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IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO FACULDADE IBMEC SÃO PAULO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO DIGITAL E COMPLIANCE IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE São Paulo 2020 IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO FACULDADE IBMEC SÃO PAULO IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE Tese de Especialização Área de Direito Digital e Compliance Orientador: Prof. Thiago Giovani Romero São Paulo 2020 IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO FACULDADE IBMEC SÃO PAULO IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE Monografia apresentada ao Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC São Paulo, como exigência parcial para aprovação no Curso de Pós-Graduação lato sensu – Especialização em Direito Digital e Compliance, sob a orientação do Prof. Thiago Giovani Romero São Paulo, ___de______________de______. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________ São Paulo 2020 RESUMO As redes sociais estabeleceram um novo padrão de comunicação social modificando estruturalmente o locus onde a sociedade civil forma suas opiniões. Em especial, as redes sociais de streaming como o YouTube, por seu alcance e gratuidade, têm se demonstrado decisivas em eleições nas maiores democracias do mundo. A falta de controle deste seu poder de influência é preocupante, pois lhes possibilita manipular o debate público por meio da censura (velada) do conteúdo nela veiculado. Como forma de contenção de sua arbitrariedade, indaga-se da aplicabilidade do direito fundamental ao devido processo legal na relação jurídica entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. As questões principais tratadas são: se há vinculação das redes sociais de streaming ao devido processo legal nas hipóteses de exclusão de postagens e suspensão de usuários; qual é a conformação exata do conteúdo desse direito fundamental nessa relação privada; e se o Judiciário pode anular as decisões das redes sociais quando esse direito for desrespeitado. Opõem-se à sua vinculação ao devido processo legal: a liberdade contratual das redes sociais e a noção histórica de que os direitos fundamentais servem de barreira contra a intervenção estatal em negócios privados, e não como seu arrimo. A busca pela resposta começa pela demonstração das bases conceituais da aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações privadas e as teorias a respeito do tema, inclusive aquela adotada majoritariamente no Brasil. Em seguida, investiga-se o direito fundamental ao devido processo legal, suas duas dimensões, e seus efeitos específicos em relações privadas. Após serem fixadas as premissas teóricas da vinculação das redes sociais de streaming ao devido processo legal, passa-se à averiguação da intensidade de sua proteção na relação entre criadores de conteúdo e o YouTube. Discutem-se quais características dessa relação jurídica em especial fazem tender o conflito entre o devido processo legal e a autonomia privada a uma preferência pela tutela das garantias processuais dos criadores de conteúdo, em detrimento da liberdade do YouTube de censurar livremente o conteúdo veiculado em sua plataforma. Os Termos de Serviço, as Diretrizes da Comunidade e as Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade do YouTube são entendidos como cláusulas de um contrato, sendo a obrigação de respeito ao devido processo legal concebida a partir de sua interpretação conforme a Constituição, as regras e cláusulas gerais do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e do Marco Civil da Internet. Analisa-se então a possibilidade de controle judicial formal e material das decisões das redes sociais. Por fim, formulam-se recomendações às redes sociais de streaming relativas ao devido processo legal com o fim de evitar a revisão de suas decisões pelo Judiciário. PALAVRAS-CHAVE: direito digital; eficácia horizontal dos direitos fundamentais; devido processo legal; redes sociais; compliance. ABSTRACT Social networks have established a new standard of social communication, structurally modifying the “locus” where civil society forms its opinions. In particular, social networks based on streaming such as YouTube, due to their reach and gratuity, have proved decisive in elections in the largest democracies in the world. The lack of control of this power of influence is a matter of concern, as it allows them to manipulate the public debate through the (veiled) censorship of the content published in it. As a way of containing its arbitrariness, it is questioned the applicability of the “due process clause” in the legal relationship between content creators and streaming social networks. The main issues dealt with are: whether streaming social networks are legally bound to the “due process clause” in cases of deletion of posts and suspension of users; what is the exact conformation of this fundamental right in this private relationship; and whether the Judiciary can override social media decisions when this right is disrespected. The obstacles to this legal bond between the social networks and the “due process clause”: the contractual freedom and the historical notion that fundamental rights serve as a barrier against state intervention in private businesses, and not as their support. The search for an answer begins with the demonstration of the conceptual bases of the applicability of fundamental rights to private relations and the theories on the subject, including the one mostly adopted in Brazil. Then, the two dimensions of due process and its specific effects on private relations are investigated. After stablishing the theoretical premises of considering the due process clause legally binding to social networks, it proceeds to research the intensity of its effects in the relationship between content creators and YouTube. It discusses which characteristics of this legal relationship in particular make the need to protect the content creators from arbitrariness stronger than YouTube’s autonomy to freely censor the content broadcasted on its platform. The YouTube’s Terms of Service, Community Guidelines and Advertising Policy are viewed are clauses in a contract, and the obligation to respect due legal process is conceived from its interpretation in accordance with the Constitution, the general rules and clauses of the Brazilian Civil Code, the Brazil Code of Consumer’s Protection and the Civil Framework of the Internet. It then analyzes the possibility of formal and material judicial review of the social network decisions. Finally, recommendations are made to social networks based on streaming regarding due legal process in order to avoid the review of its decisions by the Courts. KEYWORDS: digital law; horizontal effects of fundamental rights; due process clause; social networks; content creators; compliance. LISTA DE ABREVIATURAS PRINCIPAIS A) FONTES JURÍDICAS BGB = Bürgerlischesgesetzbuch (Código Civil Alemão) CC = Código Civil de 2002 CDA= Communications Decency Act CDC =Código de Defesa do Consumidor CF = Constituição Federal de 1988 CPC = Código de Processo Civil de 2015 CPC/73 = Código de Processo Civil de 1973 GG = Grundgesetz (Lei Fundamental de Bonn) LINDB = Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro NetzdDG = Netzwerkdurchsetzungsgesetz RE = Recurso Extraordinário REsp = Recurso Especial B) TRIBUNAIS BVerfGE = Bundesverfassungsgericht BVerfGG = Bundesverfassungsgerichtsgesetz BAG = Bundesarbeitsgericht LG = Landgericht OLG = Oberlandesgericht STF = Supremo Tribunal Federal STJ = Superior Tribunal de Justiça SCOTUS = Supreme Court of the United States TJ = Tribunal de Justiça TRF = Tribunal Regional Federal SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE “STREAMING”: PODER DE INFLUÊNCIA E CONTROLE DE CONTEÚDO ............................................................................................ 14 1.1. Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião pública 14 1.2. O que é “streaming”? .................................................................................. 21 1.3. O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo ....................... 22 1.4. Os criadores de conteúdo ............................................................................ 24 CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO COMO NORMA JURÍDICA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ....................................... 26 2.1. Considerações introdutórias ....................................................................... 26 2.2. A Constituição como norma jurídica .......................................................... 27 2.3. A chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais .......................... 37 2.4. O direito civil constitucional ...................................................................... 43 2.5. Notas conclusivas ....................................................................................... 49 CAPÍTULO 3 – TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ................................................................................................................. 51 3.1. Introdução ................................................................................................... 51 3.2. Teoria negativa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: a doutrina da “state action”. Jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. A crítica de Chemerinsky ................................................................................................................... 52 3.3. Teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais. A concepção de Dürig. O Caso Lüth como marco da jurisprudência do “Bundesverfassungsgericht” ................................................................................................ 60 3.4. Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl Nipperdey e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental ............ 65 3.5. Outras teorias alemãs. Canaris, Alexy e Schwabe ...................................... 70 3.6. Considerações finais ................................................................................... 73 CAPÍTULO 4 – EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS CONFORME A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA DO BRASIL ............................ 74 4.1. Notas introdutórias ..................................................................................... 74 4.2. Daniel Sarmento ......................................................................................... 75 4.2.1. Vinculação direta dos particulares a direito fundamentais conforme a Constituição Federal de 1988 ............................................................................................... 75 4.2.2. “Standards” para a incidência dos direitos fundamentais em relações privadas no contexto brasileiro ............................................................................................ 79 4.3. Wilson Steinmetz ........................................................................................ 83 4.3.1. Modelo intermediário de aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações privadas....................... ......................................................................................................... 84 4.3.2. Regra da proporcionalidade ...................................................................... 86 4.4. Virgílio Afonso da Silva ............................................................................. 88 4.4.1. Fundamentos da vinculação de particulares a direitos fundamentais e possibilidade de aplicação direta das normas constitucionais ............................................. 89 4.4.2. O “modelo diferenciado” de Virgílio Afonso da Silva ............................. 92 4.4.2.1. Compreensão dos direitos fundamentais como princípios e direito à proteção.................................................................................................................................93 4.4.2.2. Mediação legislativa e efeitos indiretos como regra em sua realização 93 4.4.2.3. Aplicabilidade direta e necessidade de preservação da autonomia privada: recurso ao conceito de “princípios formais” ........................................................................ 94 4.4.2.4. Tensão entre princípios formais e princípios materiais: perspectiva a partir do conceito alexyano de “competência” .............................................................................. 95 4.4.2.5. Resolução da tensão entre autonomia privada e direitos fundamentais . 96 4.4.2.5.1. Impossibilidade de sopesamento entre princípios formais e materiais 96 4.4.2.5.2. Inadequação da regra da proporcionalidade para a solução de colisões entre princípios no âmbito privado ...................................................................................... 97 4.4.2.5.3. Critérios possíveis para a valoração da autonomia privada ................ 99 4.5. Posição da jurisprudência brasileira ......................................................... 100 CAPÍTULO 5 – DEVIDO PROCESSO LEGAL: CONCEITO E APLICABILIDADE A RELAÇÕES PRIVADAS .................................................................................................... 109 5.1. Considerações introdutórias ..................................................................... 109 5.2. Origem histórica do devido processo legal ............................................... 110 5.3. Conteúdo jurídico ..................................................................................... 115 5.4. Dimensões: devido processo legal formal e substantivo .......................... 118 5.5. O direito fundamental ao devido processo legal nas relações entre particulares no direito brasileiro ........................................................................................ 124 5.6. Conclusões possíveis ................................................................................ 137 CAPÍTULO 6 – APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE CRIADORES DE CONTEÚDO E REDES SOCIAIS DE “STREAMING”: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE ........................................................................................ 138 6.1. Premissas aceitas ...................................................................................... 138 6.2. Natureza jurídica da relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de “streaming”. O contrato de adesão com o YouTube e seu regime jurídico .......................145 6.3. Características da estrutura da relação jurídica entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. Aplicação dos critérios para a valoração da autonomia da vontade............. .................................................................................................................. 150 6.3.1. Assimetria entre as partes e seu reflexo na sinceridade da manifestação da vontade do criador de conteúdo ......................................................................................... 151 6.3.1.1. Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos Estados Unidos................................................................................................................... 155 6.3.1.2. Modo e circunstâncias da oferta. Aplicação das razões de decidir do caso “Stadionverbot” julgado pelo “Bundesverfassungsgericht” à relação jurídica entre redes sociais e seus usuários ........................................................................................................ 159 6.3.2. Concorrência da vontade do criador de conteúdo na restrição a direito fundamental........ ................................................................................................................ 162 6.3.3. Essencialidade dos bens jurídicos envolvidos ........................................ 163 6.4. Interpretação do contrato conforme o devido processo legal ................... 165 6.4.1. Regras, princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados relativos a contratos de adesão. Interpretação dos Termos de Serviço, Diretrizes da Comunidade e Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade do YouTube conforme o devido processo legal .................................................................................................................................... 165 6.4.2. Os deveres do YouTube .......................................................................... 167 6.4.2.1. Comunicação da sanção, motivação e oportunização de defesa .......... 167 6.4.2.2. Transparência na definição do conteúdo vedado pela rede social ....... 176 6.4.2.3. (Des)necessidade de consideração de todos os argumentos da defesa 181 6.4.2.4. Possibilidade de contraditório “ex post” .............................................. 182 6.4.2.5. Duração razoável do processo .............................................................. 182 6.4.2.6. “Non reformatio in pejus”. (Im)possibilidade de piora da situação do criador de conteúdo que contesta a punição ...................................................................... 184 6.4.2.7. Alterações contratuais e seus efeitos no tempo. Punição por conteúdo anteriormente aceito......................................................................................................... .. 185 6.4.2.8. Juiz natural. (Des)necessidade de revisão da punição por um ser humano................................................................................................................................ 186 6.4.2.9. Publicidade dos julgamentos ................................................................ 190 6.4.2.10. Duplo grau de jurisdição .................................................................... 191 6.5. Controle judicial: formal e material. Efeitos horizontais de direitos fundamentais como paradigma de controle material. Precedentes da jurisprudência da Alemanha......... .................................................................................................................. 195 6.6. Medidas de “compliance” recomendadas às redes sociais de “streaming” para evitar a anulação de suas decisões ............................................................................. 201 SÍNTESE CONCLUSIVA ................................................................................................... 203 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 207 11 INTRODUÇÃO As redes sociais de streaming como o YouTube e a Twitch evoluíram muito rapidamente em termos de alcance e popularidade. Elas estão tomando o lugar das mídias tradicionais como o rádio, os jornais impressos e a televisão, e ninguém mais duvida da sua capacidade de influenciar a opinião pública. O conteúdo que elas transmitem já dita tendências, não só de consumo, mas também políticas. Ninguém mais pode ignorá-las. Empresas, candidatos às eleições, músicos, adolescentes que sonham em se tornar celebridades, todos a disputar acirradamente as visualizações e as curtidas de seus milhões de usuários diários. A sua popularização também fez surgir profissões e modelos de negócio que não existiriam sem elas. Não é mais surpresa um pai ouvir do filho que o seu sonho é se tornar youtuber. Diariamente profissionais insatisfeitos abandonam empregos tradicionais para tentar a sorte como streamers. Empresas especializadas prestam consultoria para quem quer lucrar mais com o conteúdo digital que produz e divulga nas redes sociais. Essa rápida ascensão cria novos desafios em matéria de proteção de direitos fundamentais, pois o poder concentrado por essas redes sociais as habilita a interferir em questões fundamentais da vida em sociedade, como: quem vencerá as eleições; qual será a narrativa política dominante no país; quais visões de mundo merecem ser compartilhadas; quem poderá exercer certas atividades econômicas; e quem terá direito a ter seus erros apagados da memória coletiva. Há ameaça, portanto, à liberdade de expressão, aos direitos políticos, aos direitos da personalidade e à livre iniciativa. Toda concentração de poder clama por controle, do que são instrumento os direitos fundamentais. Esta é a visão contemporânea dos direitos fundamentais que prevalece no sistema romano-germânico: eles servem ao combate da opressão, independentemente de quem seja o sujeito opressor. Pode ser o Estado, outros cidadãos, ou até mesmo empresas. Dentre todos, o devido processo legal é o direito fundamental mais especialmente dedicado à racionalização, legitimação e controle social dos atos de poder. Indaga-se, assim, se as redes sociais de streaming, pelo poder quem concentram, estariam vinculadas ao direito fundamental do devido processo legal quando atuam censurando criadores de conteúdo que 12 atuam em suas plataformas, e qual a sua exata intensidade. As suas decisões devem ser motivadas? Deve ser oportunizada defesa ao usuário afetado? Em quanto tempo a defesa deve ser julgada? A defesa deve ser julgada por um ser humano? Essas são algumas das questões para as quais aqui se busca uma resposta. O primeiro capítulo explora com mais detalhes o contexto histórico atual e a posição de poder que nele ocupam as redes sociais de streaming, em especial o YouTube, que é a maior de todas elas. A partir do segundo capítulo, inicia-se a exposição das bases conceituais que permitiram a superação da ideia historicamente arraigada na doutrina e na jurisprudência de que os direitos fundamentais vinculariam somente o Estado. Seguindo essa linha, o terceiro capítulo explora as diferentes teorias a respeito da eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, em especial as três principais: a teoria negativa da state action e as teorias da eficácia mediata e imediata, desenvolvidas principalmente na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. A pesquisa utiliza os termos eficácia e aplicabilidade indistintamente, em que pese a relevância da distinção conceitual apontada por parte da doutrina. O quarto capítulo é uma continuação direta do terceiro e apresenta qual dessas teorias a respeito da eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas foi adotada em nosso país. No âmbito doutrinário, debruça-se sobre as obras de Daniel Sarmento, Wilson Steinmetz e Virgílio Afonso da Silva; na jurisprudência, destaca-se a jurisprudênciado Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. O quinto e penúltimo capítulo é especialmente dedicado ao direito fundamental ao devido processo legal, cuja oponibilidade às redes sociais de streaming é o cerne da investigação. Aborda-se a sua origem histórica, suas dimensões e o reconhecimento de sua aplicabilidade a relações privadas pela doutrina e pela jurisprudência do Brasil. O último capítulo expõe as premissas aceitas após a investigação, para o fim de enfrentar a questão principal do trabalho: a aplicabilidade do direito fundamental ao devido processo legal à relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. A partir da definição da natureza dessa relação jurídica e de seus caracteres o norte do capítulo passa a ser a interpretação do contrato do YouTube conforme o direito fundamental ao devido processo legal. Discute-se quais deveres relativos ao devido processo legal dele podem ser extraídos, tais como o dever de comunicar e motivar punições, o dever de oportunizar o contraditório, a 13 vedação à reformatio in pejus, etc. Ao final, arrolam-se medidas de compliance que as redes sociais de streaming poderiam adotar para o fim de evitar a revisão judicial de suas decisões. A síntese conclusiva dedica-se a compilar de modo resumido as principais conclusões do trabalho, sem pretensão de substituir a sua leitura integral. 14 CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE “STREAMING”: PODER DE INFLUÊNCIA E CONTROLE DE CONTEÚDO 1.1. Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião pública As redes sociais estão substituindo a televisão e o rádio como principal meio de acesso à informação pela população (NETTO, 2019, on-line; THOMPSON, 2012, on-line). É inegável o impacto social desta troca. Os veículos tradicionais de comunicação em massa, que até então reinavam como influenciadores da opinião pública, estão perdendo o controle da narrativa política e, com isso, sua capacidade de conduzir as escolhas populares. Embora ainda se discuta o quão decisivas as redes sociais têm sido para a determinação do rumo político dos países, a sua capacidade de influência é consenso. Estudos sugerem que publicações nas redes sociais, inclusive de notícias falsas, tiveram grande influência grande na eleição de Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos (MARS, 2018, on-line), em especial pelo grande barulho provocado nas redes por seus apoiadores mais fanáticos. Uma minoria que se fez maioria no ambiente virtual. Segundo reportagem do El País, grupos de extrema direita, que representavam apenas 11% dos seguidores do então candidato, foram responsáveis por cerca de 60% dos retweets de suas publicações durante o período eleitoral. Tendência que se seguiu em outros países, como na campanha do Brexit, nas eleições da Alemanha e França, dentre outros exemplos (GOLDZWEIG, 2018, on-line). No Brasil, a situação não é diferente. A campanha eleitoral televisiva perdeu seu caráter decisivo, o que até então era impensável1. É bem provável que sem as redes sociais de streaming2 que, como o YouTube, que permitem gratuitamente a transmissão de conteúdo a ampla audiência e por tempo ilimitado, o resultado das eleições brasileiras de 2018 teria sido muito diverso (BRODERICK, 2019, on-line; GHEDIN, 2019, on-line). As redes sociais são centrais para partidos pequenos alcançarem um grande público, mesmo que com poucos 1 Sobre a perda de relevância da televisão, confira-se o infográfico "O poder do tempo de TV", que demonstra a mudança de paradigma na propaganda eleitoral no Brasil em: O PODER do tempo de TV. O Tempo. Belo Horizonte, on-line. 01 out. 2018. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/infograficos/o-poder-do-tempo- de-tv-1.2038397>. Acesso em: 10 jan. 2020. 2 Sobre streaming, confira o tópico 1.2. 15 recursos e pouco tempo de campanha na televisão (MIRANDA, 2018, on-line). Não à toa, o sucesso do candidato Jair Bolsonaro é, em parte, atribuído a seu alcance nas mídias sociais (EL PAÍS, 2018, on-line). Mas não só Bolsonaro confiou no poder das redes sociais para se eleger3. Muitos membros do Poder Legislativo eleitos naquele pleito iniciaram suas carreiras no YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição, como é o caso do deputado estadual por São Paulo Arthur “Mamãe falei” do Val e dos deputados federais Joice Hasselmann e Luis Miranda. Após a eleição, as redes sociais passaram a ser canal oficial de comunicação do governo e dos parlamentares. Inclusive, o Presidente da República Jair Bolsonaro utiliza-se de livestreaming fazendo transmissões semanais em seu canal no YouTube e no Facebook. Além de ele utilizar frequentemente sua conta no Twitter, por meio da qual inclusive divulgou alguns criadores de conteúdo do YouTube como fonte de informação confiável (FILHO, 2018, on- line). Bem por isso, é certo que as redes sociais hoje detêm considerável perspectiva de direcionar o debate político. De uma parte, pela promoção de certo tipo de conteúdo. O YouTube, por exemplo, tem sido acusado de promover o negacionismo climático por meio da recomendação, por seu algoritmo, de conteúdo "tóxico", além de permitir que youtubers negacionistas lucrem na plataforma por meio da inserção de publicidade em seus vídeos (PLANELLES, 2020, on-line). De outra parte, as redes sociais podem exercer sua influência por meio da censura. O YouTube é acusado de censurar manifestações políticas dos mais variados espectros políticos (REVISTA FÓRUM, 2019, on-line; HARRISON, 2019, on-line). É claro que tanto poder de fogo despertou a preocupação das instituições. Na verdade, há décadas os governos têm se preocupado com o controle do que é postado na internet, sendo que a explosão de possibilidades de criação e compartilhamento de conteúdo gerado por 3 Em uma pesquisa recente realizada pela Câmara e pelo Senado 45% dos entrevistados afirmou ter decidido o seu voto em período de eleições levando em consideração informações vistas em alguma rede social. As redes sociais mais citadas como fonte dessa decisão eleitoral foram o Facebook (31%) e o Whatsapp (29%), seguidos do YouTube (26%), do Instagram (19%) e do Twitter (10%). Ademais, para 83% dos entrevistados, o conteúdo das redes sociais influencia muito a opinião das pessoas. Outros meios indicados como os mais utilizados como fonte de informação foram: a televisão (50% sempre e 36% às vezes), o YouTube (49% sempre e 39% às vezes) e o Facebook (44% sempre e 35% às vezes). Só depois disso vieram os sites de notícias, que “sempre são consultados” por 38% dos entrevistados e são “consultados às vezes” por 46% desse pessoal. Os percentuais de consulta à rádio (22% e 40%) e ao jornal impresso (8% e 31%) foram ainda menores, abaixo até que o do Instagram (30% e 30%) (BARBOSA, 2019, on-line). 16 terceiros que as redes sociais geraram só fez aumentar a pressão sobre os provedores para que fiscalizem o que circula nas suas plataformas. As preocupações principais que – em tese – impulsionam os Estados nessa busca por controle do que é postado nas redes sociais são: a divulgação de ideias extremistas, a propagação de notícias falsas (fake news4) e os danos causados a direitos autorais e direitos da personalidade. Um dos esforços legislativos mais incisivos nesse sentido foi a aprovação na Alemanha em junho de 2017 da Netzwerkdurchsetzungsgesetz (algo como "lei para o reforço da aplicação do direito nas redes"), que obriga redes sociais a: ● disponibilizar aos usuários um processo permanente, facilmente reconhecível e diretamente acessível para denúncia de conteúdo ilícito; ● tomar nota e imediatamente checar o conteúdo das denúncias, determinando se o conteúdo tem relevância penal; ● remover ou bloquear o acesso a conteúdo "manifestamente criminoso" dentrode vinte e quatro horas após o recebimento da denúncia; ● remover ou bloquear o acesso a conteúdo não "manifestamente criminoso" em até sete dias desde a reclamação. O prazo pode ser superado se a decisão depender da falsidade de uma alegação de fato ou é claramente dependente de outras circunstâncias de fato, casos em que a rede social pode oportunizar ao usuário a oportunidade de se defender antes da decisão. Ou ainda, se a rede social decidir entregar o poder de decidir a uma instituição de autorregulação, desde que admita aceitar a sua decisão. A instituição escolhida deve então decidir se o conteúdo é ilícito dentro de sete dias. ● informar os usuários de todas as decisões tomadas e prover motivação (BUNDESMINISTERIUMS DER JUSTIZ UND FÜR VERBRAUCHERSCHUTZ, [2018?], on-line). 4 Justamente visando combater as fake news em período eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a Resolução TSE nº 23.610/2019, com dispositivo voltado especificamente ao combate do que a Corte chama de “desinformação na propaganda eleitoral”. Confira-se: “Art. 9º A utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que o candidato, o partido ou a coligação tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação, sujeitando-se os responsáveis ao disposto no art. 58 da Lei nº 9.504/1997, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”. 17 Outrossim, os provedores de redes sociais são obrigados a elaborar relatórios bienais a respeito da gestão das denúncias de conteúdo criminoso. Os relatórios devem conter informações a respeito do volume de denúncias, das práticas decisórias e das equipes responsáveis por processar as denúncias. Esses relatórios devem ser publicados na internet. A lei também permite que qualquer pessoa que tenha tido os seus direitos da personalidade violados por crimes cometidos nas redes sociais poderá requerer aos seus provedores que forneçam informações sobre quem os praticou. Todavia, a entrega destas informações é condicionada a reserva de jurisdição. A NetzDG tem sido objeto de críticas, justamente por obrigar a própria rede social a decidir sobre o caráter criminoso de um conteúdo, transferindo-lhe competência antes privativa dos tribunais, constituindo uma espécie de censura prévia privada que ofende a Constituição (MÜLLER-FRANKEN, p. 1-14 apud CUEVA, [2018], p. 88). A lei configuraria, assim, uma forma de terceirização/delegação inconstitucional de atividade típica do Estado, a quem incumbe o monopólio da repressão de ilícitos. (Cf. CUEVA, [2018], p. 88). O fato é que, no afã de controlar o discurso de ódio, o Parlamento alemão acabou conferindo maior poder de censura às redes sociais, que agora passa a ser praticada com base em um poder conferido pela lei e não necessariamente pelos seus termos de uso. Quer dizer, a rede social opera como longa manus do Estado no controle do conteúdo postado. Trilha o mesmo caminho a Diretriz de Direitos Autorais da União Europeia aprovada pelo Parlamento Europeu em março de 2019, que responsabiliza por violações a direitos autorais os prestadores de serviços da sociedade da informação, dentre os quais as redes sociais de streaming como o YouTube e a Twitch5, que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e outros materiais protegidos upados pelos seus utilizadores, delas exigindo a implementação de tecnologias preventivas que possam reconhecer automaticamente o conteúdo armazenado reputado violador de direitos autorais, os chamados “filtros de upload”. 5A Twitch (também chamada de Twittch.tv) é a maior plataforma de livestreaming existente atualmente. Embora oferte diversas espécies de conteúdo, seu principal foco é a transmissão ao vivo de jogos de videogame e competições de esporte eletrônico (e-sports). Seus números também impressionam. Seus espectadores assistiram a 9,3 bilhões de horas de conteúdo em 2018 (VENTUREBEAT, 2019, on-line). Juntos, seus usuários ativos diariamente somam 15 milhões (INFLUENCER MARKETING HUB, 2019, on-line). Em 2014, a Twitch foi comprada pela Amazon por 970 milhões de dólares. 18 Quer dizer, não só elas devem decidir sozinhas sobre violações a direitos autorais, como também de modo genérico e automatizado. Segundo Susan Wojcicki, presidente do YouTube, seus algoritmos ainda não são capazes de distinguir entre paródias e memes, que são usos permitidos de propriedade autoral e o que a legislação visa excluir, de modo que há sério risco de dano à liberdade de expressão na internet (HALE, 2019, on-line). Vejamos o art. 13 dessa diretriz, nesse exato sentido: Artigo 13 Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e outro material protegido carregados pelos seus utilizadores 1.Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos, adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido. 2.Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços a que se refere o n. º 1 estabelecem mecanismos de reclamação e recurso para os utilizadores, em caso de litígio sobre a aplicação das medidas previstas no n. º 1. 3.Os Estados-Membros devem favorecer, sempre que adequado, a cooperação entre os prestadores de serviços da sociedade da informação e os titulares de direitos através de diálogos entre as partes interessadas com vista a definir melhores práticas, tais como tecnologias adequadas e proporcionadas de reconhecimento de conteúdos, tendo em conta, entre outros, a natureza dos serviços, a disponibilidade das tecnologias e a sua eficácia à luz da evolução tecnológica. Também nos Estados Unidos a lei confere diretamente poder de censurar conteúdo às redes sociais. A Communications Decency Act, uma lei criada em 1996 para controlar a pornografia digital, garante aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado como “lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing or otherwise objectionable”, esteja ou não o conteúdo protegido pela Constituição6. O legislador brasileiro parece ter andado melhor, pois não conferiu expressamente nenhum poder do gênero aos provedores. Pelo contrário, no expresso intuito de proteger a 6 Confira no tópico 6.3.1.1 a discussão existente nos Estados Unidos a respeito da caracterização da censura praticada pelas redes sociais com base na CDA como state action para fins de definir a sua vinculação a direitos fundamentais. 19 liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet restringiu a sua responsabilidade pelo conteúdo postado por terceiros à hipótese de omissão na sua remoção após ordem judicial específica que aponte o conteúdo infringente; de modo que a qualificação do conteúdo como ilícito segue reservadaJudiciário (arts. 18 e 19 do Marco Civil da Internet). Prevê ainda o §2º do art. 19 que a responsabilidade dos provedores por infrações a direitos de autor ou conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. A censura promovida autonomamente por redes sociais é levada a sério no Brasil tendo motivado a abertura pelo Ministério Público Federal dos procedimentos preparatórios nº 1.18.000.001850/2018– 72 e 1.18.000.002245/2018-19, bem como do inquérito civil público n° 1.18.000.002758/2017-49, que trataram de ações ou omissões ilícitas no controle de conteúdo postado, suspeitas de terem sido discriminatórias, por motivação de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas. As investigações culminaram com oferecimento de representação à Procuradoria Geral da República em desfavor do Facebook, Whatsapp, Twitter e YouTube (Ofício nº. 4264/MPF/PRGO/3ºONTC), onde se afirma que: Admitir-se que provedores de aplicações de internet, nacionais ou estrangeiros, proprietários de redes sociais, por ato próprio, possam cometer algum tipo de restrição de alcance, censura, bloqueio de acesso e banimento etc., contra usuários brasileiros em geral, e, principalmente, a candidatos, partidos, coligações, seus apoiadores e cidadãos, em decorrência de comunicação de natureza política, durante a disputa eleitoral, significa: violentar a soberania nacional, a cidadania brasileira, o pluralismo político; vilipendiar as liberdades humanas de manifestação de pensamento, ideias e informações; degradar sobremaneira o Estado Democrático de Direito. (BRASIL 2018, p. 13) Com efeito, se sem o recurso a estas plataformas os atores políticos não obtêm o mesmo alcance e, por conseguinte a mesma capacidade de influência sobre os discursos circulantes na esfera pública, torna-se possível afirmar que a capacidade de as acessar torna-se um sustentáculo da própria liberdade de expressão e da liberdade de participação política na dimensão que assumem neste contexto histórico. Ainda mais considerando que o mercado dos provedores de aplicações, dentre os quais se incluem as redes sociais de streaming, tende à formação de monopólios (Cf. SARTOR, 2017). Afinal, quais sites de streaming de vídeos fazem frente ao YouTube? Que alternativa restaria ao usuário que tem sua conta suspensa por tempo indeterminado nesta plataforma para continuar seu trabalho? 20 Sem embargo, também o exercício do direito fundamental à livre iniciativa em sua eficácia plena vê-se ameaçado pela atuação cesarista das redes sociais de streaming. Youtuber e streamer são termos que hoje nomeiam profissões. Há um sem número de pessoas dependentes economicamente de sua popularidade nestas plataformas que poderiam ser imensamente lesadas por uma punição injusta. Também não podem ser ignorados os impactos concorrenciais decorrentes de uma decisão do YouTube de impedir a veiculação de conteúdo de uma determinada empresa. Perante os seus concorrentes o seu alcance seria significativamente menor. Considerando, portanto, essa relevante função política e econômica que as redes sociais têm exercido na democracias contemporâneas, que deriva do fato de serem um meio de divulgação e controle de ideias sem precedentes em termos de eficiência, aliada à sua capacidade de inviabilizar o exercício de direitos fundamentais em sua dimensão atual de eficácia, é importante discutir se elas não estariam sujeitas a obrigações distintas das dos demais atores privados no que toca à garantia das liberdades constitucionais. Em especial, se seriam obrigadas a observar o devido processo legal quando removem conteúdo postado ou suspendem seus usuários, como limitante da arbitrariedade no exercício do poder. Por isso o objetivo principal desta pesquisa é definir se o direito fundamental ao devido processo legal é invocável em sua eficácia horizontal na relação privada entre os criadores de conteúdo e as redes sociais de streaming onde eles publicam seus vídeos fazem as suas transmissões. Indaga-se dos desafios que a aplicação de um direito fundamental entre particulares pressupõe, em especial a sua justificativa e a configuração de seu conteúdo, visto terem sido originalmente concebidos para limitar o poder do Estado. Concluindo-se pela oponibilidade do direito fundamental ao devido processo legal nesta relação privada, pretende-se delinear o conteúdo mínimo deste direito, mais especificamente em sua dimensão processual; mas a dimensão substancial será tratada na medida do necessário. Questiona-se, assim, se os criadores de conteúdos poderiam exigir das redes sociais de streaming, inclusive pela via judicial: a definição clara e transparente em seus Termos de Serviço e/ou Diretrizes da Comunidade das condutas passíveis de intervenção pela plataforma, em especial a remoção de conteúdo e a suspensão e o banimento de usuários; a motivação das punições; o respeito ao contraditório prévio ou posterior; a observância do postulado da proporcionalidade; dentre outras garantias relativas ao devido processo legal. 21 A análise terá por pano de fundo a interpretação conforme a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional pertinente dos Termos de Serviço, das Diretrizes da Comunidade e das Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade do YouTube, que hoje é a maior rede social de streaming do mundo. Ao final, pretende-se arrolar medidas de compliance que as redes sociais de streaming poderiam adotar para evitar a anulação de suas sanções e o eventual pagamento de indenizações por danos materiais e morais. Para uma melhor compreensão do tema convém explicar brevemente o contexto fático em que se dá a relação jurídica discutida, entre os criadores de conteúdo e as plataformas de streaming. 1.2. O que é “streaming”? Duas são as formas conhecidas de se baixar conteúdo da internet: por download progressivo ou por streaming. Download progressivo (progressive download) é a tecnologia tradicional para baixar conteúdo da internet, presente desde os primórdios da rede. Neste método, após o usuário dar o comando de download ao servidor onde estão hospedados os arquivos que deseja acessar, estes vão sendo transmitidos gradualmente para o seu dispositivo, sendo que somente poderão ser acessados após o término do download (COSTELLO, 2019, on-line). Os apps que utilizamos em nossos celulares, como o Facebook e o Whatsapp, são baixados por download progressivo. Não é possível abrir e usar o app do Whatsapp antes que ele tenha sido completamente baixado para o dispositivo. Por sua vez, streaming é uma tecnologia mais moderna utilizada para a transmissão de dados via internet – em especial, som e imagem –, por meio de um fluxo estável e contínuo, que permite ao usuário acessar o conteúdo que deseja quase que imediatamente, sem que antes seja necessário o seu download integral (COSTELLO, 2019, on-line). Ao contrário do que ocorre com o download progressivo, por streaming os arquivos são baixados ao mesmo tempo em que são executados, de modo que o usuário pode assistir ao 22 vídeo ou escutar à música que deseja sem precisar esperar o conteúdo ser totalmente transferido para o seu dispositivo (NETSHOW, 2017, on-line). Streaming é a tecnologia utilizada por YouTube, Netflix, Spotify e Deezer para ofertar vídeos, música e publicidade. Ao clicarmos em um vídeo no YouTube a transmissão se inicia imediatamente. Conforme o vídeo avança os dados vão sendo baixados pouco a pouco, ao mesmo tempo em que são transmitidos na tela. Não é necessário que o vídeo inteiro seja baixado para o nosso dispositivo. Quando fechamos o vídeo, ele some de nosso aparelho. Um novo acesso ao conteúdo somente é possível abrindo novamente o link a partir do qual ele é streamado. Já livestreaming é o uso destreaming especificamente para a transmissão de conteúdo em tempo real (COSTELLO, 2019, on-line). Em livestreaming os dados são transmitidos em tempo real aos dispositivos conectados e somente são acessíveis no momento em que transmitidos. Se o usuário deixa de acompanhar uma transmissão, ou se o seu dispositivo se desconecta da internet enquanto ele está assistindo, não é possível acessar o conteúdo perdido, salvo se uma gravação for disponibilizada mais tarde (NETSHOW, 2017, on-line). Não é como assistir a um vídeo no YouTube, onde podemos acelerar o vídeo, avançar ou retroceder. Livestreaming é como assistir TV ao vivo, mas com mais maior possibilidade de interação. 1.3. O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo O YouTube é atualmente a maior rede social de streaming do mundo. Para se ter uma ideia de sua grandeza, o YouTube possui 1,9 bilhão de usuários (STATISTA, 2019, on-line). Todos os dias estes usuários assistem juntos a 1 bilhão de horas de vídeos (YOUTUBE, 2019e, on-line). Cerca de 500 horas de vídeo são upadas para o YouTube a cada minuto no mundo (TUBEFILTER, 2019, on-line). No YouTube os vídeos são postados dentro de canais exclusivos criados por cada usuário. Nestes canais, salvo anúncios de publicidade, o usuário tem controle sobre o conteúdo transmitido. Ele pode postar conteúdo próprio, ou de terceiros, desde que por eles autorizado. 23 Qualquer pessoa pode criar o seu próprio canal no YouTube e começar a postar/transmitir seu conteúdo. Bastam um dispositivo com acesso à Internet e a criação de uma conta na rede social. A criação da conta prescinde da identificação do usuário, que, inclusive pode criar contas e canais diversos, sob diferentes nomes. Há um favorecimento do anonimato. Igualmente, os vídeos postados no YouTube podem ser acompanhados por qualquer pessoa, mesmo que sequer possua uma conta nas plataformas. Mas a liberdade dos criadores de conteúdo não é absoluta. Para utilizar a plataforma disponibilizada pelo YouTube, os usuários devem aderir obrigatoriamente aos Termos de Serviço, às Diretrizes da Comunidade, e à Política de Privacidade e de Direitos Autorais formulados pela rede social. Para ganhar dinheiro com anúncios deve também respeitar as Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade. Conforme as Diretrizes da Comunidade do YouTube são vedados vídeos que contenham: nudez ou conteúdo pornográfico ou sexualmente explícito; conteúdo prejudicial ou perigoso; conteúdo de incitação ao ódio; conteúdo explícito ou violento; assédio e bullying virtual; spam, metadados enganosos e golpes; ameaças; desrespeito a direitos autorais; violação de privacidade; falsificação de identidade; conteúdo que coloque o bem-estar emocional ou físico de menores em risco. O seu desrespeito levar à remoção do conteúdo postado (YOUTUBE, 2019b, on-line). Caso o criador de conteúdo viole as Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade, o YouTube pode, por exemplo, desativar a exibição de anúncios no seu conteúdo ou suspender a participação do criador de conteúdo no Programa de Parcerias do YouTube, impedindo que ele aufira renda com seus vídeos (YOUTUBE, 2019c, on-line). Os Termos de Serviço do YouTube também definem que os usuários que violam suas regras estão sujeitos às sanções ali estabelecidas unilateralmente que varia, entre a remoção do conteúdo infringente, advertências, suspensões, o encerramento de contas e/ou a rescisão de canais (YOUTUBE, 2019, on-line). Em sua versão anterior os Termos de Serviço do YouTube eram bastante ditatoriais, prevendo inclusive a remoção de conteúdo e o cancelamento de contas sem aviso prévio, a seu exclusivo critério7.Todavia, eles passaram por uma alteração relevante em 10 de dezembro de 7 “7.B – O YouTube se reserva o direito de decidir se o Conteúdo é apropriado e obedece a estes Termos de Serviço no que diz respeito a infrações outras que não as infrações ou violações das leis de direitos autorais, como por exemplo, mas sem se limitar, à pornografia, material obsceno ou difamatório, (inclusive difamação, calúnia ou 24 2009 que ampliou as garantias dos criadores de conteúdo contra punições, mas também gerou polêmica, por exemplo pela parente possibilidade de remoção de canais “não comercialmente viáveis”. Esses pontos serão analisados em detalhe no último capítulo. 1.4. Os criadores de conteúdo Criador de conteúdo (em inglês, content creator) é o termo utilizado para designar o profissional que vive de produzir conteúdo digital para ser consumido na internet; em especial redes sociais como as de streaming. Os youtubers do YouTube e os streamers8 da Twitch são criadores de conteúdo. Felipe Neto, Whindersson Nunes, Pewdiepie, são alguns dos criadores de conteúdo mais famosos do YouTube; YoDa e Ninja são, respectivamente, os maiores criadores de conteúdo na Twitch, do Brasil e do mundo. A tecnologia de streaming revolucionou a produção e o consumo de conteúdo digital. O fato de o usuário não precisar mais baixar antes todo o conteúdo que deseja consumir permitiu o acesso instantâneo a vastas bibliotecas de mídia. Temos à disposição no Deezer toda a discografia de nossa banda preferida imediatamente ao alcance dos dedos. Se o Deezer não tem, procuramos no Spotify, ou no Apple Music. Abrindo o Popcorn Time podemos encontrar juntos todos os filmes de Hitchcock, Fellini e Herzog, com diversas resoluções e legendas (mesmo contra os interesses dos titulares de seus direitos de exploração comercial). De outra parte, esse sensível incremento na facilidade de acesso à mídia não veio acompanhado de uma maior disponibilidade de tempo para consumi-lo. Pelo contrário, na vida moderna e digitalizada o tempo é cada vez mais escasso. Por isso há uma feroz disputa na internet pela atenção do usuário. Se não gostamos do que traz uma série da Netflix, em segundos já abrimos outra. Se não gostamos de uma música da playlist do Spotify, saltamos para a injúria), ou excessivamente longo. O YouTube poderá a qualquer momento, sem aviso prévio e a seu exclusivo critério, remover tais Conteúdos e/ou cancelar uma conta de Usuário por enviar tais materiais que violam os Termos de Serviço”. (YOUTUBE, 2019c, on-line) 8 Os usuários que realizam transmissões ao vivo com frequência são chamados de livestreamers ou, como é mais comum, apenas de streamers. 25 próxima ou voltamos para a anterior. O usuário só assiste e ouve ao que quer, quando quer. Não à toa o streaming tem afetado tanto a audiência da televisão e o número de assinaturas da TV à cabo (CARR, 2014, on-line). Os que produzem conteúdo digital estão constantemente desafiados pela veloz e imprevisível flutuação do interesse do público, devendo estar sempre atentos às tendências de consumo sinalizadas pelos tópicos mais acessados (trending topics), adequando seu produto ao que quer o público hoje, de preferência agora. Por toda essa pressa no consumir e a consequente velocidade com que as coisas na internet se tornam desejáveis ou indesejáveis, relevantes ou relevantes, justas ou injustas, um dia fora desse fluxo pode significar a “morte” de um criador de conteúdo. Imaginemos um podcaster que dedica todo o seu conteúdo à política vendo-se impedido de acessar a plataforma por onde divulga seu trabalho justamente na semana do segundo turno das eleições presidenciais. Daí a relevância da proteção de sua atividade contra a atuação arbitrária das redes sociais, que implica não somente a afetação de sua liberdade de expressão, mas também de sua possibilidade de participação política e de exercício de uma atividade econômica. O que justificaria a exigência de oposição à rede social de garantias relativas ao devido processo legal, como a motivação das punições e a oportunização de defesa.26 CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO COMO NORMA JURÍDICA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 2.1. Considerações introdutórias A discussão sobre a vinculação de particulares aos direitos fundamentais tem como seus antecedentes teóricos o reconhecimento da juridicidade da Constituição, noção que não lhe é congênita, e a apuração da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ligada à sua compreensão como um conjunto de valores objetivos, dotado de uma eficácia jurídica irradiante, que atinge todas os ramos do direito, influenciando relações que não sofreriam sua incidência caso visualizados como meros direitos públicos subjetivos. Este é o tema explorado no presente capítulo, que busca apresentar o trajeto histórico que ambos os conceitos compartilham, visto serem correlatos. A exposição parte da vitória da burguesia na Revolução Francesa, cujo paradigma jusfilosófico consagrou a visão liberal dos direitos fundamentais como direitos de defesa invocáveis exclusivamente em face do Estado, orientados a impedir sua intervenção em negócios privados. A argumentação passa então pelo derruimento do Estado Liberal com o agravamento dos conflitos distributivos e a necessidade de tomada de posição dos Poderes Públicos diante da desestabilização do sistema econômico capitalista, que fez surgir o Estado Social. Este, caracterizado por uma nova gama de tarefas estatais fixada em nível constitucional, que fez revolucionar não só a compreensão das funções do Estado perante o meio social, como também do caráter com que as normas de direitos fundamentais deveriam ser interpretadas. Na sequência, o capítulo aborda o resgate do direito natural em função da premente necessidade de retorno do direito legislado a valores morais como condicionantes de sua legalidade, decorrência do asco ao positivismo jurídico gerado por sua associação ao Terceiro Reich e o Holocausto, que culminou com o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais: a sua concepção como fórmulas condensantes dos valores essenciais da 27 comunidade que, porquanto versadas em norma, constituem a sua base jurídica, de modo que seus efeitos se irradiam necessariamente sobre todas as relações ocorridas em seu seio, envolvendo ou não o Estado. A teoria dos efeitos irradiantes dos direitos fundamentais (Ausstrahlungseffekte) e a dos deveres de proteção (Schutzpflichten) são apresentadas como frutos da evolução da compreensão de sua dimensão objetiva, que fomentam a intensificação da intervenção estatal em âmbito particular e conformam a criação, a interpretação, a integração e a aplicação do direito privado. Por fim, o capítulo aborda o fenômeno da constitucionalização do direito privado (direito civil constitucional) e como esta se revela no Brasil a partir das disposições da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Pelas limitações físicas deste trabalho, sem embargo da importância histórica e dogmática do direito constitucional da common law, o capítulo se concentra no reconhecimento da juridicidade do texto constitucional e da eficácia dos direitos fundamentais tal como se desenvolveu no panorama do sistema-românico germânico, tradição do qual o direito brasileiro é herdeiro. 2.2. A Constituição como norma jurídica O ordenamento jurídico é um sistema ordenado logicamente como uma pirâmide escalonada cujo vértice é ocupado pela Constituição como seu fundamento de validade. É a construção teórica que se tornou tão popular com as obras de Hans Kelsen ao ponto de soar como um pleonasmo. Mas, se hoje soa quase redundante a afirmação da submissão de todos os campos do direito à constituição, o fato é que esta não era a compreensão em voga até a metade do século XX. No paradigma do Estado Liberal, que prevaleceu durante o século XIX, a partir da Revolução Francesa, o direito privado é que ocupava o centro gravitacional do ordenamento jurídico, operando como fonte independente e indivisível de disciplina das relações privadas, 28 então área alheia à incidência das disposições constitucionais. Estas se voltavam, na verdade, a manter o Estado afastado de intervir nas atividades negociais. Não poderia ser diferente, primeiro, porque, em razão da ausência de uma jurisdição constitucional, a Constituição era então compreendida, em especial no que tocava à esfera jurídico-privada, como mera carta declaratória de diretrizes políticas, desprovida de eficácia jurídica imediata, cujo programa dependia de mediação do legislador (interpositio legislatoris) para a produção de efeitos concretos (SARMENTO, 2010, p. 74). Reconheciam-se como dotados de eficácia imediata apenas os direitos invocáveis em face do Estado, individuais e políticos, bem como as disposições normativas que tratavam de sua estrutura orgânica (SARMENTO, 2010, p. 74). Segundo, porque o século XIX foi a Era das Codificações, cujos principais expoentes foram o Código Civil Francês de 1804 e o Código Civil Alemão de 1900, gerados justamente como continentes normativos, unitários e sistematizados, com pretensão de substituir as regras consuetudinárias que se acumularam durante o período medieval9 na regulação exaustiva das relações privadas, e, assim, eliminar as graves dificuldades que a pluralidade e o fracionamento do direito, “fruto do arbítrio da história”, causavam na prática jurídica (BOBBIO, 1995, p. 54- 65). Daí gozarem, na esfera privada, de supremacia mesmo frente à constituição. Esta, inclusive, a ótica sob a qual foi concebido o Código Civil Brasileiro de 1916 (SARMENTO, 2010, p. 99). Na verdade, sequer se vislumbrava a necessidade de se recorrer à Constituição para buscar a regulação adequada de relações privadas, visto que os códigos eram vistos como o autêntico baluarte da liberdade burguesa (HESSE, 1995, p. 37). O direito privado era o direito constitutivo da sociedade burguesa, tendo o direito constitucional uma posição secundária frente a ele, inclusive na perspectiva material (HESSE, 1995, p. 38). 9 Confira-se a este respeito a manifestação de Thibaut defendendo a necessidade de codificação do direito consuetudinário alemão, citada por Norberto Bobbio: “Os alemães estão há muitos séculos paralisados, oprimidos, separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos, em parte irracionais e perniciosos. Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se apresente mais em mil anos. [...]. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que nas instituições francesas estão encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões dos nossos tratados sobre direito natural. Se agora os príncipes alemães concordassem com a redação de um código geral alemão civil, penal e processual empregasse por apenas cinco anos aquilo que custa um meio regimento de soldados, não poderíamos deixar de receber algo de notável e sólido. A contribuição de um tal código seria incalculável” (BOBBIO, 1995, p. 53). 29 A tônica dessas codificações era o patrimonialismo e o individualismo, notas fundamentais do liberalismo-burguês, promovido pela classe recém ascendente, que havia tomado o poder derrubando o Antigo Regime. Assegurando sua nova posição social contra o retorno do Absolutismo, a burguesia passou a se valer do direito positivo como fonte de legitimação de poder fundada em um novo jusnaturalismo de viés racionalista, tipicamente iluminista. Segundo esse movimento histórico, na síntese formulada por Bobbio, que o denomina jusnaturalismo racionalista estatal, o direito é, ao mesmo tempo,expressão da autoridade e da razão. É autoridade, pois que ineficaz enquanto não posto e reforçado pelo Estado. De outra parte, o direito posto pelo Estado não é reflexo de puro exercício arbitrário de poder, mas sim produto derivado da própria razão (1995, p. 54). Neste sentido o projeto preliminar do Código Civil Francês, depois suprimido da redação definitiva, declarava: “Existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas: não é outro senão a razão natural, visto esta governar todos os homens”. O positivismo jurídico, todavia, a corrente de filosofia do direito que acabou se tornando dominante à época, embora tenha raízes nessa vertente do jusnaturalismo, na medida em que identifica o direito como fruto da razão tornado obrigatório pelo Estado, dele acabou se distanciando, na medida em que passou a resumir o fenômeno jurídico ao direito legislado, rejeitando como critério de validade qualquer proposição valorativa não versada em norma positiva. O foco da produção deste direito descoberto pela razão e posto pela autoridade do Estado era o trabalho do Poder Legislativo, que, dominado por representantes da burguesia, monopolizava a produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38), atuando como polo gerador de conjuntos unitários de regras racionais, imutáveis (SARMENTO, 2010, p. 345), de conteúdo semântico denso, porém gerais e abstratas, e de aparente neutralidade axiológica, conquanto orientadas pelos valores reputados essenciais para a consolidação do domínio da nova classe reinante. A intenção era a de que os códigos criados representassem o núcleo do sistema de direito privado, servindo de lubrificante das engrenagens do sistema econômico, pela promoção de seus fundamentos: o direito de propriedade, a liberdade contratual pautada na autonomia da vontade e na igualdade formal entre os homens, e a segurança jurídica. Esta última, alcançada por meio da estabilização da regulação das relações privadas, que favorecia a previsibilidade da conduta das partes, salvaguardando-se a expectativa na força obrigatória dos contratos (pacta 30 sund servanda). Esperava-se, assim, criar-se um mercado autorregulado, imune e independente da intervenção estatal. Como afirma Quartim de Moraes, citando Polanyi, guiado pela burguesia, o Estado Liberal: [...] por meio da concepção de lei ‘geral e abstrata’ portadora de uma igualdade estritamente formal e do abstencionismo econômico, foi capaz de atribuir segurança jurídica às trocas mercantis, gerando um mercado de trabalho repleto de mão de obra barata, assegurando à iniciativa privada a realização de qualquer atividade potencialmente lucrativa (1957, p. 73 apud 2014, p. 272). Outra razão fundamental para a falta de reconhecimento da eficácia normativa da Constituição neste contexto histórico, é o fato de que o Estado recém instalado tinha como marco uma visão rígida da separação entre os poderes, inspirada no pensamento montesquiano. As funções do Estado Liberal se dividiam de modo estanque: o Legislativo criava as normas, o Executivo as implementava, e o Judiciário as aplicava aos casos concretos sem interpretá-las. É que, em sendo o papel do Judiciário o de aplicar a lei, Poder na França ainda ocupado por membros ligados ao Ancién Regime, havia a necessidade de se garantir que também a atividade judicante fosse fiel aos valores burgueses condensados no Código Civil. Daí a promoção da vertente da hermenêutica jurídica que pregava a adstrição do intérprete ao conteúdo literal da lei e à vontade hipotética do legislador, representada na ideia de que o juiz deveria ser apenas la bouche de la loi: a Escola da Exegese. Bobbio resume o entendimento vigorante à época: “a vontade do legislador é expressa de modo seguro e completo e aos operadores do direito basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana” (1995, p. 38). Marinoni explica a razão histórica por detrás dessa concepção: [...]os magistrados, na França do Antigo Regime, eram fiéis escudeiros do status quo. Exerciam o poder para impedir quaisquer avanços que pudessem comprometer os interesses do rei e dos senhores feudais. Daí a revolução francesa ter negado o Judiciário, como se vê na célebre frase de Montesquieu – os juízes devem se comportar como seres inanimados, limitando-se a pronunciar as exatas palavras da lei (MARINONI, 2016b, on-line). O avanço sobre os poderes criativos dos juízes foi a ponto de a Lei Revolucionária de 1790 tê-los proibido de interpretar a lei, obrigando-os, no caso de dúvida, a recorrerem a uma comissão formada por legisladores. Igualmente, a função da Corte de Cassação, instituída no mesmo ano, objetivava cassar as decisões que destoassem da lei (MARINONI, 2016b, on-line). 31 Percebe-se então que, firmada no ideal de uma separação inflexível entre os Poderes, a Revolução Francesa colocou o Legislativo e o Judiciário em polos opostos. A solução liberal para o conflito entre legisladores e juízes foi a opção pela onipotência do legislador, titular exclusivo da produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38). Destarte, era natural a aversão do acesso dos juízes à textura tipicamente aberta do texto constitucional, um convite ao exercício de sua indesejada criatividade. Assim é que a Constituição não condicionava a validade, nem a interpretação das normas de direito privado (HESSE, 1995, p. 35-36) e muito menos era possível extrair-se dela diretamente a regulação direta das relações entre particulares. Tampouco se poderia falar de uma competência processual dos juízes para examinar a compatibilidade de leis aos direitos fundamentais previsto na Constituição, uma função de controle material (HESSE, 1995, p. 37). Reitere-se, sem embargo, que se reconhecia o caráter vinculante das normas ditas clássicas, aquelas que definem organização do Estado e aqueles que demarcavam uma esfera de direitos individuais e políticos do cidadão em face dele (SARMENTO, 2010, p. 74). Mas estes eram direcionados precipuamente contra a Administração, não ao Legislador, e tampouco eram acessíveis ao juiz (HESSE, 1995, p. 37). A compreensão do caráter vinculante das normas constitucionais então começou a mudar, em primeiro lugar, na prática, antes mesmo da virada teórica que culminou com o reconhecimento de eficácia normativa a toda a Constituição, a partir da adoção generalizada de instrumentos de controle de constitucionalidade que cristalizaram a sua compreensão como norma jurídica conformadora de todo o ordenamento e não apenas como diretriz política de caráter meramente programático (SARMENTO, 2010, p. 76). Assim é que se passou, do Estado de Direito, ao Estado Constitucional, em que a lei ordinária vê-se subordinada a um estrato superior que lhe condiciona a validade (ZAGREBELSKY, 1992, p. 39 apud SARMENTO, 2010, p. 76). Concepção que enfim deslocou a Constituição para o núcleo da ordem jurídica, submetendo inclusive o direito privado aos seus ditames (SARMENTO, 2010, p. 77). No entanto, neste momento inicial, as normas consideradas juridicamente eficazes e, portanto, passíveis de serem utilizadas como paradigma para o controle de constitucionalidade das leis ainda eram apenas aquelas que definiam a estrutura do Estado e as que limitavam a sua esfera de ação (SARMENTO, 2010, p. 76). Neste sentido, destaca Ana Prata, que “todas as normas que excedessem o estatuto organizatório do estado e o elenco dos direitos assegurados aos cidadãos contra este tinham um cariz não preceptivo, traduzindo-se num conjunto de 32 declarações políticas de princípio sem força vinculativa” (1982, p. 123 apud SARMENTO, 2010, p. 76). Contudo, paralelamente a esta noção de submissão das leis à Constituição, emergia o Estado Social, que veio substituir o Estado Liberal, e cujos papéis determinados em nível constitucional foram redefinidos em relação ao modelo anterior. Além dos direitos chamados de “clássicos”,uma nova dimensão de direitos fundamentais foi concebida. Como bem resume Sarmento, com seu advento: [...] o Estado e o Direito passaram a exercer novas funções prestacionais, de modo que passou a se consolidar o entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família” (2010, p. 78). Eis, portanto, um marco fundamental da intervenção estatal direta nos negócios privados a partir da Constituição. É que, com o progresso do sistema econômico capitalista, especialmente com a Revolução Industrial, que, ao mesmo tempo, representou tanto avanços na geração quanto na sua concentração de riqueza, houve sério agravamento da desigualdade material entre os cidadãos, o que gerou marcantes tensões sociais provenientes especialmente da oprimida classe trabalhadora. Duas noções importantíssimas para a virada do direito constitucional se desenvolviam: a de que a desigualdade de fato é obstáculo ao exercício da liberdade, de modo que a sua proclamação formal não basta à sua garantia; e a de que, contrariando a concepção que os criou, o Estado não é o único inimigo dos direitos fundamentais, cabendo-lhe, não só se abster de violá-los, como também intervir em face da conduta de atores privados, em especial aqueles dotados de algum poder social ou econômico que insistam em sua violação (V. A. SILVA, 2011, p. 18). O cenário de predomínio das codificações burguesas individualistas então começa então a se alterar após a Primeira Guerra Mundial. Quando já consolidada a noção de que as codificações civis, longe da pregada racionalidade pura e neutralidade frente a valores, eram antes orientadas à manutenção dos privilégios burgueses, permitindo a continuidade da exploração dos mais fracos e a acumulação do lucro gerado pela atividade industrial, enquanto seu risco era absorvido pelo proletariado. 33 Vai colapsando, assim, no nível político, o postulado liberal proposto por Adam Smith de que, a somatória da persecução egoística da satisfação de interesses individuais, dada a sua inquestionável racionalidade, bastaria, por si, só ao atingimento do bem-estar coletivo. Assim é que, enquanto as constituições liberais conferiam ao Estado basicamente o dever de não intervir no livre exercício de direitos individuais, o que seria suficiente para o atendimento das demandas sociais; em sentido contrário, as constituições que demarcam o Estado Social, partem do reconhecimento da insuficiência da livre persecução da satisfação de interesses egoísticos para a solução de conflitos distributivos, para conferir-lhe a tarefa de corrigir ativamente a hiper-concentração da riqueza gerada pelo sistema econômico por meio da positivação de direitos sociais e econômicos que envolvem a intervenção estatal em relações privadas, em especial as relações de trabalho, bem como que conferem direitos subjetivos exercíveis em face dos poderes públicos cuja efetivação não mais se satisfaz com sua abstenção, mas que demandam a entrega de prestações concretas. Como resume Sarmento, se a Constituição do Estado Liberal se caracterizava por seu caráter estruturante e pelo desenho da esfera de liberdade individual alheia à intervenção estatal, visando a manutenção do status quo, a Constituição do Estado Social prega a ação estatal transformadora, apontando objetivos, a serem perseguidos pelos Poderes Públicos e os meios concretos para tanto (2010, p. 77). A Constituição de Weimar de 1919, o maior marco legislativo do Estado Social do século XX, bem demonstra a modificação da relação entre o direito constitucional e o direito privado que estava ocorrendo: oferecendo proteção ao direito de propriedade, ao mesmo tempo em que subordinava o seu exercício cumprimento de fins de interesse coletivo social (art. 153); protegendo a liberdade contratual nas trocas econômicas, desde que exercida "de acordo com as leis" (art. 152.1); garantindo o direito à herança "de acordo com o direito civil"(art. 154.1), e estendendo o direito fundamental à liberdade de expressão às relações de trabalho e emprego público. Tem-se então que as normas constitucionais passaram a criar obrigações diretas para os cidadãos, ao mesmo tempo em que ditavam diretrizes ao legislador de direito privado, seja fixando garantias de institutos como a propriedade, a família e o casamento, que impediam que o legislador os abolisse (HESSE, 1995, p. 49; SCHMITT, 1993, p. 20 e ss. apud POLIDO, 2006, p. 7), seja prescrevendo mandatos explícitos, como o de legislar em favor da igualdade dos filhos tidos fora do vínculo matrimonial (art. 121) (HESSE, 1995, p. 48-49). 34 Também é notável na Constituição weimariana a positivação de normas consagradoras de direitos como a saúde, educação e trabalho, e, como visto, de controle da ordem econômica capitalista por meio da função social da propriedade, além da previsão de mecanismos de colaboração entre trabalhadores e empregadores por meio de conselhos. Disposições que, visavam acomodar as demandas do proletariado no projeto burguês de sociedade. Sendo inclusive reconhecido o seu papel histórico no arrefecimento da revolução socialista que se insinuava na Alemanha (KLEIN, 1995, p. 34). Sem embargo, as normas de caráter social, que obrigavam a prestações de caráter emancipatório, não eram compreendidas como diretamente vinculantes (HESSE, 1995, p. 49). A doutrina que dominou que o direito constitucional ao longo de quase todo o século XX negava-lhe o reconhecimento de sua eficácia jurídica. Se era tema pacífico a força vinculante das normas clássicas (orgânicas e de não intervenção), os mandamentos constitucionais garantidores de direitos subjetivos típicos do Estado Social, eram vistos como meras “normas programáticas”, de eficácia mediata, sujeitas à interpositio legislatoris. A resistência ao reconhecimento de eficácia normativa às normas veiculadoras de direitos sociais pode ser explicada, segundo Sarmento, de um lado, pela própria resistência ideológica oposta pela classe dominante à mudança do status quo. Mas à ideologia se aliava a questão dogmática relativa à indeterminação semântica de algumas dessas normas, e ainda uma razão de ordem prática consistente nos condicionantes materiais à sua efetivação, dada a necessidade da utilização de recursos públicos para a concretização das prestações deles derivadas (SARMENTO, 2010, p. 77). Móveis que fizeram sedimentar a doutrina que dividia as normas constitucionais em autoaplicáveis, caso das relativas às liberdades individuais, e não autoaplicáveis, como as de caráter social. O que fez lançar as últimas em um verdadeiro “limbo jurídico”, na metáfora de Sarmento (SARMENTO, 2010, p. 76). Fábio Konder Comparato objeta a pertinência desses obstáculos opostos à efetivação de direitos sociais, afirmando que, em primeiro lugar, a indeterminação do objeto de direitos sociais não é maior do que a de muitos direitos individuais:: Qual o exato alcance, por exemplo, do direito à intimidade, declarado no art. 5º, inciso X, de nossa Constituição? Compreende ele, por acaso, o segredo das contas bancárias? Ora, não será certamente em razão de dificuldades hermenêuticas desse tipo que o Judiciário poderá recusar-se a dar proteção aos direitos fundamentais declarados na Constituição (1993, on-line). 35 Em segundo lugar, quanto à afirmação de que por decorrência haveria indevida intervenção do Judiciário na competência exclusiva do Executivo e do Legislativo para a formulação de políticas públicas, Comparato aduz que, ao determinar a efetivação de um direito social, o Judiciário age dentro da sua própria competência, sancionando os demais poderes por uma omissão inconstitucional, sendo consagrada em muitos sistemas constitucionais contemporâneos
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