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36º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 12: ESTUDOS SOBRE OS ESTADOS UNIDOS CONTRACULTURA NOS ESTADOS UNIDOS E CONTRACULTURA NO BRASIL: UM ESTUDO COMPARADO. FELIPE FLÁVIO FONSECA GUIMARÃES 2 CONTRACULTURA NOS ESTADOS UNIDOS E CONTRACULTURA NO BRASIL: UM ESTUDO COMPARADO. Felipe Flávio Fonseca Guimarães1 Resumo No presente trabalho comparamos a contracultura nos Estados Unidos e no Brasil. Utilizaremos a contracultura enquanto um conceito, uma categoria específica, utilizada para designar uma série de práticas e movimentos culturais juvenis rebeldes nas décadas de 1950 e principalmente 1960 nos Estados Unidos e que foi paralelamente adotada em outros lugares do mundo. Usamos o método comparativo com a finalidade de articular e contextualizar a temática proposta. Destacamos assim as disparidades e similaridades entre os dois processos de construção cultural e social pós-Segunda Guerra Mundial. Além do mais, analisamos o conceito contracultura de forma problematizada sob a perspectiva de autores como Roszak (1972) e Groppo (1996), nos possibilitando melhor entendimento do conceito. Através desta pesquisa percebemos que a contracultura possibilitou, nos dois países, novas formas de expressão da juventude, pois conseguiu unir os jovens, suas linguagens e expressões, diversas artes e movimentos numa única prática cultural contra o sistema estabelecido. Palavras-chave: Contracultura, Estados Unidos, Brasil. Abstract In the present study, we compare counterculture in the United States and Brazil. We will utilize counterculture as a conceptual framework, as a specific category used to designate a series of youth-based, rebellious practices and cultural movements of the 1950s and, principally, the 1960s in the United States, that were concurrently adopted in other places of the world. We apply the comparative method with the objective of articulating and contextualizing the proposed theme. In this way, we distinguish the differences and similarities between the two processes of social and cultural construction following the Second World War. In addition to this, we analyze the concept of counterculture by problematizing it based on the perspectives of authors such as Roszak (1972) and Groppo (1996), allowing us a better understanding of the concept. Through this research study, we have perceived that the counterculture movement, in both countries, allowed for new means of youth expression, because it was successful in unifying young people, their language and expressions, diverse artistic and social movements into one unified cultural practice against the establishment. Keywords: Counterculture, United States, Brazil. 1 Aluno do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Social – PPGDS, da Universidade Estadual de Montes Claros/Unimontes. Orientadora – Regina Célia Lima Caleiro. Bolsista pela CAPPES/CNPQ. 3 Introdução No presente trabalho comparamos a contracultura, enquanto um movimento que envolve práticas e expressões culturais, nos Estados Unidos e no Brasil. Usamos o método comparativo para analisar práticas e movimentos culturais específicos da contracultura tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil na década de 1960. Foi preciso então, em um primeiro momento, dissertar e expor acerca do termo/categoria contracultura que é problematizado por alguns autores como Theodore Roszak (1972), Groppo (1996), Tânia Cortés (2008), etc. Isto nos permitiu uma melhor compreensão do termo e também do momento social histórico no qual o mesmo foi criado e difundido pelo mundo, juntamente às suas práticas culturais. Ao fazer esta discussão teórica comparamos o pensamento de cada autor acerca do termo, nos empenhando assim em uma tarefa sociológica que vai além da comparação pura e simplesmente. Segundo Franco (2000), O próprio processo de conhecimento do outro e de si próprio, nesta troca entre realidades culturais diversas, implica um confronto que vai além do mero reconhecimento do outro. Implica a comparação de si próprio com aquilo que se vê no outro. Neste processo comparativo, é fundamental conhecer e assumir as categorias que permitem fazer este confronto. (FRANCO, 2000, p. 198) Analisamos e comparamos as principais características destas práticas (contra) culturais nas duas realidades por nós pesquisadas. Desta forma tentamos destacar nos movimentos culturais brasileiros, características importantes que se enquadram na definição de contracultura. Foi necessário, assim, um esforço de contextualização histórica dos dois países na década de 1960, destacando os aspectos relevantes ao nosso objeto de estudo. Isto nos permitiu analisar de maneira singular cada país, as diferenças entre os processos de construção cultural pós Segunda Guerra mundial, além de nos permitir um melhor entendimento da relevância dos fatores social e econômico para o surgimento e expansão da contracultura. Unimos, portanto, o método sociológico à análise histórica no processo de comparação. 4 Contracultura, rebeldia juvenil e protesto. Contracultura é um conceito, uma categoria específica, utilizada para designar uma série de práticas e movimentos culturais juvenis nas décadas de 1950 e principalmente 1960 nos Estados Unidos e que foi paralelamente adotada em outros lugares do mundo. A contracultura é fruto de uma sociedade opressora, sendo praticada, reivindicada por jovens que fugiram da padronização da cultura social do ocidente após a segunda guerra mundial. Esse termo difundiu durante muito tempo no senso comum a idéia de juventude transgressiva, porém o trataremos aqui sob outra ótica, a da produção e ação cultural. Pois, compreendemos que os jovens responderam a esta sociedade estandardizada não somente através de idéias, mas também de ações, mostrando ao mundo o que almejavam. Segundo Cortés (2008) a contracultura é um conceito essencial para entendermos toda uma geração que viveu na década de 1960, e que era descontente com a sociedade tal como era imposta. Portanto, entendemos que, através da contracultura os jovens tiveram a oportunidade de se expressarem de forma livre. Esta cultura juvenil foi importante para que a juventude obtivesse visibilidade em uma sociedade adulta e desta forma, tentar criar um modelo novo de sociedade. Para Cortés (2008), “el término counterculture, de acuerdo com Bennet (2001), es um término que ayuda a entender la desilusión de los jóvenes de esa época acerca del control de la cultura parental y de la falta de deseo de no querer formar parte de la máquina de La sociedad.” (CORTÉS, 2008, p. 263) Já para Roszak (1972), mais que uma forma de entender a “desilusão da juventude”, a contracultura se transformou em um instrumento a favor da construção de uma nova sociedade. Contra uma sociedade imposta, a contracultura é a ação dos jovens. A juventude não pode ser resumida à uma fase da vida, ou seja à idade, pois está ligada diretamente às práticas sociais do indivíduo. Na sociedade contemporânea o poder do jovem extrapolou (e extrapola até os dias atuais) os limites etários, criando novas formas de viver e atuar na sociedade da qual faz parte. Segundo Roszak (1972), os jovens colocaram em prática aquilo que os adultos criaram em teoria nas grandes universidades, pois “(…) arrancaram-nas (as teorias) de livros e revistas escritos por uma geração mais velha de rebeldes, e as transformaram em um estilo de vida. Transformaram as hipóteses de adultos descontentes em experiências (…)”. (ROSZAK, 1972, p. 37) Portanto, nãohá como desvincular a categoria contracultura das categorias de juventude e de rebeldia. 5 Seguindo o mesmo pensamento de Roszak (1972), Carmo (2001) explicita que a contracultura foi uma revolução nos costumes ocidentais. O autor expõe a ideia de ação da juventude frente à imposição material, simbólica, política etc. nos direcionando a tal pensamento: Diferentemente da prática política dos partidos tradicionais, deu-se início a uma nova forma de contestação e mobilização social (…) A recusa radical da juventude aos valores convencionais entrava em cena com grande alarde. Cabelos longos, roupas coloridas, misticismo oriental, muita música e drogas. Uma série de manifestações culturais novas refletiam e provocavam novas maneiras de pensar, modos diferentes de compreender e de se relacionar com o mundo e com as pessoas (CARMO, 2001, p. 51) Entender a contracultura como tal, pressupõe uma (re) ação dos jovens "contra” uma sociedade imposta. O termo é auto-explicativo quando entendemos “cultura” no seu sentido ocidental, ou seja, tudo aquilo que é produzido e/ou modificado pelo ser humano. Em resposta aos jovens rebeldes, houve um aumento da repressão estatal e social contra os que se posicionavam as margens da mesma. Esta reação do Estado contra os jovens “rebeldes”, com o apoio da sociedade civil, esteve presente mais claramente nos países que passaram por ditaduras militares, principalmente na América Latina, pois os jovens rebeldes eram sempre associados ao comunismo e às esquerdas. Em oposição a isto o jovem underground (aquele que estava abaixo, no subsolo, às margens da sociedade) buscava uma posição marginal como forma de protesto, pois não desejava estar no centro e assim o fazia por livre vontade e não porque era deixado de lado. Esta vontade do jovem de não pertencer ao mundo tecnocrata2 adulto edificado ao seu redor, assimila-se à ideia da fuga de uma jaula e isto fica perceptível se consideramos o fator econômico que permeia tal situação. Muitos dos jovens que deixavam suas casas em busca de um novo ideal de vida, fugindo do alistamento militar, das obrigações escolares, do trabalho formal, pertenciam às camadas sociais mais abastadas, e possuíam acesso aos meios de comunicação, lazer, informação, e até mesmo cultura disponíveis. Ou seja, “a fuga do centro” a qual nos referimos anteriormente, é a 2 Expressão utilizada por Roszak (1972) ao referir-se “(…) àquela forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional. É o ideal que geralmente as pessoas têm em mente quando falam de modernização, atualização, racionalização, planejamento” (ROSZAK, 1972, p. 19) 6 própria fuga da condição social/econômica da sua família, suas práticas de consumo, práticas sociais, que buscava a manutenção do seu status quo. Porém, segundo Groppo (1996), no momento em que os movimentos contraculturais estavam em seu ápice, foram veiculados pelos meios de comunicação em massa, a indústria cultural usou de seus ideais, reivindicações, estilos de vestir, para vender uma imagem específica do jovem, acabando assim por padronizar a própria contracultura. Percebe-se isto, segundo o autor, na própria trajetória inicial do rock and roll, um dos pilares da contracultura. O mesmo surgiu de tradições culturais populares e em menos de uma década se tornou uma música veiculada pelos grandes meios de comunicação e passou a ser consumida por um mercado juvenil branco, em sua maioria e pertencente às camadas médias da sociedade. Mas esta não é uma discussão que prolongaremos aqui, o importante é salientar o papel da indústria cultural na difusão dos ideais da contracultura para outros países. Através do cinema, da TV, do rádio, dos discos e livros a contestação e a rebeldia dos movimentos contraculturais foram espalhados pelo mundo, em forma de consumo e em forma de cultura. Optamos aqui por dissertar acerca desta última. Confluímos com a ideia de contracultura expressa por Paes (1997) de que além do consumismo outras duas categorias definem muito bem a década de 1960, em se tratando de juventude: contestação e rebelião. “Os inconformados com o mundo em que viviam estiveram em todos os segmentos sociais e em todos os cantos do planeta, não só na Ásia e na África ou na América Latina. Mas, talvez, nenhuma contestação tenha sido tão extraordinária quanto aquela realizada pela juventude” (PAES, 1997, p. 20) A seguir abordaremos a contracultura dentro do seu contexto histórico, o momento em que surgiu e como se difundiu para outros países, principalmente no caso do Brasil. Contextualização histórica da Contracultura – do surgimento à difusão. O mundo durante a década de 1960 sofreu inúmeras e abruptas transformações e isto afetou diretamente a vida das pessoas, principalmente dos jovens, tanto no que tange ao consumo quanto às escolhas políticas e culturais. O momento Pós- Segunda Guerra Mundial foi marcado pela exploração de novas tecnologias de produção 7 e armamentista, racionalização de processos que até então eram quase artesanais. Além do mais, com o advento da Guerra Fria3 foi exposto o poder de controle tecnológico do homem, através da disputa por “conquista” espacial – chegada do homem a lua marca esta disputa –, e também através do desenvolvimento e aprimoramento da tecnologia nuclear. Os Estados Unidos mostraram para o mundo na década de 1960 a sua hegemonia, a sua maneira de lidar com variadas situações, a sua superioridade econômica, que logo foi difundida pelo mundo. Além do grande poderio armamentista4, explícito na guerra do Vietnã – considerado um dos conflitos mais violentos do século XX – que foi televisionado para milhões de expectadores, os Estados Unidos exportavam cultura para todo o mundo de forma massiva através do cinema, do rádio, discos e também, através das empresas multinacionais. Boa parte da sociedade adulta estadunidense apoiava as ações do governo, ações pacíficas e não-pacíficas, pois a era intensa a propaganda com intuito de enaltecer o sentimento de patriotismo nacionalista coletivo, as guerras eram travestidas de missões civilizatórias e a expansão do capitalismo travestida de missão desenvolvimentista e anticomunista. É neste terreno, de padronização, “unidimensionalização” do homem, resumindo-o em números, que surgem os primeiros indícios de uma contracultura nos Estados Unidos, também chamada inicialmente de movimento underground. O Movimento pelos Direitos Civis, luta pela expansão dos direitos para as minorias, foi o ponto de encontro de todos os seguimentos culturais, reivindicatórios, que acabou culminando na contracultura tal como a conhecemos. Não havia esperanças de luta contra o sistema para o jovem estadunidense, a esquerda socialista tradicional provara que era tão burocratizada e repressora quanto a direita capitalista. Portanto, segundo Paes (1997) 3 A Guerra Fria foi uma disputa por hegemonia mundial entre dois sistemas de organização social e, econômica e política: o capitalismo e o dito socialismo. Foi uma disputa sem confronto armado direto, por isso o seu nome. Ao leste a extinta União Soviética tentava expor ao mundo seu modelo de sociedade através de feitos tecnológicos, ou até mesmo através de imposição armada, divisões territoriais autoritárias. Ao Oeste os Estados Unidos estavam combatendo o “comunismo” a qualquer custo, até mesmo apoiando ditaduras militares na América Latina, rompendo acordos comerciais, declarando guerras. 4 Desde o final da Segunda Guerra o poderio nuclear dos EstadosUnidos intimidava demais nações. Nos dias seis e nove de agosto de 1945, sob ordem do Presidente Truman, as cidades de Hiroshima e Nagasaki, respectivamente, foram alvos de bombardeio nuclear. Estima-se que foram mortos nestes dois ataques mais de duzentas e vinte mil pessoas tenham morrido diretamente com este ataque e milhares mais após o ataque devido à radiação. 8 (…) para milhões de jovens naquela década, a saída vislumbrada foi a busca de um mundo alternativo. Da recusa da cultura dominante e da crítica ao establishment ou “sistema” (como então se dizia), nasceram novos significados: um novo modo de pensar, de encarar o mundo, de se relacionar com as outras pessoas. Da recusa surgia, na verdade, uma revolta cultural que contestou a cultura ocidental em seu âmago: a racionalidade. (PAES, 1997, p. 22) Desta forma o jovem se rebelou através daquilo que ele tinha o máximo de controle o possível: do seu próprio corpo, de seus ideais, da sua forma de vestir e se comportar perante o mundo. Um dos movimentos em que esta revolução é mais evidente é o movimento hippie, que surge nos Estados Unidos na década de 1960, junto a outras manifestações artísticas, como festivais, shows em praças públicas, reivindicações culturais contra a guerra, etc. Os seus adeptos usavam do prazer momentâneo como forma de rebeldia: o uso em demasia de drogas e o sexo livre. Muitos festivais hippies aconteceram nos Estados Unidos e também em outros lugares do mundo, como Inglaterra e Brasil, porém o mais famoso de todos que reuniu cerca de meio milhão de pessoas foi o festival Woodstock. Neste estavam presentes várias bandas e cantores do cenário musical da contracultura (o rock) em três dias de “paz, amor e rock´n´roll” – lema do festival em questão. Segundo Alves (2002) este movimento, principalmente os seus festivais, foi vista visto como um ato de libertinagem, por parte dos conservadores, onde os jovens abusavam do sexo e das drogas. Porém, nesta época também se deu a divisão mundial (imposta) entre países desenvolvidos (hemisfério norte) e subdesenvolvidos (hemisfério sul), e significava muito para a população dos países estarem ou não “em vias do desenvolvimento”. Este discurso potencializou o consumo de bens materiais e também simbólicos importados dos países desenvolvidos. Como exemplo podemos citar a música, o cinema, além de bebidas, roupas, calçados, acessórios, etc.5 Os países que pertenciam ao terceiro mundo (países subdesenvolvidos) deveriam alcançar o desenvolvimento, porém através dos mesmos artifícios utilizados pelos países do primeiro mundo (países desenvolvidos). Ou seja, os países ricos encontraram uma solução para seus problemas de falta de mão-de-obra e falta de matéria- 5 Rock, n, Roll; Hollywood; Coke; Whisky; Jeans; All Star; Ray ban. Dentre inúmeros outros produtos e marcas, estas foram as que tiveram maior aceitação e incorporação no mercado externo, sendo que perduram até os dias atuais com as mesmas características. 9 prima, entrando nos países pobres através de indústrias multinacionais e tirando assim a sua autonomia em relação ao crescimento econômico, político e social. E a partir desta entrada, houve uma forte troca de bens culturais. Troca esta que afetou muito a cultura de países como o Brasil, que importavam cultura industrializada e exportava matéria prima e mão –de – obra em sua maioria. Segundo Paes (1997), Atraídas por mão-de-obra barata e abundante ou por grandes mercados potenciais e, logicamente, por garantias políticas, as multinacionais, sobretudo americanas, atravessaram todas as fronteiras nacionais – realizando o que se chamou de internacionalização da economia –, dominando a economia mundial e ligando o mundo em dimensões planetárias. (PAES, 1997, p. 12) O Brasil, além da relativa vulnerabilidade econômica em relação aos Estados Unidos, passou por um momento crítico de limitada liberdade de expressão devido à implementação da ditadura militar que se instaurou e obteve legitimidade no ano de 1964. Nos primeiros anos de ditadura o governo militar procurou acabar com a oposição, eliminando o direto de voto popular além de instaurar o sistema unipartidário. Portanto, entre os anos de 1964 e 1968 a atenção estava voltada para os inimigos políticos, assim, neste período os artistas tiveram tempo de se reunir e criar diversos artifícios contra a ditadura militar. Porém, no final do ano de 1968 foi imposto o Ato Institucional militar nº 5, conhecido como AI-5. Este ato tinha como objetivo principal reestruturar as forças a favor da chamada “revolução militar”. Para tanto seria necessário destituir de expressão e participação aqueles que ganharam adeptos e obtinham resultados positivos nas suas lutas contra o regime durante os quatro primeiros anos: os artistas. Os militares, seguindo o decreto do poder executivo, exilaram e torturaram diversos artistas jovens que criticavam o modelo de sociedade que era criado no país. Ainda mais, muitos artistas foram proibidos de publicar sua arte, privados de liberdade de expressão. Mas, mesmo assim, a cultura brasileira sofreu grandes modificações (positivas a nosso ver) durante o período de ditadura militar. Apesar de difundir a desilusão, praticar a tortura levando muitas vezes à morte, durante o período de ditadura militar houve um relativo crescimento do pensamento crítico, fortalecimento da juventude, além do crescimento das produções culturais em nível underground. No período da ditadura no Brasil formulou-se o “terreno” propício para o surgimento de uma 10 contracultura que se consolidou através dos anos 1960 e parte dos anos 1970. A mesma possuía características ímpares em relação à contracultura estadunidense, porém entendemos que pode ser caracterizada como tal, por ter função crítica, contestadora e impulsionadora de ações que potencializam os ideais da juventude. Inserida neste contexto sócio/cultural brasileiro, a contracultura foi inicialmente identificada nos movimentos estudantis do início da década de 1960, portanto, contendo um cunho político de luta e rebeldia, embasado nos ideais da nova- esquerda estadunidense que lutava contra o alistamento de recrutas para a Guerra do Vietnã. Ainda no início da década de 1960, os jovens adeptos ao rock no país chocavam com a sua estética e suas pretensões de viver a sua própria liberdade, sem as “rédeas” do mundo adulto. A Jovem Guarda foi o movimento que expressou física e simbolicamente a geração rock and roll no Brasil da década de 1960. Segundo Carmo (2001) “a Jovem Guarda era a versão nacional da energia rebelde do rock´n´roll, ritmo que estava invadindo o mundo inteiro. Sua música emblemática, Quero que vá tudo pro inferno, revela um pouco de seu ideário. Defender a música nacional não importava para esta tribo” (CARMO, 2001, p. 43) Segundo o pensamento da época, expresso pela revista de circulação nacional Realidade, o rock chocou o país. Quando o Rock´n roll chegou ao Brasil, em 1955, com os discos de Bill Haley e seus cometas, os sociólogos e psicólogos ganharam um problema que já preocupava grande parte de seus colegas no resto do mundo. A juventude brasileira adotou não só o rock, mas as atitudes e filosofia dos cantores norte-americanos. Com o tempo, os jovens substituíram o rock pelo twist e depois pelo hully-gully, com uma rápida passagem por Elvis Presley. Até que surgiram os Beatles, com o ié-ié-ié. E, o que era mania de apenas umas parte da juventude, transformou-se em obsessão e fenômeno social. Apareceu então Roberto Carlos, cantando. O calhambeque foi o grande início e em setembro de 1965nascia em São Paulo uma revolução: o programa Jovem Guarda. (REALIDADE, 1966, p. 75) Portanto, percebe que na própria Jovem Guarda já havia traços de contracultura, no sentido de agir contra a estética cultural do país. Porém, na década de 1960 no Brasil surgem outros grupos, com características mais próximas às da contracultura, porém usando da própria cultura nacional para reivindicar o poder para a 11 juventude. Podemos citar como exemplo o movimento artístico/cultura Tropicalismo ou Tropicália. Por possuir ligação com a cultura popular brasileira, e ao mesmo tempo com os mesmo ideais da contracultura, a tropicália nos chama atenção pois, diferentemente da Jovem Guarda, não tenta se tornar cópia do que era produzido de arte no exterior, mas sim produzi-la baseando-se na cultura popular do Brasil e mesclando, interligando com o que era produzido fora do país. Segundo Paes (1997), “O pós-tropicalismo6, da mesma forma que a contracultura, não se restringiu à produção artístico cultural, mas ultrapassou esses limites, envolvendo amplos setores das classes médias urbanas, dos grandes centros do País, em busca de novas concepções de vida, novos valores e comportamentos, buscas enfim de outras explicações do mundo e da felicidade. Atingiu mesmo muitos daqueles que haviam atuado no movimento estudantil e nos partidos políticos de esquerda. A militância política nos moldes dos anos 60 estava inviabilizada, não apenas porque a ditadura em sua fase mais terrorista havia desestruturado todas as organizações, mas também porque muitos daqueles jovens haviam se transformado naquela incrível trajetória dos anos 60” (PAES, 1997, p. 84) Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a contracultura não se restringiu à música, mesmo que esta, segundo Guerreiro (1994), foi um dos principais veículos de exposição da nova cultura, devido ao fácil acesso através das rádios, mostrando um padrão de comportamento e de filosofia que moveu a juventude nos anos 1960. Portanto, várias foram as expressões artísticas que, enquanto rebeldes e contestadoras, enquadram-se na categoria contracultura. Nos Estados Unidos tem-se na literatura o movimento beat, as críticas cômicas da revista MAD, no cinema os filmes de Stanley Kubric, que abordavam temas pouco recorrentes na época, como o uso de drogas, a insanidade e a violência. nas artes plásticas as pinturas pop art de Andy Warol. No Brasil apesar do destaque da música, temos o cinema de Glauber Rocha (iniciando o que hoje conhecemos como Cinema Novo), as pinturas de Hélio Oiticica, a imprensa alternativa veiculada pelo Pasquim e demais. Porém, além de se convergirem neste sentido, os dois movimentos contraculturais possuíam outras 6 Termo criado por Heloísa Buarque para designar Underground (marginal, subterrâneo). Ou seja, pós- tropicalismo indica a influência do tropicalismo e não a superação espaço-temporal do mesmo. 12 características similares como por exemplo a forte crítica social presente nos seus discursos. Segundo Paes (1997) “(…) o inconformismo com os esquemas comerciais e com as imposições dos meios de comunicação de massa, a crítica à sociedade de consumo, a recusa dos modelos anteriores e a busca de maior liberdade temática, técnica ou de linguagem e, ainda, a intenção de provocar a desacomodação e a desalienação (termo característico da época) do espectador” (PAES, 1997, p. 8) Ainda mais, os dois movimentos convergem no que concerne às mudanças, mesmo que estas não simbolizassem algo coletivo. A contracultura causou mudanças comportamentais em nível macro e também esteve presente no nível micro, individual, mudando comportamentos, maneiras de perceber o mundo, estilos de vida. Para Amorim (2007), as mudanças que eram almejadas por quem aderia à contracultura estavam no âmbito da micropolítica. Com o intuito de ilustrar nossa comparação entre a contracultura nos Estados Unidos e a contracultura no Brasil a seguir compararemos duas canções e suas letras, uma do cantor e compositor Bob Dylan, famoso pela suas letras de protesto a favor da ampliação dos direitos civis. A outra canção foi composta pelo grupo brasileiro Os Mutantes, um dos precursores do movimento tropicalista, este, segundo nossa opinião, é o movimento com as características mais próximas da contracultura no Brasil. Blowin' In The Wind (Bod Dylan)7 How many roads must a man walk down Before you can call him a man? How many seas must a white dove sail Before she can sleep in the sand? Yes and how many times must cannonballs fly Before they're forever banned? The answer, my friend, is blowin' in the wind The answer is blowin' in the wind Yes and how many years can a mountain exist Before it's washed to the seas (sea) Yes and how many years can some people exist 7 Optamos por manter a música no idioma original para que não houvesse nenhuma alteração na análise, uma possível tradução está anexada no final do texto. 13 Before they're allowed to be free? Yes and how many times must a man turn his head Pretend that he just don't see? The answer, my friend, is blowin' in the wind The answer is blowin' in the wind Yeah and how many times must a man look up Before he can see the sky? Yes and how many ears must one man have Before he can hear people cry? Yes and how many deaths will it take till he knows That too many people have died? The answer, my friend, is blowin' in the wind The answer is blowin' in the wind? Esta canção de Bob Dylan tornou-se um hino da contracultura, sendo regravada nos anos 1960 e 1970 por diversos artistas. A letra faz uma crítica forte a favor dos direitos civis, direito à liberdade, direito à vida, direito de ir e vir, isto fica claro no trecho: “Yes and how many years/can some people exist/Before they're allowed to be free?/”.8 Além do mais, na letra o compositor critica o ato da guerra em dois momentos específicos, no início e no final da letra: “Yes and how many times/must cannonballs fly/Before they're forever banned?/”; 9 “Yes and how many deaths/will it take till he knows/That too many people have died?/”.10 Enfim, a maior crítica do compositor nesta letra não se refere às guerras, ou mesmo à ampliação dos direito civis, mas sim à apatia dos homens, que vivem em um mundo de guerras e restrição de direitos e quase nada fazem para mudar a situação. Esta crítica está presente no discurso de muitos pensadores do século XX, como Herbert Marcuse, Adorno e Roszak. Porém foi contra esta apatia que os jovens se uniram com a intenção de mudar o mundo, mesmo que não houve revoluções extremas na sociedade, houve uma mudança de pensamento em busca de melhorias. A crítica fica evidente nestas duas partes da letra: “Yes and how many times/must a man turn his 8 “Sim e quantos anos pode/ algumas pessoas existir/Até que sejam permitidas a serem livres?/”. 9 “Sim e quantas vezes/ precisará balas de canhão voar/Até serem para sempre banidas?/” 10 “Sim e quantas mortes/ele causará até ele saber/Que muitas pessoas morreram?/”. 14 head/Pretend that he just don't see?/”;11 “Yes and how many ears/must one man have/Before he can hear people cry?/”.12 A seguir apresentamos a letra da música “Balada do Louco” do grupo brasileiro Os Mutantes. Balada Do Louco (Os Mutantes) Dizem que sou louco por pensar assim Se eu sou muito louco por eu ser feliz Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Se eles são bonitos, sou Alain Delon Se eles são famosos,sou Napoleão Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Eu juro que é melhor Não ser o normal Se eu posso pensar que Deus sou eu Se eles têm três carros, eu posso voar Se eles rezam muito, eu já estou no céu Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Eu juro que é melhor Não ser o normal Se eu posso pensar que Deus sou eu Sim sou muito louco, não vou me curar Já não sou o único que encontrou a paz Mas louco é quem me diz E não é feliz, eu sou feliz A música do grupo brasileiro Os Mutantes, a exemplo da música de Bob Dylan analisada acima, também faz uma crítica ao modo de vida “normal” dos adultos e à forma como estes construíram o mundo. Aqui o jovem é visto como um louco por pensar diferente das demais pessoas, por sonhar: “Dizem que sou louco/por 11Sim e quantas vezes/pode um homem virar sua cabeça/E fingir que ele simplesmente não vê?/”. 12 “Sim e quantas orelhas/precisará ter um homem/Antes que ele possa ouvir as pessoas chorar?/”. 15 pensar assim/Se eu sou muito louco/por eu ser feliz/”. Em sua letra o grupo também critica o consumismo que é resultado direto da produção em massa, da indústria cultural e do tipo de desenvolvimento imposto por países como os Estados Unidos: “!Se eles têm três carros/ eu posso voar/Se eles rezam muito/ eu já estou no céu/”. Porém, diferentemente da crítica presente na música Blowin' In The Wind, a crítica feita aqui é uma sátira indireta, onde o louco é aquele que está fora dos padrões sociais, ou seja o jovem underground. Na letra da música “Balada do louco” a voz do “louco” é uma figura representativa de todos os jovens da contracultura, que tenta mostrar para o mundo adulto que “é melhor/não ser o normal/se eu posso pensar que Deus sou eu” e assim decidir, influenciar, mudar o mundo ao seu redor. É possível perceber nas duas letras analisadas a busca pela mudança partindo dos jovens, para combater a padronização social, cultural e de pensamento. Porém na música brasileira os trocadilhos e o simbolismo são mais presentes, pois, a música foi composta durante o período ditatorial no qual não era possível se expressar diretamente sem que houvesse censura. Não há como negar que as duas músicas são parte da contracultura, mesmo que inseridas em duas realidades sociais, culturais e políticas díspares, algumas características principais são mantidas. Considerações Finais Ao iniciarmos a escrita deste artigo pretendíamos fazer uma análise comparativa voltada mais diretamente para os movimentos contraculturais. Porém, com o desenrolar da pesquisa percebemos que não é possível estudar a cultura isoladamente, pois a mesma está ligada à economia, à política e à sociedade, o que não nos permitiu fixar somente em um determinado objeto. Portanto, o exercício da comparação nos exigiu uma contextualização histórica articulada de diversos acontecimentos que acarretaram no surgimento da contracultura e na sua difusão. O método comparativo nos possibilitou abordar a temática proposta de uma maneira mais articulada e contextualizada, destacando as similaridades e disparidades entre as duas realidades estudadas. Segundo Franco (2000) “a comparabilidade emerge da capacidade humana de conhecer fazendo analogias, 16 singularizando os objetos, identificando suas diferenças e deixando emergir as semelhanças contextualizadas, suas particularidades históricas.” (FRANCO, 2000, p. 207) Percebemos que mesmo em duas realidades históricas diferentes, a juventude estadunidense e a juventude brasileira compartilharam, na década de 1960 principalmente, dúvidas, inquietações, repressões, que as impulsionaram a lutar a favor dos seus ideais. Mesmo que estas mudanças não atingiram a esfera macro-social, boa parte da juventude mudou seu modo de pensar e agir, a sua linguagem, o modo de viver e interagir com a natureza e com a sociedade ao seu redor. A contracultura é um dos movimentos que nos auxiliam na compreensão da juventude da década de 1960, pois conseguiu unir, além dos jovens, suas linguagem e expressões, diversas artes e movimentos numa única prática cultural contra o sistema estabelecido. 17 Bibliografia ALVES, Luciano Carneiro. Flores no deserto – a Legião Urbana em seu próprio tempo. 2002. 151 p. História e Cultura. Universidade Federal de Uberlândia: Uberlândia, 2002. AMORIM, Bruno Delecave de. A Contracultura no Brasil.2007. Disponível em <http://contraculturabrasil.blogspot.com/>, acesso em 12 de janeiro de 2012. BOB DYLAN. Blowin´In The Wind. The Freewheelin. CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da Rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Editora SENAC, 2001. CORTÉS, Tania Arce. Subcultura, contracultura, tribus urbanas y culturas juveniles: ¿homogenización o diferenciación?. Revista Argentina de Sociologia. Buenos Aires. Ano VI, n. 11, p. 257-271. GROPPO, Luis Antonio. O Rock e a Formação do Mercado de Consumo Cultural Juvenil:a participação da música pop-rock na transformação da juventude em mercado consumidor de produtos culturais, destacando o caso do Brasil os anos 80. Campinas, 1996. Dissertação (Mestrado), IFCH, Unicamp. GUERREIRO, Goli. Retratos de uma tribo urbana: rock brasileiro. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994. OS MUTANTES. Balada do Louco. (Arnaldo Baptista/Rita Lee). Mutantes e seus cometas no país dos Baurets, Eldorado. PAES, Maria Helena Simões. A década de 60.Rebeldia, contestação e repressão política. 4 ed. São Paulo: Atica. REALIDADE, Revista. Roberto Carlos: a revolução da juventude. Editora Abril, ano 1, nº 2, 1966. ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. 2 ed. Pretópolis: Vozes, 1972. 18 Anexos Tradução da letra da música Blowin´ In the Wind do cantor e compositor Bob Dylan: Soprada no Vento (Bod Dylan) Quantas estradas precisará um homem andar Antes que possam chamá-lo de um homem? Quantos mares precisará uma pomba branca sobrevoar Antes que ela possa dormir na areia? Sim e quantas vezes precisará balas de canhão voar Até serem para sempre banidas? A resposta, meu amigo, está soprada no vento A resposta está soprada no vento Sim e quantos anos pode existir uma montanha Antes que ela seja dissolvida pelo mar? Sim e quantos anos podem algumas pessoas existir Até que sejam permitidas a serem livres? Sim e quantas vezes pode um homem virar sua cabeça E fingir que ele simplesmente não vê? A resposta, meu amigo, está soprada no vento A resposta está soprada no vento Sim e quantas vezes precisará um homem olhar para cima Antes que ele possa ver o céu? Sim e quantas orelhas precisará ter um homem Antes que ele possa ouvir as pessoas chorar? Sim e quantas mortes ele causará até ele saber Que muitas pessoas morreram? A resposta, meu amigo, está soprada no vento A resposta está soprada no vento
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