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1 Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Desenvolvimentismo e Neoliberalismo no processo de formação do MERCOSUL: As relações Brasil e Argentina, a crise do modelo desenvolvimentista e a adoção do neoliberalismo no processo de integração econômica do cone-sul. Renan Moreira da Silva de Mello Orientador: Prof. Dr. Bernardo Kocher Niterói, julho de 2011 2 Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Desenvolvimentismo e Neoliberalismo no processo de formação do MERCOSUL: As relações Brasil e Argentina, a crise do modelo desenvolvimentista e a adoção do neoliberalismo no processo de integração econômica do cone-sul. Renan Moreira da Silva de Mello Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção dos títulos de Bacharel e Licenciado em História. Área de concentração: História Econômica e Social. Subárea: História das Relações Internacionais. Orientador: Prof. Dr. Bernardo Kocher Niterói, julho de 2011 3 Agradecimentos Expresso aqui meus agradecimentos: Ao professor Dr. Bernardo Kocher por toda a confiança depositada em mim, por todas as oportunidades acadêmicas concedidas, por todo o conhecimento cedido em diversos períodos e em diversas disciplinas, por todos os aconselhamentos, principalmente por ter sido responsável pela luz que foi para minha vida começar a estudar História das Relações Internacionais. À Universidade Federal Fluminense, por todas as experiências acadêmicas produtivas proporcionadas pela instituição e pela qualidade dos serviços burocráticos e do corpo docente sustentado pela mesma, em especial aos componentes do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. À secretária Juceli por toda a ajuda em momentos complicados em períodos de ajustes, em questões burocráticas, em erros de histórico, e em tudo o mais que poderia ter acontecido dentro de um sistema de gestão de uma instituição pública de ensino superior que zela pela qualidade. Aos amigos do curso de graduação em História, com quem dividi todos esses anos, em especial Guilherme Barreto, Daniel Borges e Walter Passos que caminharam comigo toda essa jornada, me apoiando nos momentos mais difíceis e Amanda Cardoso que foi a amiga do curso que mais entendia minhas aflições ao querer estudar Relações Internacionais em uma graduação em História, pois passou pelo mesmo dilema. Agradeço à Pâmella Barroso Franco por ter sido compreensiva e ter ficado ao meu lado me dando força nos últimos meses da minha graduação, suportando os momentos de privações e dificuldades causados pelos prazos para a conclusão desta monografia. Agradeço especialmente a toda a minha família e aos meus amigos, em especial Yuri Mendes da Silva e Vinícius Rodrigues, que estiveram ao meu lado durante todos esses anos me dando suporte emocional para que eu concluísse essa etapa. Agradeço ao meu avô Osvaldo Januário do Nascimento e minha avó Sânia Moreira da Costa por toda a dedicação dada ao longo da minha vida. Graças a eles estou aqui agora, completando esta etapa e galgando lugares maiores. Agradeço a minha mãe Márcia Regina Moreira Mello e ao meu pai Paulo César da Silva de Mello por todo o apoio, carinho e dedicação que me deu forças para nunca desistir. Agradeço a Marcelo Ferreira de Menezes e Cleide de Oliveira França por complementarem o carinho e o apoio que vem da minha família. 4 Resumo O presente trabalho busca compreender o processo, que teve seu início político- diplomático/simbólico no Acordo Tripartite Corpus-Itaipu (1979), e que culminou na assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, responsável pela criação do Mercado Comum do Sul. Esta análise se baseia nos estudos da política interna e externa dos principais países do bloco, Argentina e Brasil. O foco do trabalho se baseia, em vários momentos, nas características econômicas destes países, pois a proposta da pesquisa é demonstrar a relação entre a mudança do caráter desenvolvimentista para uma postura neoliberal, durante os processos de redemocratização argentina e brasileira, e como essa mudança interfere na evolução do processo de integração econômica da região. 5 Sumário Introdução........................................................................................................................6 Capítulo 1: O desenvolvimentismo no pragmatismo responsável de Geisel..............8 1.1 Início da transição para o regime democrático..........................................................10 1.2 A aproximação diplomática com a Argentina...........................................................12 Capítulo 2: Redemocratização e crise do modelo desenvolvimentista no governo Figueiredo.......................................................................................................................15 2.1 A política universalista de Figueiredo.......................................................................18 2.2 As relações com a América latina e os países do Prata.............................................20 Capítulo 3: Neoliberalismo e as relações Brasil x Argentina (Sarney – Alfonsín e Collor - Menem).............................................................................................................25 3.1 Collor e Menem: às portas do MERCOSUL.......................................................28 Conclusão.......................................................................................................................31 Bibliografia.....................................................................................................................33 6 Introdução Os processos de integração regional vêm se desenvolvendo ao longo do século XX nos principais continentes do cenário econômico internacional. Na Europa, a União Européia já é uma realidade, como o Nafta na América do Norte e a APEC, composta por países da Ásia e que são banhados pelo oceano pacífico. Na América do Sul não é diferente. Hoje vemos o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) como uma realidade, mas nem sempre foi assim, havendo momentos em que a idéia de uma integração entre os países da bacia do prata não passava de uma aspiração quase utópica, graças a contenciosos diplomáticos de resoluções extremamente difíceis. O presente trabalho se propõe a analisar – especialmente a partir da ótica brasileira, passando pontualmente pela história argentina, sem esquecer Paraguai e Uruguai – o processo histórico que levou à assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, criando assim o MERCOSUL. Todo o trabalho se baseia em análises que vão do contexto político/econômico interno do país até a esfera do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a diplomacia praticada pelos países envolvidos. Todo esse ideal de cooperação que, posteriormente viria a ser um projeto de integração regional, não surgiu imediatamente na década de 1980. Desde os tempos de colônia e de império, passando pela definição das fronteiras nacionais proporcionada pelo Barão do Rio Branco, as relações com nossos vizinhos tem sido pauta relevante, e por vezes principal, da política externa brasileira. Não só o Brasil possuía esse interesse na diplomacia com os países de fronteiriços ou possuidores de fronteiras próximas. Outros países que compreendem a América Latina também o tinham. Sendo assim, em certo momento, a cooperação entreos vizinhos se mostrou a melhor alternativa diplomática para uma relação política e econômica produtiva e eficiente entre tais países. Com isso, esforços foram sendo desenvolvidos com esse intuito até que, na década de 1960, surge a Associação Latino Americana de Livre Comércio, a ALALC, tendo como membros iniciais Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. A ALALC era um reflexo de ambições diplomáticas para um projeto de integração comercial na região e propunha a criação de uma área de livre comércio na América latina. Não obteve sucesso. Na década de 1980, através do Tratado de Montevidéu 1980, a ALALC foi substituída pela ALADI (Associação Latino Americana de Integração), um organismo intergovernamental, sediado em Buenos Aires, que anseia uma integração ao nível da criação de um mercado comum latino-americano. Sendo assim, a ALADI busca a 7 redução e a conseqüente eliminação das barreiras ao comércio entre os países-membros, além de renovar o processo de integração regional e promover um desenvolvimento econômico e social da região de forma harmônica. Além desses organismos, vemos ainda na América latina a existência da União das Nações Sul Americanas (UNASUL), da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP), o Fórum sobre a Iniciativa da Bacia do Pacífico Latino-Americano (Arco do Pacífico) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Todos esses organismos simbolizam os esforços diplomáticos e os anseios dos países estabelecidos na América Latina em busca de um aumento de cooperação beirando a integração, que várias vezes chega a ser desejada. Assim, o objeto de estudo central desta pesquisa se mostra extremamente relevante para o estudo do contexto da política internacional da esfera latina do continente americano. A análise percorrerá os períodos dos dois últimos governos militares do período da ditadura brasileira, tendo pontos de análise comparativa com o regime político argentino, incluindo a política externa de ambos os países, principalmente na questão que aborda a resolução contencioso de Itaipu e a aproximação entre Brasil e Argentina após este episódio. Tratará também o período de reabertura política, tanto no Brasil quanto na Argentina, durante a década de 1980. A influência desse processo de redemocratização no âmbito da política externa e nas posições de Brasília, Buenos Aires, Assunção e Montevidéu acerca do projeto de integração regional. No viés economicista, a pesquisa abordará a crise do sistema desenvolvimentisa presente no Cone Sul até o início dos anos 1980. O cenário internacional que dificultou extremamente a feitura de uma diplomacia voltada para o desenvolvimento nacional, levando à necessidade da implementação de um regime de caráter neoliberal, baseado nas ambições da potência que viria ser a vencedora da Guerra Fria, através do Consenso de Washington. A pesquisa procurou também abordar o impacto desta mudança de mentalidade político/econômica da região no andamento do processo de integração, que havia sido pensado na lógica desenvolvimentista, mas implementado em uma lógica neoliberal, concluindo-se o trabalho então na assinatura do Tratado de Assunção e no conseqüente nascimento do que viria a ser conhecido como Mercado Comum do Sul, ou simplesmente MERCOSUL. 8 1. O desenvolvimentismo no pragmatismo responsável de Geisel O governo do presidente militar Ernesto Beckmann Geisel ficou marcado como sendo o período em que o Brasil viveu o auge e o declínio do modelo desenvolvimentista. O milagre econômico brasileiro já começava a demonstrar alguns sinais de esgotamento em 1973. Ao entrar no poder, em março de 1974, o general Geisel se deparou com os efeitos negativos que a crise do petróleo estava causando na economia global e, consequentemente, na economia brasileira. Na tentativa de dar continuidade ao crescimento expressivo e também diminuir os efeitos da crise do petróleo na economia brasileira, Geisel adotou medidas técnicas e econômicas no plano interno que teriam como agente principal o Estado. O funcionamento da economia brasileira estava baseado em grande parte em um modelo que necessitava do afluxo de investimentos de capitais estrangeiros, da importação de energia barata e de tecnologias também importadas. Com a crise do petróleo não só as importações e o combustível se tornaram mais caros, a recessão nos países desenvolvidos também diminuiu os investimentos na economia brasileira e causou uma queda no volume de importações dos produtos brasileiros por parte desses países. Para lidar com esse contexto, a nova equipe econômica, formada por Mário Henrique Simonsen no Ministério da Fazenda e João Paulo dos Reis Velloso no Ministério do Planejamento, desenvolveu o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), lançado por Geisel em setembro de 1974. O objetivo deste programa não era adotar medidas defensivas para a economia, mas sim promover um aprofundamento do projeto de industrialização por substituição de importações, com o intuito de tornar a economia brasileira auto-suficiente em insumos básicos e, se possível, em energia. Nesse momento, o governo lançou um grande programa buscando diversificar as fontes energéticas do país. Foram lançadas construções de hidrelétricas, usinas nucleares, incremento da extração de petróleo e o programa para a produção de álcool como combustível automobilístico (Proálcool). O esforço estatal também se voltou para a capacitação tecnológica do país, investindo na nascente área de informática e também na área de petroquímica. Esse papel do Estado, tornando-se o maior agente produtivo da economia brasileira, possibilitou a reação econômica que o governo ansiava frente à crise vigente. A crise econômica obrigou o governo a cortar gastos, mas mesmo assim o Brasil sustentou um crescimento econômico que oscilou entre 5% e 10% ao ano, criou milhões de empregos e aumentou consideravelmente as exportações. Porém a balança comercial 9 não era favorável, já que as importações continuavam elevadas. Para contornar isso o governo aumentou as tributações, agravando tensões sociais, e recorreu a empréstimos externos que, com a exorbitante elevação dos juros da dívida nos anos 1980, levariam a economia brasileira a uma situação calamitosa. Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro buscava maneiras de enfrentar a crise econômica provocada pela questão do petróleo, Geisel via o crescimento de uma “crise interna”, caracterizada por questões político-econômicas. A crise financeira atingiu principalmente o empresariado brasileiro que passou então à posição de contestador do regime. Neste momento grupos que desejavam a democratização foram legitimados e o processo de abertura lenta e gradual, defendido pelo general Golbery do Couto e Silva, passou a sofrer oposição de setores da direita. Atentados à bomba, assassinatos, sequestros e espancamentos de personalidades e militantes políticos antigovernamentais, comandados por bolsões repressivos autônomos, passaram a ilustrar os noticiários e pressionar cada vez mais a figura do presidente Geisel que agiu de maneira firme no tratar destes episódios. A postura “linha-dura” do general- presidente não recaiu somente sobre a direita. Os excessos dos órgãos de segurança também se refletiam na oposição, criando assim um papel de equilíbrio na figura de Geisel, indispensável ao processo de abertura que estava se iniciando e, com isso, propiciando-lhe ainda certa legitimação. Nesse contexto, de acordo com Paulo Vizentini, “a “abertura lenta e gradual” convivia com o conceito presidencial de “democracia relativa ou ilimitada”.”¹ Essa instabilidade política na qual se encontrava o país teve reflexos tanto nas políticas econômicas internas, quanto no desenvolvimento da diplomaciadenominada Pragmatismo Responsável e Ecumênico, especialmente nos acordos da bacia do prata. A necessidade de cooperação técnica e econômica com os países do prata, em especial com a Argentina, fizeram com que a diplomacia brasileira reitera-se suas repulsas por hegemonias, demonstrando que o Brasil não pretendia ser hegemonia e nem toleraria posições semelhantes. Nesse ritmo ditado pelo pragmatismo responsável e pela posição não-hegemônica da diplomacia brasileira, inúmeros acordos foram selados com Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina. Essas relações bilaterais tinham como objetivo uma cooperação que trouxesse resultados para a postura desenvolvimentista adotada por Geisel. ¹ Paulo Fagundes Vizentini, A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985), 2ª Ed. (Rio Grande do Sul, Ed.: UFRGS, 2004). Pg: 200. 10 1.1 Início da transição para o regime democrático O pensador militar Golbery do Couto e Silva, cérebro da ESG (Escola Superior de Guerra), era adepto da tese de que períodos políticos de grande repressão deveriam ser sucedidos por períodos de maior abertura e liberdade. Durante o governo Geisel, Golbery percebeu que era chegado o momento de iniciar uma transição lenta e gradual para um regime democrático, evitando assim que a instituição das forças armadas tivesse sua identidade severamente abalada e também possibilitando uma transição “segura”, sob o controle do poder militar até então instituído. Esse lento processo de liberalização que Maria Helena M. Alves chama de “um programa de medidas de liberalização cuidadosamente controlada (...), que pretendia constituir um passo adiante na liberalização progressiva, para um retorno à democracia”², se refletiu também nas ações diplomáticas do governo Geisel e é esse viés que importa nesta análise. O período Geisel possuiu alguns marcos diplomáticos que demonstram a mudança no viés com o qual a diplomacia brasileira passaria a trabalhar então. O pragmatismo responsável se fez perceber na superação do alinhamento ideológico em prol de medidas favoráveis ao Brasil como, por exemplo, a aproximação à República Popular da China, o reconhecimento da independência de Angola em janeiro de 1975, a defesa da criação do Estado-Nacional palestino e a assinatura do acordo de cooperação nuclear com a República Federal da Alemanha, em novembro de 1975, tendo este último evento confrontado os interesses norte-americanos para a América latina, pois os Estados Unidos faziam a leitura de que essa busca por conhecimento e poder nuclear afetaria os planos de hegemonia norte-americana para o cone-sul. Por mais que Golbery do Couto e Silva defendesse o início de uma transição lenta e gradual para uma maior liberalização e uma consequente redemocratização, essa possível mudança de atitude ainda não era sentida pela população e foi nessa questão que os Estados Unidos encontraram o ponto eficaz para atacar o governo Geisel na tentativa de pressionar o governo brasileiro sobre a questão energética nuclear. Durante o mandato presidencial de Jimmy Carter, houve pressões políticas sob o pretexto de ser uma “política dos direitos humanos”. No cenário internacional, essa política criou um clima favorável aos oposicionistas do governo Geisel que puderam então reivindicar, com mais peso, uma aceleração no programa de retorno do estado de direito. 2 Apud Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição rio Brasil (1964-1984) (Petrópolis, Vozes, 1984), p.186. 11 A postura norte-americana sempre possuiu um peso relevante na conjuntura política da latino-américa. Sendo assim, o estudo das relações entre Brasília e Washington são fundamentais para a compreensão de toda a relação política que envolvia os países da bacia do prata. A partir disso é vital para esta análise ressaltar que a intromissão dos EUA nos assuntos internos brasileiros pôde ser vista como um “sensor” do pragmatismo responsável de Geisel e do grau de ruptura com a política de fronteiras ideológicas. No episódio já citado, referente à pressão do presidente Carter sobre o governo Geisel, apoiando-se nas questões humanitárias, o auge do mal-estar diplomático ocorreu quando Jimmy Carter adiou sua visita ao Brasil, enviando em seu lugar sua esposa Rosalynn e quando o senado norte-americano decidiu condicionar a ajuda militar dada ao Brasil à relatórios sobre a situação dos direitos humanos no país. A decisão do governo brasileiro, no intuito de mostrar o seu desagrado com a postura do senado norte-americano, foi a de denunciar os acordos militares entre os dois países, em setembro de 1977. Apesar da decisão não possuir efeitos práticos, já que a indústria nacional era capaz de suprir a maior parte das encomendas das forças armadas, o peso simbólico era inegável: o Brasil superava ainda mais as questões acerca do alinhamento ideológico na sua política externa.³ O afastamento entre Brasília e Washington também foi econômico, principalmente quando produtos manufaturados brasileiros começaram a entrar no mercado interno norte-americano. Apesar desses contenciosos, o Brasil não saiu prejudicado, pelo contrário, intensificou suas relações com outros países ocidentais e com o Japão, sendo reconhecido como vanguardista dos países em desenvolvimento. No âmbito da América latina, a busca pela eficiência e pelos resultados positivos por parte da diplomacia brasileira encontrou algumas dificuldades relevantes. As questões históricas envolvendo os países do cone-sul e a proximidade das fronteiras, além do temor por uma ambição de hegemon por parte do Brasil, dificultavam os acordos diplomáticos entre o Brasil e demais países latino-americanos. Voltando a análise para a realidade interna brasileira nesse início de processo de reabertura política é possível perceber que houve mais impactos nesse contexto causados por esse processo de liberalização do que causados pela política externa. Mesmo com a revogação de instrumentos de repressão política, como o AI-5 em 1978, 3 Williams da Silva Gonçalves e Shiguenoli Miyamoto, Os Militares na política externa brasileira: 1964- 1984 (Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 1993) p. 25 12 o governo utilizou alguns atos liberais com o intuito de afrontar alguns divergentes políticos, como foi o caso envolvendo a igreja católica que, ao se tornar opositora do regime autoritário viu o governo aprovar uma Emenda Constitucional que liberava o divórcio no Brasil, em 1977. Ao passo que isso ocorria, alguns setores da direita demonstravam serem contrários ao processo de abertura política enquanto que setores da sociedade se manifestavam contrariamente ao governo. Como já citado anteriormente, “A “abertura lenta e gradual” convivia com o conceito presidencial de “democracia relativa ou limitada”.” Nesse período, o presidente Geisel precisou lidar com uma série de atentados a bomba, sequestros, espancamentos e assassinatos de militantes políticos antigovernistas e personalidades. Assim, Geisel precisou e agiu com firmeza contra os órgãos de elevada autonomia, pois alguns destes estavam vinculados aos episódios citados. Sua postura foi a de exonerar altos oficiais de seus postos no intuito de fazer valer sua autoridade, amenizar a situação política e poder dar continuidade ao processo de abertura lenta e gradual. Suas decisões foram acertadas a tal ponto que Ernesto Geisel conseguiu fazer um sucessor empenhado em concluir o processo de transição democrática, o general João Batista de Oliveira Figueiredo, que assumiria um mandato de seis anos. 1.2 A aproximação diplomática com a Argentina As relações entre Brasil e Argentina sempre foram marcadas historicamente por divergências políticas e diplomáticas, seja pela proximidade de fronteiras,seja pela ambição do controle político-econômico-militar do cone-sul do continente americano. Um exemplo que retrata bem a relação que os países mantinham um com o outro eram os treinamentos estratégicos das academias militares brasileiras. Normalmente nas simulações de estratégia e combate o inimigo figurativo possuía características militares e geográficas muito semelhantes às apresentadas pelas forças armadas argentinas e às fronteiras com tal país. Isso demonstrava claramente que o inimigo em potencial para o qual as forças armadas brasileiras sempre se prepararam era muito provavelmente a Argentina, explicitando que as relações políticas e diplomáticas com este país não eram sólidas ou muito amistosas. Apesar de inicialmente se ter a impressão de que Brasil e Argentina possuíam laços ideológicos próximos, já que ambos viveram regimes ditatoriais em períodos semelhan- 13 tes (no Brasil um regime de 20 anos e na Argentina um regime de 14 anos) e durante a mesma época. Entretanto, a análise mais detalhada dessas duas realidades demonstra pontos divergentes fundamentais e que servem para expressar a relativa ausência de prováveis laços ideológicos entre ambos os regimes. Enquanto no Brasil o período da ditadura militar possuiu cinco presidentes militares e não passou por grandes crises internas, na Argentina treze governantes passaram pelo poder, sendo sete militares, cinco civis e um ex-militar. Além disso, a ditadura argentina, diferente do Brasil, não foi contínua, tendo havido dois regimes militares distintos. Essas características políticas do período portenho analisado demonstram a diferença política entre Brasil e Argentina à época e, por isso, a dificuldade em elaborar acordos bilaterais entre Brasília e Buenos Aires. Um dos pontos fundamentais das relações bilaterais entre Brasil e Argentina era a questão envolvendo a utilização do potencial hidroelétrico de Itaipu. A posição brasileira sobre o projeto era a de não ceder às pressões por alterações que visavam os interesses argentinos, ao mesmo tempo em que o Itamaraty possuía a cautela de não levar a discussão desse assunto com Buenos Aires ao ponto máximo de estresse e possível ruptura. No ano de 1976 teve início na Argentina um período que se autodenominou “Processo de Reorganização Nacional” e instalou no poder uma junta militar, dando início a um período de ditadura. Os militares que assumiram o poder viam no projeto Itaipu mais uma tentativa de instaurar ao velho programa geopolítico brasileiro de hegemonia sobre a região da bacia do prata e as boas relações entre Brasil e Bolívia e Brasil e Paraguai, isolando geopoliticamente a Argentina, eram um agravante às preocupações em Buenos Aires. Porém, a estabilidade política que marcou o governo do presidente Jorge Rafael Videla (1976-1981) foi um ponto chave para a mudança de postura nas relações bilaterais entre Brasil e Argentina. O contencioso sobre o projeto de Itaipu e a inicial e ferrenha oposição argentina às propostas brasileiras possui um ator chave e fundamental nas relações diplomáticas na região do prata e, principalmente, no que tange à questão da utilização do potencial hidroelétrico ali presente, o Paraguai. O projeto de Itaipu envolvia inicialmente Brasil e Paraguai, ao mesmo tempo em que o primeiro não possuía intenções de realizar alterações em prol dos interesses argentinos. Assim, como já citado anteriormente, Buenos Aires se viu isolada geopoliticamente em uma questão de extrema relevância para os interesses argentinos na região. Com isso, a Argentina se viu na necessidade de 14 elaborar uma resposta aos movimentos diplomáticos de Brasília e essa resposta veio na forma de um outro projeto para a mesma região, envolvendo Argentina e também Paraguai, o projeto hidroelétrico de Corpus. De acordo com Shiguenoli Miyamoto e Williams Gonçalves, “ao mesmo tempo em que forçava o Brasil a um diálogo nazis franco, devido aos problemas técnicos levantados pela coordenação dos dois projetos, impedia a considerada total satelitização do Paraguai pelo Brasil.” 5 Com essa medida e ainda sobre o contencioso de Itaipu a Argentina, na ótica realista das relações internacionais e sob a análise do general argentino Juan Enrique Guglialmelli, restavam aos portenhos três alternativas: a) aceitar a situação; b) enfrentar o Brasil; c) negociar com o Brasil. O próprio general Guglialmelli era a favor da última opção. A questão que envolve Itaipu representa para a Argentina um problema geopolítico e militar ao ponto em que o Brasil teria o controle dos rios que atravessam a região mais rica do país, ao mesmo tempo em que o potencial energético do Brasil teria um aumento exorbitante, dando o suporte necessário para a expansão econômica e industrial do país que mais representa uma ameaça estratégica à nação argentina. Seguindo a terceira alternativa citada por Guglialmelli, durante todo o período do governo de Geisel, no Brasil, e Jorge Videla, na Argentina, negociações envolvendo os dois projetos (Itaipu e Corpus) e os três países (Brasil, Argentina e Paraguai) foram sendo desenvolvidas, até que no dia 19 de outubro de 1979, já durante o mandato do presidente Figueiredo, no Brasil, chegou-se a um acordo comum e então pôde ser elaborado o Acordo Tripartite Itaipu-Corpus, um acordo multilateral, envolvendo Brasil, Argentina e Paraguai 6. A assinatura deste acordo traz à região a estabilidade política, sensação de paz e a tranquilidade que o ex chanceler Celso Lafer considerou como sendo fundamental para “o desenvolvimento do espaço nacional, o vetor predominante da política externa do Brasil pós-Rio Branco.”7. Além disso, é de extrema importância ressaltar que a estrutura, os atores envolvidos e a proposta deste acordo podem caracterizá-lo como tendo sido o embrião do que futuramente seria conhecido como Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). 5 Shiguenoli Miyamoto e Williams Gonçalves, op. cit., p.26. 6 No momento da assinatura do Acordo Tripartite Itaipu-Corpus, a presidência dos três países envolvidos era ocupada por militares: no Brasil o General João Batista Figueiredo; na Argentina o Ten. General Jorge Rafael Videla; no Paraguai o General Alfredo Stroessner. 7 Apud Celso Lafer, O Brasil e o Mundo. In: Ignacy Sachs, Jorge Wilheim e Paulo Sérgio Pinheiro (org.) Brasil: um século de transformações. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. Pg. 165. 15 2. Redemocratização e crise do modelo desenvolvimentista no governo Figueiredo O governo do presidente João Baptista Figueiredo, iniciado em 15 de março de 1979, estava fadado a ser o último governo com as características políticas do período da ditadura militar no Brasil. O então “presidente da abertura”8 contou com o apoio do General Gobery do Couto e Silva, que chefiou a casa civil até o ano de 1981 e foi o principal estrategista do processo de abertura política que Figueiredo daria continuidade e concluiria no final do seu mandato. O último governo da ditadura militar foi marcado inicialmente por um crescimento das manifestações de oposição ao regime, uma intensa mobilização social, uma reação da direita à distensão e o agravamento da crise econômica e da situação internacional. O “milagre econômico”, que era um dos principais sustentáculos práticos e um importante amenizador das tensões características de regimes ditatoriais militares, nem de longe era o mesmo, ou melhor, estava em uma profunda crise. A realidade econômica brasileira caminhava aparentemente para um colapso, vítima em partes da situação econômica internacional, abalada por duas crises do petróleo em menos de uma década. Mas, apesar de todas as complicações apresentadas no início do mandato, o general Figueiredo procurou cumprir o seu juramento realizado durante o discurso de posse que prometia “fazer deste país umademocracia”. Assim, apesar das divergências surgidas durante o processo, o objetivo da redemocratização sempre esteve em pauta. No âmbito das relações internacionais, o Brasil precisou lidar com uma situação política/econômica crítica logo no primeiro ano de governo do presidente Figueiredo: a Revolução Iraniana, o Segundo Choque do Petróleo e, no ano seguinte, a guerra Irã- Iraque. Além disso, no mesmo período assistimos o fim da détente, marcada por uma enérgica reação norte americana que se intensificaria durante a Era Reagan e também os efeitos da rearticulação das formas de produção pela qual a economia mundial passou durante a década de 1970, fruto de uma nova divisão internacional da produção e do desencadeamento de uma Revolução Técnico-científica, responsável por ampliar novamente a distância entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento. Todos esses pontos ditavam o cenário no qual o Itamaraty precisaria lidar e levantavam as questões que o Brasil precisaria solucionar para tentar recuperar o vigor econômico dos anos dourados do “milagre” e concluir o processo de redemocratização sem maiores turbulências. 8 Paulo Fagundes Vizentini, op. cit., p. 62. 16 No contexto interno, as relações entre a sociedade e o governo e, consequentemente, o apoio dado pelos diversos setores sociais às medidas adotadas pelo país nas relações internacionais estavam em transformação. Não só se iniciava o período de transição política interna, mas também se iniciava uma mudança no paradigma da política externa brasileira. O modelo econômico brasileiro, baseado no nacional desenvolvimentismo e presente desde a Equidistância Pragmática do primeiro governo de Getúlio Vargas ou na Barganha Nacionalista9 do seu segundo mandato, estando presente também na Operação Pan americana de Juscelino Kubitschek, passando pela Política Externa Independente de Jânio Quadros e João Goulart e chegando ao Pragmatismo Responsável de Ernesto Geisel, não cabia mais. Tal modelo foi duramente afetado pelas duas crises do petróleo da década de 1970 (1973 – guerra do Yom Kipur / 1979 – Revolução Iraniana) e pelo choque dos juros, promovido pelo FED (Federal Reserve System – Banco Central dos EUA) no final da década de 1970 e início dos anos 80. Como consequência desses episódios, o “milagre econômico” brasileiro havia se tornado somente uma lembrança nostálgica, a década de 1980 viria a ser conhecida como a década perdida quando o assunto é a economia da América latina e a economia brasileira passou a fazer esforços para conseguir somente saldar os compromissos com as dívidas externas, ou seja, todo o poder de investimento necessário para a manutenção de um modelo desenvolvimentista não mais existia na economia do Brasil. Sendo assim, como cita Geisa Cunha Franco, “a década de 1980 caracteriza-se como um momento de transição não apenas política, mas também do modelo econômico adotado no Brasil e de sua forma de inserção internacional.” (FRANCO, 2008, Pg. 40). Seria aberto então o espaço necessário para a implementação de modelos de Estado na América latina influenciados pelo neoliberalismo, os quais Amado Cervo chama de “Estado normal e Estado logístico” (CERVO, 2008, Pg. 457). Essa influência neoliberal na economia de países do cone sul será trabalhada mais adiante. A política externa brasileira sentiu também os ares do processo de redemocratização. A demanda popular e também por parte da imprensa pela participação da sociedade civil na formulação da política externa era evidente. Isso não se dava por existir um descontentamento ou uma desaprovação por parte da sociedade 9 Expressão elaborada por Gerson Moura para designar a postura de Vargas durante a segunda guerra mundial que oscilou entre o apoio à Alemanha e aos EUA para aumentar o poder de negociação. (Apud PINHEIRO, 2004, pg. 23-27). 17 em relação à política externa do governo anterior ou das medidas tomadas pelo Itamaraty durante o governo vigente do general Figueiredo. Essas manifestações ocorriam sendo fruto de uma nova realidade que vinha sendo construída. O novo cenário econômico, a posição de oitava maior economia do mundo ocupada pelo Brasil e a entrada no cenário político de novos atores*, traziam a necessidade de uma maior participação da sociedade civil no que tangia as decisões daquele que havia mantido um maior grau de autonomia** dentre todos os ministérios durante o regime militar e que era reconhecido pela opinião pública como detentor de grande competência e qualificação, o Ministério das Relações Exteriores. Foi possível perceber o peso que a opinião pública passou a exercer nas decisões do Itamaraty a partir da análise de alguns episódios pontuais como, por exemplo, quando foi divulgada a possibilidade de uma visita de Figueiredo ao Chile, que vivia uma rigorosa ditadura sob os mandos de Augusto Pinochet. Nesse episódio o jornal O Estado de São Paulo citou que essa viagem poderia, junto à opinião pública, “prejudicar a imagem da abertura política”10. Outro episódio relevante para este assunto foi quando se cogitou o envio de tropas brasileiras para uma Força Internacional de Paz no Líbano, o então Ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, considerou que se tratava de uma missão muito cara e disse a um repórter: “Além disso, se morrer um soldado, a imprensa e a opinião pública começarão a criticar a decisão”11. Outro ponto relevante a ser citado, apesar de não fazer parte do ponto central desta obra, eram as relações Brasil x Estados Unidos, que estavam muito abaladas graças a eventos pontuais ocorridos no governo anterior ao de Figueiredo. Durante o mandato do general Geisel, a política dos direitos humanos, lançada pelo presidente americano Jimmy Carter e que censurou o regime militar brasileiro, somada à aliança nuclear entre Brasil e Alemanha, resultaram em um abalo nas relações bilaterais entre Brasília e Washington. Durante o governo Figueiredo, a política externa brasileira assumirá um caráter considerado universalista, adaptando-se à crescente “mundialização do sistema 10 Apud Jornal O Estado de São Paulo, 11/11/1979, Pg. 14. 11 Apud Jornal O Globo, 06/12/1982, Pg. 05. * Vitória do MDB nas eleições legislativas de 1974 e o processo de abertura política sendo tocado adiante durante o governo Geisel e Figueiredo, trazendo possibilidades de ambições democráticas para a o cenário da discussão política do período. ** Um maior grau de autonomia relativo não significava uma total ou grande autonomia. Muitas das decisões do MRE estavam atreladas às opiniões das áreas militares ou dos ministérios econômicos. 18 internacional” (GONÇALVES, 1993, Pg. 28), e isso influenciaria a postura do MRE tanto nas relações com os Estados Unidos como em outras bilaterais ou multilaterais. 2.1 A política universalista de Figueiredo Saindo do rótulo do Pragmatismo Responsável do governo Geisel e chegando ao que ficou conhecido como Universalismo durante o governo do general Figueiredo, não se vê de fato uma mudança de curso na política externa. De acordo Sônia de Camargo, “o que houve, talvez, foi uma mudança de estilo – uma diplomacia menos secreta e com um diálogo mais aberto com o Congresso Nacional”12. Na realidade, a nova postura da política externa brasileira era um “amadurecimento” do que antes fora apresentado como pragmatismo. A estratégia aplicada nas relações internacionais, voltada para o interesse nacional, se apresentava agora em medidas coerentes e bem articuladas. Sob a chancela do diplomata Ramiro Elísio Saraiva Guerreiro, o Ministério das Relações Exteriores assumiria então uma postura na política externa baseada na dignidade e na boa convivência, adaptando-se assim à crescente mundialização do sistema internacional e desenvolvendo uma política internacional adequada às característicasdo Estado brasileiro que, ao mesmo tempo, integra o Terceiro Mundo e compartilha valores e ambições com o ocidente desenvolvido. Por essa característica peculiar brasileira, foi necessária uma política externa não excludente a nenhum dos grupos presentes no palco internacional. Com isso, a proposta do universalismo foi bem adequada à realidade do Brasil no contexto trabalhado. Um trecho de uma conferência de Saraiva Guerreiro expõe claramente a proposta da política universalista: "O universalismo é componente interno aos objetivos de paz, que orientam a política externa brasileira. Um perfil universalista, para não ser um artificio, deve partir da aceitação da diversidade. Deve admitir a diferença de tendências, e entender que os laços sólidos entre países são construídos na plena percepção dessa diferença e, em certos casos, até com base nelas."13 O universalismo do Itamaraty durante o mandato de Figueiredo tinha como primeira prioridade as relações com a América latina, em especial com a Argentina. Esse ponto é 12 Apud Sônia de Camargo e J. M. Vasquez Ocampo, Autoritarismo e democracia na Argentina e Brasil (uma década de política. exterior, 1973-1984) (São Paulo, Convívio, 1988), p.125. 13 Apud Conferência do ministro de Estado das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, na Escola Superior de Guerra do Rio de Janeiro, em 13 de julho de 1979. 19 central para a proposta do trabalho e possui tal relevância que será tratado em separado no tópico seguinte. Outro ponto bastante relevante no período do universalismo foram as relações entre o Brasil e os países africanos. Durante o governo Figueiredo é possível perceber um aprofundamento da política brasileira para a África. Em 1984, o Brasil possuía quase o dobro de embaixadas no continente africano do que os números apresentados no início do governo Geisel, em 1974. O número saltou de 12 para 21 embaixadas14. Com esse aumento na quantidade de instalações diplomáticas, o MRE passou a cobrir 45 países. O Brasil, consequentemente, passou a se envolver mais diretamente com os problemas do continente africano, tanto que o presidente Figueiredo foi o primeiro estadista sul- americano a fazer uma viagem oficial à África. Nesse contexto, o Brasil propôs uma maior aproximação com a África lusófona e, em especial, se identificou com a causa angolana, país no qual se passava um período de guerra civil. O governo brasileiro apoiava a causa do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), partido líder do poder no período pós independência angolana, em 1975, e que havia adotado alguns pontos do discurso marxista-lininista nas suas diretrizes políticas. O MPLA sofria constantes ataques da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada por forças sul-africanas, país que vivia sob o regime do apartheid. Nessas circunstâncias, o Brasil cogitou até a hipótese do envio de envio de tropas para defender Angola da África do Sul, em 1981, mas a idéia não chegou a ser aplicada. Essa postura brasileira reflete a proposta do universalismo e a ausência de qualquer tendência a um alinhamento ideológico automático, pois, ainda dentre de um contexto de guerra fria, o Brasil, pertencente ao bloco capitalista ocidental, declarou apoio a um partido político com tendências comunistas. No que diz respeito às relações Brasil e África do Sul, o general Figueiredo sofreu pressões políticas tanto da esquerda, quanto da direita. Enquanto a primeira criticava o governo por não ter rompido relações com aquele país, a segunda pressionava pela manutenção dos laços comerciais e de segurança. A diplomacia brasileira não atendia plenamente nenhuma das reivindicações e ainda recusava os pedidos que os líderes africanos faziam, para que o Brasil pressionasse formalmente a África do Sul. A relação com a África do Sul envolvia também uma outra questão delicada: a militarização do atlântico sul. Os Estados Unidos fizeram grande pressão para a criação da OTAS 14 Apud José Maria Nunes Pereira, “Brasil-África no governo Figueiredo: um balanço”, Contexto Internacional, IRI/PUC-RJ, n° 2, julho-dezembro 1985, p.86. 20 (Organização do Tratado do Atlântico Sul), a qual seria composta por Brasil, Argentina e África do Sul. O governo brasileiro reagiu negativamente à proposta e um dos pontos fundamentais para essa posição brasileira foi o episódio da Guerra das Malvinas, que será tratado no próximo tópico. A política brasileira para a África neste contexto trabalhado, não pode ser analisada a partir de fatores exclusivamente econômicos e/ou quantitativos, embora houvessem possibilidades de relações econômicas significativas em países como Nigéria, Moçambique, Angola, entre outros. Mas é necessário interpretar a ação do Brasil no continente africano como sendo uma aproximação diplomática para uma presença qualitativa do Brasil na África. No âmbito das relações com o oriente médio é possível perceber que o Brasil fortaleceu suas relações comerciais e diplomáticas com os países produtores de petróleo e consumidores de produtos oriundos da indústria bélica nacional. Nas relações com o continente asiático é possível perceber, como afirmam Shiguenoli Myamoto e Williams Gonçalves, que o “universalismo adquiriu sua melhor expressão”15. Ao passo que o Brasil expandia suas relações comerciais e diplomáticas com a República Popular da China, eram reafirmadas também as boas relações com o Japão, demonstrando assim, na prática, o pragmatismo da política universalista do período Figueiredo, ausente de alinhamentos automáticos de cunhos ideológicos. Essa postura do Itamaraty na condução das relações internacionais tanto no tratamento dos países pertencentes ao bloco terceiro mundista quanto referente aos países da linha de frente da política e da economia internacional, demonstra, na prática, a proposta brasileira no âmbito da política externa e reafirma que, para as características peculiares do Brasil, neste momento, ser parte do bloco ocidental não significava anular qualquer relação com países não alinhados, ou até mesmo do bloco capitalista. Para Figueiredo os interesses do Brasil estavam acima de qualquer alinhamento ideológico e isso se fez valer na condução política pragmática do MRE nesse período. 2.2 As relações com a América latina e os países do Prata A América latina, principalmente a América do sul, era ponto prioritário na política universalista do período Figueiredo. Isso ocorreu graças ao abalo nas relações entre Brasil e EUA, além das adversidades presentes no cenário internacional, fruto da Guerra 15 Shiguenoli Miyamoto e Williams Gonçalves, op. cit., p.32. 21 Fria e da crise econômica proporcionada pelas recentes crises do petróleo e pelo choque dos juros, implementado pelos EUA gerando uma crise da dívida externa que provocou sérios danos às economias terceiro mundista, em especial à economia brasileira. O Brasil possuía então relações privilegiadas com a Argentina, graças à aproximação ideológica dos governos militares e ao incessante trabalho do Itamaraty para rechaçar qualquer tipo de imagem de aspirante à hegemon que o Brasil pudesse vir a passar. Entretanto, as relações exteriores do Brasil no Cone sul não se restringiram ao bilateralismo Brasília x Buenos Aires. A postura multilateralista desenvolvida pelo MRE para o continente americano proporcionou ao Brasil uma posição de protagonista nas relações com os países da América central e também no âmbito hemisférico, principalmente quando o assunto eram os esforços para o desenvolvimento de uma integração regional. Neste período vemos o desenvolvimento de vários organismos de cooperação técnica e/ou econômica surgindo na América latina, sempre tendo o Brasil posição de destaque. Em agosto de 1980, através do Tratado de Montevidéu1980, foi constituída a ALADI (Associação Latino-Americana de Integração) em substituição da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio), tendo como países participantes, na sua formação, Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Soma-se a esse episódio a entrada em vigor do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, e os esboços de uma cooperação na área energética a partir da Organização Latino-Americana para o desenvolvimento (OLADE). A atividade dessas instituições demonstra a tendência da América latina em rumar para uma aproximação entre as nações que poderia rumar para uma integração mais concreta, como foi de fato o MERCOSUL. O Brasil demonstrou sua influência não só fazendo parte como país membro das organizações citadas, mas também foi atuante em ações multilaterais, como no Grupo de Contadora, onde buscava negociar uma solução para o conflito na América central que tinham o apoio político-militar dos Estados Unidos. O Brasil também se fez presente no Grupo de Cartagena, criado para tratar da questão da dívida externa de uma forma mais política e coletiva, mas sem o intuito de criar um cartel de países devedores. Focando a análise na região do Prata, onde a principal relação bilateral do Brasil se dá com a Argentina, dentre as várias questões a serem trabalhadas pelo Itamaraty, a mais relevante no momento era o contencioso do acordo Corpus-Itaipu. Essa questão já vinha sendo trabalhada desde o governo Geisel, período em que o MRE estava sob a 22 gestão do chanceler Antonio Francisco Azeredo da Silveira, mas no início do período Figueiredo essa questão ainda representava um impasse. O grande empecilho era a necessidade de compatibilidade técnica nos projetos de construção da Usina de Itaipu, do lado brasileiro, e de Corpus, do lado Argentino, ambas no Rio Paraná. Além disso, a Argentina exigia consultas prévias para cada etapa da implementação do projeto, algo que o governo brasileiro julgava ser desnecessário já que o princípio de responsabilidade por danos causados seria uma garantia suficiente. É relevante lembrar que, apesar do contencioso envolver mais diretamente Brasil e Argentina, outro ator estava presente e era um grande interessado nessa questão, o Paraguai. Para o andamento do acordo tripartite, foram empenhados esforços diplomáticos e até mesmo um esforço pessoal do presidente Figueiredo, que possuía certo laço afetivo com a Argentina pelo fato de ter residido lá anteriormente. Inicialmente foram estabelecidos contatos com o Paraguai e, posteriormente, com a Argentina. É extremamente relevante nesse contexto o fato de que os três países possuírem como sistema político uma ditadura. No Paraguai, o governo do general Alfredo Stroessner já possuía mais de duas décadas, enquanto que na Argentina o governo de Jorge Videla se desenhava como sendo um período de constantes violações dos direitos humanos e, no Brasil, o presidente da abertura não deixava de ser um general e de fazer parte do período ditatorial da história brasileira. Após a assinatura do tratado as relações bilaterais Brasil x Argentina se desenvolveram positivamente, chegando ao ponto de ambos os países buscarem soluções de maneira conjunta para os problemas econômicos enfrentados por ambos. A aproximação política, econômica e ideológica possibilitou eventos e posturas comuns acerca de determinados temas globais ou regionais que traduzem o grau que as relações entre Brasília e Buenos Aires atingiram neste período: 1) o presidente Figueiredo realizou uma visita presidencial à Argentina em maio de 1980, fato que não ocorria desde 1935; 2) Brasil e Argentina repudiaram o apartheid expressaram satisfação com a conclusão do processo de independência do Zimbábue; 3) manifestaram o desejo de uma rápida resolução da questão da Namíbia, além de expressarem o compartilhamento do ideal de eliminação de todo o resquício de dominação colonial no mundo; 4) Brasil expressa apoio à Argentina na questão das Malvinas; 5) ambos demonstram preocupações com a corrida armamentista entre as duas superpotências e suas consequências para a paz global; 6) alertam para a necessidade de diminuição das diferenças entre norte e sul, principalmente abordando as diversas formas de cooperação para o desenvolvimento; 7) ressaltam a importância de 23 se trabalhar o ponto da questão energética, problema que deve ser pensado pelos produtores e pelos consumidores; 8) defendem o estreitamento das relações entre todos os países em desenvolvimento, buscando formas de auxílio mútuo com o intuito de desenvolver formas de cooperação entre tais países; 9) no âmbito regional, possuem idéias convergentes sobre assuntos como a OEA, o Sistema econômico latino- americano (SELA) e, principalmente, concordam que a cooperação econômica regional evidenciou a insuficiência dos mecanismos da ALALC. Ao concentrarmos o foco da análise nos benefícios políticos, militares e econômicos, fruto dessa aproximação entre Brasil e Argentina, vemos os presidentes Figueiredo e Videla demonstrarem uma particular satisfação com os acordos de cooperação entre ambos os países no campo de energia nuclear, acordos na exploração do potencial hidroenergético do prata e também os acordos para uma cooperação tecnológica e militar entre órgãos dos dois países. No campo do petróleo foi lavrado um acordo entre a Petrobras e a YPF, no intuito de complementar as necessidades de ambos os países no que diz respeito à exploração petrolífera e produtos oriundos do petróleo. Outro item que se expandiu rapidamente foi o incentivo às iniciativas privadas, com o intuito de que esse setor desse andamento aos seus projetos e assim pudessem interferir positivamente na economia e na corrente comercial de ambos os países. Mas nem tudo nas relações bilaterais entre Brasil e Argentina manteve esse grau de sucesso diplomático. Apesar de a posição brasileira ter sido favorável à Argentina na votação promovida pela OEA sobre supostas transgressões dos direitos humanos pelo regime ditatorial argentino, Videla não evitou críticas quando tratou do protecionismo econômico promovido pelo Brasil e do incentivo do mesmo às exportações. De acordo com várias empresas argentinas concorrentes brasileiras estariam praticando dumping, uma prática que visa, através do estabelecimento de um preço para um determinado produto abaixo do seu valor “justo”, desestabilizar a concorrência dos produtores nacionais do país de destino do produto e que é reprimida pelos governos quando comprovada. Na questão referente às Malvinas, nenhum país latino-americano, incluindo o Brasil, questionou os direitos argentinos sobre as ilhas (também conhecidas como Falklands). Sob o governo do general Leopoldo Fortunato Galtieri Castelli, a Argentina tomou a decisão de tentar retomar o controle das ilhas, que estão sob o domínio britânico desde as primeiras décadas do século XIX. A partir de uma análise equivocada acerca de um possível apoio norte-americano somada a uma necessidade do regime ditatorial de criar 24 algo que recuperasse um sentimento de coesão interno como, por exemplo, um inimigo estrangeiro comum ao povo argentino, o presidente Galtieri lançou uma ofensiva contra o território britânico das Malvinas e deu início a uma breve guerra. O Brasil manteve sua posição de neutralidade favorável ao país vizinho e buscou servir de interlocutor entre ambos os países conflitantes. A posição brasileira foi denominada pelo próprio Itamaraty de “neutralidade amiga”. Durante o conflito, a Argentina não recebeu o apoio dos Estados Unidos, que julgaram não ser possível a ativação do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) pelo fato de ter sido a Argentina o país agressor, quando o TIAR determinava a defesa contra “agressõesexternas”. Na realidade este episódio evidenciou que para Washington a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) possuía um peso muito maior politicamente que o TIAR, quase anulando assim o simbolismo estratégico que este tratado possuía. O resultado disso foi que a Argentina saiu derrotada, com seus militares humilhados e o regime quase sem sustentação política, o que acelerou bastante o processo de redemocratização argentina. A Guerra das Malvinas demonstrou que a OEA havia se tornado impotente para solucionar quaisquer conflitos e que, como dito anteriormente, a relevância do TIAR estava subjugada pela relevância da OTAN, no que diz respeito às posições de Washington. Apesar desses pontos, o Brasil nunca deixou de participar dos órgãos multilaterais e muito menos abandonou sua estratégia de cooperação global, característica do universalismo. O período do mandato do presidente João Figueiredo foi fundamental para a guinada de parte do cone sul do continente americano rumo à integração, tendo sido a resolução do contencioso de Corpus-Itaipu ponto chave e divisor de águas nesse processo. Como afirma Amado Cervo, “desde o início do governo Figueiredo, as relações com a Argentina encaminharam-se em direção à fase integracionista, que os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney iriam desencadear”16. 16 Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil, 3ª Ed. (Brasília, Editora UnB, 2008) p. 453. 25 3. Neoliberalismo e as relações Brasil x Argentina (Sarney – Alfonsín e Collor - Menem) Na Argentina, desde o final do ano de 1983, o presidente Raúl Alfonsín se dispôs a contribuir para o restabelecimento do funcionamento de instituições republicanas e garantir o cumprimento dos direitos constitucionais. No Brasil, a população esperou de 1979 a 1985 para que, pela primeira vez desde o golpe militar de 1964, um presidente militar fosse sucedido por um civil, tendo fim assim o período de 21 anos de ditadura militar que assolou o país. Mas o primeiro presidente civil do Brasil pós-ditadura, que foi tão aguardado por mais de duas décadas, jamais chegaria a tomar posse. Tancredo Neves faleceu no dia 21 de abril de 1985, feriado nacional de Tiradentes, em decorrência de complicações no tratamento de uma diverticulite. Boatos sobre um suposto atentado que teria ocasionado a morte de Neves nunca foram comprovados. Após este incidente o maranhense José Sarney, que há menos de um ano era líder parlamentar do regime militar, assumiu a cadeira da presidência da república. O novo presidente do Brasil se comprometeu a colocar em prática todo o projeto traçado por Tancredo Neves. Mas, apesar dos avanços políticos, as dificuldades econômicas que o país enfrentava eram o que se destacavam para a população. Com isso, nem a memória do falecido Tancredo Neves e nem as promessas da “Nova República” foram suficientes para manter a popularidade de José Sarney. No intuito de recuperar a esperança popular, o novo presidente civil do Brasil lançou, em fevereiro de 1986, um projeto que atingia diretamente os problemas da economia brasileira: o Plano Cruzado. Congelamento de preços e salários somados a um controle cambial, essa era a formula do novo plano. A população foi convocada a fiscalizar, junto ao governo, o impedimento de remarcações de preços (ficaram conhecidos como os “fiscais do Sarney”). A partir de então a popularidade do presidente subiu às alturas rapidamente e, em novembro, o resultado dessa popularidade foi uma votação maciça para os candidatos do governo. Com o poder na Assembléia Constituinte e nos governos estaduais, o presidente anunciou o fim do Plano Cruzado, fazendo explodir toda a inflação controlada artificialmente durante o período do plano, tendo como principal conseqüência a diminuição drástica do consumo. O Fundo Monetário Internacional (FMI), sempre crítico dessa política de controle inflacionário artificial, não se pronunciou contrariamente ao plano de Sarney. O Brasil apresentava então fortes indícios de ter entrado de vez na arena neoliberal global. 26 Essa mudança de postura política também é evidenciada no contexto da política externa. O chanceler Olavo Setúbal apresentou-se disposto a romper com a linha diplomática desenvolvimentista, abandonando assim toda a sequencia de ideologia presente no pragmatismo responsável e no universalismo. Para Setúbal o Brasil, como sendo um país ocidental, deveria cooperar mais com os Estados Unidos, maximizando suas possibilidades de desenvolvimento, rumo ao Primeiro Mundo. Assim o chanceler buscava se distanciar do Terceiro Mundo em um momento em que o diálogo Norte-Sul é abandonado17 e Mikhail Gorbachev apresenta a Glasnost e a Perestroika em um congresso do Partido Comunista Soviético, evidenciando um desgaste do regime da União Soviética e um prenúncio do fim do conflito Leste x Oeste. Todavia o Itamaraty resistiu ao posicionamento de Setúbal, que teve um curto período na chancelaria sendo substituído no início de 1986 por Abreu Sodré. O novo chancelar demonstrou uma postura oposta a de Olavo Setúbal ao ter como uma de suas primeiras medidas a reaproximação com Cuba, que havia sido obstaculizada por Setúbal e pelo Conselho de Segurança Nacional. Enquanto isso, na Argentina, o presidente Raúl Alfonsín enfrentava os mesmo problemas econômicos que o Brasil e também buscou medidas semelhantes. Em junho de 1985 o presidente Alfonsín lançou o chamado Plano Austral, um projeto econômico que visava, através da substituição da moeda corrente - o Peso argentino - pelo Austral, na tentativa de frear a inflação argentina que chegava a mais de 40% ao mês atacado18. Para isso o Plano Austral previa o controle de preços, salários e do câmbio, além de redução dos gastos do Estado e frenagem da emissão monetária. Em seguida vieram o Plano Austral II e o Plano Primavera que previam o congelamento de preços, tarifas, salários e câmbios. Os esforços não surtiram os efeitos desejados e o fracasso, como o do Plano Cruzado, trouxe conseqüências tais como: hiperinflação, recessão, desemprego, escalada do dólar e, consequentemente, o desgaste político do presidente Raúl Alfonsín. No âmbito das relações internacionais sob a chancela de Dante Caputo, a Argentina desenvolveu uma política de alto perfil no contexto latino americano e no movimento de países não alinhados, buscando sempre prestígio e um distanciamento do governo Reagan. 17 Fato ocorrido durante a Reunião de Cúpula do G-7 em Cancun, em 1985. 18 Raul Cuello. As dificuldades do Plano Austral: a inflação retorna. Revista de Economia Política, Vol. 6. nº 4., outubro-dezembro/1986. 27 Nas relações bilaterais com o Brasil posteriores a redemocratização, desenvolveu-se um processo de aproximação política, econômica e cultural irreversível. Os presidentes Sarney e Alfonsín realizaram encontro em Foz do Iguaçu, inauguraram a Ponte Internacional da Fraternidade (Ponte Tancredo Neves) que liga Foz do Iguaçu/Brasil a Puerto Iguazú/Argentina, além de assinarem documentos importantes como a Declaração de Iguaçu e a Declaração Conjunta sobre Política Nuclear. A partir de então vemos a relação Brasil x Argentina caminhar de um processo de cooperação para um processo de integração. Em 1986 os presidentes Alfonsín e Sarney realizam a assinatura da Ata para a Integração Brasileiro-Argentina, criando também a Comissão de Execução do Programa de Integração binacional. Entretanto, a partir de uma posição flexível e gradualista, Brasil e Argentina procuram estender esse processo de integração a outros países da América do Sul, começando pelo Cone Sul. Esse projeto de integração visava preparar os países membros para um futuro independente, acelerando o crescimento auto- sustentado, promovendo a modernização econômica,unificando os mercados, promovendo as boas relações e buscando cada vez mais agregar a América Latina. O presidente uruguaio Julio María Sanguinetti acompanhou de perto o início do processo, vinculando seu país ao programa de integração a partir de atos bilaterais com Brasil e Argentina. O processo de integração caminha com evoluções positivas, tendo reflexos inclusive no âmbito do desenvolvimento da tecnologia atômica, pois quando o Brasil obtém o domínio da tecnologia de enriquecimento de urânio, em 1987, o Itamaraty trata de conceder conhecimento prévio ao presidente Alfonsín, expressando um sinal de cooperação técnica e de amizade com a Argentina. No contexto argentino o processo de integração apresenta um crescimento inversamente proporcional à popularidade de Raúl Alfonsín. Enquanto o início burocrático do processo de integração com o Brasil coincide com o aumento de popularidade do presidente argentino, fruto do Plano Austral, o desenvolvimento deste processo se dá no decorrer da crise de popularidade de Alfonsín e sublevações militares – rejeitadas pela sociedade civil -, em meio ao descontentamento da população com o fracasso do plano monetário e as conseqüências negativas desse fracasso para a economia argentina. Essa característica do andamento do processo de integração, não dependente da popularidade de Alfonsín, explicita a autonomia da posição brasileira dentro da diplomacia argentina. 28 3.1 Collor e Menem: às portas do MERCOSUL No ano de 1989, Carlos Saúl Menem foi eleito presidente da Argentina pelo Partido Justicialista (Partido Peronista), depois de uma campanha prometendo um salariazo. Entretanto, ao assumir o poder, Menem adotou uma postura neoliberal, assumindo uma posição econômica ortodoxa e mudando as alianças sociais e econômicas que historicamente caracterizam o peronismo. O presidente argentino se afastou do sindicalismo e se aproximou da elite liberal do país e do establishment financeiro internacional. Evidentemente, essas mudanças ideológicas, passando das características mais “populares” de Alfonsín para o viés neoliberal da política do presidente Menem, influenciaram a política econômica e a política externa da Argentina. Soma-se a essas questões internas o cenário internacional no qual Carlos Menem assumiu o poder (fim da Guerra Fria e hegemonia estadounidense). Sendo assim, no intuito de alçar a Argentina ao posto de primeiro mundo, o presidente Menem adotou as recomendações do Consenso de Washington e se aliou à superpotência vencedora da Guerra Fria, consolidando assim o caráter neoliberal dentro das políticas argentinas. Fruto de todas as mudanças ideológicas já citadas, o Estado argentino passou por reformas estruturais para se adequar às práticas neoliberais como, por exemplo, a redução do Estado, liberalização comercial e financeira, privatizações e desnacionalizações, reforma fiscal, desregulamentação e, em 1991 através do ministro Domingo Cavallo, o estabelecimento da paridade peso-dólar. No âmbito da política externa, o presidente Carlos Menem buscou desconstruir a imagem de imprevisibilidade das relações exteriores argentinas. Sendo assim, foi abandonado o posicionamento de confronto com os Estados Unidos e a posição terceiro mundista adotada por vezes por outros governos argentino. As “alianças tradicionais com o ocidente” foram retomadas, sendo os maiores expoentes desta postura as relações entre Buenos Aires e Washington, as quais o chanceler Guido di Tella19 chamou de “relações carnais”, e as relações entre Buenos Aires e Brasília, onde o principal foco do esforço diplomático de ambos os países foi a continuidade do processo de integração regional (uma das poucas manutenções políticas do período Alfonsín). Sendo assim a política externa argentina deste período se caracterizou como sendo “bifrontal”, ou seja, possuidora de duas principais frentes de atuação, Estados Unidos e Brasil. 19 Guido di Tella também foi um dos principais responsáveis pela retomada das relações diplomáticas entre Argentina e Grã-Bretanha após a Guerra das Malvinas, em 1982. 29 Apesar da manutenção da política de integração ao lado do Brasil, o presidente Menem estabeleceu uma mudança na motivação do andamento deste processo: o processo de integração deixaria de ser em busca da construção de poder em bloco e da valorização do regionalismo, passando a caracterizar uma lógica de equilíbrio de poder. Com isso, a priorização simultânea das relações com os Estados Unidos e com o Brasil ganha um caráter estratégico para a política externa argentina: as relações com Washington representam uma garantia contra possíveis “excessos” da política externa brasileira – sempre um ponto de desconfiança dos governos argentinos por possíveis anseios hegemônicos –, enquanto as relações com Brasília serviriam tanto para projetos de crescimento e desenvolvimento econômico quanto para melhorar a posição de negociação para com os Estados Unidos. Ao focarmos a análise no Brasil durante o mesmo período, vemos a ascensão ao poder de Fernando Collor de Mello, eleito aos 41 anos de idade e representante do nascimento de uma “nova política”. Apoiado pela grande mídia e visto como um homem íntegro, anticorrupção e antipolítica, Fernando Collor ganhou, durante a campanha presidencial, o rótulo de “Caçador de Marajás” por seu combate a funcionários públicos com salários altos e desproporcionais durante o período em que governou o estado de Alagoas. Graças ao apoio midiático Collor foi eleito pelo Partido da Reconstrução Nacional (PRN) e assumiu a presidência em março de 1990. O período de Fernando Collor na presidência da república foi marcado por um plano econômico antiinflacionário, baseado em medidas como o bloqueio (confisco) da poupança e de outros investimentos. Além disso, Collor promoveu uma abertura unilateral do mercado interno, sem barganhar compensações e causando uma inundação de importações desnecessárias. Essas medidas resultaram no controle inflacionário, mas também causaram uma recessão sem precedentes e diversas falências. Soma-se a isso o início de um processo de privatizações – que assolou a economia brasileira na década de 1990 – das empresas estatais mais lucrativas, geralmente por valores abaixo do seu preço de mercado. Como conseqüência destas privatizações ocorria, como na Argentina, um processo de desnacionalização de tais empresas. Essas privatizações eram justificadas ao passo que era necessária uma redução do déficit do Estado e promover o ingresso de capitais, mas esse ingresso de capitais não representou ampliação da capacidade produtiva, transformando assim as privatizações do período em mera aquisição do patrimônio nacional. Assim o Estado brasileiro entrava de vez na lógica neoliberal e aliava sua economia mais ainda à lógica de funcionamento do establishment financeiro internacional. 30 No âmbito do Itamaraty, sob a chancelaria de Francisco Rezek, percebeu-se uma perda de muitas das atribuições do Ministério das Relações exteriores, pois nele se encontrava um núcleo de resistência que fazia oposição ao projeto governamental. Sendo assim o Brasil mudou sua postura internacional, tendo sua política externa se afastado do caráter multilateral, passando a se focar nas relações bilaterais com Washington e nas relações com as Américas. Além disso, o Brasil, como a Argentina, adotou as vitoriosas teses pós Guerra Fria e, consequentemente o Consenso de Washington, sem barganhar, não fazendo uso da margem de manobra característica da importância do país e não fazendo jus à sua tradição diplomática. O período do governo Collor foi marcado, como antes demonstrado, por um processo de liberalização da economia brasileira, além da adoção de uma posição de subordinação em relação aos Estados Unidos e de um alinhamento às diretrizese determinações do Fundo Monetário Internacional (FMI). Diferente da postura primeiro mundista, que buscava proteger seus mercados, o Brasil abriu seu mercado interno unilateralmente, atitude justificada pelo presidente Fernando Collor como sendo necessária para que o Brasil obtivesse acesso às novas tecnologias. Vale lembrar que essa abertura aos produtos externos sem a salvaguarda de produtos nacionais, serviu também para aliviar a imagem de Collor perante a comunidade financeira internacional, que havia sido abalada graças à política econômica no plano interno, desenvolvida para combater a inflação e melhorar a imagem do país diante dos credores internacionais, que não foi bem vista pelo establishment da macroeconomia internacional. De acordo com o embaixador Paulo Nogueira Batista, Fernando Collor de Mello confundia o poder militar norte americano com o poder econômico. Sendo assim, a presidência aceitou as regras impostas pelos Estados Unidos como se fosse o único pólo mundial de poder. A relação de cooperação entre Brasil e Argentina sofreu forte influência do Ministério da Economia, ocupado por Zélia Cardoso de Mello. A relação de cooperação ganhou fortes ares de integração e recebeu Uruguai e Paraguai, países com tarifas externas muito abaixo das praticadas no Brasil. Com isso havia a expectativa de aceleração do processo de redução das taxas nacionais. Para Vizentini, “o eixo Brasília – Buenos Aires dos anos 80, de viés relativamente autonomista e desenvolvimentista, ganhou colorações neoliberais” (VIZENTINI, 2008, Pg. 83). A participação do Ministério da Economia talvez tenha sido mais influente na política externa do governo Collor do que o próprio Ministério das Relações Exteriores, que não teve participação decisiva durante o período. 31 Fernando Collor também procurou desconstruir as idéias ligadas à imagem de Brasil potência. Para isso desmontou iniciativas como o projeto nuclear e a indústria da informática. Adotou também o discurso da globalização como sendo algo “inevitável” e até mesmo desejável, deixando de lado assim a noção de soberania. O presidente também abandonou, ou deixou de lado, algumas parcerias internacionais de longa data, obtendo como resultado um encolhimento da diplomacia brasileira e uma dilapidação do patrimônio que fora acumulado pelo Itamaraty ao longo de décadas. Mesmo deixando de lado em várias vezes a qualidade técnica do Itamaraty e o poder da diplomacia brasileira, foi sob a presidência de Fernando Collor de Mello e tendo ainda Francisco Rezek no cargo de chanceler, que um dos principais tratados da história do Cone Sul e um dos focos dessa pesquisa, foi assinado – o Tratado de Assunção. Conclusão Ao longo do desenvolvimento da pesquisa ficou evidente a posição de destaque do Brasil no contexto latino americano, mas mais relevante do que isso foram as inúmeras vezes que o Itamaraty precisou anular qualquer imagem de aspirações hegemônicas que o Brasil pudesse vir a ter, principalmente a partir do final do governo Médici, onde as relações com os vizinhos argentinos melhoraram significativamente e assumiram um rumo que culminou em uma integração regional. Ficou evidenciado também que, apesar de o divisor de águas do processo de integração do Cone Sul ter sido o Acordo Corpus-Itaipu, esse ideal não era novidade, sendo possível analisar pontos na história como a formação da Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC), em 1960, que, apesar de não ter obtido grande sucesso, já evidenciava as intenções integracionistas da região. Na pesquisa, a escolha pela análise da política interna sendo complementada pela política externa, principalmente no contexto brasileiro, permitiu desenvolver um saber embasado em várias fontes de informação que, amparadas pela bibliografia utilizada, foram capazes de expressar o contexto político no qual se desenvolveu e obteve amadurecimento o ideal de cooperação e, posteriormente, integração pelo qual passou o Cone Sul nas últimas décadas do século XX. O peso e a influência que os Estados Unidos tiveram nesse processo também foram bem expressados nesse trabalho, principalmente no contexto de neoliberalização da 32 economia sul-americana, durante o período pós Guerra Fria. Com isso, por mais que a integração regional represente um aumento da relevância econômica da região e um conseqüente fortalecimento nas relações comerciais com os Estados Unidos, não podemos ignorar o peso das decisões de Washington nesse processo. Inclusive foi graças ao Consenso de Washington que o MERCOSUL foi estruturado em um formato de economia neoliberal, pois quando ele foi pensado, durante a primeira metade da década de 1980, ainda existiam os anseios desenvolvimentistas nas políticas econômicas dos países envolvidos no processo. O Tratado de Assunção assinado na capital paraguaia, em 26 de março de 1991, deu origem ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), composto inicialmente por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Tinha o objetivo de estabelecer uma união aduaneira entre os países membros, integrando assim a economia dos mesmos, facilitando o desenvolvimento econômico e aumentando o poder de barganha da região nas negociações em níveis globais. Por fim, este trabalho se propôs a demonstrar os desenhos e os caminhos percorridos por Argentina, Paraguai, Uruguai e, principalmente, Brasil até a feitura e assinatura do tratado que originou um bloco econômico no Cone Sul, introduzindo assim esta parte do globo no novo formato de organização regional e de relações comerciais que está presente em vários fóruns internacionais, tendo como principais expoentes – excluindo peculiaridades e características organizacionais que diferenciam tais exemplos uns dos outros – a União Européia, o Nafta e a APEC. O MERCOSUL ainda está se organizando, se aperfeiçoando mesmo após vinte anos de existência. Estuda-se atualmente o ingresso da Venezuela no bloco, entre outras mudanças. Mas, por mais que tenha passado por altos e baixos durante essas duas décadas, o Mercado Comum do Sul é uma estrutura fundamental para a economia da região e para os países que comercializam com os países membros, além de ter representado um marco revolucionário na relação secular existente entre os países da bacia do prata. 33 Bibliografia: BERNAL-MEZA, Raúl. Argentina: entre o Mercosul e a ALCA. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034- 73292001000200008&script=sci_arttext Acessado em: 14/11/2010 CANDEAS, Alessandro Warley. Relações Brasil-Argentina: uma análise dos avanços e recuos. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034- 73292005000100007&lang=pt Acessado em: 27/06/2011 CERVO, Amado. História da Política Exterior do Brasil. 3 ed. Brasília, Ed. UnB, 2008. CRUZ, Marta Vieira. Brasil nacional-desenvolvimentisa (1946-1964). 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