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Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO DISTÚRBIOS PEDIÁTRICOS DO QUADRIL: DISPLASIA DO DESENVOLVIMENTO DO QUADRIL: A displasia do desenvolvimento do quadril (DDQ) é um distúrbio congênito que provoca instabilidade articular em decorrência do mau-posicionamento da cabeça do fêmur no acetábulo. Esse fenômeno é mais comum em meninas, afetando principalmente o lado esquerdo da articulação pélvica, ainda que apresentações bilaterais representem 20% dos casos. A DDQ pode ser decorrente da displasia propriamente dita, na qual o acetábulo é raso, não comportando a cabeça do fêmur, ou da frouxidão ligamentar, condição na qual a cápsula permite o escape do osso. Destacam-se como principais fatores de risco para a DDQ: Gemelaridade; Histórico familiar positivo; Apresentação pélvica; Primeira gestação. O diagnóstico deve ser feito o mais precocemente possível, de forma a obter melhores resultados terapêuticos. Em recém-nascidos (0-3 meses), os testes clínicos mais usuais para a detecção da DDQ são as manobras de Barlow (provocativa para luxações) e Ortolani (tenta reduzir o fêmur). Outros importantes aspectos observados no exame físico do RN com DDQ são a assimetria de pregas (Sinal de Peter-Bade), a limitação da abdução do quadril acometido (Sinal de Hart) e o encurtamento do membro inferior no lado luxado (Sinal de Galleazzi). Sinal de Galeazzi positivo na presença de DDQ Caso essa investigação seja feita em crianças que já deambulam, o diagnóstico se torna fácil, pois as alterações anatômicas se tornam mais evidentes, com ocorrência de marcha anserina, sinal de Trendelemburg positivo, hiperlordose lombar e encurtamento do membro afetado. A manobra de Barlow consiste em aduzir o quadril ao mesmo tempo em que uma leve pressão é exercida sobre a coxa no sentido posterior, identificando a luxação a partir de um ressalto. Na manobra de Ortolani, é feita a abdução do quadril, também positiva na presença de um “tranco”, momento no qual a cabeça do fêmur retorna ao acetábulo. Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO Comparação entre quadril com abdução normal (esq.) e sinal de Trendelemburg positivo (dir.), com desvio para o lado afetado A ultrassonografia com método de Graf é o exame complementar padrão-ouro para a DDQ, no qual imagens do quadril em plano frontal são obtidas, fornecendo medidas denominadas ângulo alfa (teto ósseo) e ângulo beta (teto cartilaginoso). Em bebês saudáveis, esses valores devem ser maiores ou iguais a 60° e entre 55 e 65°, respectivamente. Estruturas identificáveis na USG de quadril com método de Graf De acordo com os resultados dessa angulação, é possível classificar o grau de displasia, considerando-se também a idade da criança para determinar a maturidade do crescimento ósseo. Quanto menor o α, menos arredondado é o acetábulo, ao passo que, em ângulos β elevados, a cabeça femoral encontra-se mais afastada lateralmente Classificação do quadril em crianças de até 4 meses A radiografia tem pouco valor até os 3 meses de idade, pois a maioria das estruturas do quadril é radiotransparente (formada por cartilagem). No entanto, após o 4º mês de vida, começa a ser visualizado o núcleo de ossificação do fêmur, tornando possível a utilização de medidas e sinais indiretos, a saber: Linha de Hilgenreiner: cruza horizontalmente a cartilagem trirradiada, na margem superior do acetábulo; Linha de Perkins: traçada na borda lateral de cada acetábulo; A USG é indicada após manobra de Ortolani positiva, para determinar a severidade do quadro, sendo também realizada depois de 3-4 semanas em quadros com resultado duvidoso ou na presença de fatores de risco Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO o Quadrantes de Ombredane: criados pelo cruzamento das linhas acima. Normalmente, a cabeça do fêmur se encontra no quadrante inferomedial. Arco de Shenton: é uma formação contínua (em quadris saudáveis) entre o púbis e o colo femoral. Em casos de DDQ, há uma interrupção no traçado. Sua interpretação depende do posicionamento adequado da criança durante a radiografia. Representação das linhas e medidas radiológicas usadas na avaliação do quadril normal (esq.) e displásico (dir.) O maior objetivo no tratamento da displasia do desenvolvimento do quadril é a redução concêntrica e atraumática da luxação, sendo necessário manter a região em posição de flexão e adução até que se alcance a estabilidade da articulação. Sabe-se que isso se torna mais difícil com o aumento da idade da criança, pois alterações morfológicas cada vez mais acentuadas podem afetar o funcionamento da articulação. Quando o diagnóstico é feito até os 6 meses, o suspensório de Pavlik é a principal estratégia terapêutica, uma vez que o ajuste progressivo de posicionamento (manutenção da “posição humana”) evita novas luxações em 95% dos casos. Em caso de falha no tratamento ou diagnóstico tardio (após os 6 meses), a redução incruenta é a abordagem mais indicada, marcada por tração abdutora inicial (1-3 semanas), seguida por tenotomia percutânea e redução fechada da luxação. O procedimento é concluído com a imobilização com gesso pelvipodálico, reavaliado constantemente por radiografias e mantido por 3 meses. DDQ tratada com redução incruenta e gesso, com radiografias antes (sup. esq.) e depois (sup. dir.) do procedimento Em crianças de 18 meses a 8 anos de idade, a única forma restante de tratamento é a redução cruenta da luxação, realizada a partir de osteotomia corretiva (Salter ou Chiari) e uma tenotomia. O uso do gesso pelvipodálico também é recomendado dessa vez por 6 a 8 semanas. Caso não tratada, a DDQ pode tanto regredir espontaneamente quanto persistir com o crescimento, levando a alterações de marcha e postura, limitação de movimentos Não há benefício funcional em tratar a DDQ após os 8 anos de idade, dado o estado avançado da consolidação óssea anômala Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO e ao desenvolvimento precoce de osteoartrose no quadril. PÉ TORTO CONGÊNITO: O pé torto congênito (PTC) descreve uma deformidade complexa do pé, decorrente da presença de quatro anomalias básicas: Pé equino: causa elevação do calcanhar e rebaixamento do antepé; Pé cavo: aumenta a curvatura do pé; Pé varo: força a face plantar para a região medial; Pé aduto: antepé desviado medialmente. Apresentação do pé torto congênito Esse quadro é mais frequente em meninos e predominantemente bilateral, podendo ou não estar associado a outras desordens congênitas. No que se refere à etiologia dessa condição, as duas teorias mais aceitas atualmente são a de defeito no plasma germinativo, induzindo flexão plantar contínua e inversão óssea, e a que aponta anomalias em tecidos moles (especialmente nervos e músculos) como desencadeante primário. O diagnóstico é eminentemente clínico, pois a maioria dos ossos do pé não está ossificada, tornando-o radiotransparentes. Observa-se, no entanto, que radiografias são usadas como controle terapêutico e como forma de identificar alterações secundárias. Os achados clínicos mais comuns no PTC são o encurtamento do membro afetado (atrofia do tríceps sural e pé de tamanho menor), além de rotação medial da tíbia, formação de sulcos na pele dos pés e diminuição da mobilidade. A forma mais usual de classificação do pé torto congênito é o método de Pirani, baseado em seis sinais clínicos, pontuados em 0 (normal), 0,5 (moderadamente anormal) ou 1 (gravemente anormal): Borda lateral do pé (A); Prega medial (B); Cobertura do tálus (C); Prega posterior (D); Redutibilidadedo equino (E); Palpação do calcâneo (F). Itens classificadores no método de Pirani O grande objetivo do tratamento é a obtenção de um pé plantígrado (realiza apoio plantar ao andar), com manutenção da força, ganho de flexibilidade, ausência de dor e possibilidade de usar sapatos. Assim, pode ser usada a técnica de Ponseti, de aspecto conservador, na qual O PTC pode ser postural (mais flexibilidade, corrigível com manipulação e poucas trocas de gesso), verdadeiro (deformidades mais acentuadas e menor flexibilidade, porém ainda com bom prognóstico) ou teratológico (muito rígido, com dificuldade de correção e maior risco de recidivas, associado a outras síndromes) Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO são realizadas imobilizações gessadas sucessivas ao longo de 6 a 10 semanas, com trocas semanais que aumentam o grau de correção. Progressão dos gessos e melhora clínica durante tratamento com a técnica de Ponseti Ao final desse processo, a criança deve usar a férula de Denis Browne por mais 2 a 3 meses constantemente, sendo colocada apenas durante a noite por outros 2 a 4 anos. Criança em uso de férula de Denis Browne Em quadros refratários, é indicada realização de cirurgia para a liberação de partes moles (usando a incisão de Cincinnati) como forma de mover diretamente o pé para sua posição funcional. As principais complicações desse processo são a recidiva do PTC, hipercorreção, fraqueza muscular e rigidez local. DOENÇA DE LEGG-CALVÉ-PERTHES: A doença de Legg-Calvé-Perthes representa a necrose avascular da epífise femoral durante a infância, sendo comparada à necrose asséptica em adultos. Esse é um quadro autolimitado, ocorrendo principalmente em meninos com idade escolar (6-10 anos) Ainda que esse quadro seja idiopático, sabe-se que distúrbios de formação de trombos podem estar associados a seu desenvolvimento, induzindo a oclusão de arteríolas que suprem a porção superior do fêmur. Além disso, teorias apontam que traumatismos de repetição podem favorecer o surgimento de pequenos focos necróticos. O quadro clínico dessa doença cursa com claudicação e limitação das atividades em decorrência de dor no quadril ou joelho (regride com o repouso) e da limitação de movimentos. Posteriormente pode ocorrer atrofia da coxa e da panturrilha, que promove encurtamento do membro afetado como resultado do achatamento da cabeça e fusão da placa de crescimento. A evolução típica da doença de Legg- Calvé-Perthes se dá por meio de 4 estágios bem definidos, a saber: Condensação: há necrose e reabsorção de uma porção da cabeça femoral, com interrupção do crescimento, mesmo tempo em que ocorre a neovascularização do osso; Fragmentação: há o desenvolvimento de deformidades ósseas, que comprometem também a estrutura do acetábulo; Reossificação: a cabeça do fêmur volta a se ossificar pelo retorno da irrigação local; Remodelamento: o novo crescimento do fêmur leva a mudanças na interação articular entre esse osso e o quadril. Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO O diagnóstico desse quadro é feito pela associação clínica a exames de imagem, com radiografias em AP e Laurenstein (“posição de rã”) sendo suficientes para o prosseguimento do caso. Os sinais radiográficos mais precoces são a diminuição do núcleo epifisário com aumento do espaço articular, hiperdensidade e o “sinal do crescente” (fratura subcondral). A ressonância magnética apresenta elevada sensibilidade para o quadro, por vezes identificando achados sugestivos antes de sua aparição nas radiografias. A cintilografia também pode ser empregada em decorrência da capacidade de detecção de sinais sutis de reossificação e de interrupções vasculares, porém é um método invasivo, o que reduz sua aplicabilidade. No que se refere ao tratamento, os principais objetivos são impedir deformidades, evitar o desenvolvimento de artropatias degenerativas e limitar distúrbios no crescimento do membro. Nesse sentido, a abordagem geral consiste em manter o quadril esférico, mantendo o fêmur inserido no acetábulo de forma a garantir sua mobilidade. O tratamento conservador representa o método de escolha para a maioria dos pacientes, baseando-se no repouso no leito, diminuição da dor e movimentação controlada com fisioterapia. O uso da imobilização gessada de Petrie e da órtese de Atlanta pode ser observado, ainda que seja menos frequente em quadros de evolução longa, evitando prejuízos de força e mobilidade. Imobilização de Petrie (A) e órtese de Atlanta (B) usadas no tratamento da doença de Legg-Calvé- Perthes Para os casos mais graves, por sua vez, a cirurgia é a abordagem ideal, indicada em crianças > 7 anos ou com área de necrose maior que 50% da epífise. Esse procedimento promove a centralização da cabeça do fêmur no acetábulo, por meio da osteotomia do fêmur ou da osteotomia de Salter. Sobre o prognóstico, destaca-se como fator mais importante a idade da criança ao diagnóstico, sendo que indivíduos < 6 anos apresentam evolução melhor, em decorrência do maior período de adaptabilidade óssea disponível. A classificação de Catterall (grupos I-IV) pode ser usada para estimar o tipo de prognóstico de acordo com a extensão da reabsorção da cabeça do fêmur, sendo que degenerações extensas têm piores resultados. Júlia Figueirêdo – LOCOMOÇÃO E APREENSÃO Representação visual da reabsorção óssea da cabeça do fêmur na classificação de Catterall Por outro lado, classificação de Salter- Thompson baseia-se na extensão do sinal do crescente, subdividida em 2 grupos, enquanto a classificação de Hering depende da reabsorção do pilar lateral epifisário (quanto menor a lesão, melhor será a recuperação). Classificação de Hering Também foi Catterall que estabeleceu os “sinais de risco para a epífise femoral”, definidos como subluxação lateral, reabsorção do pilar lateral, calcificação lateral e horizontalização da placa epifisária
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