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A EXPERIMENTAÇÃO NO ENSINO DE CIÊNCIAS Lenice Heloísa de Arruda Silva (UFMS) Lenir Basso Zanon (UNIJUÍ) O desenvolvimento do pensamento é um processo em que o sujeito transforma e é transformado pela realidade física, social e cultural em que ele se encontra. Vygotsky 1. A experimentação na abordagem tradicional de Ensino de Ciências Quando usualmente expressam posições ou impressões relativamente ao ensino experimental, professores costumam dizer que ele é fundamental para melhorar o ensino, mas lamentam a carência de condições para tal, referindo-se a turmas grandes, inadequação da infra-estrutura física/material, carga horária reduzida. Nem sempre focalizam os aspectos centrais dessa problemática que, a nosso ver, dizem respeito a carências na formação docente: a falta de clareza sobre o papel da experimentação na aprendizagem dos alunos. A organização do presente texto parte do pressuposto de que ter aulas experimentais não assegura, por si só, a promoção de aprendizagens significativas; não assegura, por si só, o estabelecimento de relações entre teoria e prática. Se as atividades práticas podem ajudar a aprender ciências, vale perguntar: que modalidade de experimentação é adequada para tal? Qual o papel dos experimentos no Ensino de Ciências? A relação teoria-prática é usualmente vista e tratada nas salas de aula como uma via de mão única, em que ‘a prática comprova a teoria, ou vice versa’. É importante que sejam discutidas indagações como as propostas por Amaral e Silva (2000: 134): será que os professores imaginam que o laboratório de ensino testa a validade das teorias? Em duas ou três horas de prática? Com poucos experimentos e quando eles são executados por aprendizes que estão começando a desenvolver suas habilidades e conhecimentos teóricos? user Nota SILVA, Lenice Heloísa A., ZANON, Lenir. B. A experimentação no ensino de ciências. In: SCHNETZLER, R. P. e ARAGÃO, R. M. R. (orgs.). Ensino de Ciências: fundamentos e abordagens. Piracicaba: CAPES/UNIMEP, 2000. 2 Pesquisas revelam a prevalência de visões essencialmente simplistas sobre a experimentação no Ensino de Ciências. Muito se tem discutido a esse respeito e, como sabemos, ainda é amplamente vigente a acepção de experimentação como mera atividade física dos alunos (manipulam, “vêem a teoria com seus próprios olhos”), em detrimento da interação e da atividade prioritariamente cognitiva/mental. Como dizia uma professora, as aulas práticas são importantes para que os alunos ‘vejam com seus próprios olhos’, para que os alunos ‘vejam a realidade como ela é’, para que tirem suas próprias conclusões e seus próprios conhecimentos ‘descobrindo a teoria na prática’. É importante que sejam discutidas expressões como estas, que se contrapõem à visão do papel essencial do professor: o de ser o mediador que faz intervenções indispensáveis aos processos de ensinar-aprender ciências que promovem o conhecimento e as potencialidades humanas. A prevalência dessa visão de que a ciência ‘está na realidade, a espera de ser descoberta’ é um indício de que o empiricismo-indutivismo é amplamente dominante, nos contextos das escolas, em detrimento da valoração da capacidade criadora do sujeito que se transforma ao transformar/criar o real colocado em discussão. A visão dogmática de Ciência - a única forma, verdadeira e definitiva, de explicação - cultua a existência de uma única explicação certa/correta para qualquer questão. Ainda são muitos os professores que imaginam ser possível ‘comprovar a teoria no laboratório’. Pensam esses professores ser esta a função da experimentação no ensino. São muitos os professores, outrossim, que imaginam o inverso: que no laboratório se consiga chegar, a partir dos experimentos realizados pelos alunos, “por descoberta”, a uma determinada teoria, sem o papel mediador do professor.(Amaral e Silva, 1999: 7). Nesse sentido, Aragão e colaboradores (2000) alertam que uma das conseqüências da primazia da visão de um sujeito pretensamente isento, neutro, pré-determinado, e de uma ciência objetiva, neutra, quantitativa, empírica, linear, cumulativa, é a preservação do modelo de ensino centrado na transmissão-recepção de conteúdos tidos como verdadeiros, incoerentes com a ciência, e com questionável papel formador para a vida profissional e social. Em outras palavras, uma visão de ciência externa, neutra, quantitativa, empírica gera no ensino e na aprendizagem uma visão de sujeito isento/neutro, que reproduz de forma passiva o que lhe é apresentado. É importante, pois, prestar maior atenção às relações conceituais entre a visão de ciência/conhecimento e a visão de sujeito que precisa 3 conhecer. Com base nos mesmos autores, dizemos que na idéia dominante de sujeito como “des-a-sujeitação” há uma descaracterização do sujeito social que, na interação sócio- cultural, tem a capacidade de assumir-se como gestor, produtor, construtor e divulgador do seu conhecimento, constituindo-se como transformador/criador de seu meio e - ao mesmo tempo - de si próprio. Quando um professor encara a ciência com a visão ‘do verdadeiro, do definitivo, do certo’, ele vai exigir que seu aluno reproduza tal visão, apresentando (e assumindo que há) uma única resposta verdadeira/correta para qualquer questão que lhe for posta. Por isso é importante que sejam desenvolvidas formas de como superar essa concepção de ciência pretensamente neutra, objetivista, empiricista, quantitativista, cumulativa, linear, elitista, sobre-humana, a-histórica, ainda tão presente nos contextos escolares. Corroboramos com Amaral e Silva (1999) ao apontar a visão indutivista de ciência como um dos grandes obstáculos ao ensino e a aprendizagem, por ela supor que a interpretação dos resultados experimentais seja algo trivial e simples, uma conseqüência imediata da realização dos experimentos, que ela pode ser feita sem maiores problemas, e como iniciativa individual de cada estudante, não sendo necessário investir muito tempo em discuti-la na sala de aula. Por isso referimos, junto com os mesmos autores, que a filosofia da ciência e a pesquisa em educação científica têm insistido em apontar a visão indutivista da ciência como um dos principais obstáculos para um ensino de qualidade. Dentro dessa perspectiva, conforme diz Hodson (1994: 306), o ensino experimental precisa envolver menos prática e mais reflexão. O autor refere que o trabalho no laboratório costuma ser restrito no que tange ao tempo de contato que permite manter com a essência conceitual da aprendizagem. Cita casos que mostram como é difícil lidar com relações entre ‘conceitos abstratos fundamentais’ e ‘efeitos observáveis’. Isso porque, segundo ele, ainda que os estudantes percebem o laboratório como um lugar onde estão ativos (no sentido de “estar fazendo algo”), muitos são incapazes de estabelecer a conexão entre o que estão fazendo e o que estão aprendendo (tanto em termos de conhecimentos conceituais como de conhecimentos relativos ao procedimento). Hodson (1994) discute o fato de que um dos objetivos atribuídos por professores para as atividades práticas no ensino de ciências é a motivação dos alunos. O autor chama a atenção de que nem sempre isto se sucede, que há alunos que expressam antipatia ao trabalho prático e que o entusiasmo que tal atividade pode causar diminui de maneira significativaà medida que os alunos vão se tornando mais maduros. 4 Segundo o autor, o que freqüentemente resulta como atrativo para os alunos quando os professores se utilizam desse recurso pedagógico é a oportunidade para pôr em prática métodos de aprendizagem mais ativos, para interatuar mais livremente com o professor e com outros alunos e para organizar o trabalho que melhor se adapte ao gosto do aluno, e não a ocasião de levar a cabo uma investigação de banco de laboratório por si (Hodson, 1994: 301). Acerca das limitações na efetividade das atividades práticas na aprendizagem científica, o autor refere que o que acontece é que os professores de ciências mantêm a crença em objetivos que supõem serem alcançados ainda que tais objetivos não lhes sejam explícitos. Ao discutir razões apontadas por professores para fazer com que os estudantes participem em atividades práticas, o autor chama a atenção que nenhuma atividade experimental assegura, por si só, a obtenção dos efeitos esperados na aprendizagem. Refere que muitas das dificuldades relativas ao ensino experimental devem-se à maneira irreflexiva com que os elaboradores de planos de estudo e os professores fazem uso do trabalho prático. Aponta que, em poucas palavras, o ensino experimental é sobreutilizado e infrautilizado. É usado em demasia no sentido de que os professores empregam as práticas como algo normal e não como algo extraordinário, com a idéia de que servirá de ajuda para alcançar todos os objetivos de aprendizagem. É infrautilizado no sentido de que somente em poucas ocasiões se explora completamente seu autêntico potencial. Pelo contrário, grande parte das práticas que oferecemos são mal concebidas, são confusas e carecem de valor educativo real. (Hodson, 1994: 300/305). Assim, se a experimentação é escassa no Ensino das Ciências, preocupa-nos, sobremaneira, a sua inadequação e sua incapacidade para promover aprendizados que se mostrem significativos, relevantes e duradouros. Além de escassa, a experimentação é infrutífera. Como se diz, ‘fica-se na experimentação pela experimentação’. Por isso, ao questionarmos a forma como a experimentação foi introduzida e vem sendo desenvolvida nas aulas de ciências, insistimos em criticar a ampla carência de objetivos e de intencionalidades visivelmente expressos no sentido das interações e das aprendizagens em sala de aula. 5 2. Origens da Experimentação no Ensino: o paradigma da formação em Ciências A maneira de conceber o cientista, a atividade científica e o trabalho prático na sala de aula vem recebendo inúmeras críticas, e isso tem gerado propostas alternativas de ensino baseadas na visão de que a observação é dependente da teoria, de que a teoria é determinante do ‘o que’ e do ‘como’ se observa, de que, se faltar o conhecimento teórico, a observação é vazia e sem sentido. Segundo Jacob apud Cachapuz (1999) 1 , para se obter uma observação com algum valor, é preciso ter já, à partida, uma certa idéia do que há a observar. Conforme expressa Chalmers (1993: 20), a concepção positivista de ciência é derivada da concepção de método científico formulada por Bacon no início do século XVII, segundo a qual a meta da ciência é o melhoramento da vida do homem na terra. Para ele essa meta seria alcançada através da coleta de fatos com observação organizada e derivando teorias a partir daí. Francis Bacon, ao lado dos empíricos ingleses dos séculos XVIII e XIX, foi um antecedente deste paradigma positivista, do qual derivou a concepção epistemológica prevalente durante todo o século XX, essencialmente centrada no modelo da racionalidade técnica, segundo o qual, para resolver qualquer tipo de problema que a prática coloca, basta dominar e aplicar as teorias científicas. Tal concepção, idealiza, deturpa e supervaloriza o conhecimento científico e, por outro lado, desconsidera a complexidade- dinamicidade da prática e dos problemas reais por ela colocados. Segundo Carr e Kemmis (1988: 77), foi o francês Auguste Comte quem introduziu o termo “filosofia positivista”, cuja própria obra exemplifica com claridade a atitude positivista. Ao eleger a palavra “positivo” Comte tentava sublinhar sua oposição a qualquer pretensão metafísica ou teológica. Nenhum tipo de experiência apreendida por via não sensorial poderia servir de base a um conhecimento válido. Foi este desejo de liberar o pensamento das certezas dogmáticas, associado a uma fé otimista no poder do conhecimento “positivo” para resolver os grandes problemas práticos, que conferiu ao positivismo seu atrativo inicial. De acordo com esta perspectiva, somente é considerado inquestionável ou verdadeiro aquele conhecimento que advém de fenômenos observáveis empiricamente. 1 Citação de António Francisco Cachapuz durante palestra apresentada no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba em 30/05/99. 6 Como sabemos, com base em tal concepção de aquisição de conhecimento, o método científico - visto e utilizado como único válido nas ciências naturais - passou a ser incorporado como método eficaz, também, para se ensinar ciências. Como mostra a realidade do atual ensino de ciências, tal concepção tem sido mantida de maneira reiterada junto aos professores da área, que costumam atribuir importância às atividades práticas-experimentais ainda que não se preocupem efetivamente com o modelo organizador do ensino e da aprendizagem nas suas salas de aula. Hodson (1994) aponta críticas à crença de que seriam facilmente alcançados objetivos do ensino experimental como a motivação, o desenvolvimento de atitudes científicas, o treino nas técnicas de laboratório, o adestramento no método científico e no desenvolvimento da capacidade de levar a cabo investigações científicas. Prevalece essa visão simplista de que a experimentação contribui automaticamente para a melhora das aulas de ciências e para a aquisição do conhecimento científico por parte dos alunos. Aliás, esta crença é uma herança que vem de longa data. Segundo Barberá (1996: 365), sem dúvida, o trabalho prático e, em particular, a atividade de laboratório constitui um fato diferencial próprio do ensino de ciências. Não obstante, esta crença na utilidade também tem tido suas críticas desde antigamente. Nos anos sessenta, projetos nos Estados Unidos como Biological Sciences Curriculum Study (BSCS), Chemical Education Material Study (CHEM Study) ou Physical Science Study Committee (PSSC), assim como os cursos Nuffield de biologia, física e química na Inglaterra, realizaram uma forte promoção de um estilo de ensino que supunha que o trabalho prático realizado por alunos os conduziria aos fundamentos conceituais, ocupando o professor um papel de apoio e guia para que os alunos descobrissem os novos conceitos (Mayer, 1986). Desde então, os professores têm considerado o trabalho prático como uma estratégia educativa útil para conseguir quase qualquer objetivo educativo planejado. Nesse sentido, Hodson (1994: 229) diz que, mesmo sendo periodicamente desacreditado - e em ocasiões qualificado como ‘uma perda de tempo’ - a importância que o trabalho prático tem dentro da educação em ciências tem permanecido incontestada desde que a Educacion Departament declarou, no Código de 1882, que ‘o ensino dos alunos em matérias científicas se levará a cabo principalmente com experimentos’. Com o passar dos anos, se tem estabelecido ‘uma fé profundamente imovível em uma tradição sobre o que deve ser o ensino de ciências’(Waring 1985). 7 Essa concepção positivista e simplista de ciência, segundo o mesmo autor, tem influenciado e continua influenciando fortemente o ensino na área cientifica, concebido simplesmente como um processo da ciência. Por isso, as reformas curriculares propostas para o ensino de ciências em diversos paísese disseminadas para o mundo todo na década de oitenta - muitas ainda em vigor - colocam maior ênfase nos procedimentos da ciência em detrimento do modelo de aprendizagem propiciada pelo ensino na área científica. E, nesse sentido, apoiamo-nos em Barberá (1996) para dizer que o conhecimento de procedimentos é ainda considerado como aspecto fundamental do ensino experimental de ciências, em detrimento à reflexividade e ao conhecimento de conceitos. Outrossim, tendo em vista que o ensino é descontextualizado dos processos científicos, mesmo que o trabalho prático seja desenvolvido como um veículo para ensinar e desenvolver certas destrezas de alto nível, isto é considerado insustentável, pois não se pode ensinar processos cognitivos como observar, classificar ou realizar hipóteses como se fosse algo abstrato. Nos dizeres do mesmo autor, trata-se de processos não generalizáveis e não transferíveis, fortemente dependentes da teoria correspondente e estreitamente ligados a ela. Tais processos são normalmente utilizados pela criança antes mesmo dela freqüentar a escola, cabendo ao professor ajudá-la a observar, classificar e formular hipóteses dentro de um contexto conceitual específico. Assim, julgamos necessário que seja severamente questionada e discutida essa ampla prevalência da perspectiva empirista-indutivista no ensino de ciências, segundo a qual a ciência é impulsionada por um único método científico visto como supremo, capaz de gerar e consolidar conhecimentos válidos. Suposições como estas não têm como serem sustentadas se considerarmos a complexidade da atividade científica, com suas inúmeras possibilidades de pontos de partida e de referência, à cada contexto de produção do conhecimento, considerando-se, também, as características individuais e dinâmicas dos próprios cientistas. 3. A Dogmatização e a Elitização da Ciência: conseqüências no ensino Como já referimos anteriormente, uma das críticas à área da educação em ciências - decorrente do paradigma positivista - refere-se à ampla prevalência nos contextos escolares da visão dogmática de ciência, centrada no verdadeiro, no definitivo, no certo, na única 8 resposta verdadeira e correta para qualquer tipo de questão ou problema que se apresente, segundo a qual o científico é algo taxativo, inquestionável e exato, a ser transmitido de forma pronta e cumulativa através da escola. De acordo com tal pensamento, a ciência parte da observação empírica e objetivamente construída. Tal modalidade de observação, considerada como componente mais importante da investigação e da produção científica, assegura que o conhecimento gerado pela investigação tenha caráter fidedigno, até porque o pesquisador está livre de qualquer preconceito ou idéia anterior ao fazer suas descobertas. A partir de tais observações objetivas, seguidas da posterior generalização, decorrem diretamente as teorias e leis universais da Ciência (Chalmers, 1993). Por outro lado, cresce uma corrente de pensamento que se opõe a essa visão de que a ciência ‘brota’ da observação empírica, objetiva e indutiva. Novos moldes de organização do ensino de ciências vêm sendo propostos no sentido de superar essa problemática. Contudo, tal linha de mudança - difícil de ser concretizada - não pode ser vista de forma simplista nem imediatista. Profunda, lenta, gradual e difícil, ela requer formas outras de articulação das dinâmicas de organização das salas de aula, o que só será possível através da superação da visão positivista de ciência, do papel da experimentação no ensino e de formação humana. Nesse sentido, Barberá (1996) aponta que, quando o trabalho científico desenvolvido na escola se orienta pela prática indutiva, isto é, - vale-se de uma série de passos consecutivos característicos (observação e experimentação, generalização indutiva, formulação de hipóteses, tentativa de verificação, comprovação ou recusa e obtenção de conhecimento objetivo) - isso expressa uma concepção de ciência empirista-indutivista não só para os alunos mas também, dos professores. Como sabemos, por exemplo, a imagem do cientista veiculada pelo ensino de ciências é a de um homem maduro e imparcial, disposto sempre a acatar as idéias dos demais e a divulgar as próprias idéias. Não emite juízos apressados, sendo que sua objetividade está isenta de incertezas, pré-concepções e intencionalidades subjetivas. A ciência está escondida por dentro dos fenômenos a espera de ser simplesmente descoberta. Ser um cientista é algo inatingível para a maioria das pessoas, porque somente uns poucos têm condições para sê-lo (Barberá, 1996). Por isso, os objetivos propostos para a aprendizagem a partir da experimentação tendem a fracassar quando o professor não considera que o conhecimento teórico 9 disponível possa ser insuficiente, quando trabalhos práticos são introduzidos de forma tecnicista no ensino de ciências, quando se veicula uma imagem distorcida, estereotipada e idealizada de cientista, de método científico e de ciência, conforme referido anteriormente. 4. O Ver que Reconhece o que Vê Chalmers (1993: 61) é um dos autores que assinala que tanto a observação como o experimento orientam-se pela teoria. Nos dizeres do autor, não se trata de descobertas, mas de produção de conhecimentos. Admite-se livremente que novas teorias são concebidas de diversas maneiras e, freqüentemente, por diferentes caminhos. As teorias podem ser, e geralmente são, concebidas antes de serem feitas as observações necessárias para testá-las. É essencial compreender a ciência como um corpo de conhecimento historicamente em expansão e que uma teoria só pode ser adequadamente avaliada se for prestada a devida atenção ao seu contexto histórico. A avaliação da teoria está intimamente ligada às circunstâncias nas quais ela surge. Não se pode manter uma distinção acentuada entre a observação e a teoria porque a observação ou, antes, as afirmações resultantes da observação são permeadas pela teoria. Então, argumenta que o indutivista ingênuo está errado em duas considerações: (i) a ciência não começa com proposições de observação, porque algum tipo de teoria as precede; (ii) as proposições de observação não constituem uma base firme na qual o conhecimento científico possa ser fundamentado porque são sujeitas a falhas. Ao dizer isso, o autor não defende que as proposições de observação não deveriam ter papel algum na ciência e, por serem falíveis, não recomenda que sejam descartadas. Considera incorreto o papel atribuído, pelos indutivistas, às proposições de observação na ciência. Como diz o autor, o indutivista ingênuo da ciência foi amplamente solapado pelo argumento de que as teorias devem preceder as proposições de observação, sendo falso afirmar que a ciência começa pela observação. Ilustra claramente, através de exemplos, que as proposições de observação dependem da teoria e, portanto, são sujeitas a falhas. Comenta outra maneira pela qual o indutivismo é solapado: as proposições de observação são tão sujeitas a falhas quanto as teorias que elas pressupõem e, portanto, não constituem uma base completamente segura para a construção de leis e teorias científicas. (Chalmers 1993: 55). Nesse sentido dizemos, junto com o autor, que a base segura sobre a 10 qual as leis e teorias da ciência se edificam é constituída de proposições de observação públicas e não de experiências pretensamente subjetivas, privadas e objetivas de observadores individuais. Como sabemos, a ciência se alimenta da dúvida e da indagação. E o conhecimento só avança com base em questionamentos. Por isso, ao invés de tornar definitivo e/ou cristalizar o conhecimento, é importante valorizar o sentido da provisoriedade como um sentido onipresente nos processos do conhecimento. Como diz o dito popular, ‘duvidamos até mesmo de nossos próprios questionamentos’ e,por isso, ao invés da fala simplesmente dogmática e dogmatizante, cabe valorizar o uso de expressões do tipo ‘eu admito que, eu entendo e aceito que, eu penso que, eu acredito que, eu pondero que’. Vale mais a argumentação - o ‘com base em que’ - do que a pretensa resposta única, verdadeira e correta por si só. Nós mesmos precisamos nos dar conta da dependência que nossas próprias observações empíricas têm de nossos conhecimentos e vivências anteriores. Qualquer observação que fazemos pressupõe uma referenciação a memórias que registramos anteriormente, em nossas vivências, ou seja, nossas experiências visuais não são simplesmente determinadas pelas imagens registradas na nossa retina. Quando vemos, o fazemos através de determinadas idéias, imagens, referências, teorias ou relações anteriores que, ainda que implícitas, são subjacentes ao ato de reconhecer algo que vemos. Embora não nos apercebamos disso, há muitos condicionantes que interferem na nossa observação e visão. Não vemos tudo o que se apresenta aos nossos olhos. Selecionamos e situamos imagens. Além disso, quando focalizamos e enxergamos algo, isso não se dá de forma impessoal, objetiva, neutra, uma vez que há interesses e expectativas que participam e condicionam a nossa visão. Não existe a pretensa objetividade ou neutralidade nas nossas observações e interações nos ambientes em que vivemos. Não conseguimos nos isentar, mesmo que o quiséssemos. Não é possível haver isenção de condicionantes que fazem parte de cada contexto específico no qual estamos vendo o real, agindo sobre o real, construindo e criando o real. Não se trata, pois, de experiências únicas e imutáveis, mas sim, de experiências singulares que variam com nossas expectativas, conhecimentos e circunstâncias. As observações e as proposições de observação são feitas através de algum pensamento, através da linguagem e pela linguagem, embora de forma vaga ou não explícita. Olhar através do microscópio ou do telescópio, por exemplo, pode resultar em não vermos nada, 11 uma vez que nossos olhos vêem aquilo que somos capazes de ver. Vemos através dos estímulos físicos da luz sobre nossa retina, mas somente através disso. A visão é uma função que requer outras capacidades além das que nos são propiciadas através de nossos olhos. Vemos através de todo o nosso sistema nervoso, da seleção de imagens, da neurotransmissão, da interpretação dos sinais físicos pelo cérebro, no que implica a nossa memória, o nosso conhecimento, a nossa inteligência, a nossa imaginação, e condicionantes outros dessa função complexa que nos faz ‘ver o que estamos a ver’. Como diz Chalmers (1993: 48-49), dois observadores normais vendo o mesmo objeto do mesmo lugar sob as mesmas circunstâncias físicas não têm necessariamente experiências visuais idênticas, mesmo considerando-se que as imagens em suas respectivas retinas possam ser virtualmente idênticas. O que um observador vê, isto é, a experiência visual que um observador tem ao ver um objeto, é afetado por suas vivências anteriores, isto é, depende em parte de sua experiência passada, de seu conhecimento e de suas expectativas. Assim, não há a pretensa neutralidade ou isenção do sujeito na observação e, se é essencial que o ensino das Ciências considere observações, estas nunca serão simplesmente empíricas ou objetivas. Concordamos com os dizeres de Machado (1999: 165) ao considerarmos, com ela, que através das observações desenvolvemos uma construção discursiva dos fenômenos e não uma construção empírica dos mesmos. O observador nunca estará livre de suas pré-concepções que sempre norteiam as suas percepções. Com base numa exemplificação feita pela autora, dizemos que os alunos, frente a um fenômeno químico, não vão observá-lo, e muito menos compreendê-lo, no sentido do que seja uma transformação química, apenas porque tiveram um acesso ‘visual’ ao fenômeno. Os alunos vêem o que são capazes de ver e fazem relações através de condicionantes e interesses pessoais sempre subjacentes. Não basta simplesmente que façam o experimento ou acompanhem uma demonstração feita pelo professor, uma vez que a compreensão sobre o que é o fenômeno químico se dá na mediação pela/com a linguagem e não através de uma pretensa observação empírica. Em discussões, nos contextos escolares, é importante comentar situações e idéias relativas a esses modos como ‘reconhecemos’ algo e sinalizar para a relevância dos ‘pontos de referência’ nas nossas vidas, sem os quais não reconheceríamos nada do que conhecemos. Discutir sobre a participação da experimentação no ensino de ciências implica discutir idéias como essas, a de que não vemos somente através do nosso ‘ver fisiológico’ 12 mas, também, através do ‘ver que reconhece o que vê’. A visão da observação pretensamente biológica, objetiva e impessoal não dá conta do inteiro na relação com as razões fundamentais das coisas, ou seja, com os conceitos e linguagens através dos quais nos constituímos como seres sociais. Quando vemos algo, vemos com toda a história que vivemos, vemos pelo que fomos, vemos pelo que somos, vemos pelo que pensamos, por isso nossa história de vida está presente na nossa visão. Assim como só somos capazes de nos orientar geograficamente através de referências - imagens através das quais nos situamos para nos localizar no espaço -, do mesmo modo nós vemos e conhecemos, também, através de referenciais, idéias e teorias que podemos 'lançar mão' para tal. É com base em considerações como essas que queremos discutir o papel da experimentação no ensino de ciências e o papel do professor neste ensino. 5. O ensino experimental: articulação teórico-prática Segundo nosso pensamento, as atividades práticas podem assumir uma importância fundamental na promoção de aprendizagens significativas em ciências e, por isso, consideramos importante valorizar propostas alternativas de ensino que demostrem essa potencialidade da experimentação: a de ajudar os alunos a aprender através do estabelecimento de inter-relações entre os saberes teóricos e práticos inerentes aos processos do conhecimento escolar em ciências. Contudo, via de regra, o ensino experimental não tem cumprido com esse importante papel no ensino de ciências. A ampla carência de embasamento teórico dos professores, aliada à desatenção ao papel específico da experimentação nos processos da aprendizagem, tem impedido a concretização desse objetivo central que é o de contribuir para a construção do conhecimento no nível teórico-conceitual e para a promoção das potencialidades humanas/sociais. O aspecto formativo das atividades práticas- experimentais tem sido negligenciado, muitas vezes, ao caráter superficial, mecânico e repetitivo em detrimento aos aprendizados teórico-práticos que se mostrem dinâmicos, processuais e significativos. Avanços, nesse sentido, conforme vários autores [como Barberá (1996), Hodson (1994), Amaral (2000), dentre outros], requerem uma redefinição e uma reorientação do conceito do que seja trabalho prático ou ensino experimental. Requerem uma melhor 13 adaptação das atividades práticas a objetivos claramente expressos, que possam demarcar aspectos formativos subjacentes aos processos do ensinar-aprender ciências. Relativamente à aprendizagem da ciência, Hodson (1994: 306) sinaliza para um enfoque alternativo que possa propiciar aos estudantes a exploração da capacidade que eles têm, em um momento concreto, de compreender e avaliar a firmeza de seus modelos e teorias para alcançar os objetivos da ciência, bem como em oferecer estímulos adequados para o desenvolvimento e a mudança. O autor sugere que tal enfoque alternativo inclua a identificação e exploração de idéias e pontos de vista dos estudantes; o estímulo a que os alunos desenvolvam e modifiquem suas idéias e pontos de vista; o apoio aos esforços, tentativas, intentosdos alunos de repensar/reelaborar suas idéias e pontos de vista. Segundo nosso pensamento a função do ensino experimental - e a do professor nesse ensino - relaciona-se com a adoção de uma postura diferente sobre como conceber, ensinar e aprender ciências, postura baseada, segundo Hodson, no propósito de ajudar os alunos a explorar, desenvolver e modificar suas idéias, ao invés de ou desprezá-las ou sempre reiniciá-las, pois do mesmo modo que a investigação científica, que leva ao desenvolvimento ou à substituição de teorias partindo da matriz teórica existente, também as atividades concebidas para produzir o desenvolvimento conceitual dos aprendizes deveriam inspirar-se em sua compreensão. ... Os alunos deveriam ser estimulados a explorar suas opiniões pondo a prova sua capacidade para a explicação. Se se demostra que suas idéias não são adequadas, se lhes pode animar a que as modifiquem ou que produzam outras novas. (Hodson, 1994: 306) Nesse sentido reiteramos que é essencial, aos processos interativos e dinâmicos que caracterizam a aula experimental de ciências, a ajuda pedagógica do professor que, em relação não simétrica, faz intervenções e proposições sem as quais os alunos não elaborariam as novas explicações - relacionadas às ciências - aos fatos explorados na sala de aula. Tal exploração não se baseia na observação empiricamente construída mas, sim, na problematização, tematização e conceitualização com base em determinados aspectos práticos/fenomelógicos evidenciados. Nesses contextos é possível explicitar e discutir os pontos de vista de modo a extrapolar as idéias compreensivas iniciais dos estudantes, através das contraposições e intervenções específicas e intencionais do professor. Segundo nosso pensamento, de nada adiantaria realizar atividades práticas em aula se esta aula não propiciar o momento da discussão teórico-prática que transcende o conhecimento de nível fenomenológico e os saberes cotidianos dos alunos. Como sabemos, 14 não são raras as aulas práticas que se restringem a procedimentos experimentais, ficando como tarefa de casa a elaboração de um relatório que, em geral, prioriza procedimentos, materiais usados e observações, em detrimento de explicações e significações no nível teórico-conceitual. Tais explicações/teorizações - que se referem ao uso de determinadas linguagens e modelos teóricos próprios às ciências - são impossíveis de serem desenvolvidas pelos alunos de forma direta e requerem, insistimos em dizer isso, a ajuda pedagógica especial do professor. Nesse sentido, com base em Mortimer et alii (2000: 273) chamamos a atenção para outro aspecto: ausência dos fenômenos nas salas de aula pode fazer com que os alunos tomem por ‘reais’ fórmulas de substâncias químicas, equações químicas ou modelos expressos nos livros didáticos e/ou nas salas de aula. Os referidos autores representam através da forma triangulada que segue as inter-relações entre três aspectos ou níveis do conhecimento nas ciências. Segundo essa visão, propomos que cada aula de ciências abranja articulações dinâmicas, permanentes e inclusivas entre três dimensões ou níveis do conhecimento nunca dissociados entre si: (i) o fenomenológico ou empírico, (ii) o teórico ou ‘de modelos’ e (i) o representacional ou da linguagem. Representacional/Linguagem Teórico/Modelo Prático/Fenomenológico Conforme sugerem os autores, é necessário que esses três componentes - fenômeno, linguagem e teoria - compareçam igualmente nas interações de sala de aula, uma vez que a produção de conhecimento em Ciências resulta sempre de uma relação dinâmica/dialética entre experimento e teoria, entre pensamento e realidade, relação que só é possível através da ação mediadora da linguagem. Na dinâmica das interlocuções concorrem linguagens e saberes ‘cotidianos diversificados’ e ‘científicos diversificados’ que são capazes de constituir o conhecimento escolar. Segundo os autores, os experimentos podem cumprir o papel de mostrar essa forma de pensar em Ciências, na qual teoria e realidade estão em constante interlocução. 15 É importante discutir que os processos de intermediação cultural através dos quais é constituído o conhecimento escolar em ciências - sendo assimétricos e não continuísticos - configuram-se como essencialmente dinâmicos, processuais e conflituosos. Não se trata de integrar saberes não integráveis, nem de somar algo que não é somável, nem de converter uma forma de conhecimento a outra, mas sim de desenvolver/constituir formas de explicação diversas e colocá-las em inter-relação, dentre as quais, as fenomelógicas e as teórico-conceituais, as cotidianas e as científicas. Nesse sentido, supera-se a visão linear, diretiva, alienada e alienante de ciência e de ensino experimental de ciências, na medida que os estudantes venham a ser ativamente envolvidos em discussões teóricas relativas a resultados experimentais, na forma de interpretações e explicações dinâmicas e interativas, através da intermediação essencial dos saberes disponibilizados através do professor. Matthews (1994) problematiza a tendência empiricista de se considerar que há uma correspondência sine qua non - no conhecimento e na ciência - entre as idéias e a realidade. O autor discute a importante distinção entre o objeto teórico da ciência [que é um sistema de definições, princípios, conceitos e relações abstratas criadas e expressas] e os objetos reais da ciência [que são os materiais, fatos e objetos do mundo, entendidos, descritos e manipulados, com a adequada instrumentação e experimentação]. Segundo o autor, os objetos teóricos não são idéias que se opõem aos corpos materiais nem tampouco são idéias humanas que surgem automaticamente das impressões dos nossos sentidos. A ciência, ao tratar do mundo real, não é meramente idealista ou relativista nem tampouco corresponde, de forma imediata, ao mundo tal como ele está naturalmente disposto. A ciência é mediada pelo objeto teórico-conceitual que, claramente, não corresponde ao mundo real, até mesmo porque as descrições científicas são feitas a partir de [e com base em] objetos teóricos construídos intelectualmente. Não é, pois, o estado material das coisas que corresponde à afirmação científica, mas sim, um aspecto delimitado, especificado e idealizado deste estado material das coisas. É importante discutir, nesse nosso exercício reflexivo sobre o ensino experimental de ciências, esse pressuposto de que os objetos da ciência e do conhecimento em ciências não existem na realidade pragmática das coisas, não existem na natureza empírica dada. Tais objetos, em cada ciência, são produzidos pela ação do homem, são o resultado de uma construção humana e são determinados por condicionantes históricos, socais e culturais. Ao reafirmar, assim, a visão da ciência como uma atividade humana criadora, como 'um artifício humano do humano', reafirmamos que é importante considerar a dinamicidade, a 16 complexidade e a provisoriedade inerentes aos processos de construção da ciência, do conhecimento científico e do conhecimento científico escolar. Em outras palavras, é importante considerar a complexidade e a dinamicidade das relações entre teoria e prática nos processos da ciência e nos processos do ensinar-aprender ciências. Segundo Driver et alii (1999:34), o conhecimento e o entendimento - inclusive o entendimento científico - são construídos quando os indivíduos se engajam socialmente em conversações e atividades sobre problemas e tarefas comuns. Conferir significados é um processo dialógico que envolve pessoas em conversação e a aprendizagemé um processo pelo qual os indivíduos são introduzidos em uma cultura por seus membros mais experientes. Nos dizeres da autora, para que os aprendizes tenham acesso aos sistemas de conhecimento da ciência, o processo de construção do conhecimento tem que ultrapassar a investigação empírica pessoal. Quem aprende precisa ter acesso não apenas às experiências físicas, mas também aos conceitos e modelos da ciência convencional. O desafio está em ajudar os aprendizes a se apropriarem desses modelos, a reconhecerem seus domínios de aplicabilidade e, dentro desses domínios, a serem capazes de usá-los. Se ensinar é levar os estudantes às idéias convencionais da ciência, então, a intervenção do professor é essencial, tanto para fornecer evidências experimentais apropriadas como para disponibilizar para os alunos as ferramentas e convenções culturais da comunidade científica. O desafio que então se apresenta é o de propiciar, com êxito, nas aulas experimentais de ciências, esse processo de 'enculturação' que só se efetivará através da mediação e das intervenções específicas do professor. Nesse sentido, Amaral e Silva (2000) apontam quanto aos processos da ciência: ao invés da via de mão única, a ciência deve ser vista como uma via de mão dupla. Vai-se dos experimentos às teorias; vem-se das teorias às experiências. O importante é que a teoria e o experimento dialoguem, não a tentativa inócua de estabelecer entre eles uma hierarquia e uma regra de procedência. (Amaral e Silva, 2000: 37). A esse respeito, parafraseando Marques (1996), dizemos que, no contexto do ensino experimental em ciências, os aprendizados enriquecem a teoria e a prática, e as realimentam, ambas, uma da outra, fazendo com que a prática não seja apenas descrita e narrada, mas compreendida e explicada, melhor organizando e aprofundando os saberes que nutre ao deles nutrir-se. Dá-se, a aprendizagem, nesses contextos de interação, pelo 17 desenvolvimento das competências de relacionar, comparar, inferir; argumentar, mediante uma reestruturação mais compreensiva, coerente e aberta às complexidades das articulações entre as idéias, os dados, os fatos, as percepções e os conceitos. Dessa forma, a conceitualização progressivamente estruturada e estruturante é instrumento de análise das complexidades e, ao mesmo tempo, instrumento de síntese que recompõe as análises em quadros mais amplos de referenciamento e interação. A totalidade torna-se menos confusa e caótica pela percepção das distintas alteridades em seu seio; e a unidade recompõe-se na síntese dos múltiplos elementos/processos que a tecem e em cuja interioridade ela se revela. (Marques, 1996: 115). Acerca dessa dinamicidade dos processos do conhecimento, com suas rupturas e transições epistemológicas, Mortimer et alii (2000) referem-se à metáfora dos golfinhos que, no oceano, sistematicamente sobem à superfície e descem às profundezas. Sem a subida, eles não poderiam retornar novamente às profundezas. À cada descida, precisam subir novamente - tomar novo ar - antes de retomar novos mergulhos profundos, e assim sucessivamente. Nos processos complexos de interação/interlocução cultural nas salas de aula é essencial esse movimento de submergir e emergir sistemático [como num ziguezague] entre níveis conceituais diversificados do conhecimento - o fenomelógico e o teórico-conceitual; o cotidiano e o científico -, rompendo com a unidiretividade que tem marcado a relação unilateral entre aluno-professor que é característica do modelo da transmissão-recepção. Assim, ao assumirmos a visão de que as atividades práticas podem facilitar a inter- relação entre fatos reais e modelos teóricos de explicação - disponibilizados pelas ciências - reafirmamos nosso entendimento de que as teorias da ciência não resultam de descobertas, nem da mera interação do sujeito com o objeto; de que a ciência não é uma mera especulação do real; de que é impossível existir a isenção, objetividade e neutralidade do sujeito que observa; de que as observações só são possíveis através de teorias. Reiteramos nossa visão de que as teorias são sempre provisórias. Elas não são encontradas/achadas em nenhuma realidade empírica. São, isto sim, criações e construções humanas, por isso sempre históricas, dinâmicas, processuais, com antecedentes, implicações, conseqüentes e limitações. Nesse sentido, é importante considerar que os fenômenos práticos do ensino de ciências não se limitam àqueles que podem ser criados e reproduzidos na sala de aula ou no laboratório, mas também aos materializados na vivência social e que permeiam as 18 negociações de significado do ponto de vista dos alunos. Nesse sentido, ultrapassa-se a dimensão do laboratório ao serem incluídas, nas interlocuções, vivências e ocorrências do mundo social, possibilitando que a forma como os conceitos estão funcionando nas relações sociais – inclusive como mediação dessas relações – possa ser experienciada pelos alunos (Machado, 1999). Outrossim, o nível fenomenológico do conhecimento refere-se tanto a fenômenos diretamente perceptíveis, como também a fenômenos que só podem ser detectados através do uso de equipamentos, como o microscópio, a balança e tantos outros que ampliam a capacidade dos nossos sentidos. Para exemplificar essas idéias podemos lembrar inúmeras relações entre teoria e prática com o uso de linguagens e modelos específicos que podem ser estabelecidas lançando mão de situações corriqueiras, trazidas das vivências práticas de fora da escola. Por exemplo, o conhecimento vivencial de que certos materiais são solúveis em água e outros não, de que sabões e detergentes limpam utensílios sujos com gordura, pode, em aulas de química, propiciar o estabelecimento de muitas relações com teorias e princípios químicos acerca da solubilidade de substâncias, que abrangem conhecimentos de nível teórico-conceitual [atômico-molecular] e que envolvem o uso de linguagens bastante específicas. Mas isso não será uma construção direta nem individual do aluno. Isso transcende a dimensão vivencial e a pretensa observação empiricamente construída. Outro exemplo se refere ao conhecimento vivencial de que existem materiais com estados físicos diferentes como o gás de cozinha, a gasolina e a parafina. Nesse caso, numa aula de química, podem ser estabelecidas relações com modelos teóricos explicativos e mediante o uso de linguagens específicas, mas isso também não seria possível de ser feito de forma direta, sem a mediação do professor. Por outro lado, nesses casos que citamos, é possível criar/realizar experimentos complementares na sala de aula que possam ampliar o leque de tais relações teoria-prática, extrapolando aspectos fenomenológicos vivenciais. De qualquer modo - insistimos em dizer isso - a explicação no nível teórico-conceitual e o uso da linguagem científica adequada só serão possíveis através da intervenção do professor. É importante que seja considerada, nesses contextos de interação, a pluralidade, dinamicidade e provisoriedade das vozes e dos olhares que integram as formas de ver, de pensar, de expressar e de agir na realidade. Que se supere a visão das formas únicas, generalizadas e dogmatizadas de explicação do real, em detrimento e desatenção da sua complexidade e dinamicidade - algo em constante transformação - pelo conhecimento. Que 19 se abandone tanto as proposições dogmáticas quanto as rigidamente relativistas de explicação. Cabe perguntar: que sentido/papel tem o conhecimento científico em nossas vidas? Quais as implicações e conseqüências disso no ensino? Paulo Freire aponta, no livro ‘Medo e Ousadia: o cotidiano do professor’, como uma das principais dificuldades da experiência educacional a dicotomia entre “ler as palavras” e “ler o mundo”. Vê isso como um dos principais obstáculos para se praticar uma educação emancipadora: para que o alunocapte criticamente os objetos de estudo. Afirma que o mundo da escola está aumentando a distância entre as palavras que lemos e o mundo em que vivemos (Freire, 1986: 164). Nessa dicotomia, segundo o autor, o mundo da leitura é só o mundo do processo da escolarização, um mundo fechado, isolado do mundo onde vivemos experiências sobre as quais não lemos. Esse mundo escolar, onde lemos palavras que cada vez menos se relacionam com nossa experiência concreta exterior, tem se tornado cada vez mais especializado, no mau sentido da palavra. Ao ler palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina a ler apenas as “palavras da escola” e não as “palavras da realidade”. O outro mundo, o mundo dos fatos, o mundo da vida, o mundo no qual os eventos estão muito vivos, não tem contato algum com os alunos na escola através das palavras que a escola exige que eles leiam. Se a escola separa cada vez mais o contexto teórico do contexto prático é necessário considerar que isso diminui cada vez mais o poder do estudo, do desenvolvimento intelectual e da possibilidade de contribuição para a melhora da qualidade da vida das pessoas, na sociedade e nos ambientes. É lamentável que se desperdice tão grande período de tempo de permanência das pessoas (alunos e professores) na escola, sem se privilegiar modelos de ensino-aprendizagem que propiciem tentativas sempre renovadas de explicação e de ação no meio, modelos sustentados pela idéia de que aprender é relacionar, de que quanto mais se relaciona mais se aprende de forma significativa. Mortimer et alii (2000: 275) criticam, nesse sentido, o pressuposto dos currículos tradicionais de que a aprendizagem dos conceitos científicos e das estruturas conceituais antecede qualquer possibilidade de aplicação desses conceitos. Segundo o autor, o pressuposto de que se deva, no ensino, esgotar um conceito para poder aplicá-lo pode ser questionado, pois é justamente nas aplicações do conceito que se explicitarão as relações a serem estabelecidas entre os conceitos. Além disso, existem tendências na psicologia 20 contemporânea que consideram os conceitos inseparáveis dos contextos de aplicação, uma vez que o aluno tende a recuperar conceitos a partir desses contextos de aplicação e não no vazio. Nesse sentido, consideramos que contextualizar os conteúdos do ensino através de atividades práticas é uma estratégia de dinamização das interações na sala de aula que pode propiciar a almejada negociação de significados de/sobre saberes e favorecer o desenvolvimento de aprendizagens relevantes e significativas, de novas formas de 'leitura' e de ação no meio, sejam os fatos trazidos para a sala de aula (vivências fora da escola), sejam os fatos criados na sala de aula (experimentos). Os saberes da prática sempre carregam teorias subjacentes a eles, mais ou menos explícitas. Os saberes da prática são sempre passíveis de nossos enriquecimentos que estimulam a atividade cognitiva e o desenvolvimento das potencialidades do aluno para a vida na sociedade/ambiente. Isso supõe desenvolver estratégias de ensino-aprendizagem que vinculem dinamicamente formas teóricas/científicas de saber com vivências do aluno, na perspectiva de que a ciência deixe de ser vista como um pacote de conteúdo enciclopédico a ser reproduzido de forma mecânica, sem inserções e inter-relações efetivamente problematizadoras das formas como se vê o mudo material e se lida com o mundo material, em seus seres, coisas, substâncias, fatos, transformações, fenômenos, situações e vivências cotidianas, dentro e de fora da escola. 6. Fatos Criados e Fatos Trazidos para a Sala de Aula É comum que, em contextos diversos do ensino, cada problema seja visto/abordado a partir de um único ponto de vista, área do saber, nível de realidade. Persistem as visões essencialmente dualísticas-dicotômicas: ou o teórico, ou o prático; ou o real, ou o ideal; ou o científico, ou o cotidiano; ou o certo, ou o errado. Sem a superação dessa lógica da razão dogmática e monológica, continua-se esperando que as soluções aos problemas venham da aplicação de teorias, de pretensos conhecimentos ‘verdadeiros’, continua-se acreditando que os problemas advém de conhecimentos ‘falsos’. Há que ser considerada a complexidade, a singularidade e a dinamicidade dos problemas reais da prática. Uma determinada aula de Ciências poderia ter acontecido de forma ‘experimental’. Ou esta mesma aula (sobre o mesmo assunto/conteúdo) poderia ter acontecido de forma 21 expositiva ou, como se costuma dizer, ‘teórica’. O que seria uma forma ou a outra? Hoje aula expositiva e amanhã aula experimental? Ou um extremo ou o outro? Ou a teoria, ou a prática? Refletir sobre a natureza das aprendizagens propiciadas pelo ‘ensino experimental’ em Ciências, em suas inter-relações teoria-prática, implica discutir o papel específico desse ensino de ser dinamizador e facilitador da articulação entre saberes da prática e saberes teóricos, diversificados mas ambos integrantes dos processos do aprender Ciências. Nesse sentido, um dos grandes equívocos sobre o qual é importante discutir é o de limitar a visão da prática aos fatos criados na sala de aula (experimentos), sem considerar as articulações sempre possíveis de serem estabelecidas com a prática dos fatos trazidos para a sala de aula, relativos aos fenômenos vivenciados nos contextos fora da escola. Tratar da inter-relação teoria-prática no ensino, segundo nosso entendimento, implica considerar a possível articulação de duas ênfases curriculares usualmente pouco articuladas entre si: (i) o ensino experimental através do laboratório e (ii) o ensino através de vivências socio-culturais fora da escola, isto é, o cotidiano do aluno. Tal modalidade de inter-relação acena para uma possível forma de aproximação entre construções teóricas da Ciência (saberes científicos) e realidades contextualizadas, próximas aos alunos - sejam fatos criados em sala de aula (laboratório), sejam fatos trazidos do cotidiano vivido fora da escola. Ao valorizar a visão da experimentação como uma estratégia dinâmica e interativa que privilegia a negociação de significados de saberes e que favorece a construção de conhecimentos a partir da exploração de contextos (reais ou criados), queremos estimular a atividade cognitiva e o desenvolvimento de potencialidades do aluno para a vida na sociedade/ambiente. Consideramos importante que sejam discutidas possíveis repercussões, no ensino, de proposições como a apontada por Sousa Santos (1988: 57) no sentido de uma inversão da ruptura epistemológica feita pela produção ‘científica’. Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o conhecimento do senso comum. O conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum. Acreditamos que a experimentação pode ser uma estratégia de ensino que vincule dinamicamente a Ciência com vivências do aluno, na perspectiva de que ela deixe de ser 22 desconectada e distante, meros pacotes de conteúdos a serem reproduzidos, sem inserções/inter-relações efetivamente problematizadoras das formas de ver-lidar com situações, fatos e fenômenos, nas vivências de dentro e de fora da escola. Em outras palavras, queremos valorizar a visão do conhecimento escolar como um saber mediador, dinâmico, provisório, capaz de articular o teórico com o prático, o ideal com o real, o científico com o cotidiano. Nesta perspectiva, a educação escolar pode ser entendida como a realização de uma série de aprendizagens de conteúdos específicos, sistematicamente planificados, graças aos quais os alunos e alunas incorporam e interiorizam os conhecimentos que a sociedadeconcebe de maior importância em um determinado momento (Coll et alii, 1994:10). E, neste sentido, cabe considerar a não homogeneidade dos saberes, sempre diversificados e singulares, sejam os cotidianos, os empíricos, os práticos, os teóricos, os científicos, os tecnológicos, que fazem parte do movimento dialético que produz as formas renovadas de saber e gera rupturas conceituais. Isso implica contemplar e valorizar a dinamicidade das relações infinitas de ‘ir e vir’ entre níveis/formas de saber. Lidar com essa dialeticidade, rompendo com a visão dicotômica/dualística da realidade (ou a teoria, ou a prática) é lidar com a perspectiva da inclusividade na produção de um conhecimento escolar que se constitua como tentativa processual de explicação (sempre mutável) sobre a realidade. Não interessa a verdade dogmática, mas sim as tentativas de explicação através da intermediação de outros saberes e de outras linguagens sempre em evolução. A visão desse saber especificamente produzido através da escola não é uma simples negação ou ruptura polarizante (ou sim, ou não) do senso comum. Trata-se de permanentes esforços por articular relações entre conhecimentos diversificados, ora passando pelo nível mais pragmático/fenomenológico/concreto/empírico, ora pelos saberes mais teóricos, ou de modelos; ora de nível mais macroscópico ou próximo, ora de nível mais microscópico ou abstrato; ora passando por saberes cotidianos, ora por saberes cientificamente criados - relações sempre mediadas pelas linguagens diversificadas que constituem as mentes e os sujeitos culturalmente determinados. Nesse sentido, como sugere Machado (1999: 151), a elaboração conceitual, ao mesmo tempo em que vai constituindo-se em uma necessária limitação de sentidos, vai também promovendo possibilidades de novos sentidos aos saberes colocados em questão. 23 Colocar em movimento essa dinâmica de interação é algo que se relaciona com o novo paradigma da razão - baseado no agir intercomunicativo – que dá atenção à perspectiva da mudança do próprio sistema de referência que fundamente a linguagem, o pensamento e a ação (transformadora, não reprodutora) do real e, por isso constituidora dos novos sujeitos que criam seu meio, criando-se a si próprios nesses processos. Em tal movimento concorrem as linguagens articuladoras dos novos pensamentos e intervenções no meio. Passar de um extremo ao oposto do saber, implica passar pelo universo de infinitas possibilidades que intermediam esses opostos. Não há simplesmente o certo/verdadeiro e o errado/falso! Não há somente uma mesma forma linear e dual de abordagem do real. Os diversos nunca podem ser somados, nem poderão compor nenhuma unidade. Cada espaço-tempo de ensino-aprendizagem, sendo singular e único, privilegia relações, implicações e inserções específicas e, por isso, significados e sentidos sempre diversificados aos conteúdos/aprendizagens, considerando-se a trama de relações que fazem parte dos processos do conhecimento e da formação. O ensino de Ciências pode problematizar os saberes existentes e constituir-se como processos/interações socio- comunicativas capazes de potencializar interlocuções e mediações propiciadoras do desenvolvimento humano e social. No entanto, ainda prevalece em nosso meio docente, o convencimento, por parte da maioria dos professores de Ciências de que, se seus alunos têm respostas prontas para determinadas questões de prova, isso indica, por si só, que o ensino que praticam é adequado e eficaz. Com base nisso, não se questionam sobre o sentido dessa eficácia, sobre os tipos de aprendizagens desenvolvidas, se são superficiais, passageiras, mecânicas, significativas, duradouras, marcadas como aprender a aprender, aprender a relacionar, a mudar, a transformar e a transformar-se através das salas de aula. Como já referido, prevalece a concepção de atividade experimental e de trabalho científico que se apoia na crença de que há ‘um método científico’ que utiliza um conjunto de passos consecutivos característicos e que permite comprovar o conhecimento objetivo (Barberá, 1996). Como sabemos, a transmissão dos conteúdos é usualmente realizada de forma linear e a-histórica, como verdades inquestionáveis, sem relações com contextos - não como uma construção de modelos aproximados da realidade - sendo atribuído um grande peso a conteúdos prontos e dogmáticos. Apesar disso, espera-se que o ensino reverta em uma aprendizagem significativa. Mas tal aprendizagem dificilmente ocorrerá. 24 Segundo Astolfi e Develay (1990: 36), ensinar um conceito de biologia, física ou química não pode mais se limitar a um fornecimento de informações e de estruturas correspondendo ao estado da ciência do momento, mesmo se estas são eminentemente necessárias, pois esses dados só serão eficazmente integrados pelo docente se chegarem a transformar de modo durável suas preconcepções. Ou seja, uma verdadeira aprendizagem científica se define no mínimo, tanto pelas transformações conceituais que produz no indivíduo quanto pelo produto de saber que lhe é dispensado. É indiscutível que a competência de todo o professor supõe o domínio do conteúdo científico específico, mas é igualmente reconhecido que isso por si só não garante a promoção de uma aprendizagem significativa, sendo necessário que o professor saiba transformar tal conteúdo em um conhecimento pedagogicamente assimilável pelos alunos. De acordo com Astolfi e Develay (1990: 51), o valor intrínseco de um conteúdo nunca é suficiente para fundar sua inserção didática. Afirmam que esta depende também de um projeto educativo que conduza a uma seleção dentre as várias possibilidades, tornando-se inevitável o cuidado na transposição didática, principalmente, nas disciplinas científicas. Como comenta Prigogine (1991: 215), as ciências ditas ‘exatas’ têm hoje por função sair dos laboratórios onde, pouco a pouco, aprenderam a necessidade de resistir ao fascínio de uma busca da verdade geral da natureza. Elas, sabem, de ora em diante, que as situações idealizadas não lhes darão a chave universal, pelo que devem, em fim, tornar a ser ‘ciências da natureza’, confrontadas com a riqueza múltipla que, durante muito tempo, se acharam no direito de esquecer. Por isso, colocar-se-á para elas o problema do diálogo necessário com saberes preexistentes a respeito de situações familiares a cada um, problema esse a propósito do qual alguns quiseram estabelecer a singularidade das ciências humanas, quer para as elevar, quer para as rebaixar. Tal como as ciências da sociedade, as ciências da natureza não poderão mais, agora, esquecer o enraizamento social e histórico que a familiaridade necessária à modelagem teórica de uma situação concreta supõem. Importa, portanto, mais do que nunca, não fazer desse enraizamento um obstáculo, não concluir da relatividade dos nossos conhecimentos por um relativismo desencantado qualquer. Assim, a ciência se afirma hoje como ciência humana, ciência feita por homens e para homens. Queremos realçar, através dessa perspectiva, a valorização de uma interação através da qual o estudante transforma, produz, constrói e cria o real, nunca dado, nunca a ser simplesmente reproduzido. Queremos realçar, também, a visão da Ciência como um 25 pensamento, como uma criação humana, superando a visão de que a ciência está presente no real, a espera de ser descoberta. A observação é sempre carregada de teoria e, dia a dia, o laboratório e o cotidiano podem ser tomados como referência essencial às interlocuções, como pontos de partida - nunca como formas válidas por si só - para a promoção das potencialidades humanas. Dizemos, junto com Machado (1999: 182), que a vida é dialógica por natureza, que viver a sala de aula significa participar vivamente em um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa todoe com toda a sua vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. É participar desse diálogo, podendo conhecer um certo modo de pensar e de falar do mundo, compreendendo que existem muitos modos de conhecer e de dizer. É se pôr todo na palavra e com essa palavra, entrar no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal”. Dizemos, também, junto com Amaral e Silva (2000), que é necessário e viável que as aulas de laboratório contemplem discussões essencialmente teóricas, que os estudantes podem/devem discutir as interpretações teóricas dos resultados obtidos e que eles podem/devem formular modelos representativos dos fenômenos observados. Valorizamos discussões teórico-práticas, em que a teoria seja o confronto e a inter-relação entre idéias diversas dos estudantes e do professor, dessas idéias com a teoria cientificamente aceita e das teorias com os resultados experimentais. Valorizamos a reflexão crítica sobre resultados experimentais a partir das expectativas teóricas. Contrapomos isso ao ensino vigente, calcado no modelo da transmissão-recepção, em que o laboratório funciona de forma mágica, de onde surgem as descobertas e as respostas verdadeiras/válidas para qualquer questão, ou a mera comprovação de “ verdades” teóricas. Nossa reflexão quer valorizar, assim, a visão do saber escolar como um saber mediador que se dá na inter-relação dinâmica/dialética entre saberes existentes e novas formas de saber, entre saberes próximos e distantes, entre saberes de nível mais concreto e mais abstrato, entre formas mais simples e mais complexas de saber. Isso se relaciona, sem dúvida, com a intervenção essencial do professor e de outros interlocutores, como colegas, autores de publicações (livros, internet), sem o que não se mudaria as ‘formas de ver e de agir no real’. Nesse sentido, valorizamos o papel da escola como produção cultural na trama de interações/mediações que permeiam os processos de negociação de significados de saberes 26 diversificados, sejam os cotidianos diversos, ou os científicos diversos, através dos quais se constituem e evoluem os processos de constituição do saber escolar e da formação para a vida. A escolarização tem alcances de intervenção que ela própria desconhece, em sua contribuição nos processos de negociação de significados de conceitos/palavras que permeiam as interações pedagógicas nas salas de aula. Desenvolver e usar uma nova palavra - conceito - é muito mais que uma referência empírica/objetal única e específica. É importante que se preste maior atenção, nas aulas experimentais, aos movimentos dinâmicos subjacentes aos processos da comunicação, que criam relações sem fim e que constituem as estruturas de pensamento, sempre passíveis de novas configurações. Tais movimentos e interações constituem a própria condição humana, sempre em processo de desenvolvimento nesse jogo de relações que - ainda bem -nunca chega a um fim. Mais que persistir no duelo polarizado entre o ‘certo e o errado’, interessa ao ensino de ciências abrir sempre mais os horizontes das possibilidades de alargamento cultural, pela intercomunicação impregnada de contextos renovadores das condições através das quais se constituem as dinâmicas que produzem e recriam a vida. REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS AMARAL, L. O. F. e SILVA, A.C. Trabalho Prático: Concepções de Professores sobre as Aulas Experimentais nas Disciplinas de Química Geral. Cadernos de Avaliação, n. 3, Belo Horizonte: MG, UFMG, p. 130-140, 2000. AMARAL, L. O. F. e SILVA, A.C. Trabalho Prático: Concepções de Professores sobre as Aulas Experimentais de Química Geral, Manuscrito (monografia), Belo Horizonte, Departamento de Química, Universidade Federal de Minas Gerais, 1999. ARAGÃO, R. M. R. e cols. 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