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:;' , " ) , ARJUN APPADURAI é professor de antropologia e de línguas e civilizações da Ásia meridional na Universidade de Chicago, cidade onde foi a'nteriormente director do Chicago Humanities Institute, Entre as suas muitas publicações contam-se: Worship a.nd Conflict under Colonial Rule (Cambridge, 1981), The Social Life of Things (director de edição na Cambridge University Press, 1986) e Gender, , Genre and Power (como co-editor da University of Pennsylvania Press, '1991). É director do Globalization Project na Universidade de Chicago e trabalha actualmente sobre a relação entre violência , étnica e representações do território nos modernos estados-nação. I ' I I I', ARJUN APPADURAI Dimensões Culturais da Globalização A modernidade sem pelas , Tradução de TeIma Costa Revisão científica Conceição Moreira teorema . (JOO · . © 1996. Regents of the Uni versity of Minnesota Título originaI: Modernity at Large - Cultural Dimensions oJ Globalizacion Tradução: Telma Costa Revisão científica: Conceição Moreira Capa: Fernando Mateus ' Composição e paginação: Rui Miguens de Almeida lmpressão e Rainha & Neves. Ldao 1 Santa Maria da Feira I;ste livro foi impresso no mês de Dezembro de 2004 :S BN: .972-695-612-9 Depósito legal no' 219595104 ;\õdos os direitos reservados por EDITORIAL TEOREMA. LDAo Padre Luís Aparício o 9 - la Frente I : 50-148 Li sboa 1 Portugal "relef.: 213129131 - Fax:::1 352 14 80 t ornail: mail @editorialteorema.pt i ., I i I ' Para o meu filho Alok, meu abrigo no mundo O Q O O O · O I ' 0,- () '- () o O Q O O C) O CJ O () O () , ' v . ) ') 1 ) '\ I } J ) , , "" } -V j. ''i iI 11 ) ;} Jt ) -.. .;,;;? ..;; Agradecimentos Este livro foi escrito ao longo de um peqodo de seis anos e durante esse tempo, benefiCiei docontacto com muitas pessoas e instituições. A ideia do livro tomou formadurante 1989-90, os anos em que fui MacArthur FelIow no Instituto de Estudps Avançados, em Princeton. Partes dele foram escritas enquanto estive na Universidade da Pensilvânia como co-director do Centro de Estudos Culturais Transnacionais. Foi terminado na Universidade de Chicago, onde participei em um sem-número de conversas interdisciplina:- res no Instituto'de Humanidades, em ChÍcago, e onde beneficiei das ener- gias do Projecto Globalização. Ainda em Chicago e durante este período, as conversas e debates no Centro de Estudos Transculturais (antigo Centro , . de Estudos Psicossociais) foram fonte de frutuos.as perspectivas nacionais e internacionais. Recebi proveitosas críticas e sugestões sobre as várias partes e versões \ dos capítUlos deste livro das seguintes pessoas: Lila Abú-Lughod, Shahid Arriín, Tala! Asad, Fredrik Barth, Sanjiv Baruah, Lauren Berlant, John Brewer, Partha ChatteIjee, Fernando Coronil, Valentine Daniel, Micaela di Leonardo, Nic.holas Dirks, Virginia Dominguez, Richard Fardon, Mi- chael Fischer, Richard. Fox, Sandria Freitag, S,:!san Gal, Clifford Geertz, Peter Geschiere, Michael Geyer, Akhil Gupta, Michael Hanchard, Miriam 7 ARJUN APPADURAI Hansen, Marilyn Ivy, Orvar Lofgren, David Ludden, John MacAloon, Achille Mberribe, Ashis Nandy, Gyanendra Pandey, Peter Pels,Roy Por- ter, Moishe Postone, Paul Rabinow,.Bruce Robbins, Roger Rouse, Mars- hall Sahlins, Lee Schlesiriger, Terry Smith, Stanley J. Tambiah, Charles , . Taylor, Michel-Rolph Trouillot, Gieg Urban, Ashutosh Varshney, Toby - Volkman, Myron Weiner e Geoffrey White. Aos que inadvertidamente es- queci, as minhas sinceras desculpas. Um pequeno número de pessoas merece uma menção especial pelo seu apoio mais generalizado e O meu professor, amigo e co- lega Bernard S. Cohn deu-me, em 1970, o sinal de partida para uma via- gem através da antropologia e da história e tem sido desde então uma inesgotável fonte de ideias, de amizade e de crítica realista. Nancy Far- riss manteve-me sempre atento aos desafios da comparação histórica e , ao significado da fidelidade ao arquivo. Ulf Hannerz é o meu parceiro para o estudo da res global desde '1984, ano que passámos juntos no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Corriportamento (PaIo Alto). Peter van der Veer, em Filadélfia como em Amesterdão, é uma fonte inesgotável de amizade, humor e debate de ideias. John e Jean Co- maroff, graças à sua cultura e à sua estimulante presença no departamen- to de Antropologia da Universidade de Chicago, contribuíram de muitas formas para a elaboração deste livro. Sherry Ortner apoiou o projecto desde o princípio e proporcionou uma das duas cuidadosas e sugestivas leituras do manuscrito para a University of Minnesota Press. Estou igualmente grato ao seguIldo leitor, anónimo. Dilip Gaonkar e Benjamin Lee (os directores da colecção que inclui este 'livro) foram amigos, co- legas e interlocutores sob muitas e variadas formas. Homi Bhabha, Jac- queline Bhabha, Dipesh Chakrabarty, Steven Collins, PrasenjitDuara e Sheldon Pollock proporcionaram-me uma comunhão de ideias que, ao mesmo tempo que se ia formando, me ajudava a completar este livro a imaginar muitos outros para o futuro. Lisa directora da University of Minriesota Press, e Janaki Bakhle (àrHeriormente na Press) estiveram sempre ao meu lado, num mis- to de paciência e estímulo, sugestões críticas e saber editorial. 8 DIMENSÕES CULTURAIS DA .GLOBALIZAÇÃO ur Muitos foram os alunos que, tanto na Universidade da Pensilvânia r como na de Chicago, constituíram uma fonte de inspiração e de énergia. , .1, Devo fazer menção espeéial daqueles cujo trabalho enriqueceu as ideias Ü l; I contidas neste livro: Brian Axel, William BisseU, Caroline Cleav.es, Ni- cholas De Genova, Victoria Farmer, Gautam Ghosh, Manu Goswami, O t Mark Liechty, Anne Lorimer, Caitrin Lynch, Jacqui McGibbon, Vy- ' J. ayanthi Rao, Frank RomaoO'osa, Philip Scher, Awadendhra Sharan, Sarah r" I .. ) ,I Strauss, RacheI Tolen, Amy Trubek e Miklos Votos. Eve Darian-Smith, Ç) : Ritti Lukose e Janelle Taylor merecem menção especial, quer pelo con- . 1 tributo intelectual dado a este livro, quer pela sua assistência Cai- , O i trin Lynch fez um esplêndido trabalho no índice. Entre outros, participa-: O, ram também no complexo processo de produção deste texto Namita Gupta O Wiggers e Lisa McNair. A minha família viveu com este livro, sempre generosamente mas por vezes sem saber que o fazia. A. minha mulher e colega; Carol A. Brec- kenridge, est'á de certo modo presente em tOdas as páginas: este livro é mais um documento da aventura das nossas vidas. O meu filho Alok, a quem este livro é tornou-se adulto com ele. A sUa capacidade de amare a sua paixão pela vida têm velado para que eu nunca esqueça que os livros não são o mundo: são sobre o mundo. 9 . () Ü () U () Ü (j U O \) O O Ü , ) () o o I I . I I I I I I 1 " , 1 Aqui e agora A modernidade pertence a essa" pequena fariulia dé teorias que simul- taneamente se declara e se deseja de aplicabilidade universal. O que tem de novo a modernidade (ou a ideia de que a sua novidade é um novo tipo de novidade) decorre desta dualidade. Para além de tudo o que criou, o projecto iluminista aspirou a criar pessoas que, postfestum, viessem a querer ser modernas. Esta ideia que em si própria se consuma e" se justifica provocou muitas críticas e muita resistência, tanto na teoria como na vida Nos meus tempos de juventude, em"Bombaim, o contacto com a mo- dernidade enl uma experiência nitidamente sinestésica e largamente an- teteórica. Via " e cheirava a modernidade lendo a Life e catálogos" de uni- versidades americanas na biblioteca do United States Information Service, vendo filmes da série B(e alguns da série A) de Hollywood no Cinema Eros, a quinhentos metros do meu prédio. Pedi para Stanford, ao meu ir- mão (no princípio dos anos sessenta), que me trouxesse umasjeans e rei a América no que trazia a sua bagagem quando ele regressou. Grad; a1- mente, fui perdendo a Inglaterra que antes assimilara a p'artir dos livros 11 " i , I, , ARJUN APPADURAI escolares vitorianos, do que diziam os meus colegas de faculdade que ti- nham bolsas Rhodes e dos livros de Billy Bunter e Biggles devorados in- discriminadamente, a par de outros de Richmal Crompton e Enid . Franny e·Zooey, Holden Caulfield e Rabbit Angstrom foram limando len- tamente essa parte de mim que até então era só vivas à Inglaterra. São es- tas as pequenas derrotas que explicam como a Inglaterra perdeu o império na Bombaim pós-colonial. . . Não sabia então que estava a afastar-me de uma espécie de subjecti- vldade pós-colonial (dicção anglófona, pseudodebates na Oxford U nion umas espreitadelas à Encounter, um interesse patrício pelas humanidades) para outra: o Novo Mundo mais áspero, mais sedutor, mais viciante das reprises de Humphrey Bogart, de Harold Robbins, da Time e das ciências socjáis em estilo americano. Quarido mergulhei nos prazeres do cosmo- P?litismo, no Elphinstone College, já ia equipado com tudo o que é pre- . CISO: uma educação anglófona, um endereço da classe alta de Bombaim (emboracof9. o rendimento. de uma faffil1ia da classe média), relaciona- social .com manda-chuvas da academia, um irmão famoso Uá fa- que tinha sido lá aluno, uma irmã com amigas bonitas já na uni- versidade. tinha sido picado pelo bichinho americano. Estava já .entrado na VIagem que me levou à Universidade de Brandeis (em 1967, quando os estudantes eram uma categoria étnica irrequieta nos Estados Unidos) e depois até à Universidade de Chicago. Em 1970 ainda eu an- dava à deriva, a caminho de um encontro com as ciências sociais ameri- canas, com os estudos de área e com essa forma triunfal de teoria da mo- dernização que era. ainda produto certificado do americanismo num mundo bipolar. . . Os que se seguem podem ser vistos como um esforço para dar sentIdo a uma viagem que começou com a modernidade como sen- . sação materializada nos filmes de Bombaim e terminou num frente-a- -frente com a modernidade-corno-teoria nas minhas aulas de ciências so- . ciais, na Universidade de Chicago, nos primeiros anos setenta. Nestes capítulos, procurei te matizar certos factos culturais e para ex- ·por ·a relação entre a modernização como facto e a modernização como 12 \ I 1 ! . . .. . _ _ • _ -DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO g \ teoria 1. Esta inversãÇl do p·rocesso que me deu a conhecer o ser- O I. ve para explicar algo que de outro modo poderia uma preferên- : disciplinar e ,arbitrária pelo cultural como mera deformação profis- O . slOnal do antropologo. . . . O fC'\t \J t- .• O r O global hoje O . ' . () I Todas as grandes forças sociais têm percursores, precedeI1tes, análogos . : e. fontes no passado. São estas as profundas e múltiplas gen'ealogias (ver ! capítulo 3) que têm frustrado a modernizadores inseridos em sociedades U " . muito diferentes a aspiração de ·sincronizar os seus relógios históricos. () \ Este livro defende também a presença de·Uma ruptura geral no teor das O .. relações intersocietais destas últimas décadas. Há que explicar esta pers- O pectiva de mudança - melhor, de ruptura - e distingui-la de algumas O das anteriores teorias da transformação radical. > . . Um dos mais problemáticos legados da ciência social do Oci- () dente (Auguste Comte, Karl Marx, Ferdinand TonÍ1ies, Max Weber, O Émile Durkheim) é nunca ter deixado de reforçar o sentido de um mo- O mento singular - chamemos-lhe o momento moderno - que pela sua C) aparência abre. uma brecha profunda é sem precedentes entre o passado O· e o presente. Reencarnada como o corte· entre tradição e modernidade e O tipificada comCa ·;;tre sõciedades ostensivamente fraCf0io- nais e sociedades por demais demonstrado po- Ü os sig1Ü.ficados da tiãn-:SJôrmação e da política do () \ No entanto, o mundo em que hoje vivemos - em que a modernidade.O \anda decididamente à solta, por vezes acanhada e sentida de· forma de- Q . sigual - implica seguramente um corte com todo o tipo· de passados . O ! Que espécie de corte é este, senão o identificado pela teoria da moder- o. 1 nização (e criticado no capítulo 7)? . Implícita neste livro está uma teoria de ruptura que toma os meios O de comunicação social e a migração como os seus dois diacríticos prin- O cipais e interligados, e explora o seu efeito conjunto sobre a obra da C; o .< " AI.UUN APPADURAI como característica constitutivá da subjectividade moderna. pnmeIro passo o provar é que os meios de comunicação electró- lllCOS mudaram decIsIvamente o campo mais ·vasto dos meios de comu- nicação de massas e outros meios de comunicação tradicionais. Isto não é uma fetichização monocausal da electrónica. Esses meios de comuni- o campo da mediatização de massas porque ofere- cem a construçao de eus imaginados e de mundos imaginados novos re- novas disciplinas. É uma tese relaciona!. A comunicação marca. e um campo muito mais vasto em que a, escnta e outras formas de comunicação oral, visual e au- dItIva podem continuar a ser importantes. Através de processos c'omo a ondensação de notícias em bytes audiovisuais, através da tensão entre s espaços públicos do cinema e os espaços mais exclusivos do vídeo través .imediatidade.da sua absorção no discurso público e d ten?enCIa para os associar a sedução, a cosmopolitismo e a novidade, . m.elOs electrónicos (estejam eles ligados a notícias, . Ifuca, vIda famIlIar ou diversão e espectáculos) tendem a interrogar, ubverter e transfo,rmar outras literacias contextuais. Nos capítulos que eguem vou atras dos modos como a comunicação electrónica trans- ma mundos de comunicação e conduta preexistentes. A comunicação electrónica dá uma tessitura nova ao contexto em que oderno e o global aparecem como faces opostas da ma moeda. Sempre portadora do sentido da distância entre observa- 8.contecimento, provoca, não obstante, a transformação do discurso Ao mesmo tempo, fornece recursos para a espécie de de construção dó eu em todo o tipo de sociedades e para tIpO de pessoas. Permite enredos de vidas possíveis imbuídas da o das estrelas de Cinema e de fantásticos argumentos de filmes . u o seu caráctet de plausibilidade, como noticiários, ntários e outras formas de telemediatização informativa e de texto o. Graças à mera multiplicidade de formas que assume (cinema, o, computadores e telefones) e à maneira rápida como se move das rotinas da vida quotidiana, a comunicação electrónica é uma . DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO ferramenta para que cada indivíduo se imagine como um projecto social em curso. Passa-se com o movimento o mesmo que se passa na mediatização. A questão das migrações de massas (voluntárias e forçadas) não é nada de novo na história humana: Mas se a colocarmos' em justaposição com o rápido fluxo de imagens, textos e sensações mediatizados, temos uma nova ordem de instabilidade na moderna produção de subjectividades, Quando os turcos que trabalham na Alemanha vêem filmes nos seus apartamentos alemães, os coreanos de Filadélfia vêem as Olimpíadas de Seul-1988 através de emissões satélite da .Coreia e em Chicago os ta- xistas paquistaneses ouvem cassetes de sermões ' gravados em mesquitas no ou no Irão, vemos imagens que vão ter com "espectadores desterritorializados. E estes criam esferas públicas de diáspora, fenóme- nos que invalidam as teorias ancoradas na hegemonia continuada do Es- tado-nação.como principal árbitro de importantes transformações sociais. ',' Em suma, a corn.unicação electrónicae as migrações marcam o mundo 'do presente, não 'como forças tecnicamente novas, mas como aquelas que . parecem impelir (e, por vezes, compelir) a obra da imaginação. Juntas, criam irregularidades específicas porque espectadores e imagens estão em circulação simultânef Nem as imagens nem os espectadores cabem em cir- cuitos ou audiências que facilmente se confinam a espaços locais, nacionais ou regionais. Claro que muitos espectadores podem não emigr;rr. E muitos acontecimentos mediatizados são de alcance fortemente local, como a tele- visão por cabo em algumas partes dos Estados Unidos. Mas poucos são os filmes, notícias radiofónicas, ou espectáculos de televisão importantes que se mantêm üúeiramente incólumes a outros acontecimentos mediáticos vin- dos de longe. E, no .mundo de hoje,poucas são as pessoas que não têm um amigo, um parente, um çolega de trabalho que não esteja a caminho de qual- quer outro lugar oujá de voita para casa, portador de histórias e de possi- bilidades. Neste sentido; tanto pés soas como imagens encontram-se muitas vezes por acaso, forà' das certezas do cordão sanitário de efeitos me-'. diáticos locais enácionais. Esta relação amovível e imprevisível entre acon- tecimentos e audiências migratórias define o âmago da liga- ., 15 ARJUN APP , ção entre a globalização e o modernolNos capítulos que seguem, mostro que a obra da neste contexto, nem é puramente emanci- , padora nem inteiramente disciplinada: é um espaço de contestação no qual indivípuos e grupos procuram anexar o global às suas próprias práticas do . -_ ... - Obra da imaginação de Durkheim e do trabalho do grupo dos Années Sociologiques, os' antropólogos aprenderam à considerar as representações colectivas fac- tos sociais, isto é, a vê-las transcender a volição individ.ual, carregadas com a força da moral social e como realidades sociais que eu quero sugerir é que houve nestas últimas décadas uma transformação com base nas transformações do século em que a ima- ginaçãose tornou um facto colectivo, social. E estaeY9lução está por sua , vez na base da pluralidade de mundos ' Nesta conformidade, absurdo âventar que há algo de novo no papel que a imaginação ocupa no mundo contemporâneo. Afinal, esta- mos habituados a pensar que todas as sociedades produziram ·as suas versões da arte, . do mito, da lenda, expressões que implicavam a poten- cial evanescência da vida social Nestas formas de todas as sociedades se mostraram capazes' de reenquadrar a ,vida social corrente recorrendo a mitologias de \vários tipos em que a " ,vida social surgia imaginativamente deformada. E nos sonhús, os "víduos, mesmo os das sociedades mais simples, acharam o terreno onde reconfigurar a sua vida social, superar estados emocionais e sensações ,' iriterditos e ver coisas que. depois roram integrar no seu sentido da vida corrente. Além'disso, todas estas expressões estiveram na base de um diálogo complexo entre a imaginação e o ritual em muitas sociedades humanas, 'através do qual a força das normas sociais correntes de certo m do se aprofundou, pela inversão, pela ironia ou pela intensidade ac- tu' nte e p I trabàlho de colaboração que muitos tipos de ritual exigem. DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBAL/ZA ' :- .-. Tudo isto é o mais seguro 49., que o melhor da antropologia nica do nos incu1cQu .. t _':, .\ Quando afirm? , que a imaginaçãp , no mundo pós-electrónico ten novo papel significativo, baseio-me em três ·distinções. Primeiro, a 1111 ginação saiu do particular espaço expressivo da arte, mito e ritual passar a fazer parte da actividade mental .quotidiana da gente vulg \J muitas sociedades. Entrou para a lógica da vida corrente de que con I sucesso tinha sido segregada. Clar-o que encontra preced I para tal nas grandes revoluções, nos cultos de personalidade e nos m V , r mentos messiânicos de outrora, em que chefes ferozes implantavam . 11 Rerspectiva na vida social 'oriando assim enérgicos movimentos de trllJl formação.sqcial. Mas agora já ,.não se trata de indivíduos partiçtilarm 111 . . dotados (carismáticos) a injectar imaginação onde ela não cabe. A p , soas' vulgares começaram a dar prova$ de imaginação na sua prática quo tidiana vida. Exemplo deste facto é a mútua contextualização d mil vimento e mediatização. Nunca como agora tantas pessoas parecem imaginar rotineirament possibilidade de elas ou os seus filhos viverem e trabalharem em lug 11 diferentes daqude em que nasceram: é esta a fonte do aumento da t I de migrações a todos os níveis da vida social, nacional e global. OUlJ'll são arrastados para novos cenários, como nos recordam os campos d J fugiadosda Tailândia, Etiópia, TàInil Nadu e Palestina. É que estas p soas deslocam':'se e têm que arrastar consigo a imagi.nação para novas lTll neiras de viver. E depois há os que se deslocam em busca de trabalh I , , riqueza e oportunidades, muitas vezes porque as circunstâncias em qu encontram são intoleráveis. Transformando e alargando ligeiramente d termos importantes de Albert'Hirschman, lealdade e saída, podemos f II I! de diásporas de esperança, 'diásporas de terror e diásporas de desesp 1'( I Mas em todos os casos estas' diásporas trazem a força ' da imaginaç ( I como 'memória e como deseJb , para as vidas de muita gente vulgar, p \I mitografias diferentes das disciplinas e do ritual de tipo clássi 'o O cerne desta diferença é que estás novas rnitografias são atestados ,de no vos projectos sociais e não apenas contraponto das certezas da vida' qu I ARJUN APPADURAI tidiana. Para um grande de pessoas, levam a força glacial do há- bito ao ritmo acelerado da improvisação. Aqui, as imagens, os textos, os modelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicação 'de mas- sas (nos,- seus IpodoS realista e ficcional) traçam a diferença entre as mi- graçõescÍe h.oje eas do passado. Quem quer mudar-se, quemjá se mudou, quem já e quem preferiu ficar raramente formula os planos fora da esfera da rádio e da televisão, das cassetes 'e dos vídeos, dos jornais e do ,tel,efooe. Para os mjgrantes, tanto as fórmulas de adaptação à novos ambientes como o estímulo para sair ou voltar são profundamente afec- tados por um imaginário mediático que frequentemente o es- p,ço nacional. . ' . , A segunda distinção é entre imaginação e fantasia. ,Existe' um vasto respeitável corpo de textos, nomeadamente dos críticos da cultura de assas pertencentes ã Escola de Frankfurt e já avançado na obra de Max Weber, que considera que o mundo moderno está em 'vias de se transformar numa jaúla de ferro por obra das' forças da nierdmtilização O capitalismo industrial e da regulamentação e secularização genera- lizadas do mundo. Entre os teó,ricos da modernização das ú1timas três d6cada's (de Weber, passando por Talcott Parsons e Edward Shils até aniel Lerner, Alex lnkeles e muitos e utros) teve larga aceitação a id ia de que o mundo moderno é um espaço de religiosidade decres- nte (e maior cientismo), menos diversão (e lazer cada vez mais re- ulamentado) e de inibição a todos os níveis. Há linhas nesta ideia, linhas que unem teóricos tão diferentes com9 N rbert Elias e Robert Bell, mas há também nela algo de fundamen- t lmente errado. O erro funciona a dois níveis. Erinlellih.baseia:;sê...lli!!P- quiemprematuro à morte::da religião e à vItória Há novas ligiosidades de toda a espécie que Gemonstram que-ã-religião não nas não morreu como pode até ter mais consequências do que nun- n s pol ítica; g'lobais de hoje, tão inJerligadas e dotadas de tão gran- mobilidade. 'A'um outro nível, é errado presumir que a comunicação ...... . ----. I o ópio Esta posIção, que apenas começa a ser rri gidà, na noção de que os processos mecânicos de repro- \ DIMENSÕES CULTURAIS DA GL lJAUZ • dução reprimem severamente a gente comum que busca trabalh in- dustrial.É demasiado simplista.; vez há mais provas de que o consumo de comunicação de massas origina em todo o mundo resistência, ironia, selectividade e, em geral, im- pulso para a acção. Os terroristas que modelam a sua figura pela de Ram- bo (que já deu origem a uma porção de contrapartidas fora do Ocidente), as donas de casa para quem a leitura de romances e folhetins faz parte do seu esforço de construção de vida própria, famílias muçulmanas reu- nidas a ouvir dirigentes islâmicos gravados em cassete, as criadas do Sul da Índia fazem excursões organizadas a Caxemira, são exemplos do - modo activo' como os meios de . comunicação são apropriados por gente de todo o T-shirts, o's cartazes publicitários, os grafitos,bem 'como a música rap, a dança de rua e os bairros de lata, tudo isso demonstra , que as .. imagens dos meios de comunicação entram rapidamente para os repertórios locais de ironia, ira, humor e resistência.J . , E não-se traiá- apenas de gente do Terceiro Mundo que reage à comu- nicação de massas americana, pois o mesmo é verdadeiro para pessoas de todo o mundo como reacção à sua comunicação electrónica nacional. Tan- to basta para que a teoria dos meios de comunicação como ópio do povo , tenha que ser encarada com grande cepticismo. Não se pretende" sugerir que os consumidores são sujeitos livres que vivem felizes num mundo de , . centros- comerciais seguros, refeições gratuitas e estimulantes rápidos. Como sugiro no capítulo 4, no mundo contemporâneo o consumo é muitas vezes uma forma de corveia, faz parte do processo civilizacional capita- lista. Não obstante, onde há consumo há prazéi,e onde há prazer há acção. Por outro lado, a liberdade é uma mercadoria um tanto mais fugaz. Além disso, a ideia de fantasia traz consigo a inevitável conotação do pensamento divorciado dos projectos e das atções e tem também o seu quê de privado, de individualista. A imaginação, pelo contrário, tem em si um sentido projectivo, o sentido de ser o prelúdio a um qualquermQdo expressão, seja estético ou outro. A fantasia pode dispersar (porque a lógica é muitas vezes autotélica), mas a imaginação, especialmente quando colectiva, pode tomar-se carburante da acção. É a imaginação, nas ARJUN APPADURAI suas formas colectivas, que cria ideias de comunidade de bairro e de na- ção, de economias morais e governos , injustos, de salários mais altos e perspectivas 'çle trabalho no IA imaginação é hoje um para a acção e não apenas para a evasã<0' ' A terceira distinção é entre o sentido individual e o. sentido colectivo da imaginação. Neste passo, é importante salientar que falo de imaginação como' colectivos e não apenas como uma faculdade do in- divíduo dotado (que é o sentido em que tacitamente é tomada desde o flo- rescimento do Romantismo europeu). Parte do que os meios de comuni- cação de massas tornam possível, por causa das condições de leitura, crítica e prazer colectivos, é o noutro lugar chamei «comunidade de sentimentos» (Appadurai, 1990), um grupo que começa a imaginar e a sentir coisas em conjunto. Como tão bem demonstrou Benedict Anderson (1983), o capitali smo impresso pode ser um meio muito importante de grupos que nunca se conheceram começarem a pensar-se como Indoné- sios, Indianos ou Malaios. Mas outras forinas de capitalismo electrónico podem terereitos semelhantes oU mesmo mais fortes , pois não operam apenas ao nível do Estado-nação.\A recepção colectiva dos meios de co- municação de massas, especialmente do cinema e do vídeo, pode criar confrarias de veneração e carisma, como as que se formaram regional- mente em torno da deusa indiana Santochi Ma, nos anos setenta e oitenta, , e internacionalmente em torno do aiatolá Khomeini mais ou menos pela mesma altura. Tais confrarias podem constituir-se a propósito do desporto e do internacionalismo, como tão claramente demonstram os efeitos nacionais dos Jogos Olímpicos. Os condomínios e os prédios albergam videoclubes em sítios como Catmandu ou Bombaim. Clubes de Ias, co- missões de apoio político, emergem em culturas çomunicacionais provin- cianas ,. como no Sul da Índia,.:J " Estas confrarias assemelham-se ao que Diana Crane (1972) chamou «colectivos invisíveis» referindo-se ao mundo da ciência, mas são mais voláteis, menos profissionalizadas, menos sujeitas a critérios de prazer, gosto ou relevância mútua partilhados colectivamente. São comunidades em si, maS' sempre potencialmente comunidades por si capazes de transitar 20 DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZA Ç da imaginação partilhada para a acção colectiva. O mais importante, com I defenderei na conclusão deste capítulo, é que estas confrarias são muit , vezes transnacionais, até pós-nacionais, e operam frequentemente pa , além dos limites da nação. Estas confrarias mediatizadas ' pela comunic \ ção de massas acrescem ainda em complexidade porquanto nelas se en trecruzam diferentes experiênciÇls locais de gosto, prazer e política, cri n do assim a possibilidade de convergências na acção social translocal qu de outro modo seria difícil imaginar. Não há episódio que melhor capte estas realidades do que o caso, qu hoje nos deixa perplexos, Salman Rushdie, em que entra um livro proibi- do, uma sentença de morte de fundamento religioso e um autor empenh doem ter voz e liberdade estética. Os' Versículos Satânicos incitou mu- çulmanos (e outros) do mundo inteiro a debater as políticas de leitura, relevância cultural da censura, a "dignidade da religião e a liberdade de c - , tos grupos para julgarem os autores sem um conhecimento independent do texto. O caso Rushdie é um caso de texto-em-movimento que uma tr • jectória mercantilizada fez sair do porto seguro das normas ocidentais s - bre liberdade artística e direitos estéticos para o espaço da sanha rel igio e da autoridade dos teólogos nas suas próprias esferas transnacionai . Aqui, os mundos transnacionais da estética liberal e do islão radical en- trechocaram-se nos cenários muito diferentes de Bradfàrd e CarachI, Nova Iorque e Nova Deli. Neste episódio, vemos também como é que O processos globais relativos a textos com mobilidade e públicos migrant , criam eventos implósivos que reduzem as pressões globais a diminuta arenas já politizadas (ver capo 7), produzindo 'localidade (cap. 9) segund novas formas globalizadas. Esta teoria de um corte - ou ruptura - que tem o seu vector mai saliente na comunicação electrónica e na migração de massas, é nece - sariamente uma teoria do passado recente (ou do presente alargado), porque sÇ>mente nestas duas últimas décadas os meios de càmunicaçã e as rnlgrações foram tão largamente globalizados, ou seja, operaram em irregularmente transnacionais . Porque penso eu que esta teoria é algo mais que uma actualização das velhas teorias sociais da 21 " .i ) ) ) ) ARJUN APPADURAI rupturas da modernizaçãoO Primeiro, a minha teoria não é teleológica, . \ , d d' . I uma receita que ensina como a modernização ha- e pro UZlr umversa - mente racionalidade, pontualidade, democracia, mercados livres e um Produto Nacional Bruto maior. Segundo, o eixo da minha teoria não é . um projecto de engenharia social em larga escala (seja ele organizado por por instituições internacionais ou outras elites tecnocráti- cas), mas sim uma prática cultural de todos os dias através da qual se transforma a obra da imaginação. Terceiro, a minha abordagem deixa in- teiramente em aberto a questão de saber se as experiências com a mo- dernidade proporcionadas pela comunicação electrónica podem dominar em termos de nacionalismo, violência e justiça social. Por outras pala- vras, sou mais profundamente ambivalente quanto ao prognóstico do que qualquer variante da teoria clássica da modernização que conheça. Quarto e mais importante, a minha abordagem do corte causado pela for- ça conjuntada comunicação e1ectrónica e das migrações de massas é ex- . plicitamente transnacional '- mesmo pós-nacional -, como sugiro na última parte do livro. Assim, afasta-se radicalmente da arquitectura da teoria clássica da modernização, que podemos classificar de fundamen- talmente realista, na medida em que assume a supremacia, tanto meto- dológica como ética, do Estado-nação .. > Não podemos simplificar as coisas imaginando que o global está para o espaço como o moderno está para o tempo. Para muitas sociedades, a modernidade é urr:t alhures, tal como o global é uma vaga temporal que elas têm que conhecer no seu presente. A globalização estreitou a dis- tância entre elites, deslocou relações essenciais entre produtores e con- sumidores, quebrou muitos laços entre o trabalho e a vida familiar, obs- as linhagens entre locais temporários e vínculos nacionais imaginários. A modernidade parece agora mais prática e menos peda- gógica, mais experimental e menos disciplinar do que nos anos cinquen- ta e sessenta, quando era sentida sobretudo (especialmente para quem não pertencesse à elite nacional) através dos aparelhos de propaganda dos Estados-nações que acabavam de adquirir a sua e dos seus crrandes diriaentes como Jawaharlal Nehru, Gamal Abdel Nasser, . o o . i 22 D \ J '. i I· co · DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO Kwame Nkrumah e Sukarno. A mega-retórica modernização para o desenvolvimento (crescimento económico, alta tecnologia, agricultl,lra industrializada, ensino,militarizaç,ão) está ainda presente em muitos países. Mas é frequentemente pontuada, interrogada e domesticada pelas micronarrativas do cinema, da televisão, da música e de outras formas de expressão que permitem que a modernidade seja reescrita mais c<?mo globalização vernacular e menos como uma concessão em larga escala às políticas nacionais e internacionais. Referi já que aqueles que, como eu nasceram no seio das classes dirigentes dos novos países, nos anos e sessenta, tiveram acesso a algo deste experimental, mas, para muitos 'trabalhadores e para os pobres, este compromisso ex- perimental com a modernidade é um facto relativamente recente. . Estas micro narrativas subversivas alimentam também movimentos oposicionistas que vão desde o Sendero Luminoso, no Peru, até ao Ha- bitat for Humanity, dos movimentos dos Verdes na Europa até ao na- cionalismo tâmil no Sri Lanka, dos grupos islâmicos do Egipto àsguer.: rilhas nacionalistas separatistas da Tchetchénia. Néstes movimentos, alguns dos quais são repressivos e violentos enquanto outros são demo- cráticos e pacíficos, podemos ver que a comunicação electrónica de massas e a mobilização transnacional quebraram o monopólio dos Es- tados-nações autónomos sobre o projectoda modernização. A transfor": mação das subjectividades quotidianas através da comunicação electró- nica e da obra da imaginação não é apenas um facto cultural. Está profundamente ligada à política através dos novos modos como os vín- culos, os interesses e as aspirações individuais cada. vez mais intersec- tam os do Estado-nação. As esferas públicas da diáspora criadas por esses confrontos já não são pequenas, nem marginais, nem excepcionais. Integram-se na dinâ- mica cultural da vida urbana na maior parte dos países e continentes nos quais a migração e a comunicação de massas criam conj l,lntamente um novo sentido do global como moderno e do moderno como global. O fi l- me de Mira Nair, Mississipi Masala, por exemplo, é um duplo épico da diáspora e da raça que explora o modo como os indianos transformados . . 23 ARJUN APPADURAI e deslocados pela relações raciais no Uganda encaram as complexidades da raça no Sul dos Estados Unidos sem perderem um sentido de india- nismo-em-movimento. Assistir a encontros de críquete entre a Índia e o Paquistão é, para os que emigraram desses países para os estados do Golfo (ver capo 5), algo que tem a ver com as peculiaridades do nacio- 'nalismo ,da diáspora 'numa política emergente no oceano Índico. Os de- bates intensos sobre língua inglesa e direitos dos imigrantes actualmente a acender-se (de novo) nos Estados Unidos não são apenas mais uma va- riante das políticas do pluralismo: são acerca da capacidade da política americana para conter as políticas de diáspora dos mexicanos no Sul da Califórnia, dos haitianos em Miami, dos colombianos em Nova Iorque , 'e dos coreanos em Los Angeles. Na verdade, como proporei nas minhas observações conclusivas, é' a aparência largamente difundida de vários tipos de esferas públicas de diáspora que constitui um diacrítico especial do moderno global. . Basta por ora de global. Há também um aqui, nestes capítulos. De certo " modo, foram escritos a parti.r do encontro entre a minha equcação angló- do pós-guerra e as estórias de modernização na ciência social ame- ricana como teoria do verdadeiro, do bom e do inevitável. Foram também escritos de uma perspectiva profissional moldada essencialmente por duas formaturas americanas em investigação dentro das quais fiz o grosso da minha formação e em que passei grande parte da minha vida de académi- . co: são elas a antropologia e os estudos de área. Embora seja sobre glo- balização, este livro é marcado e restringido pelas disputas das duas últi- mas décadas no seio de ambas estas formações académicas americanas. Por isso as suas ansiedades epistemológicas são decididamente locais, mesmo que a localidade já não seja o que era (cap. 9). o olhar da antropologia A antropologia é o meu arquivo das realidades vividas, toda a espécie de etnografias sobre povos que viveram vidas muito diferentes 24 t' .?,': . ' ( ) f' DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO I, , , u i da minha, hoje e no passado. O arquivo de antropologié!- é uma t' -sombra em todos os capítulos que se seguem. Mas não é por'çste ser in- ) t trinsecamente melhor do que qualquer outro arquivo disciplinar. Na \, lidade, nos últimos anos as, críticas a este arquivo até têm sidC) r severas e incansáveis. E, porém, o que eu sei ler melhor. Como arquiv00 t,:' tem também a vantagem de nos recordar que toda a similitude esconde", I mais que uma diferença e que similitudes e diferenças se escondem uma"L às outras sem cessar, por isso o último da fila ainda é uma questão de conr" ) veniência ou de garra metodológica. Este arquivo e a sen'sibilidade que elt:'J 't. favorece no antropólogo predIspõem-me fortemente para '1 ideia de que O,, \ globalização não é uma 'questão de homogeneização Esta últimq' \ noção é o mínimo que ,posso esperar que o leitor tire deste livrq. Mas antropologia traz consigo uma profissional para p,!ivilegiar á ) , cultural como diacrítico-chave em muitas práticas (que' a outros 1 parecer simplesmente humanas, estúpidas, calculistas, ou qual() ',. \ quer outra coisa). Como este livro se pretende acerca das dimensões cuia " " turais da globalização, deixem-me definir a especial força que este adjec"(.) , ,I tivo comporta na utilização que lhe dou. .... " I Muitas vezes me tem intrigado a palavra cultura comÇ> substantivb"",,,i eminentemente ligado à sua forma adjectiva, ou seja, cultural. Quandó:J é penso nas razões deste facto, entendo que 'grande parte do problema da-:J forma substantiva tem a ver com o facto implícito dea cultura ser uma.:,J de objecto, coisa ou substância, seja física ou A subs-O : tancIahzação parece remeter a cultura para o espaço dIscurSIVO da raça, . ! , ( \ , precisamente a ideia que na origem ela se destinava a combater. Como,j \ implica substância mental, o substantivo' cultura favorece a partilha, aO " concordância e a vinculação que contrasta com factos, como a desigual , dade de conhecimentos e as diferenças de prestígio entre estilos de vida,Q . e retira atenção às visões do ,mundo e à acção dos marginalizados do-O' minados. Vista como substânciafísica, cultura começa logo a cheIrar a . biologismos vários, raça inclusive, certamente já superados como cate-\J gorias científicas. Superorgânico, o termo de Alfred Kroeber, capta bemO ambos os lados deste substancialismo, coisa com que não simpatizo. Os O O 25 " '. (' , ) r, ) ) , . .J iJ · . ) ?J :; ) ARJUN APPAD URAI esforços das décadas mais recentes, nomeadamente na antropologia americana, de escapar a esta ratoeira encarando a cultura como uma for- ma em grande medida linguística (entendida sobretudo nos termos do es- truturalismo saussuriano) só em parte evita os perigos de tal substancia- lização. . Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma substância de um modo que esconde mais do que revela, cultu- ral, o.adjectivo, transporta-nos para um reino de diferenças, contrastes e comparações bem mais útil. Este sentido adjectivo de cultura, que se for- ma no cerne de uma linguísticá. saussuriana sensível ao contexto e focada nos contrastes, parece-me ser uma das virtudes do estruturalismo que ten- demos a esquecer na nossa pressa de o atacar pelas suas conotações a-his- . tóricas, formais, binárias, intelectualistas e lextualistas. A característica mais valiosa do conceito de cultura é o conceito de di- ferença, uma propriedade de certas coisas mais contrastiva do que subs- tantiva. Embora o termo diferença se tenha apropriado de um vastç> leque . de associações (principalmente por causa do Uso especial que Jacques Derrida e os seus seguidores lhe deram), a sua principal virtude é ser .uma heurística útil, capaz de destacar pontos de semelhança e contraste entre qualquer tipo de categorias: classes, géneros, papéis, grupos e nações. As- sim, quando apontamos numa prática, distinção, concepção, objecto ou ideologia, uma dimensão cultural (note-se o uso adjectivo), estamos a sub- linhar a ideia de diferença situada, isto é, diferença em relação a uma coisa local, com corpo e significado. Podemos resumir isto mesmo da seguinte forma: não vale a pena encarar a cultura como substância, é melhor en- cará-la como uma dimensão dos fenómenos, uma dimensão que releva da diferença situada e concretizada. Salientar este dimensionamento da cul- tura em vez da suasubstancialidade permite-nos pensar a cultura não tanto como propriedade de indivíduos e grupos, mas como um instrumento heu- rístico ao nosso alcance para falarmos de diferença. . . Contudo, há muitos tipos de diferença no mundo e apenas algumas de- las são culturais. E introduzo uma segunda componente da minha .. 'I proposta sobre a forma àdjectiva da palavra cultura. Sugiro que conside- 26 . DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO remos culturais apenas as diferenças que exprimem, ou servem de funda- mento, à mobilização de identidades de grupo. Esta qualifiáção propor- ciona um princípio bruto de selecção que incide sobre uma série de dife- renças relacionadas com a identidade de grupo, dentro. e fora de qualquer t grupo social. Ao colocar a mobilização das identidades de grupo no ârtla- . li go doadjectivo cultural, faço na realidade um movimento que, à primeira vista, parece regressivo, pois é corrio se começasse a pôr a palavra cultura desconfortavelmente perto da ideia de etnicidade. E isso traz-me a novos . problemas que ·têm que ser destrinçados. Antes de ensaiar a destrinça que me permitirá avançar :para a ideia de vamos rever o caminho percorrido. Ao resistir à ideia de cul- tura que nos tenta a pensar grupos sociais existentes como culturas, resisti - . também à forma substantiva cultura e sugeri uma abordagem adjectiva da cultura que reforça as suas dimensões contextual, heurística e comparativa e nos orienta para a ideia de cultura como diferença, diferença especial- mente IJO domínio da identidade de grupo. Sugiro, portanto, que a cultura é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença para gerar diversas concepções da identidade de grupo. · .- Depois de rumar para tão perto da ideia de etnia - a ideia de identi- dade de grupo natUralizada -, é importante que sejamos claros quanto à relação entre cultura e identidade de grupo que aqui procuro articular. Cul- tura, sem itálico, pode continuar a usar-se para referir ·a pletora de dife- renças que caracterizam o mundo actual, diferenças a vários níveis, com valências diversas e maior ou menor grau de consequências sociais. Pro- ponho, porém, restringirmos o termo cultura em itálico ao su.bconjunto destas diferenças, que foi mobilizado para articular os limites da ça. Como questão definidora de limites, cultura torna-se então uma ques- tão de identidade de grupo enquanto constituída por certas diferenças en- tre outras. Mas não será isto simplesmente uma maneira de tornar etnia equiva- lente a cultura? Sim e não. Sim, porque nesta acepção cultura não destaca simplesmente a posse de determinados atributos (materiais, linguísticos ou territoriais), mas a consciência desses atributos e a sua naturalização 27 ARJUN APP AD URAI como essenciais à identidade de grupo (ver capo 7). Ou seja, em vez de cair no pressuposto, pelo menos tão velho como Weber, de que a etnia assenta numa espécie de extensão da ideia primordial de parentesco (que, por sua vez, é biológica e genealógica), a ideiao de etnia que proponho gira em tomo de um centro que é a construção e mobilização conscientes e imaginativas das diferenças. Cultura 1, constituindo um arquivo de dife- renças em aberto, molda-se conscientemente em Cultura 2, o subconjunto dessas diferenças que constitui o diacrítico da identidade de grupo. Mas este processo de mobilizar certas diferenças e de as ligar à iden- tidade de grupo é também diferente da etnia, pelo menos no sentido mais antigo, porque não depende da extensão dos sentimentos primordiais a unidades cada vez maiores, numa espécie de processo unidireccional, nem comete o erro de supor que unidades sociais maiores simplesmente vão buscar os sentimentos de família e parentesco para dar força emocional às identidades de grupo em larga escala. Assim, demonstrarei no capítulo ·5 que o críquete na Índia, longe de ir buscar o repertório de emoções exis- tente e o deslocar para um terreno mais vasto, é uma forma em larga escala que acaba por se inscrever no corpo através de uma série de práticas de escala progressivamente menor. Esta lógica é apenas o reverso da velha ideia primordialista (ou extensionista) de identidade étnica. A ideia de cultura, enquanto extensiva à organização naturalizada de certas diferenças nos interesses da identidade de grupo através e dentro do processo histórico, e através e dentro das tensões entre agentes e es- truturas, aproxima-se do que já se chamou concepção instru°mental de et- nia por oposição à concepção primordial. Tenho duas qualificações a fa- o zer quanto a esta convergência, qualificações que conduzem à análise do culturalismo. Uma, é que os fins para que se formam as con- cepções instrumentais de identidade étnica podem ser já de si respostas contra-estruturais a valorizações existentes da diferença: podem ser, portanto, da ordem da razão-valor e não da razão-instrumental, no sen- . tido weberiano. Podem ter uma instrumentalidade puramente voltada para a identidade em vez de instrumentalidade que, como tantas ve- zes tem sido sugerido, seja extracultural (económica, política ou emo- 28 (-) DIMENSÕES CULTURAIS DA U I cional). Por outras palavras, a mobilização dos marcadores das ças de grupo pode fazer parte de uma contestação de valores relátivo' à diferença, independentemente das consequências da diferença para "0 riqueza, a segurança ou o poder. A minha segunda qualificação quanto . a explicações mais instrumentais é que elas não esclarecem o processoU pelo qual certos critérios de diferença mobilizados .para a idé'ntidadede:) grupo (por sua vez instrumental para outros objectivos) são (re)inscritos.J em sujeitos corpóreos para assim serem sentidos ao mesmo tempo como ' naturais e profundamente incendiários. U Demos agora mais um passo, da cultura como a culturau como dimensão da diferença, para a cultura como identidade de grupo ba- . seada na diferença, para a cultura como processo de naturalizar um sub-:J conjunto de diferenças que foram mobilizadas ao serviço da articulação-l da identidade de grupo. Neste ponto, estamos em posição de avançar para,,) a questão do culturalismo. . . o . o . o' . U Raramente encontramos a palavra culturalismosozinha: surge normal-, mente acoplada como substantivo com certos prefixos como "bi, eU inter, para citar apenas os mais frequentes. Mas pode ser útil começar aU _ usar culturalismo para designar uma característica dos movimentos que'J envolvam identidades em construção consciente. Estes movimentos, nos j Estados Unidos ou noutros lugares, vão normalmente na direcção de Es- ..J tados-nações modernos que distribuem vários direitos, por mesmo de vida e de morte, de acordo com "classificações e políticas relativas à".J identidade de grupo. Em todo o mundo, perante as actividades de ...J interessados em enquadrar as suas diversidades étnicas em conjuntos fixos .J e fechados de categorias culturais a que os indívíduos são muitas vezeos '--J consignados à força, há muitos grupos a mobilizarem-se conscientemente IJ segundo critérios identitários. Em termos simples, culturalismo é política de identidade mobilizadá ao nível do Estado-nação. 'J Este culturalismo é o meu tema princi pai no capítulo 7, onde procedo IJ a uma crítica fundamentada da visão primordialista da violência étnica na 'J década de 1980. Aquilo .que parece um renascimento mundial dos nacio- IJ nalismos e separatismos étnicos não é na realidade o mesmo a que os jor- J 0-.> 29 [ \ --' Jj. ARJUN APPADURAI nalistas e os panditas com demasiada frequência chamam «tribalismo» e que implica histórias antigas, rivalidades locais e ódios profundos. Não, a violência étnica que vemos em muitos sítios faz parte de uma transfor- mação, mais vasta: a que o termo culturalismo sugere. O culturalismo, como já referi, é a mobilização consciente das diferenças culturais ao ser- viço de uma política nacional ou transnacional mais ampla. Anda muitas vezes associado a histórias e memórias extraterritoriais, por vezes ao es- tatuto de refugiado e ao exílio e quase sempre a lutas por um melhqr re- conhecimento por parte de Estados-nações existentes ou .de váriosorga- nismos transnacionais. Os movimentos culturalistas (pois são quase sempre esforços -de mo- bilização) são a forma mais geral da obra da imaginação e radicam mui- tas vezes no facto ou na possibilidade de migração ou secessão. O mais importante' é que são tímidos quanto a identidade, cultura e herança, tudo noções que tendem a integrar o vocabulário deliberado dos movi- mentos culturalistas quando lutam com Estados e outros focos e grupos ,culturalistas. É esta mobilização deliberada, estratégica e populista do material cultural que justifica chamar culturalistas a esses movimentos, embora possam ter muitas variantes. Os movimentos culturalistas, quer envolvam afro-americanos; paquistaneses na Grã-Bretanha, argelinos em França, havaianos nativos, siques ou francófonos do Canadá, tendem a ser antinacionais e metaculturais. No sentido mais lato, como defen- derei na última parte deste livro, O culturalismo é a forma que as dife- renças culturais tendem a assumir na era da comunicação de massas, da migração e da globalização. Como se processam os estudos de área O realce antropológico do cultural, que é a principal inflexão que que- ro dar ao debate sobre globalização, é, no meu caso, reforçado pela minha formação e prática em estudos de área, especificamente estudos da Ásia Meridional nos Estados Unidos. Não está ainda feita uma análise funda- 30 i· i I I ! I ! i I ! i \ DIMENSÕ,ES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO me'ntada da relação entre a emergência da ideia de áreas culturais em an- tropologia, nos Estados Unidos, entre as Grandes Guerras e a formação plena, após a Segunda Guerra Mundial, dos estudos de área como um meio importante de olhar ' as partes estrategicamente significativas do mundo em desenvolvimento. Contudo, não r:estam dúvidas de que ambas as perspectivas nos inclinam para' Um tipo particular de em que os grupos e o tipo de vida que têm são marcados por diferenças de cultura; e na formação de estudos de área estas diferenças transitam para uma to- pografia de diferenças culturais nacionais. Portanto, as divisões geográfi- cas, diferenças culturais e fronteiras nacionais tendem a t0I11fI'-se isomór- ficas e desenvolveu-se uma forte corrente que refracta os processos mundiais através desta espécie de mapa nacional-cultural do mundo. Os estudos de área trazem para este imaginário espacial um sentido forte, em- bora por vezes tácito, da importância da informação adquirida nesta perspectiva. É esta a razão para as ligações tantas vezes apontadas entre Guerra Fria financiamento aovernativo e expansão universitária na " c , organização dos centros de estudos de área após a Segunda Guerra Mun- diaL Não obstante, dos estudos de área veio o maior contraponto à ilusão que' é ver sem ponto de vista, subjacente a muita da ciência social canó- nica. Foi este aspecto da minha formação que me impeliu a situar a minha genealogia do presente global na área que melhor conheço: a Índia. ' Uma especial ansiedade rodeia agora as estruturas e ideologias dos es- , tudos de área nos Estados Unidos. Reconhecendo que os estudos de área andam de certo modo ligados a um quadro mundial estra- teaicamente submetido às necessidades de política externa dos Estados c , Unidos entre 1945 e 1989, figuras de proa do mundo das universidades, fundações, painéis de sábios e mesmo do governo tornaram claro que a velha maneira de realizar estudos de área não faz sentido no mundo pos- terior a 1989. Assim, aos 'críticos de esquerda dos estudos de área, muito influenciados pelos trabalhos de Edward Said sobre orientalismo, junta- ram-se os liberalistas e advogados da liberalização, impacientes com o que, pejorativamente, designam por estreiteza e fetichismo histórico dos especialistas de estudos de área_, É costume considerar os es'pecialistas em 31 :l , ARJUN APPADURAI estudos de área obstáculos a todos os estudos, sejam eles comparativos ou da contemporaneidade, versem a sociedade civil ou o mercado livre. Claro que uma crítica tão demolidora e tão súbita não pode ser inteiramente justa e a estranha miscelânea dos seus críticos sugere que a formação em estu- dos de área pode estar a ser vítima de uma falha mais importante da aca- demia americana: a incapacidade de mostrar uma imagem mais alargada e mais presciente do mundo após 1989. Em estudos de área, a tradição é uma espada de dois gumes. Numa so- ciedade que notoriamente a excepção e uma infinita preocupação com a «América», esta tradição tem sido parco refúgio para um estudo sério das línguas estrangeiras, de visões do mundo alternativas e de pers- pectivas das grandes transformações socioculturais fora da Europa e dos Estados Unidos. pemonizados por uma certa tendência para a filologia (no sentido restrito, lexical) e para um excesso de identificação com as regiões da sua especialidade, os estudos de área, não obstante, têm sido um dos poucos contrapesos sérios à incansável tendência para marginali- zar partes substanciais do mundo na academia americana e na sociedade americana em geral. Contudo, talvez os estudos de área tenham por tra- dição instalar-se demasiado confortavelmente nos seus mapas do mundo, sempre seguros das suas práticas especializadas, insensíveis aosprocessos transnacionais, tanto hoje como no passado. Por isso, impõem-se semdú- vida a crítica e a reforma, mas como podem os estudos de área contribuir para melhorar o modo como normalmente se geram as imagens do mundo nos Estados Unidos? Da perspectiva avançada aqui e no resto deste livro, os estudos de área são uma maneira salutar de nos lembrarmos de que a globalização é em si um processo profundamente histórico, desigual e mesmo localizador. Globalização não implica necessariamente ou sequer frequentemente ho- mogeneização ou americanização e, na medida em que sociedades dife- rentes têm modos diferentes de apropriar os materiais da modernidade, é. amplo o espaço para o estudo aprofundado de geografias, histórias e lín- guas específicas. A minha análise, nos capítulos 3 e 4, da relação entre , - história e genealogia não pode ser feita sem um forte sentido das realida- 32 u (J DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO o 'i v I' des da longue durée que sempre produzem geografiás esp:cíficas: tanto 0 \ , reais como imaginárias. Se a genealogia das formas culturaiS trata da s'ua' O \ circulação nas regiões, a história destas formas trata da () I as vai integrando nas práticas locais. A própria interacção de formas hiS- tóricas e genealógicas é desigual, 'diversíficada e contingent.e. Neste O, tido, a história, a impiedosa disciplina do contexto (na O ' de E. P. Thômpson) é tudo. Mas reconhecê-lo não é uma garantia 0 de localismo do tipo que por vezes se 'associa aos estudos de área .. Seja () como for, os estudos de área são uma técnica de investigação especlfica- () mente ocidental, dificilmente poderão assumir-se como simpÍ'es espelho do Outro civilizacional. O que é preciso reconhecer, se quisermOS revi ta- () , lizar a tradição dos estudos de área, é que a própria' localidade éum pro- O histórico e que as histórias que permitem a emergência de localidades U acabam por ficar sujeitas à dinâmica do global. Desta te.se, cujo ponto,cul- "() ' minanteé recordar que o local em nada é simples, se encarrega o capItulo o final deste 'livro. A revisão múltipla dos estudos de uma tradição em que tenho es- tado mergulhado nos últimos vinte e cinco anos, está subjacente à presen- ça de dois capítulos sobre a Índia na parte central deste livro. Estes capí- tulos sobre o censo e sobre o críquete, servem de contraponto a esses outr;s que de outro modo pod,eriam parecer, .bem ... globais. Mas apresso-me a rogar que a lndia - neste lIvro - nao seja como um mero caso, exemplo ou modelo de algo mais lato do que ela. E antes um sítio para examinarmos como emerge a localidade num mundo glo- balizado, como os processos coloniais subscrevem as políticas contempo- râneas, como a história e a genealo§ia se mutuamen,te e como , factos globais assumem forma local . Nesse sentido, estes capItulos - e " as frequentes invocações da .Índia ao longo do livro - não são sobre. a Índia (tomada como facto natural), são sobre os processos de que emergIU a Índia contemporânea. Estou ciente da ironia (até contradição) de usar um Estado-nação como âncora de referência num livro dedicado à " !ização e 'animado pelo sentido do fim da era do Mas aqUi a minha competência e as minhas limitações são dOIS lados da mesma 33 ü o o o Q v o (J O " i..... ARJUN APPADURAI I moeda e convido o leitor a ver a Índia como uma ópúca, e não' como uJ ' facto social reificado ou um reflexo nacionalista em bruto, ! Fiz esta digressão em do facto de que qualquer livro so-' bre globalização é um suave exercício de megalomania, em especial quando produzido nas circunstâncias relativamente privilegiadas da investigação universitária americana. Afigura-se importante identificar as formas de co- nhecimento que permitem que essa megalomaniase articule. No caso, estas formas - a antropologia e os estudos de área - predispõem-me, por hábito, a fixar práticas, espaços e paises num mapa de diferenças estáticas. Isto é, à revelia da intuição, um perigo, mesmo num livro como este, cons- cientemente concebido dentro do interesse pela diáspora, a desterritoriali- zação e a irregularidade das relações entre nações, ideologias e movimentos sociais. . . . 1 \ , Ciências sociais depois do patriotismo · A parte final do aqui e agora é um facto do mundo moderno que tem ' desafiado alguns dos melhores pensadores contemporâneos das ciências sociais e humanas: a questão do Estado-nação, a sua história, a sua crise ' actual, as suas prospectivas. Não comecei a escrever este livro com a cri- ' se do Estado-nação como preocupação principal. Mas nos · seis anos em que foram escritos os seus capítulos, fui-me convencendo de que o Esta- do-nação, como forma política moderna complexa, está a dar as últimas. Não é de modo algum uma evidência nem se colhem daí os frutos. Sei que nem todos os Estados-nações são iguais no que respeita ao imaoinário . D nacIOnal, aos aparelhos de Estado ou à solidez do hífen entre os dois. Mas hájustificação para o que pode parecer uma visão ·reificada deste Estado- -nação neste livro. Os com todas as suas importantes di- ferenças (e só um louco misturaria o Sri Lanka com a Grã-Bretanha), só fazem sentido se fizerem parte de um sistema. Este sistema se considerado um sistema de diferenças) mostra-se mal ,equipado para lidar com as diásporas combinadas de pessoas e imagens que marcam o aqui 34 I , I I I DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALlZAÇÃO e agora. Os Estados-nações, enquanto unidades num complexo sistema in- teractivo, não têm granqes .hipóteses de servir de árbitros a lan'go prazo da relação entre globalidade e modernidade. Por isso insinuo, no meu tí- tulo, que a modernidade não tem peias. . A ideia de que alguns Estados-nações,.estão em crise é um cavalo-de- -batalhà nó campo da política comparada e foi, em certo sentido, a justi- ficação de muita teoria da modernização, especialmente nos anos sessen- ta. A ideia de que há Estàdos fracos, doentes, corruptos ou moles anda no ar há várias décadas (lembram-se de Gunnar Myrdahl?). Mais recente- mente, tem tido aceitação geral a ideia do nacionalismo como uma doen- r ça, em particular quando se trata do nacionalismo alheio. A ideia de que todos , os Estados-nações foram de algum modo demonizados por movi- , mentos globais de armas, dinheiros, doenças e ideologias também não é novidade nenhuma mi era das multinacionais. Mas a ideia de que o próprio sistema de Estado-nação está em risco não é lá muito popular. Neste livro, a minha atenção permanente ao hífen que liga Estado a nação integra-se na construção da: tese do fim próximo do Estado-nação. Esta ideia, que se situa algures entre um diagnóstico e um prognóstico, entre uma intuição . e uma convicção, precisa de ser clarificada. Primeiro, tenho que distinguir entre as componentes ética e analítica da minha tese. Na frente ética, sinto-me cada vez mais inclinado a ver nos modernos aparelhos governamentais uma propensão. para se perpetuarem, se empolarem·, para se tomarem violentos e corruptos. Aqui, tenho com- panhia, à esquerda e à direita.(A questão ética com que muitas vezes me confronto é: se o Estado-nação desaparece, que mecanismo irá assegurar a protecçãodas minorias, a distribuição mínima de direitos democráticos e as razoáveis possibilidades de um crescimento da sociedade civil? Res- . pOI1do que não sei, mas admiti-lo não é bem recomendar eticamente um sistema que enferma de doença crónica. Quanto às formas e possibilidades sociais alternativas, existem hoje formas e combinações sociais que po- deriam conter a de formas mais dispersas e cttxersas de fidelidade e filiação transnacional) Esta ideia faz parte da tese do" capítulo 8, embora ' eu esteja pronto a admitir que O caminho que levam os diversos movimen- 35 \ , " . ARJUN APPADURAI tos transnacionaisem direcção a formas sustentadas de governação trans- nacional não é muito claro. Prefiro, porém, o exercício de procurar - ou melhor, imaginar - estas possibilidades alternativas a uma estratégia que considere uns Estados-nações mais saudáveis do que outros, assim suge- rindo diversos mecanismos de transferência de ideologia. Esta última es- tratégia repõe a política de modernização-e-desenvolvimento, com o mes- mo triunfalismo subjacente e as mesmas perspectivas nadasaudáyeis. . Se a frente ética da minha tese é necessariamente difusa, a frente ana- lítica é um tanto mais nítida. Um exame, mesmo apressado, das relações dentro e entre os mais de 150 Estados-nações'que são membros actuais das Nações Unidas as guerras fronteiriças, as guerras culturais, a inflação galopante, a imigraçãoem massa de populações ou as fugas gra- ves de capital ameaçam a soberania em muitas delas. Mesmo onde a so- berania do Estado está aparentemente intacta" a legitimidade do Estado é, muitas vezes, incerta. E mesmo em Estados-nações tão aparentemente se- guros como os Estados Unidos, o Japão e a Alemanha, as discussões sobre raça e direitos, nacionalidade e lealdade, cidadania eautoridade já não são culturalmente periféricas. Enquanto o argumento da longevidade da forma Estado-nação se baseia nestes casos aparentemente sólidos e legítimos, o outro argumento é inverso e baseia-se nos novosetnonacionalismos do mundo, nomeadamente os da Europa de Leste. Nos Estados Unidos, a Bósnia-Herzegovina é quase sempre apontada como o principal sintoma do facto de o nacionalismo estar vivo e doente, embora se invoquem ao mesmo tempo as democracias ricas para mostrar que o Estado-nação está vivo e de saúde. Dada a frequência com que se usa a Europa Ocidental para demonstrar que o tribalismo é profundamente humano, que o nacionalismo dos outros povos é tribalismo com maiúsculas e que a soberania territorial continua a ser o grande objectivo dos grupos étnicos, deixem-me propor uma in- terPretação alternativa. A meu ver, a Europa de Leste tem sido singular. mente distorcida em populares análises do nacionalismo na imprensa e na . academia nos Estados Unidos . Em vez de caso modal das complexidades de todos os etnonacionalismos contemporâneos, a Europa de Leste, e a sua 36 I . i ! I i I i I I l I i DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO face sérvia em particular, têm sido usadas para demonstrar o contiI}uado viaor-dos nacionalismos em que terra, língua, religião, história e sangue conaruentes, um exemplo de antologia do que é o nacionalismo. Claro que o é fascinante na Europa de Leste, é que alguns dos seus ideól.ogos de direita convencera'm os jornais do Ocidente liberal de que o naCIOna- lismo é política dos primórdios, quando' a verdadeira questão é por- que o fizeram parecer isso mesmo. Assim, a Europa de t?rna-.se por certo um caso fascinante e urgente de muitos pontos de VIsta, mclumdo facto de precisarmos de ser cépticos quando os especialistas aqrmam ter encontrado tipos ideais em casos reais. Na maior parte dos casos de antinacionalismo, secessão, supranacio- nalismo ou revivalismo étnÍco em larga escala, ofactor comum é mais a autodeterminação doque a soberania territorial propriamente dita. Mesmo nos casos em que o parece ser um factor fundamental, como a _ Palestina, poder-se-ia afirmar que as discussões sobre terra e território são de facto motes para teses que substancialmente se ocupam do poder, da justi,ça e da autodeterminação. Num mundo de gente em de mercantilização global e Estados incapazes de outorgar dIreItos baslcos até às suas populaçÕes de maioria étnica (ver capo 2), a soberania territo- rial é uma justificação cada vez mais difícil para esses Estados-nações que cada vez mais dependem da mão-de-obra, dos cérebros, ,das armas e dos ,soldados estrangeiros. É que, para os movimentos contranacionalistas, a soberania territorial é o idioma plausível das suas aspirações, mas não po- demos confundi-la com uma lógica fundadora ou com a sua inquietação última. Fazê-lo é cometer o que chamarei a Falácia Bósnia, um erro que (a) tomar as lutas ,étnicas da Europa de Leste por tribalistas.e pri- : mordiais, erro "em que o New York Times é campeão, e (b) consolIdar o _ ", erro tomando o caso da Europa de Leste por caso modal de todos os na- cionalismos emergentes. Sair da Falácia Bósnia requer duas concessões difíceis: primeiro, que os sistemas políticos das nações ricas do ,Norte es- tivessem também em crise; segundo, que os nacionalismos em muitas partes.do mundo tivessem por base patriotismos que nãó sejam ex- clusiva nem fundamentalmente territoriais. Os argumentos a favor destas 37 t I. { O:: o f t·", [-u t O I. i 0 \ ' O' I . I ,I O ,: O Ü Co) O CP ' O O ', O 0 _ O ,íf"b. . ;...J o O O () O () o c, ü ARJUN APPADURAI concessões inspiram muitos dos capítulos deste livro. Ao defendê-los, nem sempre achei fácil manter a distinção entre as perspectivas analítica e ética do futuro do Estado-nação, embora o tenha tentado. No momento em que o Estado-nação entra numa crise terminal (se os meus prognósticos se revelarem correctos), por certo seria de esperar que os materiais para um imaginário pós-nacional estivessem já presentes. Neste ponto, penso que devemos prestar particular atenção à relação entre comunicação de massas' e migração, dois factos na base do sentido que dou à política cultural do moderno global. Precisamos, em particular, de ter em atenção tudo o que tem emergido como esfera pública de diáspora. Benedict Anderson fez-nos um favor ao identificar o modo como certas formas de comunicação de massas, nomeadamente as que se referem a jor- . nais, romances e demais comunicação impressa, desempenharam o papel capital de imaginar a nação e facilitar a difusão desta forma de mundo co- lonial na Ásia e noutros pontos. A minha tese geral é que há uma relação semelhante a descobrir entre a obra da imaginação e a emergência de um mundo político pós-nadonal. Sem o benefício da reflexão a posteriori (que temos para o percurso global da ideia de nação), é difícil equacionar com eficácia o papel da imaginação numa ordem pós-nacional. Mas como os meios de comunicação de massas estão cada vez mais dominados pela comunicação electrónica (e assim desligados da capacidade de ler e es- crever) e como esses meios cada vez mais ligam entre si produtores e pú- -blicos para além das fronteiras nacionais, como os próprios públicos dão início a novas conversas entre os que se deslocam e os que ficam, desco- brimos um número crescente de esferas-públicas de diáspora. Estas esferas da diáspora andam muitas vezes ligadas a estudantes e outros intelectuais interessados no nacionalismo longínquo (como os ac:" tivistas da República Popular da China). A instauração da maioria negra na África do Sul abre um novo tipo de discurso de democraCia racial em bem como nos Estados Unidos e nas Caraíbas. O mundo islâmico é o exemplo mais conhecido de todo um leque de debates e projectos que pouco têm a ver com fronteiras nacionais. Religiões que no passado foram resolutamente nacionais servem agora com vigor missões glObais e clien- - 38 I I I' I I I I I DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOllALlZAÇÃO telas de diáspora: o hinduísmo global da década de oitenta é o melhor _ exemplo isolado deste processo. Os movimentos activistas em torn"o do ambiente, das questões femininas e dos direitos humanos, na sua genera- lidade, criaram uma esfera de discurso transnacional, muitas vezes assente ria autoridade_ moral de refugiados, exilados e outros deslocados. Grandes movimentos separatistas transnacionais, como os. siques, os curdos e os tâmiles do Sri Lanka constroem a imagem de si em sítios de todo o mundo, onde quer que tenhammembros suficientes para que aPareçam múltiplas células numa esfera pública de diáspora maior. A onda de debates sobre multiculturalismo que tem percorrido os Es- tados Unidos e a Europa é seguramente testemunha da !ncapacidade de impedir as suas populações minoritárias de relacionarem com círculos mais amplos de filiação religiosa ou étnica. Estes e outros exemplos su- gerem que a era em que podíamos supor que as esferas públicas viáveis são típica, exclusiva ou necessariamente nacionais pode estar a chegar ao fim. As esferas públicas de diáspora, cheias de diversidade entre si, são os cadinhos de uma ordem política pós-nacional. O motor do seu discurso são os meios da comunicação de massas (tanto interactiva como expres- siva) e o movimento dos refugiados, activistas, estudantes e trabalhadores. Pode muito bem ser que a ordem pós-nacional emergente se revele não um sistema de unidades homogéneas (como o actual sistema de -Estados- -nações), mas um sistema baseado nas relações entre unidades hetero- géneas (certos movimentos sociais, certos grupos de interesses, certos grupos profissionais, certas organizações não governamentais, certas co- lecti vidades armadas, certos corpos judiciais). O desafio que se põe a esta ordem emergente é saber se essa heterogeneidade é coerente com conven- "" " ções mínimas de norma e de valor, o que não requer uma adesãO estrita . ao contrato social liberal do Ocidente moderno. A resposta a esta questão fatal não virá de um fiat académico, mas de negociações (tanto ordeiras como violentas) entre imaginados por esses diferentes interes- ses e movimentos. A curt6- prazo, como já podemos ver, é provável que seja um mundo de incivilidade e violência cada vez maiores , A longo pra- 39 ARJUN APPADURAI . ZO, livres dos constrangimentos da forma nação, podemos vir a descobrir que a liberdade cultural e a justiça fundamentada no mundo não pressu- põem a existência uniforme e generalizada do Estado-nação. Esta possi- bilidade inquietante poderá ser o' mais estimulante dividendo .de viver a modernidade sem peias . 40 . I i i I I I I I! PRIMEIRA PARTE Fluxos Globais ' .). ... v r 0 1 ®l O I i o o (J () u i , IJ O , ) '.....,) ( '- f ' ... " , ) ) ;; 2 Disjuntura e diferença na economIa cultural global t o mero conhecimento dos factos do mundo moderno basta para notar , 'que ele é agora um sistema interactivo num sentido espantosamente novo. Histori<idores e sociólogos, em particular os que se interessam pelos pro- cessos translocais (Hodgson, 1974) e pelos sistemas mundiais associados ao capitalismo (Abu-Lughod, 1989; Braudel, 1981-84; Clirtin, Wal- lerstein, 1974; Wolf, 1982), sempre souberam que o mundo há muitos sé- culos que é um conglomerado de interacções em larga escala. Contudo, · o mundo de hoje implica de uma nova ordem e de uma nova intensidade. No passado, as transacções entre grupos sociais eram em geral restringidas, umas vezes por factores de geografia e eco- logia, outras pela resistência activa à interacção com o Outro (como na. China durante a maior parte da sua história e no Japão antes da Restau- ração Meiji). Sempre que houve transacções culturais duradouras em· grandes zonas do globo, elas estiveram normalmerite relacionadas com as viagens de longo curso das mercadorias (e dos mercadores a elas mais · ligados) e de viajantes e exploradores de todos os tipos CHeIros , 1988 ; 43 I I t i r ARJUN APPADURAI 1963). As duas princip·ais forças de interacção cultural duradoura antes deste século foram a guerra (e os grandes sistemas políticos que por . vezes a geraram) e as religiões de conversão que por vezes tiveram como . foi ,0. caso do islão, a guerra como um dos seus instrumentos de legItImos. Portanto, entre viajantes e mercadores, peregrinos e conquista- dores, o mundo tem visto muito tráfego cultural de longo (e longo- I prazo). Até aqui, é tudo evidente. . I poucos negarão que, dados os problemas de ·tempo e de distância e as tecnologias para a gestão de recursos em espaços muito vas- tos, os tramItes culturais entre grupos socialmente e espacialmente sepa- I rados foram efectuados com grande custo e só com muito esforço se pro- longaram no tempo. As forças de gravidade cultural parecem puxar para longe da formação de ecúmenos em larga escala, sejam eles rehgIosos, comerciais ou políticos, para atreções de intimidade e interesse de escala menor. . Algures nos séculos transactos, parece rer mudado a natureza deste cam- . . po. Empartepor causa da expansão dos interesses marítimos OCIdentaIS a seguir a 1500, em parte por causa do" desenvolvimento relati- vamente autónomo de formações sociais vastas e agressivas nas Américas . (como os Astecas e os Incas), na Eurásia (como os Mongóis e os seus des- os Mogóis e os ,Otomanos), no Sueste Asiático insular (como os e nos r.einos da Africa pré-colonial (como o Daomé), começa a um de ecúmenos sobrepostos, em que conglomerados de conquista e migração se mo·stram capazes de criar vín- mtersocletais duradouros. Este processo foi aceleradO pelas transfe- rencIas de tecnologia e pelas inovações do fim do século XVIII e século XIX (e. .Bayly, 1989), que criaram ordens coloniais complexas com base em europeus se difundiram no mundo extra-europeu. Este conjunto mtrIncado e de mundos eurocoloniais (primeiro espanhóis e portugueses, maiS tarde sobretudo ingleses, franceses e holandeses) esteve base de um permanente tráfego das ideias de povo e indivíduo, as quais cnaram por sua vez as comunidades imaginadas (Anderson, 1983) dos re- centes nacionalismos em todo o mundo. 44 . DIMENSÕES CULTURAIS DA GLOBALIZAÇÃO u U Com aquilo a que Benedict Anderson chamou «capitalismo impresso», U lançou-se no mundo um novo poder, o poder da literacia de massas e da respectiva produção em -larga escala de projectos de afinidade étnica isen- l ) tos, o que é notável, da necessidade de comunicação presencial ou mesmo de comunicação indirectaentre pessoas e grupos. ° acto de ler coisas em U conjunto dispôs o cenário para movimentos baseados num paradoxo: o pa- U radoxo do primordialismo construído. Claro que há muito mais coisas contidas no percurso do colonialismo e nos nacionalismos que ele gerou dialecticamente (Chatterjee, 1986), mas a questão das etnicidades cons- truídas é sem dúvida uma fase crucial deste percurso. A revolução do impresso e as afinidades culturais e diá- logos por ela desepcadeados foram, porém, apenas modestos precursores do mundo em que hoje vivemos; Com efeito, no século que passou· veri- ficou-se uma explosão tecnológica, dominada em grande medida pelos transportes e pela inforniação que faz com que as interacções de um mun- () () CJ O do dominado pela imprensa pareçam tão duras de ganhar e tão fáceis de · U eliminar como pareciam :as formas anteriores de tráfego cultural à luz da revolução da imprensa. É que, com o advento do navio a vapor, do auto- móvel, do avião, da fotografia, do computador e do telefone, entrámos numa fase inteiramente nova das relações de vizinhança, mesmo daqueles (J · 0 que estão muito distantes de nós. Marshall McLuhan, entre outros, pro- curou teorizar este mundo como «aldeia global», mas as teorias ·como esta parecem ter sobrestimado as implicações comunitárias da nova ordem da comunicação (McLuhan e Powers, 1989). Sabemos agora que, quando se trata de meios de comunicação, de cada vez que queremos falar de aldeia global, há que não esquecer que eles criam comunidades «sem sentido do lugar» (Meyrowitz, 1985). ° mundo em que hoje viVemos é rizomático 'o,., (Deleuze e Guattari, 1987) ou mesmoesquizofrénico; requer teorias dO desenraizamento, da alienação e da distância psicológica entre indivíduos e
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