudo é
surpreendentemente autoritário ... No momento da
sua grande emancipação, a Humanidade está subme-
tida aos guiões mais ditatoriais: desde o prepotente
discurso do empregado de mesa até aos gulags dos
atendedores automáticos do outro lado do telefone, às
normas de segurança dos aviões e aos perfumes cada
vez mais insistentes, a Humanidade vê-se intimada a
ficar submetida a uma linha de argumento tracada
96
li
oorn o máximo rigor ... O cenário seleccionado para a
II1 galomania -o ditatorial- já não é política, mas
IIn entretenimento. Graças ao espaço-lixo, o entrete-
nlmento organiza regimes herméticos de exclusão e
concentração máximas: jogos de concentração, golfe
li concentração, congressos de concentração, cine-
m de concentração, cultura de concentração, férias
de concentração. Oentretenimento é como observar o
mefecimento de um planeta até então quente; os
seus principais inventos já são antigos: a imagem em
movimento, a montanha russa, o som gravado, os
desenhos animados,os palhaços, os monociclos, os
dinossauros, as notícias, a guerra. Salvo no que res-
peita aos famosos -dos quais temos uma grande
escassez- não acrescentámos nada, apenas reconfi-
gurámos. O ertusretenimetno' é uma galáxia em con-
traccão forcada a manter-se em movimento pelas, ' ,
implacáveis leis de Copérnico. O segredo da estética
empresarial era o poder de eliminação, a exaltação da
eficácia, a erradicação do excesso: a abstracção como
camuflagem, a busca do Sublime Empresarial. Por exi-
gência popular, a beleza organizada tornou-se simpá-
tica, humanista, inclusiva, arbitrária, poética e pouco
ameaçadora: a água é pressurizada por orifícios muito
, Fusào de empresa e entretenimento, que pretende traduzir o neologis-
mo inglês corpotainment, de corporate e entertainment [N. do T.].
97
pequenos e depois obrigada a formar círculos rigo-
rosos; as palmeiras direitas são dobradas em poses
grotescas; o ar é carregado de oxigénio incorporado
-como se apenas aplicando às substâncias maleá-
veis as contorções mais drásticas mantivesse o con-
trolo e satisfizesse o impulso de exterminar a surpre-
sa. Não é riso enlatado, mas sim euforia enlatada ...
A cor desapareceu para refrear a cacofonia resultante
e é utilizada apenas como sugestão: relaxe-se, desfru-
te, sinta-se bem, estamos unidos na anestesia ... Por-
que não podemos tolerar sensações mais fortes?
A dissonância? A incomodidade? O génio? A anar-
quia? .. O espaço-lixo cura, pelo menos é isso o que
pensam muitos hospitais. Pensávamos que o hospital
era algo único -um universo que se identificava pelo
seu cheiro- mas agora que estamos acostumados ao
acondicionamento universal, reconhecemos que era
simplesmente um protótipo; todo o espaço-lixo está
definido pelo seu cheiro. Geralmente heróicos no
tamanho, projectados com a última adrenalina de
grandiosa inspiração do modernismo, fizemo-tos
(demasiado) humanos; decisões de vida ou de morte
tomam-se em espaços que são implacavelmente ami-
gáveis, repletos de ramos de flores murchas, chávenas
de café vazias e jornais do dia anterior. Estávamos
habituados a enfrentar a morte em células apropria-
das, agora os nossos familiares agrupam-se em átrios.
98
Uma pronunciada linha de referência estabelece-se
em cada superfície vertical, dividindo em dois a enfer-
maria: em cima, uma interminável e humanista exibi-
ção de «cor», os entes queridos, poentes infantis,
sinalização e arte ... em baixo uma zona utilitária para
a mutilação e a desinfecção, para a colisão prevista, o
arranhão, o derramamento e a mancha ... O espaço-
lixo é um espaço semelhante ao das férias; dantes
havia uma relação entre o ócio e o trabalho, uma impo-
sição bíblica que dividia as nossas semanas e organi-
zava a vida pública. Agora trabalhamos mais ardua-
mente, abandonados numa interminável sexta-feira
informal ... O escritório é a fronteira seguinte do espa-
ço-lixo. Dado que podemos trabalhar em casa, o escri-
tório aspira ao doméstico; e como continuamos a pre-
cisar de viver a nossa vida, o escritório simula a cidade.
O espaço-lixo representa o escritório como lar urbano,
um toucador de reuniões: as mesas de trabalho trans-
formam-se em esculturas, a zona de trabalho ilumina-
se com luzes indirectas íntimas. Tabiques monumen-
tais, quiosques, mini-Starbucks nas praças interiores,
um universo de Post-it: «recordação de equipa», «per-
sistência de informação»; defesas. inúteis perante o
esquecimento universal do não memorável, o parado-
xo como declaracão de intencões. Testemunho da agi-, ,
tprop empresarial: a suíte do administrador transfor-
ma-se num «colectivo de direcção», ligado ao resto do
99
espaço-lixo do mundo inteiro, real ou imaginário.
Espaço torna-se E-spaço. O século XXI trará um esp
co-Iixo inteligente, num grande «painel» digital: ven
das, a CNNNYSENASDAQC-SPAN,2qualquer coisa qu
suba e desça, do bem ao mal, apresentado em tempo
real como a aula teórica sobre automóveis que com-
plementa as lições de condução ... A globalização
transforma a linguagem em espaço-lixo. Estamos
submetidos a um marasmo da fala. A ubiquidade do
inglês é pírrica: agora que todos o falamos, ninguém se
recorda do seu uso. A degradação colectiva do inglês é
o nosso feito mais impressionante; demos cabo dele
com a ignorância, a pronúncia, a gíria, o calão, o turis-
mo, o outsourcing e a multitasking ... podemos fazer
com que diga tudo o que queremos, como um boneco
que fala ... Graças à retroversão a que submetemos a
linguagem, restam poucas palavras verosímeis; as
nossas hipóteses mais criativas nunca serão formula-
das, as descobertas ficarão por fazer, os conceitos por
apresentar, as filosofias abafadas, os matizes imper-
ceptíveis ... vemos em sumptuosos subúrbios Pote-
mkin de eufemismos ... Aberrantes ecologias linguísti-
cas sustentam sujeitos virtuais na sua reivindicacão
de legitimidade, ajudando-as a sobreviver ... Já não
2 o canal de televisão CNN. a Bolsa de Nova lorque (NYSE), o índice
NASDAQ e o serviço informativo C-SPAN. [N. do T.] .
100
u
utilizamos a linguagem para explorar, definir, expres-
li r ou confrontar mas sim para esquivar, ofuscar, apa-
1\ r,desculpar e consolar ... agora, a linguagem faz rei-
vindicações, decide quem são as vítimas, antecipa-se
00 debate, admite a culpa, promove o consenso. Orga-
nizações e/ou profissões inteiras impõem uma desci-
da ao equivalente linguístico do inferno: fadados a um
limbo das palavras, os condenados lutam com as
palavras numa descida eterna por espirais de súpli-
cas, mentiras, discussões, humilhações numa orques-
tração satânica do sem sentido ... Apesar de estar des-
tinado ao interior, o espaço-lixo pode facilmente
ngolir uma cidade inteira. Primeiro escapa-se dos
seus contentores -orquídeas semânticas que neces-
sitam protecção de estufa emergem com uma robus-
tez surpreendente- mais tarde, o próprio exterior
transforma-se: a rua é pavimentada de forma mais
luxuosa, proliferam os refúgios que mostram mensa-
gens cada vez mais ditatoriais, o tráfico acalma-se, o
crime é eliminado. Depois, o espaço-lixo propaga-se
como um incêndio florestal em Los Angeles ... O pro-
gresso global do espaço-lixo representa um Destino
Manifesto final: o Mundo como espaço público ... Todos
os emblemas ressuscitados e os âmbares reciclados
do que então era público precisam de novos pastos.
Uma nova vegetação é encurralada para aproveitar a
sua eficiência temática. A exteriorização do espaço-
101
lixo desencadeou a profissionalização da desnaturali-
zação, um benevolente eco-fascismo que situa um
exemplar de tigre siberiano em perigo de extinção
numa floresta de slot-machines, perto da Armani,
entre um retorcido Barroco arbóreo ... No exterior, entre
os casinos, fontes projectam edifícios estalinistas de
líquido inteiros, ejaculados numa fracção de segundo,
que planam por um momento e logo se retiram com
uma competência amnésica ... Ar, água, madeira: tudo
é realçado para produzir Hioerecologia", um Walden
paralelo, uma nova selva tropical. A paisagem trans-
formou-se em espaço-lixo, a folhagem como desper-
dício: as árvores são torturadas, relvados cobrem as
manipulações humanas como uma grossa capa de
pele ou mesmo como perucas, os aspersores regam,
obedecendo a horários calculados matematicamen-
te ... Aparentemente no extremo oposto ao espaço-lixo,
o campo de golfe é de facto o seu duplo conceptual:
vazio, sereno, livre de resíduos comerciais. A relativa
evacuação do campo de golfe consegue-se sobrecar-
regando ainda mais o espaço-lixo. Os métodos utiliza-
dos para o seu desenho e realização são semelhantes:
apagar, tabula rasa, reconfigurar. O espaço-lixo trans-
forma-se em bio-lixo, a ecologia em eco-espaço. A eco-
logia e a economia uniram-se no espaço-lixo para for-
mar a ecolomia. A economia tornou-se Fáustica; o
hiper-desenvolvimento depende de um subdesenvol-
102
vimento artificial, umaenorme burocracia global está
num processo de construção, como num colossal yin/
yang, o equilíbrio entre o espaço-lixo e o golfe, entre o
arrasado e o ajardinado, trocando o direito de saquear
pela obrigação de criar selvas tropicais de esteróides
na Costa Rica. Bancos de oxigénio, Fortes Knoxes de
clorofila, eco-reservas que são cheques em branco
para uma maior poluição. O espaço-lixo está a rees-
crever o apocalipse; poderíamos morrer por intoxica-
ção de oxigénio ... No passado as complexidades do
espaço-lixo eram compensadas pela austera crueza
das suas infra-estruturas adjuntas: parques de esta-
cionamento, gasolineiras, centros de distribuição que
exibiam rotineiramente uma pureza monumental que
era o objectivo original do modernismo. Agora, enor-
mes injecções de lirismo permitiram que uma infra-
estrutura -o único domínio até agora imune ao dese-
nho, ao gosto ou ao mercado- se unisse ao mundo do
espaço-lixo, e que o espaço-lixo expandisse as suas
manifestações debaixo do céu. As estações de com-
boios expandem-se como borboletas metálicas, os
aeroportos brilham como gigantescas gotas de orva-
lho, as pontes estendem-se com frequência sobre
margens insignificantes como versões grotescas e
ampliadas de uma harpa. Cada riacho tem o seu Cala-
trava. (Por vezes, quando sopra vento forte, esta nova
geração de instrumentos é sacudida como se estives-
103
sem a ser tocados por um gigante, ou talvez um deus,
e a Humanidade estremece ...). Oespaço-lixo pode ser
aerotransportado, pode levar a malária ao Sussex;
300 mosquitos anofeles chegam todos os dias ao
GDG [Aeroporto Charles de Gaulle, Paris] e ao GTW
[Aeroporto de Gatwick, Londres], teoricamente com
capacidade para infectar de 8 a 20 habitantes locais
num raio de 5 quilómetros; um risco exacerbado pela
relutância do passageiro médio, num inoportuno gri-
to de sem i-autonomia, em ser desinfectado quando
aperta o cinto para a viagem de regresso a casa vindo
dos becos dos destinos turísticos. Os aeroportos, aco-
modações provisórias para aqueles que se dirigem
para outros lugares, habitados por agrupamentos de
gente cujo único vínculo é a iminência da sua dissolu-
ção, transformaram-se em «gulags» do consumo, dis-
tribuídos democraticamente por todo o mundo para
que todos os cidadãos tenham as mesmas oportuni-
dades de admissão ... No MXP [Aeroporto de Malpen-
sa, Milão] parece que todas as sobras da reconstrução
da Alemanha do Leste -o que quer que fosse preciso
para desfazer as privações do Comunismo- foram
terraplanadas a toda pressa, segundo um projecto
vagamente rectangular, para formar uma sequência
mal-amanhada de espaços disformes e inadequados,
que aparentemente recuperaram a vida graças aos
actuais governantes da Europa, que extorquem quan-
104
Lidades ilimitadas de euros dos fundos regionais
comunitários, causando atrasos sem fim aos contri-
buintes defraudados, demasiado ocupados a falar aos
eus telemóveis para se darem conta disso. O DFW
[Aeroporto de Dallas] é composto apenas por três ele-
mentos repetidos ad infinitum, nada mais: um tipo de
viga, um tipo de tijolo e um tipo de azulejo, todos reves-
tidos da mesma cor - será azul petróleo? cor de fer-
rugem?, cor de tabaco? A escala das suas simetrias
está para além de todo o reconhecimento, a eterna
curva dos terminais força os seus utilizadores a pôr
em prática a teoria da relatividade em busca da porta
de embarque. O seu apeadeiro é aparentemente um
inofensivo começo de uma viagem ao coração do nada
absoluto, para além da animação que proporcionam a
Pizza Hut, a Dairy Queen... Pensava-se que as culturas
dos vales eram as mais resistentes ao espaço-lixo: no
GVA[Aeroporto de Genebra] ainda é possível apreciar
um universo de regras, ordem, hierarquia, clareza,
coordenação, de momentos de equilíbrio antes da
implosão, mas no ZHR [Aeroporto de Zurique] enor-
mes relógios estão suspensos diante de cascatas
interiores como um ensaio de lixo-regional. O duty-
free é espaço-lixo, o espaço-lixo é espaço livre de
impostos. O local onde a cultura escasseava será o
primeiro a desaparecer? Será o vazio uma coisa local?
Será que os espaços abertos requerem espaço-lixo
105
aberto? Sunbelt: enormes povoados onde não havia
nada; PHX [Aeroporto de PhoenixJ: pinturas de guerra
em todos os terminais, perfis de índios mortos em
todas as superfícies -na alcatifa, no papel de parede,
nos guardanapos- parecem rãs espalmadas pelos
pneus dos carros. Arte pública distribuída por toda a
parte no LAX[Aeroporto de LosAngelesJ: os peixes que
desapareceram dos nossos rios voltam em forma de
arte pública exposta na esplanada; só o que está
morto pode ressuscitar. É possível que até a memória
se tenha convertido em espaço-lixo; só os que foram
assassinados serão recordados ... A privação pode ser
causada por overdose ou por escassez; ambas as situ-
ações ocorrem no espaço-lixo (geralmente ao mesmo
tempo). Omínimo é o derradeiro ornamento, um crime
virtuoso, o Barroco contemporâneo. Não significa
beleza, mas culpa. A sua expressiva seriedade empur-
ra civilizações inteiras para os braços abertos do camp
e do kitsch. Parecendo um alívio da constante arreme-
tida sensorial, o mínimo é o máximo travestido, o luxo
submetido a um dissimulado serviço de lavandaria:
quanto mais sóbrias as linhas, mais irresistíveis as
seduções. O seu papel não é aproximar-se do sublime
mas minimizar a vergonha do consumo, drenar o
embaraço, baixar o que é mais elevado. Omínimo exis-
te agora num estado de co-dependência parasitária
com a overdose: ter e não ter, ansiar e possuir, final-
106
mente reduzidos a um único significante ... Os museus
são espaços-lixo farisaicos; não há aura mais sólida
do que a santidade. Para acomodar os prosélitos que
atraíram por omissão, os museus transformam maci-
çamente o espaço «mau» em espaço «bom»; quanto
menos tratada for a madeira de carvalho, maior é a
fonte de receitas. Mosteiros aumentados à escala de
grandes armazéns: a expansão é a entropia do terceiro
milénio, diluir ou morrer. Dedicados a respeitar sobre-
tudo os mortos, nenhum cemitério ousaria redistribuir
os cadáveres arbitrariamente em nome da conveniên-
cia do momento; os comissários dos museus planeiam
exposições e encontros inesperados em labirintos de
placas de doadores com a astúcia do comerciante: a
roupa interior converte-se em «Nudez, Acção, Corpo»,
e os cosméticos em «História, Memória, Sociedade».
Todos os quadros baseados em grelhas negras são
agrupados numa única sala pintada de branco. Na
gigantesca reconversão, grandes aranhas oferecem
delírio para as massas ... Os reflexos narrativos que,
desde o princípio dos tempos, nos permitiram unir
pontos e preencher os vazios voltam-se agora contra
nós; não podemos deixar de observar: não há sequên-
cia demasiado absurda, trivial, sem sentido, insultuo-
sa... Graças ao nosso antigo equipamento evolutivo, à
nossa irreprimível capacidade para manter a atenção,
só podemos registar, oferecer lucidez, extrair signifi-
107
cados, interpretar as intenções; não podemos deix \I
de encontrar o sentido do que carece cornpletarnanlt
dele ... Na sua marcha triunfal como fornecedora ,11
conteúdo, a arte estende-se muito para além dos liml
tes cada vez maiores do museu. Fora, no mundo real,
planificador artístico propaga a incoerência fund \
mental do espaço-lixo ao atribuir mitologias extintas \
superfícies residuais e ao implantar obras tridimen
sionais num vazio sobrante. Ao procurar a autenticid
de, o seu toque sela o destino do que era real ou apro
veita-o para ser incorporado no espaço-lixo. A
galerias de arte mudam-se en masse para locais «lirnl
te» e em seguida transformam esse espaço virgem em
cubos brancos ... Oúnico discurso legítimo é a perda;
arte preenche completamente o espaço-lixo na pro-
porção directa da sua própria morbidez. Antes, costu-
mávamos renovar o que estava esgotado; agora tenta-
mosressuscitar o que está morto ... No exterior, a ponte
pedonal do arquitecto é sacudida até ao ponto de rup-
tura devido à passagem de peões entusiastas; a audá-
cia inicial dos projectistas espera agora a aplicação de
amortecedores por parte dos engenheiros. O espaço-
lixo é um mundo de olhar-e-não-tocar ... A ameaça
constante da virtualidade do espaço-lixo já não é exor-
cizada com produtos petroquímicos, plásticos, de vinil
ou de borracha; o sintético é mais barato. O espaço-
lixo deve exagerar as suas reivindicações do autêntico.
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() paço-lixo é como uma matriz que se encarrega de
111 ganizar a transição de ilimitadas quantidades do
1« l -pedra, árvores, bens, luz do dia, pessoas-
1'11 a o irreal. Montanhas inteiras são arrasadas para
!l'oporcionar quantidades cada vez maiores de aute~-
II idade, ficando suspensas em braçadeiras preca-
I i s. são polidas até ficarem com um brilho cintilante
que faz com que a pretendida seriedade se torne ins-
I ntaneamente enganosa. A pedra só aparece em
irnarelo claro, cor de carne, num bege intenso ou num
v rde sabão, as cores dos plásticos comunistas dos
nnos 1950. As florestas são cortadas, a madeira é toda
álida: talvez as origens do espaço-lixo remontem ao
jardim infantil ... (<<Origins»é um champô de hortelã
pimenta que provoca ardor na região anal). A cor no
mundo real parece cada vez mais irreal, mais consu-
mida. A cor no espaço virtual é luminosa e portanto
irresistível. Um excesso de tele-realidade transfor-
mou-nos em vigilantes aficionados que monitorizam
um Universo-lixo ... Desde os seios animados da violi-
nista clássica, até à barba incipiente do desenhador
do proscrito Big Brother, à pedofilia contextual do ex-
revolucionário, às dependências rotineiras das estre-
las, à maquilhagem derretida do evangelista, à robóti-
ca linguagem corporal do apresentador, aos duvidosos
benefícios dos maratonistas para recolha de fundos,
às fúteis explicações do político: a descida súbita da
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câmara de televisão suspensa de uma grua -uma
águia sem bico, nem garras, só com um estômago ópti-
co- devora imagens e confissões indiscriminada-
mente, como um saco de lixo, para as propulsar para o
espaço em forma de ciber-vómito. Osestúdios de tele-
visão -estridentemente monumentais- são tanto o
culminar como o final do espaço perspectivo, tal como
o conhecemos; restos angulares e geométricos que
invadem infinitos estrelados; espaço real editado para
transmissões fáceis no espaço virtual, eixo crucial de
uma espiral infernal de reacções ... a imensidão do
espaço-lixo estendida até aos limites do Big Bang. Por-
que passamos a vida no interior -como animais num
jardim zoológico- estamos obcecados com o clima:
40 % de tudo o que se emite em televisão consiste em
apresentadores pouco atractivos fazendo gestos im-
potentes frente a formações açoitadas pelo vento,
através das quais podemos reconhecer, por vezes, o
nosso próprio destino ou posição actual. Conceptual-
mente, cada monitor, cada ecrã de televisão é o subs-
tituto de uma janela; a vida real está lá dentro, o ci-
berespaço transformou-se nos grandes exteriores ...
A Humanidade está sempre a falar de arquitectura.
Oque aconteceria se o espaço começasse a olhar para
a Humanidade? Invadiria o espaço-lixo o nosso corpo?
Através das vibrações do telemóvel? Já o fez? Através
de injecções de Botox? De colagénio? De implantes de
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silicone? Da lipoaspiracào? Do alongamento do pénis?
Será que a terapia genética anuncia uma remodelação
total de acordo com o espaço-lixo? Somos cada um de
nós um estaleiro em miniatura? Será a Humanidade a
soma de 3 a 5 mil milhões de actualizações individu-
ais? Será por acaso o repertório de uma reconfigura-
cão que facilitará a intromissão de uma nova espécie
nessa esfera-lixo que ela própria criou? Ocosmético é
agora o novo cósmico ...
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