228 pág.

Pré-visualização | Página 7 de 50
4 . De outra forma não se explicaria o surgimento impetuoso de Manaus, em plena selva, borbulhante de vida, onde o trabalho do seringueiro era a ga- rantia de todos os negócios. Escrevia um autor contemporâ- neo: "... a Amazônia é a terra do crédito. Não há capitais. O seringueiro deve ao 'patrão', o 'patrão' deve à 'casa aviadora', a 'casa aviadora' deve à [casa] estrangeira, e assim segue" 5 . O aparecimento do regatão, rio acima, rio abaixo, porta- dor de um movimentado comércio ambulante que atinge o âmago da floresta, é uma das expressões dessa economia mer- cantil que brotou com o florescimento da extração da borra- cha. "Vende nos 'barracões', nas 'barracas', por toda a parte" 6 . Quanto a Manaus, chegava a "dar a idéia de uma pequena colméia. Só se vê gente chegada de todos os pontos do interior do Estado, indo e vindo, de um lado para outro, a tratar de ne- gócios, num açodamento de admirar... Assim é que se vê a to- do o momento os seringueiros entrando nas 'casas aviadoras', levando os saques que trouxeram dos seringais onde traba- lham. Porque o seringueiro não recebe o valor da borracha que 'fez' no seringal. Não. Ele vem recebê-lo na 'casa aviadora' do seringal, numa das praças de Belém ou Manaus". Acrescenta Guedes: "Cada ano entram no Ceará centenas de contos [de réis]. Há um sem-número de famílias que vivem do que lhes mandam os seus da Amazônia; estudantes que fazem os seus cursos, nos diversos institutos do País, com recursos de igual procedência" 7 . E a conclusão lógica: "... há na Amazônia mais liberda- de... " 8 Era a economia mercantil que proporcionava essa "li- berdade" ao antigo servo da gleba nordestino, que continuava preso ao seringalista, mas com uma diferença essencial para ele: ganhava dinheiro; comprava no barracão, mas também na cidade, no grande comércio; mantinha seus negócios com o 4 Euclides da Cunha possui uma página clássica sobre o aspecto mais impres- sionante e dramático do trabalho semi-servil dos nordestinos na Amazônia. Embora absolutamente verídica, é uma apreciação unilateral. Ver À mar- gem da História, 2.ª ed., Porto, 1913, págs. 27-33. 5 Mário Guedes, Os seringais, Rio, 1914, pág. 143 6 Idem, pág. 173. 7 M. Guedes, págs. 183 e 196. 8 Idem, pág. 197. 32 regatão que subia e descia o rio; adquiria visos de in- dependência. Aquele quadro de prosperidade da Amazônia refletia-se no Nordeste. Um escritor cearense indica esse reflexo quando informa: "O Ceará progredia [...] devido a alguns anos de es- tações regulares e sobretudo à grande alta da borracha no Amazonas, que derramou rios de dinheiro no Estado. Em 1910, quando a borracha chegou a dar 16 mil-réis por quilo, entraram para aqui cerca de 30 mil contos!... Em Fortaleza tu- do se valorizou. As casas subiram de preço e o comercio teve grandes lucros. Os paroaras tudo compravam sem regatear preço" 9 . Um grande número voltava ao Ceará, sobretudo nas épo- cas de queda do preço da borracha. Os latifundiários nordes- tinos, nos anos de chuvas normais, facilitavam esse regresso, que foi sempre cantado em prosa e verso por literatos da re- gião. Era o que precisamente queriam os latifundiários cearen- ses: que em condições "normais" lhes sobrasse a mão-de-obra dos que não tinham terra, dos que eram obrigados a vender pe- la comida de um dia o fruto do trabalho de 12 horas no cabo da enxada. O próprio Governo do Ceará, nos começos do sé- culo, mandava fornecer passagens para a volta dos emi- grantes 10 . Mas o homem que voltava não era o mesmo. Ao contato com outras gentes, com outras formas de vida social, a con- corrência desenfreada entre os donos de seringais, uma luta pela existência muito mais afanosa do que na pasmaceira do Nordeste, sua mentalidade se modificara. Um dos governado- res do Ceará nos começos do século XX, Benjamim Barroso, reconhecia, em mensagem à "Assembléia Legislativa estadual, este fato, que devia corresponder inteiramente à realidade: "Depois que se estabeleceu a corrente emigratória para a Amazônia [isto é, depois de 1877], é que os hábitos e costu- mes cearenses se modificaram" 11 . O governador lamentava is- so, pois essa modificação se manifestava principalmente num 9 R. Teófilo, Libertação do Ceará, Lisboa, 1914, pág 42 10 R. Teófilo, A Seca de 1915, Rio, 1922, pág. 83 11 Cit. Por A. Montenegro, História do cangaceirismo, pág. 77. 33 maior grau de inconformismo das populações sertanejas com a vida de miséria e fome e, portanto, em sua luta por uma exis- tência melhor. A luta só podia corresponder ao nível em que se encon- travam econômica e socialmente colocados os que constituíam a parcela mais explorada e oprimida da população, aqueles que nada possuíam e tinham algo a reivindicar, ainda que não sou- bessem formular claramente essa reivindicação. Faltava-lhes ainda a consciência de si mesmos, quando segundo Marx, a opressão se torna mais opressiva porque o oprimido possui a consciência de que o é. O despotismo dos potentados rurais havia, durante sécu- los, relegado os pobres do campo à condição de objetos. A classe-agrária dominante via no trabalhador da terra o escravo, que o era de fato e juridicamente. Mesmo com a Abolição, uma vez que não se processaram mudanças fundamentais no campo e o latifúndio foi mantido com todas as suas prerroga- tivas e privilégios, o trabalhador rural continuava a ser consi- derado um semi-escravo. O conceito de ser humano em rela- ção a ele não era válido para o grande proprietário. A classe dos pobres do campo se achava à margem da sociedade consti- tuída. Não tinha terra, nem outros bens, não tinha direitos, não tinha sequer deveres — além daqueles de servir ao senhor. Proliferando, em meio à miséria, seu número crescendo, o latifúndio estagnado não podia integrá-los totalmente em sua economia limitada. Temendo-os, dispersa-os. É a sua grande arma. A própria existência do latifúndio, açambarcando terras, expulsa-os de suas vizinhanças. Cria-se no Nordeste uma es- pécie de nomadismo permanente, que as secas só fazem au- mentar e dar características mais trágicas. É então que se jun- tam, ante o flagelo, reúnem-se nos caminhos para as longas jornadas em busca de pão e água. Jamais haviam tido laços es- treitos de solidariedade, isolados em choupanas perdidas nos ermos, a enormes distâncias umas das outras, sem formarem ao menos qualquer simulacro de aldeia. A seca expulsa-os e congrega-os. O acicate para a sua unidade é a fome. Ficavam então até mesmo sem os recursos da economia seminatural. A seca mata-lhes a criação, queima-lhes a roça e não lhes resta sequer a água barrenta da cacimba rasa, cavada com a enxada, 34 junto ao casebre. Contra a fome e a miséria que aumentam com a seca, manifestam-se dois tipos de reação da parte dos pobres do campo: a) a formação de grupos de cangaceiros que lutam de armas nas mãos, assaltando fazendas, saqueando comboios e armazéns de víveres nas próprias cidades e vilas; b) a formação de seitas de místicos — fanáticos__ em torno de um beato ou conselheiro, para implorar dádivas aos céus e remir os pecados, que seriam as causas de sua desgraça. 35 3 Os Cangaceiros NUM MEIO EM QUE TUDO LHE É ad- verso, podia o homem do campo permanecer inerte, passivo, cruzar os braços diante de uma ordem de coisas que se esboroa sobre ele? Euclides da Cunha já compreendera que o homem do ser- tão [...] está em função direta da terra" 1 . Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê-se atena- zado pelo domínio