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1 LÓGICA, ESTRUTURAS E TEORIAS FÍSICAS Newton C. A. da Costa Décio Krause Grupo de Estudos em Lógica e Fundamentos da Ciência Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina (Junho 2011) 1. Ciência e matemática Uma das coisas para as quais os cientistas em geral não dão atenção pormenorizada na sua atividade são a lógica e a matemática subjacentes às teorias que desenvolvem ou utilizam. Nada mais natural que isso seja assim, pois se um físico, um biólogo ou um engenheiro tivesse que dar atenção a esses tópicos, provavelmente não teria tempo para desenvolver a sua disciplina. Mas, por que esses itens são relevantes, e para que tipo de discussão? Para delinearmos essas questões, vejamos de que forma a lógica e a matemática entram em algumas discussões sobre os fundamentos da ciência, enfatizando o papel das estruturas matemáticas na sistematização das disciplinas científicas. Suponha que desejamos investigar um domínio do conhecimento que chamaremos de D, nas ciências empíricas, humanas ou formais (em princípio, o que diremos aplica-‐se a todas essas áreas, mas nos restringiremos à física). Para abordar D, selecionamos, a partir de nossa experiência, conhecimentos prévios, intuição, o que quer que seja, uma coleção de conceitos que, em nossa opinião, refletem o que se passa em D. Por exemplo, em física clássica fazemos uso de conceitos como força, energia, massa (de um corpo); em biologia, fazemos uso de conceitos como gene, organismo, mutação, espécie, etc. Fatos similares se dão com as demais áreas. Do ponto de vista dos fundamentos da ciência, esses conceitos podem ser organizados na forma de uma estrutura matemática, que designaremos genericamente por E, a qual postulamos capta aspectos de D de acordo com nossa opinião. Por exemplo, uma sistematização simplificada da mecânica clássica de partículas, MCP, (seguindo a linha proposta por McKinsey, Sugar e Suppes em 1953), (Quadro 4) pode ser alcançada a partir dos conceitos de partícula (ou `ponto material’), massa (de uma partícula), posição de uma partícula em um instante de tempo, forças (que atuam sobre uma partícula em um determinado instante de tempo), e de um intervalo T de números reais, que desempenha o papel de intervalo de tempo. Uma força que age sobre uma partícula p no instante t é denotada por fi(p,t), o negrito indicando que se trata de uma grandeza vetorial, o índice i meramente nomeia a força particular. Para desenvolvermos uma abordagem axiomática a uma teoria como a MCP, devemos inicialmente especificar em que arcabouço matemático (e lógico) estaremos operando, mas voltaremos a este ponto na seção 2. Por enquanto, fazemos notar que nossa estrutura pode ser escrita na forma de uma quíntupla ordenada E = (P, T, m, s, f), sendo P um conjunto não vazio e finito (o conjunto das partículas), T um intervalo da reta real, e m uma função que associa um número real positivo a cada elemento de P, de forma que m(p) denota a massa da partícula. A posição de uma partícula p em um instante de tempo t é dado por uma função vetorial s(p,t), que é um vetor no espaço euclidiano R3 (o negrito indica que s é também uma função vetorial). À 2 medida em que t varia em T, s(p,t) descreve uma curva no espaço R3, que representa a trajetória da partícula no período de tempo considerado (Figura 1). Esses conceitos são sujeitos a determinados postulados, que nos dão o seu caráter operacional; em síntese, os postulados são os seguintes: (1) a função s(p,t) é duplamente diferenciável, ou seja, para toda partícula p, podemos obter as derivadas em relação ao tempo (em notação simplificada) ds/dt e d2s/dt2, as quais representam, respectivamente, a velocidade v(p,t) e a aceleração a(p,t) da partícula p no instante t; (2) a série ∑i=1,2,... fi(p,t) é absolutamente convergente, ou seja, mesmo que haja uma infinidade de forças, a soma é finita e independe da ordem em que as forças são consideradas. O fato de s ser duplamente diferenciável garante que haja sentido falar em trajetória, como fizemos acima. Finalmente (em nosso esquema abreviado), o postulado (3), que é a famosa Segunda Lei de Newton, a saber, força é igual a massa vezes aceleração, ou seja, ∑i=1,2,... fi(p,t) = m(p). a(p,t). A partir desse esquema, podemos introduzir por definição vários outros conceitos que nos auxiliam a desenvolver nossa versão da referida mecânica, como os de energia cinética, energia potencial, dentre outros. Para grande parte das aplicações, é adequado estender o esquema acima de forma a incorporarforças internas, que as partículas exercem uma sobre as outras, e forças externas, que agem sobre as partículas do sistema, tendo origem (como o nome sugere) externa ao sistema. A estes novos conceitos são impostas outras condições, seja por axiomas adicionais, seja por meio de definições, as quais podem, por exemplo, representar as demais leis de Newton. A mecânica que se obtém, muito propriamente, denomina-‐se de mecânica de partículas newtoniana. Após esta breve discussão, que certamente o leitor pode transportar para outras áreas e teorias, faremos algumas observações acerca dos fundamentos. 2. Questões de fundamentos A primeira coisa a observar é que não é possível sistematizar um corpo do conhecimento por meio de uma teoria física como a MCP sem o recurso da matemática. Com efeito, na esquematização acima fizemos uso das noções de conjuntos, funções, derivadas e de várias outras coisas. É preciso reparar ademais que o modelo matemático elaborado (que usualmente chamamos de teoria) trata de apenas alguns aspectos de uma parcela da realidade. Se quiséssemos tratar de outras porções, por exemplo levando em conta colisões entre partículas, teríamos que elaborar um modelo bem mais sofisticado que levasse em conta deformações e outros conceitos, adentrando no que se denomina de mecânica do contínuo. O mesmo vale para os demais domínios sob investigação: se levarmos em conta aspectos relativísticos, ou quânticos, teremos que assumir estruturas diferentes, algumas de extrema sofisticação. Isso aponta para uma primeira tese que defendemos: no momento, não há teoria física universal, que se aplique a todos os domínios irrestritamente. Isso não implica que uma tal teoria unificada não possa ser encontrada, mas no esquema atual as teorias científicas são elaboradas para atacar questões específicas, e quando mudamos de campo de atividade ou quando nosso conhecimento evolui, via de regra somos convidados a mudar de teoria. Mas, se usamos alguma matemática, como sabemos que os conceitos que necessitamos estão 3 realmente ao nosso dispor? É aqui que aparece o sentido de nossa frase inicial; o cientista em geral age como se `tudo’ o que ele necessita estivesse ao seu alcance. Isso é verdade em certo sentido, mas depende de hipóteses extremamente fortes. Ainda que em certas situações pudéssemos utilizar uma lógica de ordem superior (como fez Carnap) ou a teoria das categorias para fundamentar nossas disciplinas científicas, sem perda de generalidade podemos assumir que trabalhamos em uma teoria de conjuntos, como a teoria Zermelo-‐Fraenkel, ZF (Quadro 2). Porém, se ZF for axiomatizada como uma teoria de primeira ordem, sendo consistente, terá modelo enumerável (como resulta de um teorema célebre, chamado de Teorema de Löwenheim-‐Skolem). Ora, neste modelo, aquilo que representa o conjunto dos números reais será finito ou enumerável. Mas em ZF prova-‐se que o conjunto dos reais não é enumerável (teorema de Cantor). Esta questão, conhecida como `paradoxo de Skolem’, tem uma solução simples, que se resume em reconhecer, como fez o próprio Skolem, que a bijeção entre os conjuntos dos reais e dos naturais (que atestaria a enumerabilidade dos reais) não pertence ao modelo enumerável, estando `fora’ dele (Quadro 1). O que importa aqui é que, usando uma teoria como ZF, na verdade não sabemos em que `modelo’ estamos trabalhando e, assim, de certo modo, com o que estamos contando, pois nada indica que não estamos fazendo física, por exemplo, a partir do modelo enumerável de ZF. Deste modo, em certo sentido, podemos afirmar que, ao fazermos ciência (em particular, matemática), nunca sabemos do que estamos falando: falamos de conjuntos enumeráveis ou não enumeráveis? Qual a noção de infinito que estamos utilizando? Se usamos as noções de espaço e tempo em física, e fazemos isso necessariamente, seja assumindo alguma estrutura espaço-‐temporal, seja introduzindo-‐a de algum modo, tratam-‐se do espaço e do tempo newtonianos, típicos das mecânicas clássica e quântica (não-‐relativista), ou trata-‐se do espaço-‐tempo relativista? (Quadro 6) Estas são algumas questões que qualquer análise filosófica sobre a ciência deveria responder. Por outro lado, digamos que nossa concepção filosófica nos leve a um intuicionismo ao estilo de Brouwer (Quadro 3). Se for assim, deveremos erigir nossa matemática dentro deste espírito, e isso nos conduziria a uma visão científica completamente diferente daquela que teríamos se assumíssemos a matemática e a lógica usuais. Portanto, em se tratando de fundamentos, devemos indicar qual a matemática e qual a lógica estamos assumindo para começar a discussão.Ademais, digamos que estejamos assumindo a lógica chamada de clássica. Ora, não há a lógica clássica, e quando se fala nesta lógica sem qualificação, não se tem em princípio ideia de qual particular teoria se trata: trata-‐se da lógica elementar usual? Podemos assumir que ela incorpora uma teoria de conjuntos? Questões como essas, em se tratando de fundamentos da ciência, são relevantes e não são fáceis de ser respondidas. Outras serão vistas na sequência. Mas voltemos à nossa estrutura E para a MCP vista acima. A própria terminologia “mecânica clássica de partículas” denota aqui coisas distintas: primeiro, uma particular estrutura que obtemos quando especificamos o que seriam as entidades envolvidas (por exemplo, P representa o sol e seus planetas, etc.); depois, uma classe de estruturas que congrega todas as “mecânicas clássicas de partículas”, uma espécie de estruturas, como se diz tecnicamente. Por fim, a expressão denota também a teoria dessa espécie de estruturas, que podemos supor ser 4 axiomatizada de modo a que E venha a ser um modelo dos axiomas selecionados. Uma estrutura como E é elaborada inicialmente tendo-‐se em vista um particular domínio que desejamos investigar, mas depois ela pode servir para aproximar outras `realidades’. Ou seja, E, que é a contraparte matemática da chamada teoria da mecânica clássica de partículas mencionada acima, mas nada diz de suas possíveis aplicações. Para analisarmos de que forma aquilo que aprendemos com o estudo de E pode se aplicar a domínios particulares, uma outra gama de considerações deve ser levada em conta, como todas as teorias que procuram relacionar os constructos matemáticos com as suas possíveis realizações, por exemplo teorias da mensuração, de erros, técnicas estatísticas, dentre outras. 3. Mais questões de fundamentos A discussão precedente não esgota as questões que podem ser colocadas às teorias científicas tratadas matematicamente. Por exemplo, não há maneira científica (ou seja, que não seja informal e algo vaga) de provar que nossas teorias são consistentes, isto é, que não exista uma formula S de sua linguagem tal que tanto S quanto sua negação sejam teoremas da teoria considerada (a isso chama-‐se de consistência sintática da teoria) (Quadro 5). Tendo em vista esta impossibilidade, o que fazemos é operar como se nossas teorias fossem consistentes, mas não podemos ter qualquer garantia lógica deste fato. Uma outra questão interessante é a seguinte. Como as teorias físicas relevantes (pelo menos essas) envolvem a aritmética elementar, pode-‐se assumir que são formuladas de tal modo que a elas, ou a suas contrapartes formais (que se identificam com as teorias estrito senso) se aplicam os célebres teoremas de incompletude de Gödel. Em síntese, e sem rigor, o primeiro desses teoremas afirma o seguinte. Haverá sentenças dessas teorias que se pode comprovar serem verdadeiras mas que não podem ser nem demonstradas e nem refutadas (ou seja, suas negações sejam demonstradas) pelas teorias em questão: essas teorias são incompletas, e mais, são incompletáveis (vários trabalhos neste sentido, envolvendo as teorias físicas, podem ser vistos em F. A. Doria, Chaos, Computers, Games and Time: 25 years of joint work with Newton da Costa, Editora e-‐papers, Rio, 2011.). Como se vê, os estudos fundacionistas relativos à matemática, levados a cabo a partir do final do século XIX, mas que tiveram seu auge nas décadas de 30-‐60 do século passado, são ainda extremamente atuais em ciência, na medida em que reputemos como relevantes os trabalhos acerca de seus fundamentos. (Quadro 1) Em ZF, pode-‐se provar que não existe uma função bijetora entre o conjunto N dos números naturais e o conjunto R dos números reais, o que indica que R não é enumerável. No entanto, no modelo enumerável de ZF (suposta consistente), que existe por força do teorema de Löwenheim-‐Skolem, a coleção que (no modelo) representa R é enumerável. Esta aparente contradição é conhecida como “paradoxo de Skolem”, e tem uma explicação simples: a bijeção entre N e R não pertence ao modelo enumerável. A questão é: como saber se não estamos em tal modelo quando fazemos física? (Quadro 2) A teoria de conjuntos ZF (Zermelo-‐Fraenkel) pode ser formalizada de diversas formas na (verdade, originando teorias distintas). A mais comum é utilizarmos a lógica de primeira ordem como lógica subjacente, um procedimento originado com Thoraf Skolem. 5 (Quadro 3) O matemático holandês L. E. J. Brouwer tinha uma concepção radicalmente distinta da matemática vigente no início do século XX. Sua filosofiae a correspondente matemática intuicionista têm características diferentes da filosofia e da matemática clássicas. O leitor interessado pode consultar N.C.A. Costa Introdução aos Fundamentos da Matemática (Hucited, 3a ed., 1994). (Quadro 4) Patrick Suppes, professor da Universidade de Stanford, é um dos principais artífices da chamada abordagem semântica às teorias científicas, iniciada nos anos 1950, a qual prioriza o estudo dos modelos das teorias científicas. Patrick Suppes, de http://www.stanford.edu/~psuppes/ (Quadro 5) Um teoria T é sintaticamente consistente se não prova duas proposições contraditórias (uma sendo a negação da outra). Ela é semanticamente consistente se possui modelo. Esta segunda condição é mais forte e implica a primeira. (Quadro 6) Não se pode fazer física sem espaço e tempo. Ou as teorias incorporam esses conceitos como dados de antemão, como faz a física newtoniana, que assume esses conceitos como absolutos (o mesmo se dá com a mecânica quântica não relativística), ou deve introduzi-‐los de alguma forma, como é feito na relatividade restrita, (está certo? Troco por RG?). Porém, nesta teoria, esses conceitos são relativos. Outras noções de espaço e tempo são usadas na relatividade geral, outras ainda nas teorias de cordas, etc. Assim, se falamos pura e simplesmente de “espaço” e de “tempo”, podemos não saber do que se trata, pois seria necessário especificar de antemão o que estamos assumindo. Isso vale, em princípio, para todos os demais conceitos. Figura 1. Referencias • A página de P. Suppes permite o acesso a vários de seus artigos. • Krause, D. [2002], Introdução aos Fundamentos Axiomáticos da Ciência. São Paulo, EPU. • Da Costa, N. C. A. [1994], Introdução aos Fundamentos da Matemática (Hucited, 3a ed.). • Da Costa, N. C. A. [1980], Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica. São Paulo, Hucitec-‐EdUSP. Newton C. A. da Costa Aposentado dos departamentos de matemática e de filosofia da USP, é um dos criadores das lógicas paraconsistentes e tem dado colaboração em diversas áreas do conhecimento. Atualmente é professor do programa de pós-‐graduação do departamento de filosofia da UFSC. É pesquisador do CNPq. Décio Krause Aposentado do departamento de matemática da UFPR, é atualmente professor do departamento de filosofia da UFSC. É pesquisador do CNPq. 6 Word count: 2.540
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