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Aplicacao do devido processo legal na relacao juridica entre redes sociais e criadores de conteudo

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IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO 
FACULDADE IBMEC SÃO PAULO 
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO DIGITAL 
E COMPLIANCE 
 
 
IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES 
 
 
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO 
 
 
APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO 
JURÍDICA ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES 
DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES 
DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA 
PUBLICIDADE DO YOUTUBE 
 
 
 
São Paulo 
2020
 
 
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO 
FACULDADE IBMEC SÃO PAULO 
 
 
IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES 
 
 
APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO 
JURÍDICA ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES 
DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES 
DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA 
PUBLICIDADE DO YOUTUBE 
 
 
Tese de Especialização 
Área de Direito Digital e Compliance 
 
Orientador: Prof. Thiago Giovani Romero 
 
 
 
 
São Paulo 
2020 
 
 
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO 
FACULDADE IBMEC SÃO PAULO 
 
 
IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES 
 
APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE 
REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS 
TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE 
CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE 
 
Monografia apresentada ao Instituto Damásio de Direito 
da Faculdade IBMEC São Paulo, como exigência parcial 
para aprovação no Curso de Pós-Graduação lato sensu – 
Especialização em Direito Digital e Compliance, sob a 
orientação do Prof. Thiago Giovani Romero 
 
São Paulo, ___de______________de______. 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
______________________________________________ 
______________________________________________ 
______________________________________________ 
 
São Paulo 
2020
RESUMO 
As redes sociais estabeleceram um novo padrão de comunicação social modificando 
estruturalmente o locus onde a sociedade civil forma suas opiniões. Em especial, as redes 
sociais de streaming como o YouTube, por seu alcance e gratuidade, têm se demonstrado 
decisivas em eleições nas maiores democracias do mundo. A falta de controle deste seu poder 
de influência é preocupante, pois lhes possibilita manipular o debate público por meio da 
censura (velada) do conteúdo nela veiculado. Como forma de contenção de sua arbitrariedade, 
indaga-se da aplicabilidade do direito fundamental ao devido processo legal na relação jurídica 
entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. As questões principais tratadas são: 
se há vinculação das redes sociais de streaming ao devido processo legal nas hipóteses de 
exclusão de postagens e suspensão de usuários; qual é a conformação exata do conteúdo desse 
direito fundamental nessa relação privada; e se o Judiciário pode anular as decisões das redes 
sociais quando esse direito for desrespeitado. Opõem-se à sua vinculação ao devido processo 
legal: a liberdade contratual das redes sociais e a noção histórica de que os direitos fundamentais 
servem de barreira contra a intervenção estatal em negócios privados, e não como seu arrimo. 
A busca pela resposta começa pela demonstração das bases conceituais da aplicabilidade dos 
direitos fundamentais a relações privadas e as teorias a respeito do tema, inclusive aquela 
adotada majoritariamente no Brasil. Em seguida, investiga-se o direito fundamental ao devido 
processo legal, suas duas dimensões, e seus efeitos específicos em relações privadas. Após 
serem fixadas as premissas teóricas da vinculação das redes sociais de streaming ao devido 
processo legal, passa-se à averiguação da intensidade de sua proteção na relação entre criadores 
de conteúdo e o YouTube. Discutem-se quais características dessa relação jurídica em especial 
fazem tender o conflito entre o devido processo legal e a autonomia privada a uma preferência 
pela tutela das garantias processuais dos criadores de conteúdo, em detrimento da liberdade do 
YouTube de censurar livremente o conteúdo veiculado em sua plataforma. Os Termos de 
Serviço, as Diretrizes da Comunidade e as Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade 
do YouTube são entendidos como cláusulas de um contrato, sendo a obrigação de respeito ao 
devido processo legal concebida a partir de sua interpretação conforme a Constituição, as regras 
e cláusulas gerais do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e do Marco Civil da 
Internet. Analisa-se então a possibilidade de controle judicial formal e material das decisões 
das redes sociais. Por fim, formulam-se recomendações às redes sociais de streaming relativas 
ao devido processo legal com o fim de evitar a revisão de suas decisões pelo Judiciário. 
PALAVRAS-CHAVE: direito digital; eficácia horizontal dos direitos fundamentais; devido 
processo legal; redes sociais; compliance. 
 
 
ABSTRACT 
Social networks have established a new standard of social communication, structurally 
modifying the “locus” where civil society forms its opinions. In particular, social networks 
based on streaming such as YouTube, due to their reach and gratuity, have proved decisive in 
elections in the largest democracies in the world. The lack of control of this power of influence 
is a matter of concern, as it allows them to manipulate the public debate through the (veiled) 
censorship of the content published in it. As a way of containing its arbitrariness, it is questioned 
the applicability of the “due process clause” in the legal relationship between content creators 
and streaming social networks. The main issues dealt with are: whether streaming social 
networks are legally bound to the “due process clause” in cases of deletion of posts and 
suspension of users; what is the exact conformation of this fundamental right in this private 
relationship; and whether the Judiciary can override social media decisions when this right is 
disrespected. The obstacles to this legal bond between the social networks and the “due process 
clause”: the contractual freedom and the historical notion that fundamental rights serve as a 
barrier against state intervention in private businesses, and not as their support. The search for 
an answer begins with the demonstration of the conceptual bases of the applicability of 
fundamental rights to private relations and the theories on the subject, including the one mostly 
adopted in Brazil. Then, the two dimensions of due process and its specific effects on private 
relations are investigated. After stablishing the theoretical premises of considering the due 
process clause legally binding to social networks, it proceeds to research the intensity of its 
effects in the relationship between content creators and YouTube. It discusses which 
characteristics of this legal relationship in particular make the need to protect the content 
creators from arbitrariness stronger than YouTube’s autonomy to freely censor the content 
broadcasted on its platform. The YouTube’s Terms of Service, Community Guidelines and 
Advertising Policy are viewed are clauses in a contract, and the obligation to respect due legal 
process is conceived from its interpretation in accordance with the Constitution, the general 
rules and clauses of the Brazilian Civil Code, the Brazil Code of Consumer’s Protection and 
the Civil Framework of the Internet. It then analyzes the possibility of formal and material 
judicial review of the social network decisions. Finally, recommendations are made to social 
networks based on streaming regarding due legal process in order to avoid the review of its 
decisions by the Courts. 
KEYWORDS: digital law; horizontal effects of fundamental rights; due process clause; social 
networks; content creators; compliance. 
 
 
LISTA DE ABREVIATURAS PRINCIPAIS 
 
A) FONTES JURÍDICAS 
BGB = Bürgerlischesgesetzbuch (Código Civil Alemão) 
CC = Código Civil de 2002 
CDA= Communications Decency Act 
CDC =Código de Defesa do Consumidor 
CF = Constituição Federal de 1988 
CPC = Código de Processo Civil de 2015 
CPC/73 = Código de Processo Civil de 1973 
GG = Grundgesetz (Lei Fundamental de Bonn) 
LINDB = Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro 
NetzdDG = Netzwerkdurchsetzungsgesetz 
RE = Recurso Extraordinário 
REsp = Recurso Especial 
 
B) TRIBUNAIS 
 
BVerfGE = Bundesverfassungsgericht 
BVerfGG = Bundesverfassungsgerichtsgesetz 
BAG = Bundesarbeitsgericht 
LG = Landgericht 
OLG = Oberlandesgericht 
STF = Supremo Tribunal Federal 
STJ = Superior Tribunal de Justiça 
SCOTUS = Supreme Court of the United States 
TJ = Tribunal de Justiça 
TRF = Tribunal Regional Federal 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11	
CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE “STREAMING”: PODER DE INFLUÊNCIA E 
CONTROLE DE CONTEÚDO ............................................................................................ 14	
1.1.	 Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião pública 14	
1.2.	 O que é “streaming”? .................................................................................. 21	
1.3.	 O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo ....................... 22	
1.4. 	 Os criadores de conteúdo ............................................................................ 24	
CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS 
DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO COMO NORMA JURÍDICA E 
DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................... 26	
2.1.	 Considerações introdutórias ....................................................................... 26	
2.2.	 A Constituição como norma jurídica .......................................................... 27	
2.3.	 A chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais .......................... 37	
2.4.	 O direito civil constitucional ...................................................................... 43	
2.5.	 Notas conclusivas ....................................................................................... 49	
CAPÍTULO 3 – TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS 
FUNDAMENTAIS ................................................................................................................. 51	
3.1.	 Introdução ................................................................................................... 51	
3.2.	 Teoria negativa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: 
a doutrina da “state action”. Jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. A crítica 
de Chemerinsky ................................................................................................................... 52	
3.3.	 Teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais. 
A concepção de Dürig. O Caso Lüth como marco da jurisprudência do 
“Bundesverfassungsgericht” ................................................................................................ 60	
3.4.	 Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl 
Nipperdey e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental ............ 65	
3.5.	 Outras teorias alemãs. Canaris, Alexy e Schwabe ...................................... 70	
 
 
3.6.	 Considerações finais ................................................................................... 73	
CAPÍTULO 4 – EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 
CONFORME A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA DO BRASIL ............................ 74	
4.1.	 Notas introdutórias ..................................................................................... 74	
4.2.	 Daniel Sarmento ......................................................................................... 75	
4.2.1.	 Vinculação direta dos particulares a direito fundamentais conforme a 
Constituição Federal de 1988 ............................................................................................... 75	
4.2.2.	 “Standards” para a incidência dos direitos fundamentais em relações 
privadas no contexto brasileiro ............................................................................................ 79	
4.3.	 Wilson Steinmetz ........................................................................................ 83	
4.3.1.	 Modelo intermediário de aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações 
privadas....................... ......................................................................................................... 84	
4.3.2.	 Regra da proporcionalidade ...................................................................... 86	
4.4.	 Virgílio Afonso da Silva ............................................................................. 88	
4.4.1.	 Fundamentos da vinculação de particulares a direitos fundamentais e 
possibilidade de aplicação direta das normas constitucionais ............................................. 89	
4.4.2.	 O “modelo diferenciado” de Virgílio Afonso da Silva ............................. 92	
4.4.2.1.	 Compreensão dos direitos fundamentais como princípios e direito à 
proteção.................................................................................................................................93	
4.4.2.2.	 Mediação legislativa e efeitos indiretos como regra em sua realização 93	
4.4.2.3.	 Aplicabilidade direta e necessidade de preservação da autonomia privada: 
recurso ao conceito de “princípios formais” ........................................................................ 94	
4.4.2.4.	 Tensão entre princípios formais e princípios materiais: perspectiva a partir 
do conceito alexyano de “competência” .............................................................................. 95	
4.4.2.5.	 Resolução da tensão entre autonomia privada e direitos fundamentais . 96	
4.4.2.5.1.	 Impossibilidade de sopesamento entre princípios formais e materiais 96	
4.4.2.5.2.	 Inadequação da regra da proporcionalidade para a solução de colisões 
entre princípios no âmbito privado ...................................................................................... 97	
4.4.2.5.3.	 Critérios possíveis para a valoração da autonomia privada ................ 99	
 
 
4.5.	 Posição da jurisprudência brasileira ......................................................... 100	
CAPÍTULO 5 – DEVIDO PROCESSO LEGAL: CONCEITO E APLICABILIDADE A 
RELAÇÕES PRIVADAS .................................................................................................... 109	
5.1.	 Considerações introdutórias ..................................................................... 109	
5.2.	 Origem histórica do devido processo legal ............................................... 110	
5.3.	 Conteúdo jurídico ..................................................................................... 115	
5.4.	 Dimensões: devido processo legal formal e substantivo .......................... 118	
5.5.	 O direito fundamental ao devido processo legal nas relações entre 
particulares no direito brasileiro ........................................................................................ 124	
5.6.	 Conclusões possíveis ................................................................................ 137	
CAPÍTULO 6 – APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO 
JURÍDICA ENTRE CRIADORES DE CONTEÚDO E REDES SOCIAIS DE 
“STREAMING”: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA 
COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA 
PUBLICIDADE DO YOUTUBE ........................................................................................ 138	
6.1.	 Premissas aceitas ...................................................................................... 138	
6.2.	 Natureza jurídica da relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de 
“streaming”. O contrato de adesão com o YouTube e seu regime jurídico .......................145	
6.3.	 Características da estrutura da relação jurídica entre criadores de conteúdo e 
redes sociais de streaming. Aplicação dos critérios para a valoração da autonomia da 
vontade............. .................................................................................................................. 150	
6.3.1.	 Assimetria entre as partes e seu reflexo na sinceridade da manifestação da 
vontade do criador de conteúdo ......................................................................................... 151	
6.3.1.1.	 Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos 
Estados Unidos................................................................................................................... 155	
6.3.1.2.	 Modo e circunstâncias da oferta. Aplicação das razões de decidir do caso 
“Stadionverbot” julgado pelo “Bundesverfassungsgericht” à relação jurídica entre redes 
sociais e seus usuários ........................................................................................................ 159	
6.3.2.	 Concorrência da vontade do criador de conteúdo na restrição a direito 
fundamental........ ................................................................................................................ 162	
 
 
6.3.3.	 Essencialidade dos bens jurídicos envolvidos ........................................ 163	
6.4.	 Interpretação do contrato conforme o devido processo legal ................... 165	
6.4.1. Regras, princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados relativos a 
contratos de adesão. Interpretação dos Termos de Serviço, Diretrizes da Comunidade e 
Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade do YouTube conforme o devido processo 
legal .................................................................................................................................... 165	
6.4.2.	 Os deveres do YouTube .......................................................................... 167	
6.4.2.1.	 Comunicação da sanção, motivação e oportunização de defesa .......... 167	
6.4.2.2.	 Transparência na definição do conteúdo vedado pela rede social ....... 176	
6.4.2.3.	 (Des)necessidade de consideração de todos os argumentos da defesa 181	
6.4.2.4.	 Possibilidade de contraditório “ex post” .............................................. 182	
6.4.2.5.	 Duração razoável do processo .............................................................. 182	
6.4.2.6.	 “Non reformatio in pejus”. (Im)possibilidade de piora da situação do 
criador de conteúdo que contesta a punição ...................................................................... 184	
6.4.2.7.	 Alterações contratuais e seus efeitos no tempo. Punição por conteúdo 
anteriormente aceito......................................................................................................... .. 185	
6.4.2.8.	 Juiz natural. (Des)necessidade de revisão da punição por um ser 
humano................................................................................................................................ 186	
6.4.2.9.	 Publicidade dos julgamentos ................................................................ 190	
6.4.2.10.	 Duplo grau de jurisdição .................................................................... 191	
6.5.	 Controle judicial: formal e material. Efeitos horizontais de direitos 
fundamentais como paradigma de controle material. Precedentes da jurisprudência da 
Alemanha......... .................................................................................................................. 195	
6.6.	 Medidas de “compliance” recomendadas às redes sociais de “streaming” 
para evitar a anulação de suas decisões ............................................................................. 201	
SÍNTESE CONCLUSIVA ................................................................................................... 203	
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 207	
 
 
 
11 
INTRODUÇÃO 
 
As redes sociais de streaming como o YouTube e a Twitch evoluíram muito 
rapidamente em termos de alcance e popularidade. Elas estão tomando o lugar das mídias 
tradicionais como o rádio, os jornais impressos e a televisão, e ninguém mais duvida da sua 
capacidade de influenciar a opinião pública. O conteúdo que elas transmitem já dita tendências, 
não só de consumo, mas também políticas. Ninguém mais pode ignorá-las. Empresas, 
candidatos às eleições, músicos, adolescentes que sonham em se tornar celebridades, todos a 
disputar acirradamente as visualizações e as curtidas de seus milhões de usuários diários. 
A sua popularização também fez surgir profissões e modelos de negócio que não 
existiriam sem elas. Não é mais surpresa um pai ouvir do filho que o seu sonho é se tornar 
youtuber. Diariamente profissionais insatisfeitos abandonam empregos tradicionais para tentar 
a sorte como streamers. Empresas especializadas prestam consultoria para quem quer lucrar 
mais com o conteúdo digital que produz e divulga nas redes sociais. 
Essa rápida ascensão cria novos desafios em matéria de proteção de direitos 
fundamentais, pois o poder concentrado por essas redes sociais as habilita a interferir em 
questões fundamentais da vida em sociedade, como: quem vencerá as eleições; qual será a 
narrativa política dominante no país; quais visões de mundo merecem ser compartilhadas; quem 
poderá exercer certas atividades econômicas; e quem terá direito a ter seus erros apagados da 
memória coletiva. 
Há ameaça, portanto, à liberdade de expressão, aos direitos políticos, aos direitos da 
personalidade e à livre iniciativa. 
Toda concentração de poder clama por controle, do que são instrumento os direitos 
fundamentais. Esta é a visão contemporânea dos direitos fundamentais que prevalece no sistema 
romano-germânico: eles servem ao combate da opressão, independentemente de quem seja o 
sujeito opressor. Pode ser o Estado, outros cidadãos, ou até mesmo empresas. 
Dentre todos, o devido processo legal é o direito fundamental mais especialmente 
dedicado à racionalização, legitimação e controle social dos atos de poder. Indaga-se, assim, se 
as redes sociais de streaming, pelo poder quem concentram, estariam vinculadas ao direito 
fundamental do devido processo legal quando atuam censurando criadores de conteúdo que 
 
 
12 
atuam em suas plataformas, e qual a sua exata intensidade. As suas decisões devem ser 
motivadas? Deve ser oportunizada defesa ao usuário afetado? Em quanto tempo a defesa deve 
ser julgada? A defesa deve ser julgada por um ser humano? Essas são algumas das questões 
para as quais aqui se busca uma resposta. 
O primeiro capítulo explora com mais detalhes o contexto histórico atual e a posição 
de poder que nele ocupam as redes sociais de streaming, em especial o YouTube, que é a maior 
de todas elas. 
A partir do segundo capítulo, inicia-se a exposição das bases conceituais que 
permitiram a superação da ideia historicamente arraigada na doutrina e na jurisprudência de 
que os direitos fundamentais vinculariam somente o Estado. 
Seguindo essa linha, o terceiro capítulo explora as diferentes teorias a respeito da 
eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, em especial as três principais: a teoria 
negativa da state action e as teorias da eficácia mediata e imediata, desenvolvidas 
principalmente na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. A pesquisa utiliza os termos 
eficácia e aplicabilidade indistintamente, em que pese a relevância da distinção conceitual 
apontada por parte da doutrina. 
O quarto capítulo é uma continuação direta do terceiro e apresenta qual dessas teorias 
a respeito da eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas foi adotada em nosso país. 
No âmbito doutrinário, debruça-se sobre as obras de Daniel Sarmento, Wilson Steinmetz e 
Virgílio Afonso da Silva; na jurisprudência, destaca-se a jurisprudênciado Superior Tribunal 
de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. 
O quinto e penúltimo capítulo é especialmente dedicado ao direito fundamental ao 
devido processo legal, cuja oponibilidade às redes sociais de streaming é o cerne da 
investigação. Aborda-se a sua origem histórica, suas dimensões e o reconhecimento de sua 
aplicabilidade a relações privadas pela doutrina e pela jurisprudência do Brasil. 
O último capítulo expõe as premissas aceitas após a investigação, para o fim de 
enfrentar a questão principal do trabalho: a aplicabilidade do direito fundamental ao devido 
processo legal à relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. A partir da 
definição da natureza dessa relação jurídica e de seus caracteres o norte do capítulo passa a ser 
a interpretação do contrato do YouTube conforme o direito fundamental ao devido processo 
legal. Discute-se quais deveres relativos ao devido processo legal dele podem ser extraídos, tais 
como o dever de comunicar e motivar punições, o dever de oportunizar o contraditório, a 
 
 
13 
vedação à reformatio in pejus, etc. Ao final, arrolam-se medidas de compliance que as redes 
sociais de streaming poderiam adotar para o fim de evitar a revisão judicial de suas decisões. 
A síntese conclusiva dedica-se a compilar de modo resumido as principais conclusões 
do trabalho, sem pretensão de substituir a sua leitura integral. 
 
 
14 
CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE “STREAMING”: PODER 
DE INFLUÊNCIA E CONTROLE DE CONTEÚDO 
 
1.1. Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião pública 
 
As redes sociais estão substituindo a televisão e o rádio como principal meio de acesso 
à informação pela população (NETTO, 2019, on-line; THOMPSON, 2012, on-line). É inegável 
o impacto social desta troca. Os veículos tradicionais de comunicação em massa, que até então 
reinavam como influenciadores da opinião pública, estão perdendo o controle da narrativa 
política e, com isso, sua capacidade de conduzir as escolhas populares. Embora ainda se discuta 
o quão decisivas as redes sociais têm sido para a determinação do rumo político dos países, a 
sua capacidade de influência é consenso. 
Estudos sugerem que publicações nas redes sociais, inclusive de notícias falsas, 
tiveram grande influência grande na eleição de Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos 
(MARS, 2018, on-line), em especial pelo grande barulho provocado nas redes por seus 
apoiadores mais fanáticos. Uma minoria que se fez maioria no ambiente virtual. Segundo 
reportagem do El País, grupos de extrema direita, que representavam apenas 11% dos 
seguidores do então candidato, foram responsáveis por cerca de 60% dos retweets de suas 
publicações durante o período eleitoral. Tendência que se seguiu em outros países, como na 
campanha do Brexit, nas eleições da Alemanha e França, dentre outros exemplos 
(GOLDZWEIG, 2018, on-line). 
No Brasil, a situação não é diferente. A campanha eleitoral televisiva perdeu seu 
caráter decisivo, o que até então era impensável1. É bem provável que sem as redes sociais de 
streaming2 que, como o YouTube, que permitem gratuitamente a transmissão de conteúdo a 
ampla audiência e por tempo ilimitado, o resultado das eleições brasileiras de 2018 teria sido 
muito diverso (BRODERICK, 2019, on-line; GHEDIN, 2019, on-line). As redes sociais são 
centrais para partidos pequenos alcançarem um grande público, mesmo que com poucos 
 
1 Sobre a perda de relevância da televisão, confira-se o infográfico "O poder do tempo de TV", que demonstra a 
mudança de paradigma na propaganda eleitoral no Brasil em: O PODER do tempo de TV. O Tempo. Belo 
Horizonte, on-line. 01 out. 2018. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/infograficos/o-poder-do-tempo-
de-tv-1.2038397>. Acesso em: 10 jan. 2020. 
2 Sobre streaming, confira o tópico 1.2. 
 
 
15 
recursos e pouco tempo de campanha na televisão (MIRANDA, 2018, on-line). Não à toa, o 
sucesso do candidato Jair Bolsonaro é, em parte, atribuído a seu alcance nas mídias sociais (EL 
PAÍS, 2018, on-line). Mas não só Bolsonaro confiou no poder das redes sociais para se eleger3. 
Muitos membros do Poder Legislativo eleitos naquele pleito iniciaram suas carreiras no 
YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição, como é o caso do deputado 
estadual por São Paulo Arthur “Mamãe falei” do Val e dos deputados federais Joice 
Hasselmann e Luis Miranda. 
Após a eleição, as redes sociais passaram a ser canal oficial de comunicação do 
governo e dos parlamentares. Inclusive, o Presidente da República Jair Bolsonaro utiliza-se de 
livestreaming fazendo transmissões semanais em seu canal no YouTube e no Facebook. Além 
de ele utilizar frequentemente sua conta no Twitter, por meio da qual inclusive divulgou alguns 
criadores de conteúdo do YouTube como fonte de informação confiável (FILHO, 2018, on-
line). 
Bem por isso, é certo que as redes sociais hoje detêm considerável perspectiva de 
direcionar o debate político. De uma parte, pela promoção de certo tipo de conteúdo. O 
YouTube, por exemplo, tem sido acusado de promover o negacionismo climático por meio da 
recomendação, por seu algoritmo, de conteúdo "tóxico", além de permitir que youtubers 
negacionistas lucrem na plataforma por meio da inserção de publicidade em seus vídeos 
(PLANELLES, 2020, on-line). De outra parte, as redes sociais podem exercer sua influência 
por meio da censura. O YouTube é acusado de censurar manifestações políticas dos mais 
variados espectros políticos (REVISTA FÓRUM, 2019, on-line; HARRISON, 2019, on-line). 
É claro que tanto poder de fogo despertou a preocupação das instituições. Na verdade, 
há décadas os governos têm se preocupado com o controle do que é postado na internet, sendo 
que a explosão de possibilidades de criação e compartilhamento de conteúdo gerado por 
 
3 Em uma pesquisa recente realizada pela Câmara e pelo Senado 45% dos entrevistados afirmou ter decidido o seu 
voto em período de eleições levando em consideração informações vistas em alguma rede social. As redes sociais 
mais citadas como fonte dessa decisão eleitoral foram o Facebook (31%) e o Whatsapp (29%), seguidos 
do YouTube (26%), do Instagram (19%) e do Twitter (10%). Ademais, para 83% dos entrevistados, o conteúdo 
das redes sociais influencia muito a opinião das pessoas. Outros meios indicados como os mais utilizados como 
fonte de informação foram: a televisão (50% sempre e 36% às vezes), o YouTube (49% sempre e 39% às vezes) 
e o Facebook (44% sempre e 35% às vezes). Só depois disso vieram os sites de notícias, que “sempre são 
consultados” por 38% dos entrevistados e são “consultados às vezes” por 46% desse pessoal. Os percentuais de 
consulta à rádio (22% e 40%) e ao jornal impresso (8% e 31%) foram ainda menores, abaixo até que o do Instagram 
(30% e 30%) (BARBOSA, 2019, on-line). 
 
 
16 
terceiros que as redes sociais geraram só fez aumentar a pressão sobre os provedores para que 
fiscalizem o que circula nas suas plataformas. 
As preocupações principais que – em tese – impulsionam os Estados nessa busca por 
controle do que é postado nas redes sociais são: a divulgação de ideias extremistas, a 
propagação de notícias falsas (fake news4) e os danos causados a direitos autorais e direitos da 
personalidade. 
Um dos esforços legislativos mais incisivos nesse sentido foi a aprovação na 
Alemanha em junho de 2017 da Netzwerkdurchsetzungsgesetz (algo como "lei para o reforço 
da aplicação do direito nas redes"), que obriga redes sociais a: 
● disponibilizar aos usuários um processo permanente, facilmente reconhecível e 
diretamente acessível para denúncia de conteúdo ilícito; 
● tomar nota e imediatamente checar o conteúdo das denúncias, determinando se 
o conteúdo tem relevância penal; 
● remover ou bloquear o acesso a conteúdo "manifestamente criminoso" dentrode 
vinte e quatro horas após o recebimento da denúncia; 
● remover ou bloquear o acesso a conteúdo não "manifestamente criminoso" em 
até sete dias desde a reclamação. O prazo pode ser superado se a decisão 
depender da falsidade de uma alegação de fato ou é claramente dependente de 
outras circunstâncias de fato, casos em que a rede social pode oportunizar ao 
usuário a oportunidade de se defender antes da decisão. Ou ainda, se a rede social 
decidir entregar o poder de decidir a uma instituição de autorregulação, desde 
que admita aceitar a sua decisão. A instituição escolhida deve então decidir se o 
conteúdo é ilícito dentro de sete dias. 
● informar os usuários de todas as decisões tomadas e prover motivação 
(BUNDESMINISTERIUMS DER JUSTIZ UND FÜR 
VERBRAUCHERSCHUTZ, [2018?], on-line). 
 
4 Justamente visando combater as fake news em período eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a 
Resolução TSE nº 23.610/2019, com dispositivo voltado especificamente ao combate do que a Corte chama de 
“desinformação na propaganda eleitoral”. Confira-se: “Art. 9º A utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer 
modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que o candidato, o partido ou a coligação 
tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela 
fidedignidade da informação, sujeitando-se os responsáveis ao disposto no art. 58 da Lei nº 9.504/1997, 
sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”. 
 
 
17 
 
Outrossim, os provedores de redes sociais são obrigados a elaborar relatórios bienais 
a respeito da gestão das denúncias de conteúdo criminoso. Os relatórios devem conter 
informações a respeito do volume de denúncias, das práticas decisórias e das equipes 
responsáveis por processar as denúncias. Esses relatórios devem ser publicados na internet. 
A lei também permite que qualquer pessoa que tenha tido os seus direitos da 
personalidade violados por crimes cometidos nas redes sociais poderá requerer aos seus 
provedores que forneçam informações sobre quem os praticou. Todavia, a entrega destas 
informações é condicionada a reserva de jurisdição. 
A NetzDG tem sido objeto de críticas, justamente por obrigar a própria rede social a 
decidir sobre o caráter criminoso de um conteúdo, transferindo-lhe competência antes privativa 
dos tribunais, constituindo uma espécie de censura prévia privada que ofende a Constituição 
(MÜLLER-FRANKEN, p. 1-14 apud CUEVA, [2018], p. 88). A lei configuraria, assim, uma 
forma de terceirização/delegação inconstitucional de atividade típica do Estado, a quem 
incumbe o monopólio da repressão de ilícitos. (Cf. CUEVA, [2018], p. 88). 
O fato é que, no afã de controlar o discurso de ódio, o Parlamento alemão acabou 
conferindo maior poder de censura às redes sociais, que agora passa a ser praticada com base 
em um poder conferido pela lei e não necessariamente pelos seus termos de uso. Quer dizer, a 
rede social opera como longa manus do Estado no controle do conteúdo postado. 
Trilha o mesmo caminho a Diretriz de Direitos Autorais da União Europeia aprovada 
pelo Parlamento Europeu em março de 2019, que responsabiliza por violações a direitos 
autorais os prestadores de serviços da sociedade da informação, dentre os quais as redes sociais 
de streaming como o YouTube e a Twitch5, que armazenam e permitem o acesso a grandes 
quantidades de obras e outros materiais protegidos upados pelos seus utilizadores, delas 
exigindo a implementação de tecnologias preventivas que possam reconhecer automaticamente 
o conteúdo armazenado reputado violador de direitos autorais, os chamados “filtros de upload”. 
 
5A Twitch (também chamada de Twittch.tv) é a maior plataforma de livestreaming existente atualmente. Embora 
oferte diversas espécies de conteúdo, seu principal foco é a transmissão ao vivo de jogos de videogame e 
competições de esporte eletrônico (e-sports). Seus números também impressionam. Seus espectadores assistiram 
a 9,3 bilhões de horas de conteúdo em 2018 (VENTUREBEAT, 2019, on-line). Juntos, seus usuários ativos 
diariamente somam 15 milhões (INFLUENCER MARKETING HUB, 2019, on-line). Em 2014, a Twitch foi 
comprada pela Amazon por 970 milhões de dólares. 
 
 
18 
Quer dizer, não só elas devem decidir sozinhas sobre violações a direitos autorais, 
como também de modo genérico e automatizado. Segundo Susan Wojcicki, presidente do 
YouTube, seus algoritmos ainda não são capazes de distinguir entre paródias e memes, que são 
usos permitidos de propriedade autoral e o que a legislação visa excluir, de modo que há sério 
risco de dano à liberdade de expressão na internet (HALE, 2019, on-line). 
Vejamos o art. 13 dessa diretriz, nesse exato sentido: 
Artigo 13 
Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços da sociedade da 
informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e 
outro material protegido carregados pelos seus utilizadores 
1.Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam 
ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido 
carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos, 
adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os 
titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido 
ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material 
protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os 
prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de 
reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores 
de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o 
funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o 
reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido. 
2.Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços a que se refere 
o n. º 1 estabelecem mecanismos de reclamação e recurso para os utilizadores, em 
caso de litígio sobre a aplicação das medidas previstas no n. º 1. 
3.Os Estados-Membros devem favorecer, sempre que adequado, a cooperação entre 
os prestadores de serviços da sociedade da informação e os titulares de direitos através 
de diálogos entre as partes interessadas com vista a definir melhores práticas, tais 
como tecnologias adequadas e proporcionadas de reconhecimento de conteúdos, 
tendo em conta, entre outros, a natureza dos serviços, a disponibilidade das 
tecnologias e a sua eficácia à luz da evolução tecnológica. 
 
Também nos Estados Unidos a lei confere diretamente poder de censurar conteúdo às 
redes sociais. A Communications Decency Act, uma lei criada em 1996 para controlar a 
pornografia digital, garante aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado 
como “lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing or otherwise objectionable”, 
esteja ou não o conteúdo protegido pela Constituição6. 
O legislador brasileiro parece ter andado melhor, pois não conferiu expressamente 
nenhum poder do gênero aos provedores. Pelo contrário, no expresso intuito de proteger a 
 
6 Confira no tópico 6.3.1.1 a discussão existente nos Estados Unidos a respeito da caracterização da censura 
praticada pelas redes sociais com base na CDA como state action para fins de definir a sua vinculação a direitos 
fundamentais. 
 
 
19 
liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet restringiu a sua responsabilidade pelo 
conteúdo postado por terceiros à hipótese de omissão na sua remoção após ordem judicial 
específica que aponte o conteúdo infringente; de modo que a qualificação do conteúdo como 
ilícito segue reservadaJudiciário (arts. 18 e 19 do Marco Civil da Internet). Prevê ainda o §2º 
do art. 19 que a responsabilidade dos provedores por infrações a direitos de autor ou conexos 
depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais 
garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. 
A censura promovida autonomamente por redes sociais é levada a sério no Brasil tendo 
motivado a abertura pelo Ministério Público Federal dos procedimentos preparatórios nº 
1.18.000.001850/2018– 72 e 1.18.000.002245/2018-19, bem como do inquérito civil público 
n° 1.18.000.002758/2017-49, que trataram de ações ou omissões ilícitas no controle de 
conteúdo postado, suspeitas de terem sido discriminatórias, por motivação de origem, raça, 
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas. 
As investigações culminaram com oferecimento de representação à Procuradoria Geral 
da República em desfavor do Facebook, Whatsapp, Twitter e YouTube (Ofício nº. 
4264/MPF/PRGO/3ºONTC), onde se afirma que: 
Admitir-se que provedores de aplicações de internet, nacionais ou estrangeiros, 
proprietários de redes sociais, por ato próprio, possam cometer algum tipo de restrição 
de alcance, censura, bloqueio de acesso e banimento etc., contra usuários brasileiros 
em geral, e, principalmente, a candidatos, partidos, coligações, seus apoiadores e 
cidadãos, em decorrência de comunicação de natureza política, durante a disputa 
eleitoral, significa: violentar a soberania nacional, a cidadania brasileira, o pluralismo 
político; vilipendiar as liberdades humanas de manifestação de pensamento, ideias e 
informações; degradar sobremaneira o Estado Democrático de Direito. (BRASIL 
2018, p. 13) 
 
Com efeito, se sem o recurso a estas plataformas os atores políticos não obtêm o 
mesmo alcance e, por conseguinte a mesma capacidade de influência sobre os discursos 
circulantes na esfera pública, torna-se possível afirmar que a capacidade de as acessar torna-se 
um sustentáculo da própria liberdade de expressão e da liberdade de participação política na 
dimensão que assumem neste contexto histórico. Ainda mais considerando que o mercado dos 
provedores de aplicações, dentre os quais se incluem as redes sociais de streaming, tende à 
formação de monopólios (Cf. SARTOR, 2017). Afinal, quais sites de streaming de vídeos 
fazem frente ao YouTube? Que alternativa restaria ao usuário que tem sua conta suspensa por 
tempo indeterminado nesta plataforma para continuar seu trabalho? 
 
 
20 
 Sem embargo, também o exercício do direito fundamental à livre iniciativa em sua 
eficácia plena vê-se ameaçado pela atuação cesarista das redes sociais de streaming. Youtuber 
e streamer são termos que hoje nomeiam profissões. Há um sem número de pessoas 
dependentes economicamente de sua popularidade nestas plataformas que poderiam ser 
imensamente lesadas por uma punição injusta. 
Também não podem ser ignorados os impactos concorrenciais decorrentes de uma 
decisão do YouTube de impedir a veiculação de conteúdo de uma determinada empresa. 
Perante os seus concorrentes o seu alcance seria significativamente menor. 
Considerando, portanto, essa relevante função política e econômica que as redes 
sociais têm exercido na democracias contemporâneas, que deriva do fato de serem um meio de 
divulgação e controle de ideias sem precedentes em termos de eficiência, aliada à sua 
capacidade de inviabilizar o exercício de direitos fundamentais em sua dimensão atual de 
eficácia, é importante discutir se elas não estariam sujeitas a obrigações distintas das dos demais 
atores privados no que toca à garantia das liberdades constitucionais. Em especial, se seriam 
obrigadas a observar o devido processo legal quando removem conteúdo postado ou suspendem 
seus usuários, como limitante da arbitrariedade no exercício do poder. 
Por isso o objetivo principal desta pesquisa é definir se o direito fundamental ao devido 
processo legal é invocável em sua eficácia horizontal na relação privada entre os criadores de 
conteúdo e as redes sociais de streaming onde eles publicam seus vídeos fazem as suas 
transmissões. Indaga-se dos desafios que a aplicação de um direito fundamental entre 
particulares pressupõe, em especial a sua justificativa e a configuração de seu conteúdo, visto 
terem sido originalmente concebidos para limitar o poder do Estado. 
Concluindo-se pela oponibilidade do direito fundamental ao devido processo legal 
nesta relação privada, pretende-se delinear o conteúdo mínimo deste direito, mais 
especificamente em sua dimensão processual; mas a dimensão substancial será tratada na 
medida do necessário. Questiona-se, assim, se os criadores de conteúdos poderiam exigir das 
redes sociais de streaming, inclusive pela via judicial: a definição clara e transparente em seus 
Termos de Serviço e/ou Diretrizes da Comunidade das condutas passíveis de intervenção pela 
plataforma, em especial a remoção de conteúdo e a suspensão e o banimento de usuários; a 
motivação das punições; o respeito ao contraditório prévio ou posterior; a observância do 
postulado da proporcionalidade; dentre outras garantias relativas ao devido processo legal. 
 
 
21 
A análise terá por pano de fundo a interpretação conforme a Constituição Federal e a 
legislação infraconstitucional pertinente dos Termos de Serviço, das Diretrizes da Comunidade 
e das Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade do YouTube, que hoje é a maior rede 
social de streaming do mundo. 
Ao final, pretende-se arrolar medidas de compliance que as redes sociais de streaming 
poderiam adotar para evitar a anulação de suas sanções e o eventual pagamento de indenizações 
por danos materiais e morais. 
Para uma melhor compreensão do tema convém explicar brevemente o contexto fático 
em que se dá a relação jurídica discutida, entre os criadores de conteúdo e as plataformas de 
streaming. 
 
1.2. O que é “streaming”? 
 
Duas são as formas conhecidas de se baixar conteúdo da internet: por download 
progressivo ou por streaming. 
Download progressivo (progressive download) é a tecnologia tradicional para baixar 
conteúdo da internet, presente desde os primórdios da rede. Neste método, após o usuário dar 
o comando de download ao servidor onde estão hospedados os arquivos que deseja acessar, 
estes vão sendo transmitidos gradualmente para o seu dispositivo, sendo que somente poderão 
ser acessados após o término do download (COSTELLO, 2019, on-line). 
Os apps que utilizamos em nossos celulares, como o Facebook e o Whatsapp, são 
baixados por download progressivo. Não é possível abrir e usar o app do Whatsapp antes que 
ele tenha sido completamente baixado para o dispositivo. 
Por sua vez, streaming é uma tecnologia mais moderna utilizada para a transmissão de 
dados via internet – em especial, som e imagem –, por meio de um fluxo estável e contínuo, 
que permite ao usuário acessar o conteúdo que deseja quase que imediatamente, sem que antes 
seja necessário o seu download integral (COSTELLO, 2019, on-line). 
Ao contrário do que ocorre com o download progressivo, por streaming os arquivos 
são baixados ao mesmo tempo em que são executados, de modo que o usuário pode assistir ao 
 
 
22 
vídeo ou escutar à música que deseja sem precisar esperar o conteúdo ser totalmente transferido 
para o seu dispositivo (NETSHOW, 2017, on-line). 
Streaming é a tecnologia utilizada por YouTube, Netflix, Spotify e Deezer para ofertar 
vídeos, música e publicidade. Ao clicarmos em um vídeo no YouTube a transmissão se inicia 
imediatamente. Conforme o vídeo avança os dados vão sendo baixados pouco a pouco, ao 
mesmo tempo em que são transmitidos na tela. Não é necessário que o vídeo inteiro seja baixado 
para o nosso dispositivo. Quando fechamos o vídeo, ele some de nosso aparelho. Um novo 
acesso ao conteúdo somente é possível abrindo novamente o link a partir do qual ele é 
streamado. 
Já livestreaming é o uso destreaming especificamente para a transmissão de conteúdo 
em tempo real (COSTELLO, 2019, on-line). 
Em livestreaming os dados são transmitidos em tempo real aos dispositivos conectados 
e somente são acessíveis no momento em que transmitidos. Se o usuário deixa de acompanhar 
uma transmissão, ou se o seu dispositivo se desconecta da internet enquanto ele está assistindo, 
não é possível acessar o conteúdo perdido, salvo se uma gravação for disponibilizada mais tarde 
(NETSHOW, 2017, on-line). Não é como assistir a um vídeo no YouTube, onde podemos 
acelerar o vídeo, avançar ou retroceder. Livestreaming é como assistir TV ao vivo, mas com 
mais maior possibilidade de interação. 
 
1.3. O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo 
 
O YouTube é atualmente a maior rede social de streaming do mundo. Para se ter uma 
ideia de sua grandeza, o YouTube possui 1,9 bilhão de usuários (STATISTA, 2019, on-line). 
Todos os dias estes usuários assistem juntos a 1 bilhão de horas de vídeos (YOUTUBE, 2019e, 
on-line). Cerca de 500 horas de vídeo são upadas para o YouTube a cada minuto no mundo 
(TUBEFILTER, 2019, on-line). 
No YouTube os vídeos são postados dentro de canais exclusivos criados por cada 
usuário. Nestes canais, salvo anúncios de publicidade, o usuário tem controle sobre o conteúdo 
transmitido. Ele pode postar conteúdo próprio, ou de terceiros, desde que por eles autorizado. 
 
 
23 
Qualquer pessoa pode criar o seu próprio canal no YouTube e começar a 
postar/transmitir seu conteúdo. Bastam um dispositivo com acesso à Internet e a criação de uma 
conta na rede social. A criação da conta prescinde da identificação do usuário, que, inclusive 
pode criar contas e canais diversos, sob diferentes nomes. Há um favorecimento do anonimato. 
Igualmente, os vídeos postados no YouTube podem ser acompanhados por qualquer 
pessoa, mesmo que sequer possua uma conta nas plataformas. 
Mas a liberdade dos criadores de conteúdo não é absoluta. Para utilizar a plataforma 
disponibilizada pelo YouTube, os usuários devem aderir obrigatoriamente aos Termos de 
Serviço, às Diretrizes da Comunidade, e à Política de Privacidade e de Direitos Autorais 
formulados pela rede social. Para ganhar dinheiro com anúncios deve também respeitar as 
Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade. 
Conforme as Diretrizes da Comunidade do YouTube são vedados vídeos que 
contenham: nudez ou conteúdo pornográfico ou sexualmente explícito; conteúdo prejudicial ou 
perigoso; conteúdo de incitação ao ódio; conteúdo explícito ou violento; assédio e bullying 
virtual; spam, metadados enganosos e golpes; ameaças; desrespeito a direitos autorais; violação 
de privacidade; falsificação de identidade; conteúdo que coloque o bem-estar emocional ou 
físico de menores em risco. O seu desrespeito levar à remoção do conteúdo postado 
(YOUTUBE, 2019b, on-line). 
Caso o criador de conteúdo viole as Diretrizes de Conteúdo Adequado para 
Publicidade, o YouTube pode, por exemplo, desativar a exibição de anúncios no seu conteúdo 
ou suspender a participação do criador de conteúdo no Programa de Parcerias do YouTube, 
impedindo que ele aufira renda com seus vídeos (YOUTUBE, 2019c, on-line). 
Os Termos de Serviço do YouTube também definem que os usuários que violam suas 
regras estão sujeitos às sanções ali estabelecidas unilateralmente que varia, entre a remoção do 
conteúdo infringente, advertências, suspensões, o encerramento de contas e/ou a rescisão de 
canais (YOUTUBE, 2019, on-line). 
Em sua versão anterior os Termos de Serviço do YouTube eram bastante ditatoriais, 
prevendo inclusive a remoção de conteúdo e o cancelamento de contas sem aviso prévio, a seu 
exclusivo critério7.Todavia, eles passaram por uma alteração relevante em 10 de dezembro de 
 
7 “7.B – O YouTube se reserva o direito de decidir se o Conteúdo é apropriado e obedece a estes Termos de Serviço 
no que diz respeito a infrações outras que não as infrações ou violações das leis de direitos autorais, como por 
exemplo, mas sem se limitar, à pornografia, material obsceno ou difamatório, (inclusive difamação, calúnia ou 
 
 
24 
2009 que ampliou as garantias dos criadores de conteúdo contra punições, mas também gerou 
polêmica, por exemplo pela parente possibilidade de remoção de canais “não comercialmente 
viáveis”. 
Esses pontos serão analisados em detalhe no último capítulo. 
 
1.4. Os criadores de conteúdo 
 
 Criador de conteúdo (em inglês, content creator) é o termo utilizado para designar o 
profissional que vive de produzir conteúdo digital para ser consumido na internet; em especial 
redes sociais como as de streaming. 
Os youtubers do YouTube e os streamers8 da Twitch são criadores de conteúdo. Felipe 
Neto, Whindersson Nunes, Pewdiepie, são alguns dos criadores de conteúdo mais famosos do 
YouTube; YoDa e Ninja são, respectivamente, os maiores criadores de conteúdo na Twitch, do 
Brasil e do mundo. 
A tecnologia de streaming revolucionou a produção e o consumo de conteúdo digital. 
O fato de o usuário não precisar mais baixar antes todo o conteúdo que deseja consumir permitiu 
o acesso instantâneo a vastas bibliotecas de mídia. Temos à disposição no Deezer toda a 
discografia de nossa banda preferida imediatamente ao alcance dos dedos. Se o Deezer não tem, 
procuramos no Spotify, ou no Apple Music. Abrindo o Popcorn Time podemos encontrar juntos 
todos os filmes de Hitchcock, Fellini e Herzog, com diversas resoluções e legendas (mesmo 
contra os interesses dos titulares de seus direitos de exploração comercial). 
De outra parte, esse sensível incremento na facilidade de acesso à mídia não veio 
acompanhado de uma maior disponibilidade de tempo para consumi-lo. Pelo contrário, na vida 
moderna e digitalizada o tempo é cada vez mais escasso. Por isso há uma feroz disputa na 
internet pela atenção do usuário. Se não gostamos do que traz uma série da Netflix, em segundos 
já abrimos outra. Se não gostamos de uma música da playlist do Spotify, saltamos para a 
 
injúria), ou excessivamente longo. O YouTube poderá a qualquer momento, sem aviso prévio e a seu exclusivo 
critério, remover tais Conteúdos e/ou cancelar uma conta de Usuário por enviar tais materiais que violam os 
Termos de Serviço”. (YOUTUBE, 2019c, on-line) 
8 Os usuários que realizam transmissões ao vivo com frequência são chamados de livestreamers ou, como é mais 
comum, apenas de streamers. 
 
 
25 
próxima ou voltamos para a anterior. O usuário só assiste e ouve ao que quer, quando quer. Não 
à toa o streaming tem afetado tanto a audiência da televisão e o número de assinaturas da TV à 
cabo (CARR, 2014, on-line). 
Os que produzem conteúdo digital estão constantemente desafiados pela veloz e 
imprevisível flutuação do interesse do público, devendo estar sempre atentos às tendências de 
consumo sinalizadas pelos tópicos mais acessados (trending topics), adequando seu produto ao 
que quer o público hoje, de preferência agora. 
Por toda essa pressa no consumir e a consequente velocidade com que as coisas na 
internet se tornam desejáveis ou indesejáveis, relevantes ou relevantes, justas ou injustas, um 
dia fora desse fluxo pode significar a “morte” de um criador de conteúdo. Imaginemos um 
podcaster que dedica todo o seu conteúdo à política vendo-se impedido de acessar a plataforma 
por onde divulga seu trabalho justamente na semana do segundo turno das eleições 
presidenciais. 
Daí a relevância da proteção de sua atividade contra a atuação arbitrária das redes 
sociais, que implica não somente a afetação de sua liberdade de expressão, mas também de sua 
possibilidade de participação política e de exercício de uma atividade econômica. O que 
justificaria a exigência de oposição à rede social de garantias relativas ao devido processo legal, 
como a motivação das punições e a oportunização de defesa.26 
CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA 
HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO 
COMO NORMA JURÍDICA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS 
FUNDAMENTAIS 
 
2.1. Considerações introdutórias 
 
A discussão sobre a vinculação de particulares aos direitos fundamentais tem como 
seus antecedentes teóricos o reconhecimento da juridicidade da Constituição, noção que não 
lhe é congênita, e a apuração da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ligada 
à sua compreensão como um conjunto de valores objetivos, dotado de uma eficácia jurídica 
irradiante, que atinge todas os ramos do direito, influenciando relações que não sofreriam sua 
incidência caso visualizados como meros direitos públicos subjetivos. 
Este é o tema explorado no presente capítulo, que busca apresentar o trajeto histórico 
que ambos os conceitos compartilham, visto serem correlatos. 
A exposição parte da vitória da burguesia na Revolução Francesa, cujo paradigma 
jusfilosófico consagrou a visão liberal dos direitos fundamentais como direitos de defesa 
invocáveis exclusivamente em face do Estado, orientados a impedir sua intervenção em 
negócios privados. 
A argumentação passa então pelo derruimento do Estado Liberal com o agravamento 
dos conflitos distributivos e a necessidade de tomada de posição dos Poderes Públicos diante 
da desestabilização do sistema econômico capitalista, que fez surgir o Estado Social. Este, 
caracterizado por uma nova gama de tarefas estatais fixada em nível constitucional, que fez 
revolucionar não só a compreensão das funções do Estado perante o meio social, como também 
do caráter com que as normas de direitos fundamentais deveriam ser interpretadas. 
Na sequência, o capítulo aborda o resgate do direito natural em função da premente 
necessidade de retorno do direito legislado a valores morais como condicionantes de sua 
legalidade, decorrência do asco ao positivismo jurídico gerado por sua associação ao Terceiro 
Reich e o Holocausto, que culminou com o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos 
fundamentais: a sua concepção como fórmulas condensantes dos valores essenciais da 
 
 
27 
comunidade que, porquanto versadas em norma, constituem a sua base jurídica, de modo que 
seus efeitos se irradiam necessariamente sobre todas as relações ocorridas em seu seio, 
envolvendo ou não o Estado. 
A teoria dos efeitos irradiantes dos direitos fundamentais (Ausstrahlungseffekte) e a 
dos deveres de proteção (Schutzpflichten) são apresentadas como frutos da evolução da 
compreensão de sua dimensão objetiva, que fomentam a intensificação da intervenção estatal 
em âmbito particular e conformam a criação, a interpretação, a integração e a aplicação do 
direito privado. 
Por fim, o capítulo aborda o fenômeno da constitucionalização do direito privado 
(direito civil constitucional) e como esta se revela no Brasil a partir das disposições da 
Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. 
Pelas limitações físicas deste trabalho, sem embargo da importância histórica e 
dogmática do direito constitucional da common law, o capítulo se concentra no reconhecimento 
da juridicidade do texto constitucional e da eficácia dos direitos fundamentais tal como se 
desenvolveu no panorama do sistema-românico germânico, tradição do qual o direito brasileiro 
é herdeiro. 
 
2.2. A Constituição como norma jurídica 
 
O ordenamento jurídico é um sistema ordenado logicamente como uma pirâmide 
escalonada cujo vértice é ocupado pela Constituição como seu fundamento de validade. É a 
construção teórica que se tornou tão popular com as obras de Hans Kelsen ao ponto de soar 
como um pleonasmo. 
Mas, se hoje soa quase redundante a afirmação da submissão de todos os campos do 
direito à constituição, o fato é que esta não era a compreensão em voga até a metade do século 
XX. 
No paradigma do Estado Liberal, que prevaleceu durante o século XIX, a partir da 
Revolução Francesa, o direito privado é que ocupava o centro gravitacional do ordenamento 
jurídico, operando como fonte independente e indivisível de disciplina das relações privadas, 
 
 
28 
então área alheia à incidência das disposições constitucionais. Estas se voltavam, na verdade, a 
manter o Estado afastado de intervir nas atividades negociais. 
Não poderia ser diferente, primeiro, porque, em razão da ausência de uma jurisdição 
constitucional, a Constituição era então compreendida, em especial no que tocava à esfera 
jurídico-privada, como mera carta declaratória de diretrizes políticas, desprovida de eficácia 
jurídica imediata, cujo programa dependia de mediação do legislador (interpositio legislatoris) 
para a produção de efeitos concretos (SARMENTO, 2010, p. 74). Reconheciam-se como 
dotados de eficácia imediata apenas os direitos invocáveis em face do Estado, individuais e 
políticos, bem como as disposições normativas que tratavam de sua estrutura orgânica 
(SARMENTO, 2010, p. 74). 
Segundo, porque o século XIX foi a Era das Codificações, cujos principais expoentes 
foram o Código Civil Francês de 1804 e o Código Civil Alemão de 1900, gerados justamente 
como continentes normativos, unitários e sistematizados, com pretensão de substituir as regras 
consuetudinárias que se acumularam durante o período medieval9 na regulação exaustiva das 
relações privadas, e, assim, eliminar as graves dificuldades que a pluralidade e o fracionamento 
do direito, “fruto do arbítrio da história”, causavam na prática jurídica (BOBBIO, 1995, p. 54-
65). Daí gozarem, na esfera privada, de supremacia mesmo frente à constituição. Esta, 
inclusive, a ótica sob a qual foi concebido o Código Civil Brasileiro de 1916 (SARMENTO, 
2010, p. 99). 
Na verdade, sequer se vislumbrava a necessidade de se recorrer à Constituição para 
buscar a regulação adequada de relações privadas, visto que os códigos eram vistos como o 
autêntico baluarte da liberdade burguesa (HESSE, 1995, p. 37). O direito privado era o direito 
constitutivo da sociedade burguesa, tendo o direito constitucional uma posição secundária 
frente a ele, inclusive na perspectiva material (HESSE, 1995, p. 38). 
 
9 Confira-se a este respeito a manifestação de Thibaut defendendo a necessidade de codificação do direito 
consuetudinário alemão, citada por Norberto Bobbio: “Os alemães estão há muitos séculos paralisados, oprimidos, 
separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos, em parte irracionais e perniciosos. 
Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se 
apresente mais em mil anos. [...]. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que nas instituições francesas estão 
encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código 
prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões 
dos nossos tratados sobre direito natural. Se agora os príncipes alemães concordassem com a redação de um código 
geral alemão civil, penal e processual empregasse por apenas cinco anos aquilo que custa um meio regimento de 
soldados, não poderíamos deixar de receber algo de notável e sólido. A contribuição de um tal código seria 
incalculável” (BOBBIO, 1995, p. 53). 
 
 
29 
A tônica dessas codificações era o patrimonialismo e o individualismo, notas 
fundamentais do liberalismo-burguês, promovido pela classe recém ascendente, que havia 
tomado o poder derrubando o Antigo Regime. 
Assegurando sua nova posição social contra o retorno do Absolutismo, a burguesia 
passou a se valer do direito positivo como fonte de legitimação de poder fundada em um novo 
jusnaturalismo de viés racionalista, tipicamente iluminista. Segundo esse movimento histórico, 
na síntese formulada por Bobbio, que o denomina jusnaturalismo racionalista estatal, o direito 
é, ao mesmo tempo,expressão da autoridade e da razão. É autoridade, pois que ineficaz 
enquanto não posto e reforçado pelo Estado. De outra parte, o direito posto pelo Estado não é 
reflexo de puro exercício arbitrário de poder, mas sim produto derivado da própria razão (1995, 
p. 54). Neste sentido o projeto preliminar do Código Civil Francês, depois suprimido da redação 
definitiva, declarava: “Existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas: 
não é outro senão a razão natural, visto esta governar todos os homens”. 
O positivismo jurídico, todavia, a corrente de filosofia do direito que acabou se 
tornando dominante à época, embora tenha raízes nessa vertente do jusnaturalismo, na medida 
em que identifica o direito como fruto da razão tornado obrigatório pelo Estado, dele acabou se 
distanciando, na medida em que passou a resumir o fenômeno jurídico ao direito legislado, 
rejeitando como critério de validade qualquer proposição valorativa não versada em norma 
positiva. 
O foco da produção deste direito descoberto pela razão e posto pela autoridade do 
Estado era o trabalho do Poder Legislativo, que, dominado por representantes da burguesia, 
monopolizava a produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38), atuando como polo gerador de 
conjuntos unitários de regras racionais, imutáveis (SARMENTO, 2010, p. 345), de conteúdo 
semântico denso, porém gerais e abstratas, e de aparente neutralidade axiológica, conquanto 
orientadas pelos valores reputados essenciais para a consolidação do domínio da nova classe 
reinante. 
A intenção era a de que os códigos criados representassem o núcleo do sistema de 
direito privado, servindo de lubrificante das engrenagens do sistema econômico, pela promoção 
de seus fundamentos: o direito de propriedade, a liberdade contratual pautada na autonomia da 
vontade e na igualdade formal entre os homens, e a segurança jurídica. Esta última, alcançada 
por meio da estabilização da regulação das relações privadas, que favorecia a previsibilidade 
da conduta das partes, salvaguardando-se a expectativa na força obrigatória dos contratos (pacta 
 
 
30 
sund servanda). Esperava-se, assim, criar-se um mercado autorregulado, imune e independente 
da intervenção estatal. 
Como afirma Quartim de Moraes, citando Polanyi, guiado pela burguesia, o Estado 
Liberal: 
[...] por meio da concepção de lei ‘geral e abstrata’ portadora de uma igualdade 
estritamente formal e do abstencionismo econômico, foi capaz de atribuir segurança 
jurídica às trocas mercantis, gerando um mercado de trabalho repleto de mão de obra 
barata, assegurando à iniciativa privada a realização de qualquer atividade 
potencialmente lucrativa (1957, p. 73 apud 2014, p. 272). 
 
Outra razão fundamental para a falta de reconhecimento da eficácia normativa da 
Constituição neste contexto histórico, é o fato de que o Estado recém instalado tinha como 
marco uma visão rígida da separação entre os poderes, inspirada no pensamento montesquiano. 
As funções do Estado Liberal se dividiam de modo estanque: o Legislativo criava as normas, o 
Executivo as implementava, e o Judiciário as aplicava aos casos concretos sem interpretá-las. 
É que, em sendo o papel do Judiciário o de aplicar a lei, Poder na França ainda ocupado 
por membros ligados ao Ancién Regime, havia a necessidade de se garantir que também a 
atividade judicante fosse fiel aos valores burgueses condensados no Código Civil. Daí a 
promoção da vertente da hermenêutica jurídica que pregava a adstrição do intérprete ao 
conteúdo literal da lei e à vontade hipotética do legislador, representada na ideia de que o juiz 
deveria ser apenas la bouche de la loi: a Escola da Exegese. Bobbio resume o entendimento 
vigorante à época: “a vontade do legislador é expressa de modo seguro e completo e aos 
operadores do direito basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana” (1995, p. 38). 
Marinoni explica a razão histórica por detrás dessa concepção: 
[...]os magistrados, na França do Antigo Regime, eram fiéis escudeiros do status quo. 
Exerciam o poder para impedir quaisquer avanços que pudessem comprometer os 
interesses do rei e dos senhores feudais. Daí a revolução francesa ter negado o 
Judiciário, como se vê na célebre frase de Montesquieu – os juízes devem se 
comportar como seres inanimados, limitando-se a pronunciar as exatas palavras da lei 
(MARINONI, 2016b, on-line). 
 
O avanço sobre os poderes criativos dos juízes foi a ponto de a Lei Revolucionária de 
1790 tê-los proibido de interpretar a lei, obrigando-os, no caso de dúvida, a recorrerem a uma 
comissão formada por legisladores. Igualmente, a função da Corte de Cassação, instituída no 
mesmo ano, objetivava cassar as decisões que destoassem da lei (MARINONI, 2016b, on-line). 
 
 
31 
Percebe-se então que, firmada no ideal de uma separação inflexível entre os Poderes, 
a Revolução Francesa colocou o Legislativo e o Judiciário em polos opostos. A solução liberal 
para o conflito entre legisladores e juízes foi a opção pela onipotência do legislador, titular 
exclusivo da produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38). 
Destarte, era natural a aversão do acesso dos juízes à textura tipicamente aberta do 
texto constitucional, um convite ao exercício de sua indesejada criatividade. 
Assim é que a Constituição não condicionava a validade, nem a interpretação das 
normas de direito privado (HESSE, 1995, p. 35-36) e muito menos era possível extrair-se dela 
diretamente a regulação direta das relações entre particulares. Tampouco se poderia falar de 
uma competência processual dos juízes para examinar a compatibilidade de leis aos direitos 
fundamentais previsto na Constituição, uma função de controle material (HESSE, 1995, p. 37). 
Reitere-se, sem embargo, que se reconhecia o caráter vinculante das normas ditas 
clássicas, aquelas que definem organização do Estado e aqueles que demarcavam uma esfera 
de direitos individuais e políticos do cidadão em face dele (SARMENTO, 2010, p. 74). Mas 
estes eram direcionados precipuamente contra a Administração, não ao Legislador, e tampouco 
eram acessíveis ao juiz (HESSE, 1995, p. 37). 
A compreensão do caráter vinculante das normas constitucionais então começou a 
mudar, em primeiro lugar, na prática, antes mesmo da virada teórica que culminou com o 
reconhecimento de eficácia normativa a toda a Constituição, a partir da adoção generalizada de 
instrumentos de controle de constitucionalidade que cristalizaram a sua compreensão como 
norma jurídica conformadora de todo o ordenamento e não apenas como diretriz política de 
caráter meramente programático (SARMENTO, 2010, p. 76). Assim é que se passou, do Estado 
de Direito, ao Estado Constitucional, em que a lei ordinária vê-se subordinada a um estrato 
superior que lhe condiciona a validade (ZAGREBELSKY, 1992, p. 39 apud SARMENTO, 
2010, p. 76). Concepção que enfim deslocou a Constituição para o núcleo da ordem jurídica, 
submetendo inclusive o direito privado aos seus ditames (SARMENTO, 2010, p. 77). 
No entanto, neste momento inicial, as normas consideradas juridicamente eficazes e, 
portanto, passíveis de serem utilizadas como paradigma para o controle de constitucionalidade 
das leis ainda eram apenas aquelas que definiam a estrutura do Estado e as que limitavam a sua 
esfera de ação (SARMENTO, 2010, p. 76). Neste sentido, destaca Ana Prata, que “todas as 
normas que excedessem o estatuto organizatório do estado e o elenco dos direitos assegurados 
aos cidadãos contra este tinham um cariz não preceptivo, traduzindo-se num conjunto de 
 
 
32 
declarações políticas de princípio sem força vinculativa” (1982, p. 123 apud SARMENTO, 
2010, p. 76). 
Contudo, paralelamente a esta noção de submissão das leis à Constituição, emergia o 
Estado Social, que veio substituir o Estado Liberal, e cujos papéis determinados em nível 
constitucional foram redefinidos em relação ao modelo anterior. Além dos direitos chamados 
de “clássicos”,uma nova dimensão de direitos fundamentais foi concebida. Como bem resume 
Sarmento, com seu advento: 
[...] o Estado e o Direito passaram a exercer novas funções prestacionais, de modo 
que passou a se consolidar o entendimento de que os direitos fundamentais não devem 
limitar seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, 
incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a 
família” (2010, p. 78). 
 
Eis, portanto, um marco fundamental da intervenção estatal direta nos negócios 
privados a partir da Constituição. 
É que, com o progresso do sistema econômico capitalista, especialmente com a 
Revolução Industrial, que, ao mesmo tempo, representou tanto avanços na geração quanto na 
sua concentração de riqueza, houve sério agravamento da desigualdade material entre os 
cidadãos, o que gerou marcantes tensões sociais provenientes especialmente da oprimida classe 
trabalhadora. 
Duas noções importantíssimas para a virada do direito constitucional se desenvolviam: 
a de que a desigualdade de fato é obstáculo ao exercício da liberdade, de modo que a sua 
proclamação formal não basta à sua garantia; e a de que, contrariando a concepção que os criou, 
o Estado não é o único inimigo dos direitos fundamentais, cabendo-lhe, não só se abster de 
violá-los, como também intervir em face da conduta de atores privados, em especial aqueles 
dotados de algum poder social ou econômico que insistam em sua violação (V. A. SILVA, 
2011, p. 18). 
O cenário de predomínio das codificações burguesas individualistas então começa 
então a se alterar após a Primeira Guerra Mundial. Quando já consolidada a noção de que as 
codificações civis, longe da pregada racionalidade pura e neutralidade frente a valores, eram 
antes orientadas à manutenção dos privilégios burgueses, permitindo a continuidade da 
exploração dos mais fracos e a acumulação do lucro gerado pela atividade industrial, enquanto 
seu risco era absorvido pelo proletariado. 
 
 
33 
Vai colapsando, assim, no nível político, o postulado liberal proposto por Adam Smith 
de que, a somatória da persecução egoística da satisfação de interesses individuais, dada a sua 
inquestionável racionalidade, bastaria, por si, só ao atingimento do bem-estar coletivo. 
Assim é que, enquanto as constituições liberais conferiam ao Estado basicamente o 
dever de não intervir no livre exercício de direitos individuais, o que seria suficiente para o 
atendimento das demandas sociais; em sentido contrário, as constituições que demarcam o 
Estado Social, partem do reconhecimento da insuficiência da livre persecução da satisfação de 
interesses egoísticos para a solução de conflitos distributivos, para conferir-lhe a tarefa de 
corrigir ativamente a hiper-concentração da riqueza gerada pelo sistema econômico por meio 
da positivação de direitos sociais e econômicos que envolvem a intervenção estatal em relações 
privadas, em especial as relações de trabalho, bem como que conferem direitos subjetivos 
exercíveis em face dos poderes públicos cuja efetivação não mais se satisfaz com sua abstenção, 
mas que demandam a entrega de prestações concretas. 
Como resume Sarmento, se a Constituição do Estado Liberal se caracterizava por seu 
caráter estruturante e pelo desenho da esfera de liberdade individual alheia à intervenção estatal, 
visando a manutenção do status quo, a Constituição do Estado Social prega a ação estatal 
transformadora, apontando objetivos, a serem perseguidos pelos Poderes Públicos e os meios 
concretos para tanto (2010, p. 77). 
A Constituição de Weimar de 1919, o maior marco legislativo do Estado Social do 
século XX, bem demonstra a modificação da relação entre o direito constitucional e o direito 
privado que estava ocorrendo: oferecendo proteção ao direito de propriedade, ao mesmo tempo 
em que subordinava o seu exercício cumprimento de fins de interesse coletivo social (art. 153); 
protegendo a liberdade contratual nas trocas econômicas, desde que exercida "de acordo com 
as leis" (art. 152.1); garantindo o direito à herança "de acordo com o direito civil"(art. 154.1), 
e estendendo o direito fundamental à liberdade de expressão às relações de trabalho e emprego 
público. 
Tem-se então que as normas constitucionais passaram a criar obrigações diretas para 
os cidadãos, ao mesmo tempo em que ditavam diretrizes ao legislador de direito privado, seja 
fixando garantias de institutos como a propriedade, a família e o casamento, que impediam que 
o legislador os abolisse (HESSE, 1995, p. 49; SCHMITT, 1993, p. 20 e ss. apud POLIDO, 
2006, p. 7), seja prescrevendo mandatos explícitos, como o de legislar em favor da igualdade 
dos filhos tidos fora do vínculo matrimonial (art. 121) (HESSE, 1995, p. 48-49). 
 
 
34 
Também é notável na Constituição weimariana a positivação de normas consagradoras 
de direitos como a saúde, educação e trabalho, e, como visto, de controle da ordem econômica 
capitalista por meio da função social da propriedade, além da previsão de mecanismos de 
colaboração entre trabalhadores e empregadores por meio de conselhos. Disposições que, 
visavam acomodar as demandas do proletariado no projeto burguês de sociedade. Sendo 
inclusive reconhecido o seu papel histórico no arrefecimento da revolução socialista que se 
insinuava na Alemanha (KLEIN, 1995, p. 34). 
Sem embargo, as normas de caráter social, que obrigavam a prestações de caráter 
emancipatório, não eram compreendidas como diretamente vinculantes (HESSE, 1995, p. 49). 
A doutrina que dominou que o direito constitucional ao longo de quase todo o século XX 
negava-lhe o reconhecimento de sua eficácia jurídica. Se era tema pacífico a força vinculante 
das normas clássicas (orgânicas e de não intervenção), os mandamentos constitucionais 
garantidores de direitos subjetivos típicos do Estado Social, eram vistos como meras “normas 
programáticas”, de eficácia mediata, sujeitas à interpositio legislatoris. 
A resistência ao reconhecimento de eficácia normativa às normas veiculadoras de 
direitos sociais pode ser explicada, segundo Sarmento, de um lado, pela própria resistência 
ideológica oposta pela classe dominante à mudança do status quo. Mas à ideologia se aliava a 
questão dogmática relativa à indeterminação semântica de algumas dessas normas, e ainda uma 
razão de ordem prática consistente nos condicionantes materiais à sua efetivação, dada a 
necessidade da utilização de recursos públicos para a concretização das prestações deles 
derivadas (SARMENTO, 2010, p. 77). 
Móveis que fizeram sedimentar a doutrina que dividia as normas constitucionais em 
autoaplicáveis, caso das relativas às liberdades individuais, e não autoaplicáveis, como as de 
caráter social. O que fez lançar as últimas em um verdadeiro “limbo jurídico”, na metáfora de 
Sarmento (SARMENTO, 2010, p. 76). 
Fábio Konder Comparato objeta a pertinência desses obstáculos opostos à efetivação 
de direitos sociais, afirmando que, em primeiro lugar, a indeterminação do objeto de direitos 
sociais não é maior do que a de muitos direitos individuais:: 
Qual o exato alcance, por exemplo, do direito à intimidade, declarado no art. 5º, inciso 
X, de nossa Constituição? Compreende ele, por acaso, o segredo das contas bancárias? 
Ora, não será certamente em razão de dificuldades hermenêuticas desse tipo que o 
Judiciário poderá recusar-se a dar proteção aos direitos fundamentais declarados na 
Constituição (1993, on-line). 
 
 
 
35 
Em segundo lugar, quanto à afirmação de que por decorrência haveria indevida 
intervenção do Judiciário na competência exclusiva do Executivo e do Legislativo para a 
formulação de políticas públicas, Comparato aduz que, ao determinar a efetivação de um direito 
social, o Judiciário age dentro da sua própria competência, sancionando os demais poderes por 
uma omissão inconstitucional, sendo consagrada em muitos sistemas constitucionais 
contemporâneos

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