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Ed (11) 3 oooo DDDDiiiiaaaassss ddddeeee MMMMeeeelllloooo ra pela Universidade de São Paulo e Propaganda e Marketing - São Paulo ppppoooollllddddoooo PPPPaaaaggggnnnnaaaannnn ra pela Universidade de São Paulo uguesa pela Universidade Estadual Paulista Universidade Norte do Paraná ditora (11) 3565-0142 2 Prática de texto: leitura e redação 3 Melo & Pagnan 4 4 Capítulo 1 Caracterização de texto O objeto de trabalho deste livro é o texto (do latim textum: tecido), considerado uma unidade básica de organização e transmissão de idéias, conceitos e informações de modo geral. Em sentido amplo, uma escultura, um quadro, um símbolo, um sinal de trânsito, uma foto, um filme, uma novela de televisão também são formas textuais. Tal como o texto escrito, todos esses objetos geram um todo de sentido, propriedade a partir da qual iniciaremos nossa reflexão sobre nosso objeto de estudo. Para tanto, será necessário definir algumas características do objeto – o texto –, salientando as implicações de cada uma delas, a fim de se aprofundar a análise e delimitar o ponto de partida que orientará nossa abordagem nos próximos capítulos. Observe ao lado exemplo de texto verbal e não-verbal, do cartunista Angeli, pois mescla palavra e imagem. a) A primeira dessas características é, como referimos, a do texto como um todo gerador de sentido, uma totalidade. Um fragmento, uma parte (frase, palavra) não possuem autonomia, não podem ser tomados isoladamente, na medida em que cada parte liga-se ao todo. Fora do contexto (o texto como um todo), uma determinada parte poderá ter seu sentido original alterado, impedindo a depreensão do que de fato se desejou transmitir – o real significado do texto como expressão do autor. Há ainda uma propriedade Prática de texto: leitura e redação 5 básica na organização dos textos, que é a coesão; além dessa, há outra, identificada com os mecanismos de constituição de sentidos, que é a coerência, ambas estudadas no capítulo 14; b) Por mais neutro que pretenda ser – como as instruções para uso de determinado equipamento ou uma notícia de jornal –, um texto sempre revela a perspectiva1 (a visão de mundo) que o autor constrói da realidade. Vale dizer que os textos são dotados de certo grau de intencionalidade, fenômeno mais notável em textos argumentativos, (conforme estudaremos no capítulo 9). Um exemplo típico disso pode ser verificado na edição de 15 de maio de 2000, do Jornal de Londrina, em que se lê na primeira página a seguinte chamada: "Os poucos torcedores que foram ontem à tarde ao Estádio do Café deveriam receber um prêmio. Além de assistirem a um péssimo jogo e verem o Tubarão perder para o Paraná por 1 a 0, /../ ainda tiveram de aturar a arbitragem insuportável do juiz e seus asseclas". Observe o efeito de trechos como: deveriam receber um prêmio ou assistirem a um péssimo jogo e, por fim, de forma mais contundente a arbitragem insuportável do juiz e seus asseclas. As palavras aí não são neutras, revestem-se de um caráter judicatório, avaliativo, expressando um ponto de vista, talvez o do torcedor ou do comentarista de futebol; c) A visão de mundo que está na base do discurso de um autor pode ser chamada de ideologia2, o processo de produção de significados, signos e valores da vida social. O texto traz consigo, de modo mais ou menos evidente, valores identificados com certa cultura e formação histórica e social na medida em que o autor é um ator social que comunga com esses valores; d) Pelo fato de ser um produto de uma época e de um lugar específicos, há no texto as marcas desse tempo e espaço. Por isso, nenhum texto é um objeto inteiramente autônomo, há sempre um diálogo estabelecido com outros textos e com o contexto. O texto, ainda que implicitamente, incorpora diferentes perspectivas a respeito de uma mesma questão3. O que se tem é uma inter- 1 Em que medida essa afirmação vale para um texto literário, um filme, uma escultura, um quadro, um projeto arquitetônico? De modo simplificado, poderíamos responder que essas formas textuais estão contagiadas de historicidade, possuem um caráter histórico, não como um simples reflexo da realidade, mas como objetos construídos na História e, portanto, como produtos pensados pelo homem em determinado tempo, de acordo com certas necessidades, de natureza econômica, psicológica, existencial, religiosa, entre outras. 2 O conceito clássico de ideologia, como má consciência, será desenvolvido no capítulo 4. 3 Algumas teorias do discurso, apoiadas nos estudos de J. Derrida e M. Foucault, abordam inclusive como a perspectiva do próprio leitor é capaz de dar novo sentido ao texto. A esse respeito ver: Maria José R. Faria Coracini (org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas : Pontes, 1995, especialmente pp. 13-20. Melo & Pagnan 6 6 relação entre textos que tratam do mesmo assunto, ou de assuntos semelhantes, com, eventualmente, abordagens diferentes. A esse respeito, Eni Orlandi afirma o seguinte: "o sentido está sempre no viés. Ou seja, para se compreender um discurso é importante se perguntar: o que ele não está querendo dizer ao dizer isto? Ou: o que ele não está falando, quando está falando disso?"4 Por exemplo, quando se defende a prática do aborto, não se reconhece a existência da vida, em sentido mais pleno, no útero, bem como o poder do Estado em regular o direito ao corpo. Vejamos essas características no poema abaixo: Provérbio revisto Newton de Lucca A voz do povo é a voz de Deus... Que povo? Que Deus? O que beijou Stálin? O que delirou com Hitler? Ou o que soltou Barrabás? (Será que Deus já não teria se enforcado em suas próprias cordas vocais?) � Totalidade Se lêssemos apenas os dois primeiros versos do poema, travaríamos contato tão-somente com o provérbio, portanto a revisão proposta pelo título não se completaria. Somente por esse motivo já devemos considerar o texto em sua totalidade. O mesmo aconteceria se isolássemos os dois últimos versos do restante do poema. Qual a interpretação que poderia ser-lhes dada? Poderíamos, por exemplo, entender que o autor estivesse decretando a morte de Deus e, consequentemente, propondo uma visão ateísta do mundo, o que não é o caso. O 4 A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2ª ed., Campinas : Pontes, 1987, p. 275. Prática de texto: leitura e redação 7 ponto, portanto,é determinar a organização do poema, para daí depreender o sentido produzido. � Diálogo com outros textos e com o contexto Ao provérbio, sucedem-se seis questões. Para que essas indagações sejam resolvidas, é preciso determinar com quais textos este poema dialoga. Inicialmente, há o desejo, expresso no título, de revisão do provérbio apresentado nos dois primeiros versos. Esse provérbio afirma a supremacia dos desígnios do povo, visto que há uma identi- dade entre este e Deus. No entanto, a esse falso axioma (que se revela dogmático), o eu-lírico5 opõe uma série de situações factuais, verificá- veis na História, as quais, em princípio, contestariam a pretensa confirmação divina. Melhor explicando, além de estabelecer uma reflexão sobre o provérbio, o poema traz para seu interior um fato bíblico (o povo teria pedido a libertação de Barrabás no lugar de Jesus Cristo, o que, pela lógica do provérbio, teria tido o aval de Deus), além de dois fatos da História contemporânea (a glorificação de Hitler e de Stálin, líderes alemão e soviético, respectivamente, que tiveram apoio popular e que foram responsáveis pela morte de milhões de pessoas, os quais, mais uma vez, portanto, pela lógica do provérbio, teriam tido o aval divino). É nesse sentido que se estabelece um diálogo com outros textos (Bíblia e provérbio) e com contextos específicos (a Europa nas décadas de 30 e 40). Porém, se o leitor desconhece quem foram Hitler, Stálin ou Barrabás, a leitura do poema como um objeto de revisão de determinado conteúdo histórico não se complementa. É necessário, pois, conhecer o referente (o contexto) que fundamenta o enunciado. 5 O eu-lírico é a voz de um poema, como o narrador o é em um romance ou conto, com a diferença que, no poema, não se narra, necessariamente, uma história. Axioma: verdade consensual, baseada em uma lógica comprovável. Ex.: “a educação deve ser a base de uma sociedade forte”, ou “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço no mesmo momento”. Dogma: verdade que se pretende absoluta, não-relativa, incontestável, pois. Muito comum na argumentação religiosa: “Deus é o criador de todo o Universo e dos seres que nele vivem”. É possível também encontrar dogmas na política, na economia e mesmo na ciência. Melo & Pagnan 8 8 � Perspectiva e ideologia Da leitura atenta do poema, pode-se chegar ainda à perspectiva do autor e qual o sistema de idéias que norteia a construção de seu texto. Ora, ao propor uma série de perguntas, o autor pretende revelar ou a incoerência de Deus ou a não-validade da visão de mundo que o provérbio encerra. Assim, tem-se a perspectiva de alguém contrário às pretensas verdades absolutas que nos são colocadas, seja via provérbios, seja através de outros enunciados moralistas. Exercícios 1) Leia o texto abaixo e responda às questões a seguir: Uma reflexão de final de ano Roberto Shinyashiki Todo natal é a mesma coisa. Parece que uma poção mágica nos inebria e nos induz a um comportamento fraterno e reflexivo. Ficamos mais sensíveis às coisas que realmente importam. Mas o ideal mesmo seria manter essa sensibilidade durante todo o ano. Para a grande maioria dos mortais, o arrependimento e a frustração são os grandes vilões que perturbam a paz que deveria anteceder nossos momentos finais. Pude comprovar isso quando eu era médico recém-formado. Na época, tive a oportunidade de trabalhar num hospital de pacientes terminais. Trata-se de um lugar onde é comum você acompanhar várias mortes por dia. Eu sempre dava um jeito de estar junto aos pacientes em seus últimos minutos. Acompanhei muitos deles no momento de sua passagem, e a grande maioria vivia a morte com muita frustração e arrependimento. Alguns diziam: “Doutor, sempre me sacrifiquei e agora que ia começar a viver, estou morrendo. Não é justo...” A maioria das pessoas morre frustrada por não haver aproveitado sua vida. Elas passaram o tempo todo lutando pelas coisas erradas e se esqueceram de cultivar a felicidade no seu dia-a-dia. Não entenderam a importância dos pequenos momentos. Do almoço com a esposa, dos 15 minutos de brincadeira com o filho, das amizades construídas ao longo da vida... jamais vi alguém arrependido por não ter sido mais duro, por não ter se vingado, por não ter sido egoísta. Todos se arrependiam por não ter amado mais, por não ter aproveitado a vida. A família, o Prática de texto: leitura e redação 9 amor, os sonhos e os amigos são, no fundo, o que realmente importam. Quando os pacientes enxergavam isso, já era tarde demais. Nessa hora, as pessoas se arrependiam porque descobriam que as coisas profundas, extremamente significativas de sua vida, eram formadas de palavras simples e não de termos como dólar, real, pressão, inflação, recessão... O mesmo podemos dizer da felicidade. As palavras que a acompanham são simples. Simples como amigos, filhos, família e companheirismo. Infelicidade, portanto, nada mais é do que adiar a felicidade para depois. É não prestar atenção nas pequenas coisas. Grande parte das pessoas deixa a felicidade sempre para depois. É como dizer: “Serei feliz quando terminar a faculdade. Serei feliz quando me casar. Serei feliz quando me aposentar”. Isso está errado! É preciso ser feliz hoje. Já. Conheço uma história que ilustra isso tudo muito bem. “Um sujeito estava caindo em um barranco e se agarrou às raízes de uma árvore. Em cima do barranco havia um urso imenso querendo devorá-lo. Embaixo, prontas para engoli-lo, estavam seis onças tremendamente famintas. As onças embaixo querendo comê-lo, e o urso em cima querendo devorá-lo também. Em determinado momento, ele olhou para o lado esquerdo e viu um morango vermelho, lindo, com aquelas escamas douradas refletindo ao sol. Num esforço supremo, apoiou seu corpo, sustentado apenas pela mão direita, e, com a esquerda, pegou o morango. Quando pôde olhá-lo melhor ficou inebriado com sua beleza. Então, levou o morango à boca e se deliciou com o sabor doce e suculento. Foi um prazer supremo colher aquele morango.” Deu para entender? Talvez você pergunte: – Mas e o urso? Dane-se o urso e coma o morango! – E as onças? Azar das onças, coma o morango! Às vezes, você está em sua casa no final de semana com seus filhos e amigos comendo um churrasco. Percebendo seu mau humor, sua esposa lhe diz: – Meu bem, relaxe e aproveite o domingo! E você, chateado, responde: “Como posso curtir o domingo se amanhã vai ter um monte de ursos querendo me pegar na empresa?” Mais do que nunca você tem que aprender a ter prazer em enfrentar os ursos e aprimorar-se contra as onças, porque são eles, de fato, que farão parte do seu dia-a-dia. Mas não deixe de comer os morangos, porque sem felicidade nossa passagem pelo planeta Terra não vai ter a mínima graça. Revista Você S.A., dez. 1998 Melo & Pagnan 10 10 a) Identifique e reescreva com as suas palavras a idéia-chave do texto. b) O autor para desenvolver a idéia-chave baseia-se em uma concepção que poderia ser classificada como lugar-comum, como um clichê. Qual é esse lugar- comum, essa idéia desgastada pelo uso rotineiro, presente no 5º parágrafo? c) De que ponto de vista Roberto está escrevendo? Essa perspectiva possibilita- lhe tratar do assunto com autoridade? Explique. d) Nesse sentido, o lugar-comum toma ares de validade universal, ou não? Explique. 2) Leia o texto abaixo: A mensagem publicitária A mensagem publicitária é o braço direito da tecnologia moderna. É a mensagem de renovação, progresso, abundância, lazer e juventude, que cerca as inovações propiciadaspelo aparato tecnológico. Ao contrário do panorama caótico do mundo apresentado nos noticiários dos jornais, a mensagem publicitária cria e exibe um mundo perfeito e ideal, verdadeira ilha da deusa Calipso, que acolheu Ulisses em Odisséia – sem guerras, fome, deterioração ou subdesenvolvimento. Tudo são luzes, calor e encanto, numa beleza perfeita e não-perecível. Essa mensagem, contudo, não se limita ao mundo dos sonhos. Ela concilia o princípio do prazer com o da realidade, quando, normativa, indica o que deve ser usado ou comprado, destacando a linguagem da marca, o ícone do objeto. Embora nem todas as mensagens surtam o efeito desejado, a onipresença da publicidade comercial na sociedade de consumo cria um ambiente cultural próprio, um novo sistema de valores, co-gerador do ‘espírito do tempo’. (...) De mãos dadas com a taumaturgia publicitária, a sociedade da era industrial produz e desfruta dos objetos que fabrica, mas sobretudo sugere atmosferas, embeleza ambientes e artificializa a natureza – que vende de água mineral a sopinhas enlatadas. Possuir objetos passa a ser sinônimo de alcançar a felicidade: os artefatos e produtos proporcionam a salvação do homem, representam bem-estar e êxito. Sem a auréola que a publicidade lhes confere, seriam apenas bens de consumo, mas mitificados, personalizados, adquirem atributos da condição humana. Nelly de Carvalho. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ed. Ática, 1996. Prática de texto: leitura e redação 11 a) O que a autora quis dizer com a seguinte afirmação: "a mensagem publicitária é o braço direito da tecnologia moderna"? b) Determine em qual trecho do texto fica clara a relação deste texto com um outro texto ou contexto. c) Qual o papel da publicidade, segundo Nelly, na sociedade industrial? 3) (Ita) Assinale a opção em que a manchete de jornal está mais em acordo com os cânones da "objetividade jornalística": a) O mestre do samba volta em grande forma (O Estado de S. Paulo, 17/07/1999.) b) O pior do sertão na festa dos 500 anos (O Estado de S. Paulo, 17/07/1999.) c) Proteína direciona células no cérebro (Folha de S. Paulo, 24/07/1999.) d) A farra dos juros saiu mais cara que a da casa própria (Folha de S. Paulo, 13/06/1999.) e) Dono de telas "falsas" diz existir "armação". (O Estado de S. Paulo, 21/07/1999.) 4) Observe a foto abaixo, de Murilo Clareto, do jornal O Estado de S. Paulo, feita em 8 de outubro de 1996. Nela vemos a silhueta de Celso Pitta, ex-afilhado político de Paulo Maluf, no segundo plano. a) Podemos considerar a foto como um texto? Explique. Melo & Pagnan 12 b) Que significados podem ser atribuídos a essa foto, considerando os acontecimentos políticos que envolveram as duas perso c) O "realismo ingênuo" tende a considerar uma foto jornalística como uma reprodução fiel do real, um retrato abaixo não incorporaria as "marcas" do seu autor, isto é, ela seria um texto neutro, não deixando transparecer uma intenção do fotógrafo. Explique. 5) Leia o texto abaixo: Cinema: revelação e engano Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder r acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de uma estratégia. Discuto esta questão especificando determinadas condições de leitura das imagens; ao mesmo tempo, faço uma recapitulação histórica, pois o binômio referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa maior, aurora do século, e o do desencanto, anos 70/80. b) Que significados podem ser atribuídos a essa foto, considerando os acontecimentos políticos que envolveram as duas personalidades? c) O "realismo ingênuo" tende a considerar uma foto jornalística como uma reprodução fiel do real, um retrato preciso dos fatos. Se assim fosse, a foto abaixo não incorporaria as "marcas" do seu autor, isto é, ela seria um texto ixando transparecer uma intenção do fotógrafo. Explique. Cinema: revelação e engano Ismail Xavier Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de uma estratégia. Discuto esta questão especificando determinadas condições de leitura das imagens; ao mesmo tempo, faço uma recapitulação histórica, pois o binômio revelação/engano se projeta no tempo, referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa maior, aurora do 12 Prática de texto: leitura e redação 13 Comento, de início, uma situação extraída do documentário Point of Order (1963), de Emílio de Antonio, filme que focaliza os processos e as seções de tribunal no período do macarthismo6 nos Estados Unidos. Trata-se de uma remontagem da documentação colhida ao vivo nos interrogatórios. Em determinado momento, uma testemunha da acusação é inquirida pelo advogado de defesa de um militar acusado de atividades antiamericanas. Esse advogado mostra uma foto à testemunha. Nesta foto se vê, numa tomada relativamente próxima, duas figuras: o réu e, a seu lado, alguém já comprometido, já indexado na caça às bruxas. A imagem, ao mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade, é assumida pela promotoria como peça importante da acusação. O advogado pergunta à testemunha se considera a foto verdadeira. A resposta é “sim”. O advogado, então, mostra uma foto maior onde aparece, numa reunião ampla, um grupo de pessoas – dentre elas algumas insuspeitas – que traz num dos seus cantos a dupla anteriormente vista na foto menor. Entendemos sem demora que a primeira imagem é um recorte da segunda, ou seja, é parte de um contexto maior, com muita gente envolvida, uma situação pública que não denota qualquer cumplicidade maior entre o réu e seu interlocutor. O curioso no fato é que, ao ser reiterada a pergunta – “você continua achando esta foto [menor] verdadeira?” – a resposta é de novo “sim”. Chegamos aqui ao dado significativo. A resposta nos surpreende mas ilustra muito bem uma certa noção de verdade, noção muito mais presente no senso comum de uma sociedade como a nossa do que talvez gostaríamos. A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada pedacinho da foto, como também da realidade. Aquele canto da imagem, aquele fragmento extraído da situação maior, foi obtido sem que se adulterasse cada ponto da foto, sem maquiagem, sem alteração das relações que lhe são internas. Logo, ele “contém” a verdade. É uma imagem “captada”: as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da câmera (não importa aí o contexto). O recorte, definidor da moldura, não incomodou a testemunha para quem a verdade é soma, está em cada parte. Em nossa cultura, o processo fotográfico tem grande poder sobre as convicções deste tipo de observador assim embalado pela evidência empírica trazida pela imagem. Mais até do que a acuidade da reprodução (eixo da semelhança), a imagem fotográfica (e cinematográfica) ganha autenticidade porque corresponde a um registro automático: ela se imprime na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causalidade fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema de lentes (a objetiva da câmera) e o “acontecimento”, fica depositada uma imagem deste que funciona como um documento. Quando se esquece a função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da imagem isolada, temos um sujeito totalmente cativo ao processo de simulação por mais simples que ele pareça. Caso típico é o desta testemunha de McCarthy a consagrar o engodo de uma promotoria. In: NOVAES, Adauto et al., O olhar. São Paulo : Companhia das Letras, 1988, pp. 368-3676 Segundo o dicionário Aurélio: “atitude política radicalmente infensa ao comunismo, e que se desenvolveu nos EUA com a campanha desencadeada pelo Senador Joseph Raymond MacCarthy [1909-1957]”. Nota dos autores. Melo & Pagnan 14 14 a) Que relações podemos estabelecer entre o “recorte” da imagem fotográfica, mencionado por Ismail Xavier, e as considerações, desenvolvidas neste capítulo, em torno do princípio de não-autonomia das partes de um texto? b) Segundo o texto, como se deu a “consagração” do engodo praticado pelo promotor? c) O depoimento da testemunha segue uma lógica cuja natureza identifica-se com certo modo de percepção e julgamento muito arraigados na nossa sociedade. Explique. Proposta de Redação "Desde seu surgimento e ao longo de sua trajetória, até os nossos dias, a fotografia tem sido aceita e utilizada como prova definitiva, 'testemunho da verdade' do fato ou dos fatos. Graças a sua natureza fisioquímica — e hoje eletrônica — de registrar aspectos (selecionados) do real, tal como estes de fato se parecem, a fotografia ganhou elevado status de credibilidade. Se, por um lado, ela tem valor incontestável por proporcionar continuamente a todos, em todo o mundo, fragmentos visuais que informam das múltiplas atividades do homem e de sua ação sobre os outros homens e sobre a Natureza, por outro lado, ela sempre se prestou e sempre se prestará aos mais diferentes e interesseiros usos dirigidos. As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sempre tiveram na imagem fotográfica um poderoso instrumento para a veiculação das idéias e da conseqüente formação e manipulação da opinião pública, particularmente, a partir do momento em que os avanços tecnológicos da indústria gráfica possibilitaram a multiplicação massiva de imagens através dos meios de informação e divulgação. E tal manipulação tem sido possível justamente em função da mencionada credibilidade que as imagens têm junto à massa, para quem, seus conteúdos são aceitos e assimilados como a expressão da verdade. Comprova Prática de texto: leitura e redação 15 isso a larga utilização da fotografia para a veiculação da propaganda política, de preconceitos raciais e religiosos, entre outros usos dirigidos." Trecho de “Estética, memória e ideologia fotográfica” In: KOSSOY, B. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo : Ateliê, 1999 Considerando-se algumas informações que você obteve a propósito da natureza de um texto e as reflexões de Kossoy em torno do texto fotográfico, faça uma redação sobre a questão da intencionalidade (de um autor) no texto escrito. Melo & Pagnan 16 16 Capítulo 2 Repertório e escrita Neste capítulo, abordaremos alguns aspectos ligados à produção de texto, como o uso do vocabulário, sem que haja ainda uma preocupação sistemática com os gêneros redacionais. A palavra repertório tem a seguinte etimologia: é uma "matéria metodicamente disposta"; uma "coleção", um "conjunto"; um "inventário" ou "compilação". Você já ouviu essa palavra ser relacionada ao universo da música, quando se diz que certo cantor ou compositor possui (ou não) bom repertório. Ao se emitir tal opinião, adota-se um juízo de valor de acordo com determinado critério de qualidade. No caso de um cantor, ainda que se reconheça o valor intrínseco do repertório, pode-se dizer que este, por uma série de razões, não se ajusta bem ao intérprete: exigências técnicas de voz não correspondidas pelo artista; baixa capacidade dramática do cantor; inadequação à personalidade do profissional etc. Essas considerações valem em parte para a discussão que nos interessa em torno da noção de repertório. Há uma relação íntima entre o cantor e seu repertório, o seu "conjunto de canções", na medida em que este, guardadas certas diferenças de personalidade dos artistas, é produto de uma intensa disposição para o experimento, para o ensaio, para a repetição, cujo resultado concorre também para configurar a identidade do intérprete no mundo do espetáculo. A noção de inventário de experiências, que constitui uma prática de vida, é útil para compreendermos o sentido mais extenso da palavra. O repertório, nessa última acepção, é resultado do esforço de auto-conhecimento do indivíduo, de uma determinação em saber-se de si e saber sobre o mundo, de uma capacidade a um só tempo de reflexão, de projeção e conservação de uma matéria que se impõe como decisiva e confirmadora de uma existência. Nossa experiência na família e na sociedade, nossa educação escolar, nossas leituras, nosso trabalho, nossa memória e imaginação, a matéria efetivamente vivida ou ludicamente inventada. Tudo isso se articula como um conjunto de informações organizadas em nossa consciência que servirá de substância para o ato da escrita, sendo ela mesma produto e elemento transformador do conjunto. Ao contrário do cantor eventualmente mal-adaptado ao repertório musical, a constelação de elementos acima indicada nunca está em desarmonia conosco, pois que somos o próprio repertório. Prática de texto: leitura e redação 17 Podemos pensar o modo de convívio entre as partes integrantes do repertório individual como uma rede, um sistema de relações na forma de linguagem, capaz de assimilar e gerar conhecimento. No âmbito de um livro como este, destinado a um público específico e comprometido com um enfoque prático do fenômeno da escrita, temos que afastar a pretensão de introduzir o leitor no campo do método científico propriamente dito, inclusive porque este não pode ser limitado ao ato da escrita. No entanto, torna-se viável uma aproximação dos princípios do método das ciências humanas – o compreensivo-interpretativo – como referência para o trabalho crítico de leitura e de produção de textos. Segundo a filósofa Marilena Chaui, as "ciências humanas têm métodos de compreensão e de interpretação do sentido das ações, das práticas, dos comportamentos, das instituições sociais e políticas, dos sentimentos, dos desejos, das transformações históricas, pois o homem, objeto dessas ciências, é um ser histórico-cultural que produz as instituições e o sentido delas"7. Perceber, compreender e julgar, etapas fundamentadoras da prática de leitura e redação, são os três movimentos do trabalho intelectual para o qual você foi e será solicitado, em sintonia com um princípio geral do método das ciências humanas. Interpretar significa "traduzir, ajuizar da intenção, do sentido" do objeto de estudo; a palavra indica também um movimento em direção ao interior (interpretação) do objeto, descobrindo-lhe as especificidades, compreendendo a sua natureza e oferecendo uma explicação, atributo determinante do conhecimento. A percepção, a compreensão e o julgamento comparecem em escala diferenciada no contexto dos gêneros redacionais. Além disso são categorias relacionadas ao indivíduo que não dispensam a intuição, um processo de contemplação do objeto de estudo por meio do qual se alcança uma verdade diferente daquela atingida pela razão ou pelo conhecimento discursivo e analítico. O que seria da literatura se não fosse a intuição? Grandes escritores traçam os perfis psicológicos das personagens, pressentem sua fala, seu modo de agir, amparados pela intuição. "A memória é um diário que todos andamos carregando" – escreveu Oscar Wilde, escritor inglês do século XIX. Evocando a imagem do diário, Wilde vale-se de uma metáfora que nos remete a uma forma especial de registro da memória. A escrita de imediato determina um critério seletivo à exposição dos fatos ocorridos no dia; o diário retéma lembrança do que se julga significativo, não acolhendo toda a experiência de um dia de vida. 7 Convite à filosofia. 3ª ed., São Paulo : Ática, p. 159 Melo & Pagnan 18 18 A memória certamente extrapola os limites do diário porque ela é capaz, entre tantas outras possibilidades, de reter sensações, como os cheiros e aromas que não se deixam facilmente apreender pela via analítica, pela descrição de sua "anatomia". Esse nosso acervo pessoal, que é a memória, possibilita-nos a evocação de significados afetivos, de gestos, atitudes e situações vitais para o nosso ser, ao mesmo tempo que se dissolve em grande parte na ação do tempo. Tempo e memória são inseparáveis, pois nesta preservamos o passado e extraímos dele, na forma de experiência, o sentido que ordena o presente, o qual, por sua vez, poderá conferir novos sentidos ao passado. A memória é identidade e impulso que nos lança no futuro como seres únicos, donos de uma história pessoal que determina nossas convicções e participa das escolhas e das exigências ao nosso discernimento. Possivelmente a memória guarda ainda a virtualidade não só de nos transportar ao passado, por via da evocação, mas também a de nos "transformar" no presente, embora por poucos instantes, naquilo que fomos um dia... Marcel Proust, autor de Em busca do tempo perdido, romance dividido em sete volumes, deixa entrever essa propriedade da memória, ao longo de várias páginas, das quais destacamos esta passagem de À sombra das raparigas em flor, o segundo volume da obra: ... a maior parte de nossa memória está fora de nós, numa viração de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência desdenhara, por não lhe achar utilidade, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer-nos chorar. Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. (Tradução de Mário Quintana) A propósito da integração das partes do repertório na forma de uma rede geradora de sentido, leia a crônica abaixo, na qual Zuenir Ventura faz referência a uma série de dados da atualidade. É preciso que o leitor faça uma conexão eficiente entre os fatos apresentados pelo autor para assimilar o sentido integral do texto. Prática de texto: leitura e redação 19 Em vez das células, as cédulas Nesses tempos de clonagem, recomenda-se assistir ao documentário Arquitetura da destruição, de Peter Cohen. A fantástica história de Dolly, a ovelha, parece saída do filme, que conta a ventura demente do nazismo, com seus sonhos de beleza e suas fantasias genéticas, seus experimentos de eugenia e purificação da raça. Os cientistas são engraçados: bons para inventar e péssimos para prever. Primeiro, descobrem; depois se assustam com o risco da descoberta e aí então passam a gritar "cuidado, perigo". Fizeram isso com quase todos os inventos, inclusive com a fissão nuclear, espantando-se quando "o átomo para a paz" tornou-se uma mortífera arma de guerra. E estão fazendo o mesmo agora. (...) Desde muito tempo se discute o quanto a ciência, ao procurar o bem, pode provocar involuntariamente o mal. O que a Arquitetura da destruição mostra é como a arte e a estética são capazes de fazer o mesmo, isto é, como a beleza pode servir à morte, à crueldade e à destruição. Hitler julgava-se "o maior ator da Europa" e acreditava ser alguma coisa como um "tirano-artista" nietzschiano ou um "ditador de gênio" wagneriano. Para ele, "a vida era arte," e o mundo, uma grandiosa ópera da qual era diretor e protagonista. O documentário mostra como os rituais coletivos, os grandes espetáculos de massa, as tochas acesas (...) tudo isso constituía um culto estético - ainda que redundante (...) E o pior - todo esse aparato era posto a serviço da perversa utopia de Hitler: a manipulação genética, a possibilidade de purificação racial e de eliminação das imperfeições, principalmente as físicas. Não importava que os mais ilustres exemplares nazistas, eles próprios, desmoralizassem o que pregavam em termos de eugenia. O que importava é que as pessoas queriam acreditar na insensatez apesar dos insensatos, como ainda há quem continue acreditando. No Brasil, felizmente, Dolly provoca mais piada do que ameaça. Já se atribui isso ao fato de que a nossa arquitetura da destruição é a corrupção. Somos craques mesmo é em clonagem financeira. O que seriam nossos laranjas e fantasmas senão clones e replicantes virtuais? Aqui, em vez de células, estamos interessados é em manipular cédulas. Zuenir Ventura, Jornal do Brasil, 1997 Reproduzimos o texto abaixo do site da Rede Escola, mantido pelo Estado do Rio de Janeiro. Note como os autores enfatizam o caráter intertextual e a inserção histórica da crônica acima, na relação com o repertório do leitor. Melo & Pagnan 20 20 “Tendo como ponto de partida a alusão ao documentário Arquitetura da Destruição, o texto mantém sua unidade de sentido na relação que estabelece com outros textos, com dados da História. Nesta crônica, duas propriedades do texto são facilmente perceptíveis: a intertextualidade e a inserção histórica. O texto se constrói à medida que retoma fatos já conhecidos. Nesse sentido, quanto mais amplo for o repertório do leitor, o seu acervo de conhecimentos, maior será a sua competência para perceber como os textos 'dialogam uns com os outros' por meio de referências, alusões e citações. Para perceber as intenções do autor desta crônica, ou seja, a sua intencionalidade, é preciso que o leitor tenha conhecimento de fatos atuais, como as referências ao documentário recém lançado no circuito cinematográfico [fita disponível em vídeo], à ovelha clonada Dolly, aos 'laranjas' e 'fantasmas' – termos que dizem respeito aos envolvidos em transações econômicas duvidosas. É preciso que conheça também o que foi o nazismo, a figura de Hitler e sua obsessão pela raça pura, e ainda tenha conhecimento da existência do filósofo Nietzsche e do compositor Wagner. O vocabulário utilizado aponta para campos semânticos [ou lexicais] relacionados à clonagem, à raça pura, aos binômios arte/beleza - arte/destruição, corrupção. clonagem experimentos avanços genéticos ovelhas cientistas inventos células clones replicantes manipulação genética descoberta raça pura aventura demente do nazismo fantasias genéticas experimentos de eugenia utopia perversa manipulação genética imperfeições físicas eugenia arte/beleza - arte/destruição estética, sonhos de beleza crueldade tirano artista ditador de gênio nietzschiano wagneriano Prática de texto: leitura e redação 21 grandiosa ópera diretor, protagonista espetáculos de massa tochas acesas corrupção laranjas clonagem financeira cédulas fantasmas Esses campos semânticos se entrecruzam, porque englobam referências múltiplas dentro do texto”. Exercícios 1. Escreva um pequeno texto sobre os seus primeiros dias de estudante. Tente descrever as sensações vividas naquele tempo, as primeiras impressões do prédio da Escola, da sua sala de aula, dos seus colegas e professor; procure trazer à memória os aromas que envolviam aquele ambiente e os sons que pouco a pouco tornaram-se familiares. 2. Imagine que uma folha do seu caderno é uma página do seu diário. Reflita sobre o que você fez no dia anterior (ou anteriores) a este e registre algo que julgue importante para ser relido no futuro. (Não se prenda necessariamentea fatos; se for o caso, privilegie uma reflexão sobre um sentimento, uma amizade, um gesto...) 3. Qual ou quais são os assuntos que você gostaria de discutir em sala de aula mas que nunca teve oportunidade de fazê-lo? Explique o motivo de sua escolha. 4. João Guimarães Rosa, autor de grandes clássicos da literatura brasileira, entre os quais sua obra-prima – Grande sertão: veredas –, possuía uma biblioteca que reunia títulos sobre os mais variados assuntos; um desses títulos era o do pensador francês Antoine D. Sertillanges, em cujos Devoirs (Deveres) Rosa sublinhou o seguinte trecho: “O ser que recebemos ao nascer não é definitivo; é embrionário, plástico”. O leitor de Grande sertão encontra o aforisma do escritor francês ficcionalizado em uma das muitas reflexões de Riobaldo, protagonista do romance: Melo & Pagnan 22 22 “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior”. (pp. 20-21) A transcriação operada por Guimarães Rosa em relação ao texto-matriz de Sertillanges é um exemplo de incorporação de uma leitura ao repertório de um dos nossos maiores escritores. Releia os dois textos e faça uma tradução criativa do mesmo conteúdo. 5. Leia o texto abaixo e depois responda. “Com gemas para financiá-lo, nosso herói desafiou valentemente todos os ricos desdenhosos que tentaram dissuadi-lo de seu plano. 'Os olhos enganam' disse ele, 'um ovo e não uma mesa tipificam corretamente esse planeta inexplorado'. Então as três irmãs fortes e resolutas saíram à procura de provas, abrindo caminho, às vezes através de imensidões tranqüilas, mas amiúde através de picos e vales turbulentos. Os dias se tornaram semanas, enquanto os indecisos espalhavam rumores apavorantes a respeito da beira. Finalmente, sem saber de onde, criaturas aladas e bem vindas apareceram anunciando um sucesso prodigioso." In: KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas : Pontes, 1989. O texto é bastante difícil à primeira vista. Pensamos mesmo tratar-se de um texto mal escrito, sem coerência. No entanto, a partir de uma releitura atenta será possível depreender elementos que, juntos, configuram um campo semântico coerente, pleno de sentido, na medida em que todos os elementos se interligam entre si. Para chegar a tal conclusão, será preciso que você possua determinado repertório, isto é, que você seja capaz de articular os sintagmas do texto preenchendo-os de sentido; esta operação, por sua vez, fica na dependência de você possuir certas informações. É um exercício de cognição, de “cultura geral” e de perspicácia. a) Depois que você for capaz de decifrar o “enigma”, dê um título adequado ao texto, um título que de imediato esclareça o leitor sobre a matéria que irá ler. b) Explique o sentido de dois sintagmas (palavras, expressões, frases), conforme o contexto depreendido por você. Prática de texto: leitura e redação 23 6. O texto narrativo abaixo é alegórico, isto é, ele se constrói pelo entrelaçamento de metáforas que remetem o leitor a assuntos da atualidade. Reescreva no seu caderno os trechos que se referem metaforicamente a esses assuntos e em seguida interprete o sentido de cada trecho sempre considerando seu caráter relacionado ao cotidiano. Frei Beto Revista Bundas, jul. 1999 Era uma vez um reino de bobos. Exceto um, é claro – o rei! O rei era o único inteligente, culto, poliglota e, além de tudo, bonito. Um dia, para alegria dos reinóis, ordenou Sua Majestade cunhar a moeda real. Decretou que ela seria tão forte quanto as moedas dos mais poderosos reinos. Os bobos acreditaram que, com tal moeda em mãos, teriam pela frente um futuro de prosperidade e fartura. A moeda era forte, mas os salários, fracos. Os nobres, em cujas mãos se acumulavam moedas reais, viram suas fortunas multiplicarem-se como coelhos do reino. Os servos, obsequiados com míseros trocados, eram tragados pela miséria que lhes assomava à porta. O rei, contudo, julgando-se bondoso, quis poupar a capacidade produtiva de seus súditos. Num reino com tantas praias, rios, lagos e belezas naturais, não seria bom alvitre importar os produtos necessários? Assim, alegou o soberano, os reinóis só teriam o trabalho de consumir, jamais produzir. Logo, o reino passou a importar caravelas e caravelas de produtos. Inclusive moedas mais fortes de outros reinos, para encher suas burras. Como os súditos eram bobos, o rei considerou medida de somenos penhorar o reino ao Fundo Majestático de Investimentos, uma instituição que administrava riquezas das cortes poderosas e jamais permitia que um reino pobre viesse a ter melhor sorte. Os bobos aplaudiram quando o rei decidiu entregar as fontes de riquezas do reino aos grandes impérios. Tudo iria funcionar melhor, prometia o rei, e a corte ficaria mais rica. Os bobos acreditaram, as fontes de riquezas foram repassadas aos estrangeiros e o tesouro real engordou. Porém, a aura de fortaleza da moeda real se desfez quando o poder dos magos do reino entrou em crise e, em poucos meses, o tesouro real perdeu tanto de sua fortuna que se tornou possível enxergar o seu piso. E os problemas com os serviços Melo & Pagnan 24 24 estrangeiros implantados no reino começaram a se tornar crônicos. Basta dizer que as comunicações entre os súditos ficaram prejudicadas pelos mensageiros que quebravam as pernas, cavalos que deslizavam na lama, corneteiros que encontravam seus instrumentos entupidos. O rei viu-se obrigado a devolver aos credores do reino o dinheiro pago pelas fontes de riquezas. De modo que os credores ficaram com o dinheiro e as fontes. Mas os arautos do reino explicaram à plebe que se tratava de uma borrasca passageira. A crise mundial, a tempestade no país vizinho respingava no reino, mas logo se recuperaria a riqueza perdida. Os bobos acreditaram. A rainha, do alto da sacada do palácio, jurou que os pobres não seriam atingidos pela crise. Claro, os pobres do reino não possuíam saúde e instrução, moradia e terra, e vagavam maltrapilhos por estradas e encruzilhadas. A rainha tinha razão. Os pobres nada tinham a perder, exceto o fio de vida que lhes restava. Mas isso, na opinião dos conselheiros do rei, não seria uma perda, seria um consolo. O segredo do rei era governar para a corte e com o corte. Para beneficiar a corte, ele cortava o pouco que quedava a seus súditos: cortaram-se anos dos velhos, obrigados a morrer aos 65 anos; estipêndios dos mestres, forçando-os a ensinar o que não podiam aprender; infância das crianças, condenando-as ao trabalho precoce; fomentos de agricultores, para que suas lavouras não viessem ameaçar os belos campos reservados à caça e aos jogos da nobreza. Certo dia, os bobos surpreenderam ministros do rei fazendo uso da carruagem real para levar suas famílias a passeios. Por um momento, os bobos acreditaram que estavam começando a deixar de ser bobos. Mas os arautos do rei esclareceram que os cocheiros deveriam cumprir umas tantas horas anuais de viagens pelas estradas do reino. Os bobos contentaram-se com a explicação, assim como já se haviam conformado quando lhes foi dito que as riquezas sonegadas do tesouro real para beneficiar certos nobres eram perfeitamente legais. Como eram bobos, não questionaram. Assim como engoliram a seco quando o rei nomeou um carrasco para comandar a guarda do reino. E assim, o rei e a rainha viveram felizes para sempre, cercados de homenagens da nobreza rica, bela e sadia. Quanto aos súditos... Bem, isso é outra história. 7. O texto a seguir é um representante da poesia de caráterparticipativo (de crítica social). CartIlha a MATIlha contra a Ilha Prática de texto: leitura e redação 25 Ilha recUSA? Ilha reclUSA USA e abUSA América LATina AméRICA ladina LATe a MATilha Ilha trIlha CartIlha José Paulo Paes. Invenções. 1967. In: Um por todos: poesia reunida. São Paulo : Brasiliense, 1986, p. 96 a) O poema registra momentos de transformação social e histórica. Indique-os. b) No texto há uma série de jogos formais explorando as possibilidades fônicas e visuais dos vocábulos. No primeiro verso (linha), o grafema (símbolo gráfico) "MAT" realça qual sentido em relação à "Ilha"? c) Explique o jogo formal do quinto verso do texto. d) Explique o significado dos dois últimos versos. e) O vocábulo cartiIlha assume um sentido positivo ou negativo no interior do processo histórico? Explique. Proposta de redação Tudo o que eu preciso saber aprendi no jardim da infância Melo & Pagnan 26 26 A maior parte do que realmente preciso para saber como viver, o que fazer, como ser, eu aprendi no Jardim da Infância. A sabedoria não estava no topo da montanha do conhecimento, que é a faculdade, mas sim, no alto do monte de areia do Jardim da Infância. Essas são algumas das coisas que eu aprendi: dividir tudo; brincar dentro das regras; não machucar ninguém; colocar as coisas de volta no lugar de onde foram tiradas; arrumar a própria bagunça; nunca pegar o que não é meu; pedir desculpas sempre que machucar alguém; lavar as mãos antes das refeições; dar descarga; leite com bolachas fazem bem para nossa saúde. Tirar uma soneca todos os dias. Quando sair na rua olhar os carros, dar as mãos e ficar junto. Estar atento às maravilhas. Lembra daquela sementinha de feijão no potinho de Danone? As raízes crescem para baixo e as folhas para cima e ninguém sabe com certeza como ou por que, mas todos nós somos exatamente como ela. Peixinhos dourados, hamsters e ratinhos brancos, e até a pequena semente de feijão no potinho de Danone – todos morrem – assim como nós. E lembre do primeiro livro de leitura que você leu e das primeiras palavras que você aprendeu. As maiores de todas: mamãe e papai. Tudo o que você precisa saber está lá em algum lugar. Regras sobre a vida, o amor, saneamento básico, ecologia, política, igualdade e fraternidade. Pegue qualquer um desses temas e extrapole para sofisticadas palavras de linguagem adulta e então aplique em sua vida familiar, no trabalho, no governo ou no mundo e tudo continua firme e verdadeiro. Pense como o mundo seria melhor se nós – o mundo inteiro – tomássemos leite com bolachas às três da tarde, todas as tardes, e, depois, deitássemos com nossos travesseiros no sofá da sala para uma soneca. Ou então, se todos os governos tivessem como política básica sempre colocar as coisas de volta no lugar de onde foram tiradas e também arrumassem suas próprias bagunças. E continua verdade, não importa sua idade: quando sair para o mundo, dê as mãos, fique junto. Traduzido e adaptado do texto original do Pastor Robert Fulghum Unitarian Church/Edmonds, Washington a) Certamente você já ouviu que determinados textos possuem uma natureza “poética”, como geralmente o são todos aqueles compostos em versos, a que damos o nome de “poema”. Você diria que o texto de Robert Fulghum é poético? Justifique. Prática de texto: leitura e redação 27 b) Inspirado no texto acima, escreva outro sobre o processo de amadurecimento do indivíduo. Destaque os saberes aprendidos na infância que você julga decisivos para a formação da sensibilidade, para o fortalecimento da capacidade ou do desejo de aprender. Capítulo 3 Desenvolvimento do Vocabulário Pensamento e linguagem são indissociáveis. Dizer, como no passado, que a linguagem é um revestimento do pensamento, seria reduzi-la a meio ou a utensílio por meio do qual se exprimem as idéias, o "conteúdo" do pensamento. Essa posição já foi há muito superada pela Lingüística – a ciência que estuda a linguagem –, quando defendeu a noção, hoje dominante, do caráter material desse fenômeno. Segundo esse conceito, a linguagem é um sistema de sons articulados, ao mesmo tempo que uma rede de marcas escritas (uma escrita) ou ainda um sistema de gestos, os quais produzem e expressam o pensamento. Não há, portanto, pensamento sem linguagem e linguagem sem pensamento. Diante dessa realidade, qual a importância da aquisição de vocabulário? Há relações diretas entre extensão do vocabulário e conhecimento da língua? Sem muito exagero, pode-se dizer que o vocabulário coloca-se ao lado dos elementos identificadores do indivíduo (impressão digital, DNA, arcada dentária), com a diferença, óbvia, de que ele é produto de circunstâncias externas, de variada natureza, e dependente, em Melo & Pagnan 28 28 grande parte, do livre arbítrio para ser assimilado. Transformações de natureza sócio- econômica contribuem de forma decisiva para o crescimento do acervo lexical da língua, envolvendo necessariamente um número expressivo de "usuários” das novas palavras. Surgimento de novas profissões e campos do conhecimento, ao lado de novas acepções, incorporadas por determinados vocábulos, estão na base dessas mudanças. O vocabulário individual é uma marca registrada, um traço de diferença no interior de um sistema lingüístico gerado por uma espécie de contrato entre os componentes de certo grupo social. Engana-se, contudo, quem levantar a hipótese de que um vocabulário rico implica necessariamente maior conhecimento do mecanismo da língua, pois o domínio das relações lógicas e das estruturas textuais depende de uma série de operações que superam em muito a capacidade de reter o significado das palavras. De igual modo continuaria equivocado quem defendesse a idéia de que falar e escrever bem relacionam-se tão somente ao conhecimento de normas gramaticais, as quais, uma vez assimiladas, dotariam o indivíduo de "soluções" lingüísticas previsíveis em maior ou menor grau. Tal raciocínio colocaria no nível do conhecimento gramatical o que não é legado dele, exclusivamente, já que a escrita se relaciona a uma atitude mental irredutível ao normativismo, por estar alicerçada pela capacidade criadora e transformadora. Do ponto de vista estrito da aquisição de vocabulário, a melhor lição será aquela que enfatizar o papel da experiência e realçar a função das circunstâncias geradas pelo cotidiano, nas quais haja necessidade do uso de um vocabulário mais rico ou especializado. O chamado vocabulário ativo – aquele incorporado e posteriormente empregado – encontra maiores possibilidades de se efetivar na prática do dia-a-dia, seja na conversa com as pessoas, seja no exercício do trabalho, situações estas com um contexto bem definido. No entanto, como recurso à ampliação do vocabulário, propomos a seguir exercícios que correspondem, pelo menos em parte, às condições favorecedoras para tal fim. Trata-se, é bom frisar, de manobras com certo grau de artifício, que poderão, além disso, ter esse caráter acentuado, caso você se dê por satisfeito e não siga em frente com muita dedicação; os exercícios deste capítulo tentam apenas reforçar a necessidade do aprimoramento do vocabulário. O resto é com você. Prática de texto: leitura e redação 29 Exercícios 1) Leia o texto abaixo: A estranha (e eficiente) linguagem dos namorados Carlos Drummond de Andrade — Oi, meu berilo! — Oi, meu anjo barroco! — Minha tanajura! Minha orquestra de câmara! — Que bom você me chamarassim, meu pessegueiro-da-flórida! — Você gosta, minha calhandra? — Adoro, meu teleférico iluminado! — Eu também gosto muito de ser tudo isso que você me chama! — De verdade, meu jaguaretê de paina? — Juro, meu cavalinho de asas! — Então diz mais, diz mais! — Meu oitavo, décimo, décimo quinto pecado capital, minha janela sobre a Acrópole, meu verso de Rilke, minha malvasiara, meu minueto de Versailles... — Mais, agapanto meu, tempestade minha! — Minha follia com variazoni, de Corelli, meu isto-e-aquilo enguirlandado, meu eu anterior a mim, meus diálogos com Platão e Plotino ao entardecer, minha úlcera maravilhosa! — Ai que lindo, liiiiindo, meu colar de cavalheiro inglês num retrato de Ticiano! Meu fundo-do-mar, você me põe louca, louca de amar as pedras, de patinar nas nuvens! — E eu então, minha górgone, minha gárgula de Notre-Dame, e eu, minha sintaxe de Deus? — Você fala como falam os balões de junho de Portinari, as jóias da coroa do reino de Samarcanda, você, meu imperativo categórico, você, minha espada maçônica, você me mata! — E você também me trucida, me degola, me devolve ao estado de música, meu tambor de mina! — Todos os incentivos oficiais reunidos e multiplicados não valem a tua alquimia, meu ministro do fogo! Melo & Pagnan 30 30 — Tuas paisagens, teu subsolo infernal, teus labirintos são superiores em felicidade a qualquer declaração dos direitos do homem! — A primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as pirâmides e as cataratas não valiam a tua unha do dedo mindinho! — Porque você é o Banco das Estrelas, e pode comprar todas as coisas do mundo, inclusive as águas e os animais, para restituí-los à vida em liberdade! — Como posso ouvir outras palavras senão as tuas, meu almanaque do céu? Minha ciência do insabível? Meu terremoto, meu objeto voador identificado? — Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos nessa desde antes do começo dos séculos, meu nenúfar! — E estaremos mesmo depois que os séculos se evaporarem, ó meu desenho rupestre, meu formigão atômico! — Mandala, raio laser, sextina! Tudo meu, é claro! — Pomba-gira! — Clepsidra! — Sequóia minha minha minha! Diálogo aparentemente louco, mas que dois namorados de imaginação mantêm todos os dias, com estas ou outras palavras igualmente mágicas. Não inventei nada. Apenas colecionei expansões ouvidas aqui e ali, e que me pareceram espontâneas, isto é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer, de tal modo as palavras saíam entrecortadas de risos, interrompidas por afagos, brotando da situação. O amor é incentivo e anula os postulados da lógica. Ele tem sua lógica própria, tão válida quanto a outra. E os amantes se entendem sob os signos do absurdo – não tão absurdo assim, como parece aos não-amorosos. Já ouvi no interior de Minas alguém chamar seu amor de “meu bicho-do-pé” e receber em troca o mais cálido beijo de agradecimento. Esta coletânea de frases de amor está aqui como introdução ao projeto não- comercial de comemorações do Dia dos Namorados. Não para que elas sejam repetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar as besteiras líricas e deliciosas que a gente não diz para qualquer pessoa, só para uma, e só em momentos de pura delícia. Funcionam? E como! Prática de texto: leitura e redação 31 Boca de luar. São Paulo : Círculo do Livro, 1984, pp. 24-26 a) Escreva uma carta para a pessoa amada usando qualificativos inesperados, como no texto de Drummond. Para que a carta possa se prolongar, descreva um passeio que vocês dois farão no próximo fim de semana. Não se prenda à experiência cotidiana – evoque lugares exóticos, com paisagens deslumbrantes, que lhe ofereçam a oportunidade de utilizar adjetivos nunca ou pouco ouvidos no seu dia-a-dia. 2) "Última clareza – No necrológio de um homem de negócios lia-se: 'A largueza de sua consciência rivaliza com a bondade de seu coração'. O deslize cometido pelos enlutados parentes e amigos na linguagem solene que se reserva para tais ocasiões, a involuntária admissão de que o bondoso falecido era inescrupuloso, remete o cortejo fúnebre pelo caminho mais curto ao país da verdade". Theodor W. Adorno. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. 2ª ed. São Paulo : Ática, 1993, p. 18 a) Explique o “deslize” (a falha no uso da língua) cometido no texto acima. b) Reescreva a frase de modo a corrigir a incongruência a que se refere Adorno. 3) No exercício abaixo você deve se utilizar de palavras das várias classes gramaticais (verbos, adjetivos etc.) para preencher os espaços em branco. Brinquedos incendiados Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo _______ desapareceram ___________ os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos consumidos, de tanto mirá-los nos _____________ — uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas __________ em suas _________. Ah! maravilhosas bonecas _________, de chapéus de ________! pianos ________ sons cheiravam a _________ e ___________ ! __________ lanudos, de _________ no pescoço! piões ___________ ! — e uns bondes com algumas letras escritas ao _________, coisa que muito nos ____________ — filhotes que éramos, então, de Mr. Jordain, fazendo a nossa __________ concreta antes do tempo. Melo & Pagnan 32 32 Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber __________ presente algum bonequinho de ____________, modestos cavalinhos de lata, _____________ de gude, barquinhos sem _____________ de navegação... — pois aquelas ____________ bonecas de seda e ____________, aqueles batalhões completos de ______________ de chumbo, aquelas casas de __________ com ____________ e ___________, isso não chegávamos a ___________, sequer, para onde iria. - ______________ os brinquedos sem esperança ___________ inveja, sabendo que jamais _______________ às nossas mãos, possuindo-os ______________ em sonho, como se _____________ isso, apenas, tivessem sido feitos. Assim, o bando que ___________, de casa para a __________ e da escola para ____________, parava longo tempo a _______________ aqueles brinquedos e lia ____________ nítidos preços, com seus _____________ e zeros, sem muita ____________ de valor porque nós, ___________, de bolsos vazios, como namorados ____________, éramos só ______________ e amor. Bastava-nos levar _____________ memória aquelas imagens, e ___________ cravados nelas, como ___________ nossos olhos. Ora, uma ____________, correu a notícia de __________ o bazar se incendiara. ____________ foi uma espécie de ___________ fantástica. O fogo ia _____________ alto, o céu ficava ______________ rubro, voavam chispas e ______________ pelo bairro todo. As _____________ queriam ver o incêndio ___________ perto, não se contentavam ___________ portas e janelas, fugiam ______________ a rua, onde brilhavam ____________ entre jorros d’água. A ___________ não interessavam nada peças de pano, cetins, __________, cobertores, _____________ os adultos lamentavam. Sofriam ___________ cavalinhos e bonecas, os _____________ e os palhaços, fechados, _____________ em suas grandes caixas. ____________ que jamais teriam possuído, ______________ apenas da infância, amor ____________. O incêndio, porém, levou ___________. O bazar ficou sendo um ______________ galpão de cinzas. Felizmente, ______________ tinha morrido — diziam em ______________ . Como não tinha morrido _______________ ? — pensavam as crianças. Tinha ______________ um mundo, e , dentro ________________, os olhos amorosos da crianças, ali deixados. E começamos _____________ pressentir que viriam outros _______________ . Em outras idades. De outros ____________. Até que um dia também_________________ sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos ________________ . Cecília Meireles. Escolha o seu sonho. 8ª ed., Rio de Janeiro : Record, s.d. Clichês Prática de texto: leitura e redação 33 Você com certeza já deve ter ouvido algum artista na televisão, diante de uma platéia, agradecer o aplauso "desse auditório maravilhoso" ou algum folião considerar o carnaval uma "festa maravilhosa" ou ainda ter escutado de um visitante, ao se despedir, um sorridente "desculpe por alguma coisa". Seqüências vocabulares como essas são repetidas automaticamente e, ao que parece, muitas vezes com a cerimônia de quem imagina ter acabado de contribuir para o enriquecimento do vernáculo. São idéias prontas que estão sempre à mão na falta de outra melhor e mais expressiva. Os clichês (ou chavões) acabam qualificando ou especificando muito mal aquilo a que se referem, pois, ao retomarem pela enésima vez a mesma idéia, a sua carga informacional não desperta no ouvinte ou no leitor qualquer surpresa, antes pelo contrário, pode chocar pela sua trivialidade. Os clichês são idéias cristalizadas, não necessariamente ideológicas, lugares-comuns que denunciam a estreiteza do repertório de quem os usa. A banalidade, do ponto de vista lingüístico, dos dois primeiros exemplos acima, acaba revelando um pouco do senso estético do falante, que não se deu conta do enorme número de vezes em que aquelas expressões são repetidas. O terceiro exemplo acusa uma atitude ingênua, algo como um sentimento de culpa sem origem determinada, redundando num formalismo ridículo e absolutamente dispensável. Existem clichês para todas as situações, mas sem dúvida os que merecem maior censura são aqueles incorporados pela escrita. Clichês relacionados ao universo familiar, ao amor, à paisagem, são algumas das categorias de ocorrência do fenômeno, conforme os exemplos abaixo, coletados pela professora Maria Thereza Fraga Rocco, no exame da FUVEST de 1978: � Familiar "Estava triste pois minha querida mãezinha ainda nem havia me parabenizado. Acalmei-me quando ela disse: – Filhinha, você é meu tesouro; quero tudo, tudo de bom a você". Melo & Pagnan 34 34 � Amoroso "Você meu amor só podia ter nascido no dia da Primavera. Você é uma flor". � Paisagístico "É mais um dia que começa. Os passarinhos voam e cantam para homenagear os primeiros raios de sol". � Existencial "A incerteza do amanhã me invade e penetra no mais recôndito do meu ser". É necessário, porém, contrabalançar o peso das restrições dirigidas aos clichês, lembrando que o processo de aprendizagem e refinamento da escrita se dá, em parte, pela adoção de séries vocabulares que se instalaram na cultura como modelos dignos de serem repetidos. A uma pessoa que não tenha o hábito da leitura, pode parecer que uma série vocabular como "imenso mar azul" ou "a lua cor de prata navegava no céu" represente uma contribuição original ao acervo literário da língua portuguesa. Um juízo desses, em tais circunstâncias, é natural. E isto porque em algum lugar do passado essas imagens foram de fato originais, provocaram, talvez, nos seus primeiros leitores, uma emoção estética invulgar e até se fizeram motivo de um riso satisfeito, graças ao feitio de voluntária redundância das frases: ora, todo mar é imenso e freqüentemente azul e a lua só poderia, claro, estar no céu. São imagens que guardam alguma semelhança com outra muito conhecida do nosso cancioneiro; n’ “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, ouve- se num dos versos: “esse coqueiro que dá coco..." Como se vê, as imagens anteriores são apenas um pouco mais discretas na tautologia... O poder de sedução conservado por alguns clichês ao longo dos tempos não encontra uma explicação plenamente satisfatória. A renúncia total ao estereótipo é impossível, já que esta se confunde com a ilusão da originalidade absoluta, o que implicaria, por sua vez, a criação Prática de texto: leitura e redação 35 de uma nova língua. Diante disso, será preciso saber conviver com o lugar-comum até o ponto em que ele não ocupe espaço demais no nosso pensamento, nos nossos textos e na nossa vida. Exercícios 1) As séries vocabulares a seguir são lugares-comuns do discurso pretensamente literário ou jornalístico. Reescreva os textos fazendo cortes e substituições que os valorizem estilisticamente. a) Tinha nos olhos o brilho irradiante das estrelas. b) Conservava na lembrança a mais grata recordação dos inesquecíveis momentos de felicidade, passados naquela boa e acolhedora terra, entre velhos amigos da infância. c) Ficaram-lhe na lembrança as marcas indeléveis daquele passado risonho e feliz da mocidade, que não voltam mais. d) Montou o fogoso ginete e saiu galopando a toda brida pela estrada afora, deixando atrás de si uma densa nuvem de pó. e) A brisa matutina acariciava-lhe os cabelos e beijava-lhe a face delicada. f) Ouvia-se, dali, o bramido ensurdecedor das ondas revoltosas, batendo furiosamente contra os impassíveis rochedos. g) Permaneceu ali, por muito tempo, engolfado em profundos pensamentos. h) Um silvo longo e agudo ecoou na amplidão. O trem vencia a distância, devorando sofregamente os quilômetros. A locomotiva, qual fabuloso dragão, resfolegava, vomitando fagulhas e rolos de fumaça pelas enormes ventas abertas. i) Declinando mansamente, o sol foi estendendo o seu manto de púrpura sobre os montes. j) O flagelo da seca está dizimando toda aquela região do nordeste brasileiro. k) Essa inversão de valores é o sinal dos tempos; nota-se em todos os setores da atividade humana. l) Aproveitando os domingos e feriados, o paulistano procura fugir do bulício trepidante desta cidade, que se transformou numa desumana megalópole, em face do seu progresso vertiginoso. m) Nessa reunião de cúpula, foram ventilados magnos problemas que o País tem que enfrentar na atual conjuntura. Melo & Pagnan 36 36 n) O Prefeito vai envidar todos os esforços no sentido de solucionar os angustiantes problemas básicos de infra-estrutura dos bairros periféricos da Capital. o) Com a voz embargada pela emoção, o ilustre homenageado agradeceu, comovido, a expressiva homenagem que lhe fora tributada. 2) O Manual de Redação e Estilo do jornal “O Estado de S. Paulo” relaciona uma série de lugares-comuns que devem ser evitados “a todo custo” no noticiário. Procure substituir alguns dos clichês abaixo por expressões menos desgastadas. Abrir com chave de ouro; acertar os ponteiros; a duras penas; dar a volta por cima; agradar a gregos e troianos; alto e bom som; ao apagar das luzes; aparar as arestas; a sete chaves; atingir em cheio; a toque de caixa; banco dos réus; bater em retirada; cair como uma bomba; chegar a um denominador comum; chover no molhado; colocar um ponto final; coroado de êxito; deitar raízes; deixar a desejar; depois de um longo e tenebroso inverno; desbaratada a quadrilha; dirimir dúvidas; divisor de águas; do Oiapoque ao Chuí; faca de dois gumes; inserido no contexto; lugar ao sol; pôr as cartas na mesa; reta final; trocar farpas. 3) Escreva uma frase com cada uma das expressões que você utilizou para substituir os clichês. 4) O poema abaixo, de José Paulo Paes, é uma crítica à automatização, entendida como um processo de condicionamento de nossa percepção, de estereotipação contínua em relação ao mundo que nos cerca. Explique como ocorre essa crítica. Segundo o poeta, há algum setor da vida social, capaz de resistir ao condicionamento? PAVLOVIANA a sineta a revoltaa saliva a doutrina a comida o partido a sineta a doutrina a saliva o partido Prática de texto: leitura e redação 37 a saliva o partido a saliva o partido a saliva o partido a saliva o partido o mistério a emoção o rito a idéia a igreja a palavra o rito a idéia a igreja a palavra a igreja a palavra a igreja a palavra a igreja a palavra a igreja A PALAVRA Capítulo 4 Conceito de Ideologia A linguagem é um sistema de signos ou sinais, um conjunto de elementos verbais e não-verbais que serve como meio de comunicação entre as pessoas na forma de idéias, sentimentos e valores. Por ter importância decisiva na relação entre os indivíduos, a linguagem apresenta-se como campo permanente de incursão da ideologia, conceito que passaremos a estudar desde seu estabelecimento como teoria no decorrer do século XIX. Antes, porém, relacionamos a seguir alguns dos significados mais comuns associados à ideologia, conforme Terry Eagleton8, um teórico inglês: 8 Ideologia: uma introdução. Rio de Janeiro : Unesp/Boitempo, 1997, p. 15. Melo & Pagnan 38 38 a) o processo de produção de significados, signos e valores da vida social; b) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe social; c) idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante; d) idéias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante; e) comunicação sistematicamente distorcida; f) formas de pensamento motivadas por interesses sociais; g) ilusão socialmente necessária; h) a conjuntura de discurso e poder. A palavra ideologia é usada pela primeira vez por Destutt de Tracy (1754-1836) num livro publicado em 1801 – Elements d’Ideologie (Elementos de Ideologia). Compreendida como ciência das idéias, a ideologia seria uma disciplina filosófica criada para servir de substrato para todas as outras ciências, o verdadeiro método para o conhecimento do homem. Como a ideologia pretendia ser uma espécie de radiografia do conhecimento, ao tempo da Revolução Francesa (1789-1799), nada mais natural que seus teóricos se colocassem em posições supostamente avançadas, ora apoiando Napoleão Bonaparte no golpe de 18 Brumário (9 de novembro de 1799)9, quando então acreditavam que ele daria prosseguimento aos ideais da revolução burguesa, ora fazendo oposição ao líder por constatarem depois que Napoleão tornara-se um restaurador do Antigo Regime. À crítica ao autoritarismo bonapartista, segue-se a reação de Napoleão que tachava os ideólogos de “falastrões”, acusando-os de destruírem todas as ilusões, sendo que era justamente a era das ilusões, segundo ele, para os indivíduos como para os povos, a era da felicidade. Em 1812, após ser derrotado pelo exército russo, Napoleão ataca os ideólogos em um de seus mais célebres discursos: É à doutrina dos ideólogos – a essa metafísica difusa que artificialmente busca encontrar as causas primárias e sobre esse alicerce erigir a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis do conhecimento do coração humano e das lições da história – que se deve atribuir todos os infortúnios que se abateram sobre nossa amada França. A ideologia, como lembra Eagleton, tem “raízes profundas no sonho iluminista de um mundo totalmente transparente à razão, livre do preconceito, da 9 À época da Revolução Francesa (1789-1799), houve mudanças na maneira de marcar as datas, de nomear os meses, por isto 18 Brumário equivale a 9 de novembro. Prática de texto: leitura e redação 39 superstição e do obscurantismo do Ancien Régime10”. Ser um “ideólogo” significava ser um "crítico da 'ideologia', no sentido aqui dos sistemas de crença dogmáticos e irracionais da sociedade tradicional". (p. 66) Tal projeto era visivelmente ambicioso e não imune a contradições, pois se de um lado, como porta-vozes da burguesia revolucionária da Europa do século XVIII, os ideólogos acreditavam poder reconstruir a sociedade de alto a baixo sob bases racionais, sonhando “com um futuro no qual se teria em apreço a dignidade de homens e mulheres, como criaturas capazes de sobreviver sem ópio nem ilusão” (quer dizer, sem crenças), de outro lado não eram capazes de perceber que tal causa encerrava em si mesma uma debilidade que se tornou depois flagrante. É que ao julgarem que a consciência humana poderia ser transformada, na direção da felicidade humana, por um projeto pedagógico sistemático, não se perguntaram quais seriam os determinantes desse projeto. Como destaca Eagleton: Se toda consciência é materialmente condicionada [é histórica e, portanto, relacionada ao modo como o homem age sobre a natureza criando o trabalho], isso não deveria aplicar-se também às noções aparentemente livres e desinteressadas que iluminariam as massas em seu caminho para fora da autocracia, rumo à liberdade? Se tudo deve ser submetido à luz translúcida da razão não se deveria incluir aí a própria razão? (p. 66). Em outros termos, como o fez o filósofo alemão Karl Marx, quem educaria os educadores? Karl Marx e outro alemão, Friedrich Engels, estudaram a ideologia no livro A ideologia alemã (publicado entre 1845-1846, mas cuja versão integral só pôde vir à luz em 1932), obra que não se restringe ao estudo do fenômeno naquele país, transformando-se num dos mais sólidos referenciais sobre o assunto e inaugurando uma tradição de pensamento crítico que se mantém viva e atuante ainda hoje. No livro, os teóricos alemães revisam a obra de Destutt de Tracy, apontando para uma ordem de problemas não considerada pelo autor de Elementos de Ideologia. 10 O Ancien Régime (Antigo Regime) é o termo pelo qual ficou conhecido o sistema de governo baseado em um rei, em um monarca. A Revolução Francesa pretendeu derrubar esse tipo de regime governamental para implantar outro baseado na razão do indivíduo. Melo & Pagnan 40 40 Para Marx, a ideologia resulta da divisão social do trabalho em dois grandes campos: trabalho manual e trabalho intelectual ou, dito de outra forma, entre trabalhadores e pensadores. No processo histórico, o trabalho intelectual é identificado à classe dominante de uma época; no contexto da Revolução Francesa, a classe em ascensão – a burguesia – exerce o domínio sobre as demais classes (pequenos comerciantes, pequenos artesãos, servos e aprendizes) que continuam compartilhando com ela os ideais revolucionários de liberdade e igualdade. Mas como essas idéias podem continuar vigorando se na prática não existe igualdade entre os homens e a liberdade é reduzida a uma abstração, a um sentimento flutuante, sem história e incapaz de transformar a sociedade? A resposta deve evocar de novo a separação dos trabalhos que impõe uma aparente autonomia do trabalho intelectual diante do trabalho manual. Vista dessa forma, a autonomia, aparente, produz como resultado a autonomia dos intelectuais – dos que produzem as idéias – e por
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