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A Relação entre Direito e Justiça em Hans Kelsen

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A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E JUSTIÇA EM HANS KELSEN 
Considerações sobre a natureza da norma fundamental (Grundnorm) 
 
Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional de Filosofia 
da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), em 19/10/2004. 
 
Carolina Muranaka Saliba1 
 
Resumo: A filosofa do direito desde o século XX tornou-se forçosamente 
tributária a Hans Kelsen, o que significa afirmar que nenhuma teoria em seu âmbito pode 
julgar-se suficientemente embasada se não contiver um diálogo, explícito ou implícito, com 
os pontos essenciais do extenso e profícuo pensamento do aludido jusfilósofo. Nesta 
acepção específica, pode-se seguramente aplicar a Kelsen a expressão “divisor de águas”. 
Obviamente, a contra-face deste status reside na maciça crítica que já se dirigiu e ainda se 
dirige aos pilares da Reine Rechtslehre (1960). 
Nesta, que é de fato a sua obra mais conhecida, Kelsen expressa com toda a 
clareza a pureza metodológica de que deve se revestir a ciência jurídica – se pretende com 
propriedade denominar-se “ciência”. Uma tal pureza consistiria em afastar do direito tudo 
aquilo que, ainda quando esteja em estreita conexão com ele, não o integre. Visto de outro 
ângulo, o direito é uma ordem normativa; este é o ser do direito. O que ele deveria ser não é 
matéria da ocupação do cientista jurídico, mas sim da política. De modo similar, outra 
avaliação exterior ao direito é a da sua justiça ou injustiça. 
No desenvolvimento da Teoria Pura, o instrumental teórico relevante é o da 
validade. O que a verdade é para o conhecimento científico dos dados empíricos, a validade 
(e não a justiça) é para a ciência jurídica. 
O fundamento da ou a razão para a validade (existência) da norma jurídica é 
alcançado na sua correspondência com outra norma que lhe é superior, o que se aplica 
também a esta última. Por este procedimento regressivo, de norma fundada à norma 
fundante, chega-se à Constituição historicamente primeira e, finalmente, à norma 
fundamental (Grundnorm). 
Uma norma é fundamental quando (i) não repousa sua validade em nenhuma 
outra superior, visto que ela é a mais elevada e, portanto, (ii) não é posta por nenhuma 
autoridade jurídica (já que, do contrário, teria como norma superior a que instituísse o dever 
de respeitar esta autoridade). 
Estas características da Grundnorm, por si só, deixam antever a sua 
problematicidade. Por isso, e dado o caráter central que desempenha na Teoria Pura, Kelsen 
viu-se constantemente constrangido pelo seu rigor metodológico a reelaborar sua visão 
acerca dela. Assim é que, quanto à natureza da Grundnorm, passou de um argumento 
transcendental neokantiano (na Reine Rechtslehre) ao da ficção aos moldes da filosofia do 
Als Ob de Vaihinger (na póstuma Allgemeine Theorie der Normen). 
O propósito deste trabalho é analisar a natureza da Grundnorm nas mais 
variadas propostas kelsenianas – condição lógico-transcendental, pressuposição, hipótese, 
ficção – e, daí, a título de ensaio, aproximá-la da idéia de justiça. Cuida-se, bem entendido, 
não de asseverar a objetividade da idéia de justiça no seu “repousar” como fundamento do 
próprio direito, e muito menos de legitimar todo o direito como justo (por uma espécie de 
“justiça originária” ou “constitutiva”). Trata-se de reconhecer, preliminarmente, que a resposta 
à questão necessária à cognição jurídica – como é possível uma norma fundamental? – pode 
muito bem corresponder, ao arrepio de todo o esforço de Kelsen, a um princípio de justiça. 
 
 
1 Mestranda em Teoria do Direito do Estado e da Democracia no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e 
Ciências Humanas (IFCH), da Universidade de Campinas (UNICAMP). 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
2
 
 
 
 
 
I. Introdução: prolegômenos à norma fundamental de Kelsen 
 
 
A Teoria Pura do Direito, em estrita coerência com seu postulado de pureza metodológica, 
procura expurgar do direito enquanto ciência tudo quanto não se relacione ao seu ser ou à sua 
existência específica – que é a de constituir-se em um sistema de normas -, e assim lança-se a um 
projeto auto-fundador. Isto equivale a dizer que o fundamento do direito não pode ser estranho ao seu 
estatuto normativo próprio. Se, do ponto de vista do cientista jurídico e da Teoria Pura, o direito não é 
mais que um conjunto de normas reciprocamente ligadas por relações de validade, a sua base última 
necessariamente é ainda (ou também) algo da ordem do dever ser (Sollen), a saber, uma norma. Esta 
norma que, em última instância, justifica a validade de todas as normas que compõem o sistema, é, por 
isso mesmo, denominada norma fundamental (no termo alemão original, Grundnorm). 
Pergunta-se, daí: por que é que uma tal norma é necessária a uma teoria científica do direito 
positivo (em geral)? Ou, o que dá no mesmo: por que é preciso supor uma Grundnorm para dar 
tratamento rigorosamente científico ao direito? 
A resposta vem nos seguintes termos: uma norma individual (tal como a contida numa 
sentença judicial), justo por ser norma, possui um sentido subjetivo, ou seja, um sentido que se lhe 
confere aquele que a profere (ou aquele de quem ela emana). Mas esta norma só será válida se o seu 
sentido subjetivo for também o seu sentido objetivo, ou seja, se houver concordância do ato de vontade 
de que ela é o sentido com uma norma superior (e válida). A esta norma superior, de caráter mais 
geral, aplica-se o mesmo raciocínio: sua validade e conseqüente inserção no sistema de um direito 
positivo fica na dependência da coincidência entre os seus sentido subjetivo e objetivo; extrai-se, pois, 
da validade de outra norma ainda mais elevada (e válida). Como não é difícil supor, esta ordem 
retrospectiva ou ascendente galga os degraus até a Constituição. Das normas constitucionais, é com o 
mais honesto rigor que a ciência do direito questiona a validade; e então pode-se obter a seguinte 
justificativa: são válidas porque produzidas de acordo com uma Constituição anterior. E por que são 
válidas as normas desta Constituição anterior? Este regresso alcança, afinal, a Constituição 
historicamente primeira. Das normas desta, a validade não pode, como é óbvio, decorrer de outra 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
3
norma válida e posta pelo e no direito positivo, já que neste caso seria esta a norma constitucional 
historicamente primeira (e não se teria então realmente chegado, como se pensava, ao ápice do 
sistema). Mas então de onde extrair a validade destas normas constitucionais? 
A importância mesma desta questão deve ser assinalada neste ponto. Se não se puder 
encontrar nenhuma base (jurídico-científica, e não sociológica ou ideológico-política ou do tipo 
jusnaturalista) para a afirmação da validade destas normas, não é apenas a “validade destas normas” 
que se encontrará comprometida, mas a validade de todas as normas da ordem jurídica positiva e, por 
via de conseqüência, a existência do próprio sistema (vale lembrar que, para Kelsen, a validade é a 
existência específica das normas jurídicas). Ademais, como se disse, é preciso que o fundamento para 
a sua validade repouse em uma norma, cuja validade não poderá, contudo, defluir de nenhuma outra 
(caso em que seria esta e não aquela a Grundnorm). 
Disto se afirma, portanto, que o pensamento do jurista, sob pena de ficar preso num regresso 
infinito (de norma fundada à busca pela sua respectiva norma fundante), clama por um“ponto de 
parada”, no qual possa fixar-se. 
Assim é que a norma fundamental, além de desempenhar o papel de “unificador” de sistema 
(já que é ela que permite interpretar uma profusão de normas como um sistema), exerce, sobretudo, a 
importantíssima função de possibilitar julgamentos de validade de normas, o que, por sua vez, dá lugar 
ao pensamento jurídico-científico. 
Duas características da Grundnorm são marcantes e, por isso, merecem ser postas em 
evidência. A primeira delas consiste em sua capacidade meramente formal, por assim dizer, de 
justificar a validade das normas jurídicas de um direito positivo. Por diversas expressões: da norma 
fundamental pode-se apenas “deduzir o fundamento de validade e não o conteúdo das normas 
jurídicas concretas”2. Isto, aliás, parece estar em perfeita consonância com a perspectiva kelseniana de 
que, a princípio, uma norma jurídica válida pode comportar quaisquer conteúdos, das mais diversas 
orientações. 
Além disso, como tantas vezes insiste Kelsen, a norma fundamental é uma norma 
pressuposta (pelo pensamento jurídico-científico), e não posta. Compreensível, já que, fosse posta, 
seria-o por alguma autoridade que, para ser competente para fazê-lo, teria sua competência de estatuir 
normas fixada por uma norma3 superior a estas, que seria, então, esta sim, a norma fundamental. 
Fixados estes poucos parâmetros, insta perguntar: por que é válida esta norma pressuposta? 
Ou: por que a Grundnorm é pressuposta como válida? 
 
2 KELSEN, 1999, p. 418. 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
4
Que ela deva ser pressuposta já se tornou mais ou menos compreensível – embora, 
reconheça-se, não cabalmente demonstrado – pela necessidade: de conferir unidade ao sistema, de 
obstar o regresso ad infinitum nos julgamentos de validade; enfim, de dar tratamento científico ao 
direito. 
Todavia, até o momento não ficou de modo algum clara a razão por que se deva aceitar que 
esta Grundnorm, necessária, seja, ela mesma, válida e, deste ponto de vista, legítima a fundamentar a 
validade de todas as normas postas no ordenamento jurídico. 
Há duas situações possíveis que poderiam justificar a validade da norma fundamental: a) ser 
esta norma auto-evidente; b) a de, em não sendo auto-evidente, dever se legitimar por algum outro 
meio que, forçosamente, impõe-se pela neutralidade axiológica, pela sua não-determinação de 
conteúdos (pelo seu “ser vazio”) e pela sua não identidade com motivos factuais (da ordem do “ser”, 
Sein). 
Para Kelsen, a primeira das alternativas é de se rejeitar, posto que ele entende não ser 
possível sustentar a auto-evidência no domínio normativo: 
 
“Dizer que uma norma é imediatamente evidente significa que ela é dada na razão, 
com a razão. O conceito de uma norma imediatamente evidente pressupõe o conceito de uma 
razão prática, quer dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é (...) insustentável, pois a 
função da razão é conhecer e não querer, e o estabelecimento de normas é um ato de 
vontade. Por isso, não pode haver qualquer norma imediatamente evidente”4. 
 
Restando tão somente a alternativa b), o objetivo inicial deste trabalho é o de investigar no 
que poderia consistir este “outro” meio, segundo duas sugestões feitas pelo próprio Kelsen: a analogia 
da Grundnorm com as categorias do entendimento de Kant e a sua formulação nos termos da teoria do 
“como se” (Als Ob), de Hans Vaihinger. 
 
II. A norma fundamental kelseniana e as categorias transcendentais do entendimento 
kantianas: uma analogia 
 
Na tarefa de explicar a sua teoria da norma fundamental, Kelsen expressamente alude à Kant 
e às suas categorias do entendimento: 
 
“Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível 
interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição 
como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma 
 
3 “Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar 
sobre uma norma que confira poder para fixar normas”(KELSEN, 1999, pp. 216-7). 
4 KELSEN, 1999, p. 218, grifou-se. 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
5
fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar ‘per analogiam’ um 
conceito da teoria do conhecimento de Kant -, ser designada como a condição lógico-
transcendental desta interpretação. Assim como Kant pergunta: como é possível uma 
interpretação, alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais 
formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma 
interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido 
subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em 
proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorético-gnoseológica) da Teoria Pura do 
Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a 
Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição”5. 
 
Cuida-se aqui não de verificar se a norma fundamental possui todas as características das 
categorias do entendimento, nem de identificar o normativismo kelseniano com a epistemologia 
kantiana, mas sim de investigar quais são os termos e os limites da relação analógica que se pode 
entre eles estabelecer6. De modo mais claro: o que quer dizer Kelsen ao sustentar que, em sua Teoria 
pura a norma fundamental desempenha o papel similar àquele exercido pelas categorias do 
entendimento na epistemologia de Kant? 
 
Como é fartamente conhecido7, pelo menos em suas linhas mais gerais, a epistemologia 
kantiana empreende, com o objetivo de colocar também a metafísica no caminho seguro de uma 
ciência (já trilhado pela Lógica, pela Matemática e pela Física), à busca pelas condições de 
possibilidade do conhecimento do mundo empírico e pelos limites deste conhecimento. 
Nessa via, descobre que o sucesso de outras ciência se deve ao fato de elas terem feito seu 
objeto se regular pelo sujeito (e não o contrário). Descobre que a este sujeito não é possível o acesso à 
“coisa-em-si” e que seu conhecimento é, portanto, limitado. Limitado pelas formas a priori da 
sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias transcendentais do entendimento. 
Estas categorias do entendimento são as possibilidades mesmas da experiência. É somente 
por elas que as percepções sensíveis que afetam o sujeito não permanecem mero agregado caótico, 
sendo remetidas a e sintetizadas em conceitos. O que conhece das coisas é só o que delas está apto a 
captar8. 
 
5 KELSEN, 1999, p. 223, grifou-se. 
6 Não se reivindica, de modo algum, a originalidade deste procedimento: “(...) não se trata de ver se a norma fundamental 
exerce o mesmo papel que as categorias do entendimento no sentido de ela dever possuir todas as propriedades destas. 
Não se trata de identificar a norma fundamental com as categorias e o normativismo de Kelsen com a epistemologia 
kantiana. Trata-se simplesmente de ver, a grosso modo, se a relação que se estabelece entre as categorias e a 
epistemologiakantiana é suscetível de aclarar a que deve se estabelecer entre a norma fundamental e o direito positivo de 
Kelsen” (ROY, 1997, p. 15, traduziu-se). 
7 Cf., especialmente, o Prefácio à 2a Edição da primeira Crítica. 
8 “Na reflexão 3.707, intitulada ‘Certeza e incerteza do conhecimento em geral’, Kant escreve: - Ainda que as coisas sejam 
em si mesmas certamente o que são, tem-se o direito de falar de uma incerteza objetiva, na medida em que nosso 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
6
 
Um primeiro ponto de contato já pode ser estabelecido entre as categorias e a norma 
fundamental: assim como aquelas tornam possível um conhecimento (ainda que limitado) do mundo 
empírico e desta forma abrem caminho para uma sua ciência, esta faz-se igualmente imprescindível 
para o conhecimento científico, mas agora do fenômeno jurídico em seu ser. A norma fundamental é, 
também, neste sentido, uma condição de possibilidade do conhecimento objetivo (do Direito). 
As categorias do entendimento, como conceitos puros que são, não apresentam em si 
nenhum conteúdo dado empiricamente. São formas9 sem conteúdo, vazias nesta acepção. Outro 
paralelo com a Grundnorm: como ficou anteriormente registrado, ela não apresenta conteúdos e, justo 
por esta razão, não determina nem fundamenta conteúdos (das normas válidas postas num direito 
positivo). A norma fundamental é também vazia. Nas palavras do próprio Kelsen: 
 
“Assim como os pressupostos lógico-transcendentais do conhecimento da realidade natural 
não determinam por forma alguma o conteúdo das leis naturais, assim também a norma fundamental 
não pode determinar o conteúdo das normas jurídicas ou das proposições jurídicas que descrevem as 
normas jurídicas. Assim como só podemos obter o conteúdo das leis naturais a partir da experiência, 
assim também só podemos obter o conteúdo das proposições jurídicas a partir do Direito positivo. A 
norma fundamental tampouco prescreve ao Direito positivo um determinado conteúdo, tal como os 
pressupostos lógico-transcendentais da experiência não prescrevem um conteúdo a esta 
experiência”10. 
 
Quanto às categorias e sua explicação, Kant depara-se com a seguinte dificuldade, que tem 
de superar: é questão de fato (quid facti) que o sujeito tem representações; mas o que as justifica, o 
que assegura que se refiram à experiência? Em se tratando de sínteses realizadas a partir de dados 
empíricos filtrados pelas formas da sensibilidade, esta questão de direito (quid iuris) demanda uma 
dedução empírica, já que por esta mostra-se “como se adquire um conceito mediante a experiência”11. 
Contudo, os conceitos puros do entendimento, aplicando-se tanto a objetos da experiência 
quanto a objetos que não são extraídos de nenhuma experiência, precisam fundar seu uso legítimo em 
algo marcadamente distinto de “derivação empírica”. A sua dedução, ao contrário da dos conceitos 
empíricos, equivale à investigação de seu valor objetivo como de sua legitimidade, e denomina-se 
dedução transcendental. 
 
 
conhecimento, na condição de limitado, encontra forçosamente, nas coisas que conhece, relações que é incapaz de 
determinar” (LEBRUN, 1993, p. 15). 
9 Aqui, o termo forma é tomado em sentido propriamente kantiano: “[A experiência] contém dois elementos bastante 
heterogêneos, a saber, a matéria para o conhecimento fornecida pelos sentidos e uma certa forma para ordenar, 
proveniente da fonte interna da intuição e do pensamento puros, os quais, por ocasião da primeira, a matéria, entram em 
exercício e produzem conceitos” (KANT, 1997, p. 120). 
10 KELSEN, 1999, p. 421. 
11 KANT, 1997, p. 120. 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
7
“Entre os diversos conceitos, porém, que constituem o tecido muito mesclado do 
conhecimento humano, alguns há que se destinam também a um uso puro a priori (totalmente 
independente de qualquer experiência); e este seu direito requer sempre uma dedução, porque não 
bastam as provas da experiência para legitimar a sua aplicação, é preciso saber como se podem 
reportar a objetos que não são extraídos de nenhuma experiência. Dou o nome de dedução 
transcendental à explicação do modo pelo qual esses conceitos se podem referir a priori a estes 
objetos (...). 
(...) Tentar obter sua dedução empírica [dos conceitos que se referem totalmente a priori 
aos objetos, como os de espaço e de tempo, e como os conceitos do entendimento] seria esforço vão, 
porque o traço distintivo da sua natureza consiste, precisamente, em se referirem aos seus objetos, 
sem que, para a sua representação, fossem buscar algo à experiência. Assim, pois, (...), a sua 
dedução terá sempre de ser transcendental. 
(...) É claro, portanto, que destes conceitos só pode haver uma dedução transcendental e 
nunca uma dedução empírica, sendo as tentativas desta última, em relação aos conceitos puros a 
priori, esforços vãos, de que se ocupa somente quem não compreendeu a natureza peculiar destes 
conhecimentos”12. 
 
Questionando-se não acerca da existência das categorias, mas sim relativamente à maneira 
pela qual elas correspondem aos objetos, revela-se que o valor objetivo das categorias demanda, 
portanto, uma dedução transcendental. Não sendo fim do presente trabalho desvelar os seus percursos 
exatos, basta-nos assinalar que dificuldade similar encontra Kelsen. A norma fundamental, como norma 
válida, é sui generis, visto que a sua validade não se funda em outra norma válida superior. No que se 
funda, então, sua validade e, conseqüentemente, seu valor objetivo e seu uso legítimo? 
Mas se há similaridade ou analogia possível de Kant a Kelsen até mesmo nesta dificuldade, o 
mestre de Viena não torna explícito, de modo algum, como o recurso aos “conceitos puros do 
entendimento” podem auxiliar na elucidação deste seu problema em particular. É este o ponto em que 
a analogia se limita, e subsiste a questão: como a Grundnorm, mesmo que se esteja convencido 
acerca da sua necessidade, se justifica (ou justifica a sua validade)? 
• 
Aproveitando o paralelo Kant-Kelsen, a questão central deste trabalho poderia ser posta nos 
seguintes termos: a proposição central ou inicial da ciência do direito, que afirma exatamente a 
necessidade de se pressupor uma norma fundamental para que possa haver afirmação de validade / 
existência do próprio Direito, é um juízo hipotético ou um juízo categórico? 
 
Elucide-se, antes de mais nada, a explicação kantiana destes juízos. 
Uma das formas lógicas do juízo, das quais se ocupa a Lógica, é a relação (concernente à 
subordinação entre as representações). Quanto à relação, os juízos podem ser ou categóricos, ou 
 
12 KANT, 1997, pp. 119-21. 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
8
hipotéticos, ou disjuntivos. Sendo de nosso interesse tão somente os dos dois primeiros tipos, 
concentremo-nos neles. 
Nos juízos categóricos, o predicado está subordinada ao sujeito. A matéria destes juízos 
compõe-se do sujeito e do predicado, e sua forma reside na cópula (“é”/ “não é”), ou seja, naquilo que 
indica um relação de acordo ou desacordo entre a representação-sujeito e arepresentação-predicado. 
Já nos juízos hipotéticos, a subordinação vincula não simples representações, mas juízos, de 
tal forma que o juízo-conseqüente decorre do juízo-fundamento. A matéria destes juízos são juízos 
(fundamento / conseqüente) e a forma é a conseqüência (“Se...então...”). 
A fim de marcar a distinção entre estes juízos, Kant assevera: 
 
“Nos juízos categóricos, não há nada problemático, tudo é assertivo. Nos hipotéticos, 
inversamente, só a conseqüência é assertiva. Nestes últimos, posso ligar dois juízos falsos um ao 
outro, pois aqui só a correção da ligação importa – a forma da conseqüência, sobre a qual repousa a 
verdade lógica desses juízos”13. 
 
Em que pese opinião contrária14, não nos resta dúvida que, na formulação kantiana e original 
conferida por Kelsen à Grundnorm, a proposição basilar do conhecimento jurídico-científico é um juízo 
hipotético, que poderia, com maior ou menor precisão, assim enunciar-se: “se uma norma fundamental 
é pressuposta, então há possibilidade (i) de interpretação de um punhado de normas como ordem / 
sistema jurídica/o positiva/o; (ii) de julgamentos de validade / existência destas normas, ou seja, de 
interpretação de certos sentidos subjetivos de atos de vontade como sendo também seus sentidos 
objetivos e (iii) da própria ciência do Direito”. Neste sentido, já o afirmava Kelsen em 1945: 
 
“ (...); a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela 
procura a base do Direito – isto é, o fundamento da sua validade – não um princípio metajurídico, mas 
numa hipótese jurídica – isto é, uma norma fundamental – a ser estabelecida por meio de uma 
análise lógica do pensamento jurídico efetivo”15. 
 
E também na Teoria Pura do Direito (2a Edição, 1960): 
 
“Com efeito, ela [a teoria pura] acentua com ênfase que a afirmação de que o Direito tem 
validade objetiva, quer dizer, que o sentido subjetivo do ato legislativo é também o seu sentido 
 
13 KANT, 2003, pp. 209-10. 
14 “Se (...) nos perguntarmos qual, dentre estas duas leituras da doutrina kelseniana da norma fundamental, é a correta – se, 
a saber, na estrutura da Teoria Pura do Direito V-julgamentos [julgamentos de validade] devem ser tomados como sendo 
hipotéticos ou categóricos, entendo que é lícito dizer que a posição de Kelsen a respeito deste assunto crucial é oscilante e, 
em última instância, confusa. Mas, considerando-se que uma resposta precisa a esta questão deve ser tirada dos escritos 
de Kelsen, a leitura favorecida deve ser a última: cientistas jurídicos fazem V-julgamentos categoriais; a cognição jurídica 
repousa sobre a assunção de que uma norma cuja validade não é derivada de nenhuma outra norma válida é, de fato, 
válida (“N é válida; então, N1, N2... Nn são válidas”; ou, “Já que N é válida, N1, N2... Nn são válidas”). A cognição jurídica, em 
resumo, dá por assentada a validade da norma fundamental”(CELANO, 2000, p. 184, traduziu-se). 
15 KELSEN, 1992, p. 03. 
Carolina Muranaka Saliba 
 
A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
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9
objetivo, é apenas uma interpretação possível – e possível sob uma determinada pressuposição –, e 
não uma interpretação necessária destes atos, que é inteiramente possível não atribuir tal sentido aos 
atos legislativos”16. 
 
De modo mais inteiramente explícito Kelsen formula esta idéia na sua Teoria geral das 
normas: 
 
“A norma fundamental pode, mas não precisa ser pressuposta. O que a Ética e a Ciência 
do Direito dela enunciam, é: somente se ela é pressuposta pode ser interpretado o sentido subjetivo 
dos atos de vontade dirigidos à conduta de outrem, podem esses conteúdos de sentido ser 
interpretados como normas jurídicas ou morais obrigatórias. Visto que esta interpretação depende do 
pressuposto da norma fundamental, precisa ser admitido que proposições normativas apenas nesse 
sentido condicional podem ser interpretadas como normas do Direito ou da Moral objetivamente 
válidas”17. 
 
Se a teoria da norma fundamental expressa a formulação, por parte dos cientistas jurídicas, 
de um juízo hipotético, a saber: “Se N é válida, então N1,N2...Nn são válidas” (onde N é a norma 
fundamental de um determinado ordenamento jurídico positivo e N1,N2...Nn são as normas nele postas), 
então a validade das normas deste sistema não é categorialmente afirmada, já que fica na 
dependência da validade do fundamento. 
Se a teoria da norma fundamental corresponde à formulação de um juízo meramente 
hipotético, tem-se que um sistema qualquer de normas (jurídicas ou não) pode ser considerado válido 
por quem quer que aceite ou assuma a validade de sua norma básica ou fundamental. E este “quem” 
poderá fazê-lo por quaisquer razões, inclusive ideológico-políticas. 
De fato, retomando exemplo de que reiteradas vezes se utilizou, Kelsen, em sua Teoria Geral 
das Normas, parece antever na Grundnorm a possível abertura para o tipo de raciocínio acima 
formulado. 
 
“(...) Paul volta da escola para casa e diz para seu pai: ‘Meu condiscípulo Hugo é meu 
inimigo; eu o odeio’. Depois disto, o pai dirige a Paul a norma individual: ‘Tu não deves odiar teu 
inimigo Hugo, senão amar’. Paul pergunta ao pai: ‘Por que devo eu amar meu inimigo?’. Quer dizer, 
ele interroga por que o sentido subjetivo do ato de vontade de seu pai também é o sentido objetivo 
daquele, é uma norma obrigatória para Paul, o que significa o mesmo: o que é o fundamento de 
validade desta norma. A seguir, o pai: ‘Por que Jesus impôs: ‘Amai vossos inimigos’. Após o que, o 
filho indaga: ‘Por que se deve obedecer ao mandamento de Jesus?’, o que significa tanto quanto por 
que é o sentido subjetivo desse ato de vontade de Jesus também seu sentido objetivo, isto é, uma 
norma válida, ou o que significa o mesmo: o que é o fundamento de validade dessa norma geral? 
Sobre esse problema, a resposta unicamente possível é: porque, como cristão, se pressupõe que se 
deve obedecer ao mandamento de Jesus. É o enunciado sobre a validade de uma norma que tem de 
ser pressuposto no pensamento de um cristão para fundamentar a validade das normas da Moral 
 
16 KELSEN, 1999, p. 424. 
17 KELSEN, 1986, p. 328. 
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A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
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cristã. É a norma fundamental da Moral cristã que fundamenta a validade de todas as normas da 
Moral cristã (...)”18. 
 
Significa dizer que um tal sistema normativo moral-cristão tem como norma fundamental a 
aceitação de que a autoridade de Jesus deve ser obedecida; tem como pressuposto, portanto, tão 
somente uma asserção de fé ou uma crença. Nada mais há que sustente este sistema, com exclusão 
de outro cujas normas apresentem conteúdos até mesmo opostos. 
Similarmente, um sistema normativo de direito positivo assenta-se sobre uma norma 
fundamental que revela apenas o assentimento (por crença ou quaisquer outras razões ideológico-
políticas) de uma pessoa – ou mesmo de um conjunto de pessoas que, aliás, congregam-se na 
unidade denominada Estado. 
A assim considerar, com a teoria da norma fundamental Kelsen não só não teria conseguido 
elaborar uma Teoria do Direito livre de todo e qualquer elemento ideológico e / ou político (pura no 
tocante à sua exata delimitação com relação a outros âmbitos ou setores do conhecimento humano), 
como também e, para a nossa preocupação, sobretudo, não teria logrado êxito em explicar a própria 
norma fundamental. É que, como bem o expressa Bruno Celano: “(...) considerar a normafundamental 
como válida por uma razão ou outra equivale a considerá-la, no final das contas, como não tendo base 
alguma (...)”19. Ou, em outros termos: o direito não seria efetivamente auto-fundado, senão, ao revés, 
fundado em elementos que lhe são completamente estranhos. 
 
III. A norma fundamental como ficção 
 
Na já mencionada Teoria geral das Normas – obra de publicação póstuma -, Kelsen, em 
algumas poucas linhas, parece reformular por completo sua visão acerca da natureza ou estatuto que 
se deva conferir à Grundnorm. De fato, expressamente reconhece que erroneamente a concebia como 
hipótese, quando desde sempre deveria tê-la antevisto como uma ficção, no sentido da filosofia do 
“como se” (Als Ob), de Hans Vaihinger (1911). 
Assim, reiterando que a norma fundamental não é uma norma posta como todas as demais 
do sistema, mas meramente pensada, Kelsen introduz o que aparenta ser uma significativa mudança 
no tratamento do ponto mais importante de sua Teoria Pura: a norma fundamental, como ficção, não é 
 
18 KELSEN, 1986, p. 326. É de se ressaltar que, embora o trecho aluda à norma fundamental de um sistema normativo 
específico, qual seja, o da Moral cristã – e não propriamente jurídico –, serve perfeitamente ao que se pretende demonstrar. 
Isto porque, como Kelsen de fato está procedendo neste excerto, a noção de norma fundamental e suas implicações cabem 
em todo e qualquer sistema normativo, que se pretenda tornar como objeto de estudo de ciência. 
19 CELANO, 2000, p. 187. 
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 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
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nada mais que “um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do 
pensamento com o material existente”20. 
Esta definição de ficção ajusta-se perfeitamente a tudo quanto restou assentado acerca da 
Grundnorm: o material jurídico (normas postas do sistema) não fornece justificação alguma para a sua 
própria validade (o que seria, neste caso, o fim do pensamento), que permanece como dúvida em 
suspenso. 
Ademais, a norma fundamental preenche os dois requisitos básicos de uma ficção real, a 
saber: contradizer a realidade e ser contraditória em si mesma21. 
A sua contradição com a realidade está em não ser posta por nenhum real ato de vontade. 
Nesta medida, pensar em uma norma fundamental é desafiar o que a realidade jurídica22 com o seu 
material efetivamente existente atesta. 
Além disso, é auto-contraditória por força da problematicidade intrínseca na definição de sua 
validade. A fim de esclarecê-lo, diga-se o seguinte: a validade de uma norma dada é definida como 
sendo a coincidência do sentido subjetivo do ato de vontade que a põe com seu sentido objetivo, 
fornecido este por uma norma superior. Mas, no caso da Grundnorm, não há “norma superior”, pelo 
que sua validade é pressuposta em confronto e violação diretos à definição mesma. Daí porque diz 
Kelsen que a Grundnorm encarna uma autoridade fictícia, que se coloca acima de todas as demais 
autoridades. 
 
20 KELSEN, 1986, p. 329. 
21 “Constructos ideais são, no sentido estrito do termo, reais ficções quando não apenas estão em contradição com a 
realidade, mas [também] são auto-contraditórias em si mesmos” (VAIHINGER, 2002, p. 16, traduziu-se do inglês). Na 
seqüência deste mesmo trecho, Vaihinger esclarece que, além das ficções reais, há as semi-ficções, entendidas estas como 
as que apenas contradizem a realidade (ou desviam-se dela), mas não são consigo mesmas contraditórias. 
22 Em um artigo de 1919 – portanto muito anterior à Teoria Geral das Normas e mesmo à Teoria Pura do Direito – 
denominado Zur Theorie der jurisdichen Fiktionen, Kelsen relutava em reconhecer que um conceito normativo, tal como 
deveria ser a Grundnorm, pudesse “estar em contradição com a realidade”, ainda que pudesse ser contraditória em si 
mesmo. É que a realidade em que então pensava era a realidade do mundo do ser, e neste caso realmente não lhe faltava 
razão: na medida em que as normas pertencem ao dever ser e dirigem-se ao ser para determiná-lo ( e não descrevê-lo), é 
de se esperar que os preceitos jurídicos confrontem o que se verifica (a norma que diz “não matar” só faz sentido, inclusive, 
em função da existência efetiva de ocorrências em que um homem vem a praticar homicídio contra outro homem). Contudo, 
mesmo nesta consideração não se pode dizer, com rigor, que há contradição entre ser e dever ser, uma vez que a 
contradição apenas pode ser afirmada entre coisas de mesmo estatuto lógico (ser e ser, ou dever ser e dever ser). Nas 
palavras do próprio Kelsen: “Mas em que pode consistir a contradição com a realidade, que se leva a cabo em toda 
proposição de dever (Sollsatz), mesmo na que tem como conteúdo o impossível? A proposição que expressa o ideal (o 
dever, a instância ética): A deve ser bom; e a proposição que descreve a realidade: A não é bom, não se contradizem de 
nenhuma maneira (...). O ser de A contradiz simplesmente ao ser de não-A, mas não ao dever-ser de não-A (...). Portanto, 
um conceito normativo pode ser contraditório em si mesmo, mas não pode nunca estar em contradição com a 
realidade, já que o conhecimento normativo em geral não se dirige ao ser” (KELSEN, 1919, p. 1239 apud RACINARO, 
1982, p. 21). Por outro lado, se por realidade se considera “realidade jurídica” - lembrando-se que a realidade ou o ser 
específico do direito é o dever ser -, pode-se sem erro dizer que a noção da Grundnorm introduzida por Kelsen a contradiz. 
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A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
 considerações sobre a natureza da norma fundamental (‘ Grundnorm’) 
 
 
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Para que sob luzes mais claras repouse a questão da norma fundamental como ficção, 
retorne-se a um ponto que foi apenas anunciado ao início deste tópico: a distinção entre ficções e 
hipóteses, a que se refere Kelsen ao inserir a Grundnorm dentre as primeiras. 
A esta temática, Vaihinger dedica todo um capítulo de sua A filosofia do ‘como se’ (XXI), no 
qual, em linhas gerais, marca a diferença nos termos que a seguir se expõe. 
Chama-se hipótese ao que se dirige através da realidade, submetendo a sua própria ao teste 
e à verificação. A hipótese, portanto, “almeja” ser provada verdadeira como expressão da realidade. 
Sua função é provisória, já que visa ser em definitivo estabelecida pelos fatos da experiência. Esta sua 
função provisória é também teórica, na medida em que consiste em conectar fatos, preenchendo as 
brechas ainda desconhecidas entre eles. A hipótese esforça-se por abolir contradições, substituindo-as 
pelas própria realidade na medida em que a descobre. O instrumental (teórico) que justifica a utilização 
das hipóteses é a probabilidade. 
A feição da ficção é inteiramente diversa: ela não se “preocupa” em afirmar um fato real, mas 
tão somente algo por meio do qual seja possível lidar com a realidade e compreendê-la. Sua função na 
ciência é, deste modo, prática; e sua justificação reside nas suas necessidade, utilidade e 
conveniência. A ficção não revela, então, conhecimento real algum: ela não tenta descobrir, mas sim 
inventar. Por isso mesmo, é também provisória: mas porque é deixada para trás tão logo tenha 
cumprido o seu dever. E, o mais importante: no uso da ficção não está esforço algum em abolir 
contradições. Pelo contrário, a ficção chama à existência e encarna em si contradições lógicas. 
Assentados estes pressupostos, pode-se dizer que, reconhecendo a norma fundamental 
como ficção, Kelsen está ao mesmo tempo reconhecendo que não há e nem pode haver - porcontraposição à hipótese – concordância alguma entre ela e a realidade (jurídica). 
Assim, se quando da “Grundnorm como hipótese” isto já poderia ser afirmado, agora (pós-
Teoria Geral das Normas) pode-o com muito mais razão e fundamento: falta objetividade (e, portanto, 
estabilidade) à própria base de toda a estrutura do Direito. 
 
IV. A Teoria Pura do Direito e o jusnaturalismo: norma fundamental como esquema de 
justiça? 
 
Ao procurar auto-fundar o sistema jurídico-normativo que esgota todo o campo do Direito, 
Kelsen desejava expurgar de sua teoria toda justificação metajurídica, ou seja, toda explicação para a 
sua validade que repousasse em elementos não jurídicos. Obviamente, o jusnaturalismo, ao apontar 
para um Deus ou para qualquer outra autoridade (personificada ou não), legisladora das coisas da 
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A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
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natureza e do mundo dos homens, como razões necessárias e suficientes para a validade de todo 
Direito, insere-se neste tipo de explicação rejeitada por princípio por Kelsen. 
Também deste modo a idéia de justiça é por ele afastada; e o faz não por desconhecer a sua 
importância na história da filosofia política, mas sim por sua natureza extrajurídica. Do ponto de vista de 
um jurista enquanto tal, a questão da justiça deve ser deixada de lado. 
Segue-se daí que a norma fundamental deveria não apenas ser em essência e 
indubitavelmente algo de exclusivamente jurídico, como também imune a qualquer possibilidade de 
analogia com a idéia de justiça. 
Quanto à primeira exigência – como se espera tenha ficado claro até o presente momento da 
exposição -, registre-se que a dificuldade em se fixar a natureza da Grundnorm por si só é indicativa da 
possível abertura para uma sua caracterização não-jurídica: trata-se mesmo de uma norma – e, 
portanto, algo da ordem do dever-ser (Sollen) -, visto que não é o sentido de real ato de vontade 
algum? E, sendo norma, será realmente uma norma válida, mesmo para espanto de todo o raciocínio 
jurídico que julgava já dispor de todos os predicados definicionais para o operador validade? 
No tocante à segunda exigência, parece similarmente que a norma fundamental se presta ao 
seu entendimento tal como uma idéia de justiça. Explique-se: a Teoria Pura sempre procurou rejeitar a 
justiça como integrante do âmbito do jurídico porque, dentre outras razões, antevia nela uma 
instabilidade decorrente das várias definições que comporta (seriam todas fórmulas vazias). Uma teoria 
científica (tal como pretendia construir Kelsen com relação ao objeto “direito”) não poderia, portanto, 
comportar um elemento tão avesso ao tratamento objetivo23. A justiça não seria, assim, segundo a 
Teoria Pura, uma noção hábil a fundar objetiva e seguramente o Direito. Mas assim também se nos 
afigura a Grundnorm: não meramente formal, mas amorfa, na medida em que não se sabe o que é 
(embora se saiba que deva ser, o quê deva e não deva ser e que, o que deveria ser, não é 
seguramente). Neste sentido, não é demais supor que a Grundnorm possa ser a própria justiça, 
transposta e resposta na Teoria Pura, ao arrepio de todos os esforços de seu autor. Neste sentido: 
 
“Uma norma válida cuja validade não é derivada de alguma outra norma válida é um 
fundamental princípio de justiça (...). Reinvindicar que o Direito tem autoridade equivale a 
reivindicar que é justo. O conceito de Direito é o conceito de justiça. 
Desnecessário dizer que uma tal resposta à nossa questão é rejeitada por Kelsen (...)”24. 
 
23 “(...) estou absolutamente ciente de não tê-la respondido [à questão “o que é justiça?”]. A meu favor, como desculpa, está 
o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores 
acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o 
que seja a justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só 
posso declarar o que significa justiça para mim (...)” (KELSEN, 2001, p. 25, grifou-se). 
24 CELANO, 2000, pp. 198-9, traduziu-se, grifou-se. 
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A relação entre direito e justiça em Hans Kelsen: 
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Finalmente, há ainda outro indício de que esta tese não é de todo descabida: a norma 
fundamental, exatamente como a confusa noção de justiça, situa-se fora do direito positivo. Esta 
observação não fugiu ao próprio jusfilósofo que, embora não reconhecendo a conexão norma 
fundamental – justiça, assim chegou a se pronunciar: 
 
“É verdade que a norma fundamental não é uma norma do direito positivo, isto é, de 
uma ordem coativa globalmente eficaz posta através da legislação ou do costume. Este é, porém, o 
único ponto em que existe certa semelhança entre a teoria da norma fundamental e a do 
jusnaturalismo. Em todos os outros pontos as duas teorias estão em diametral oposição uma à outra 
(...)”25. 
 
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Fictions of Mankind, trad. para o inglês de C. K. Ogden, Col. “The International Library ofPhilosophy”, London: Routledge and Kegan Paul Ltd.. 
 
 
25 KELSEN, 1998, p. 115, grifou-se.

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