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SOCIOLOGIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA: UM SABOR DE IMPERTINÊNCIA (Resenha: MORAIS, Regis de. Sociologia Jurídica Contemporânea. Campinas: Edicamp, 2002). Resenha originalmente publicada no Suplemento Eletrônico da Revista Forense Eletrônica. São Paulo, vol. 373, em 23/07/2004. Roberto Barbato Jr - Mestre em Sociologia e Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor de Sociologia nos cursos de Direito da Metrocamp (Campinas) e Unip (Limeira). Até época recente a relação entre a Sociologia e as disciplinas jurídicas fora parcamente explorada, sendo assinalada de forma tensa. André Franco Montoro notara, a propósito, uma certa hostilidade entre juristas e sociólogos, o que explicaria em expressiva medida um certo atraso no desenvolvimento da Sociologia do Direito no Brasil. Conforme suas palavras: "Este atraso no desenvolvimento da Sociologia do Direito talvez se explique pela hostilidade que essa nova disciplina encontrou em dois setores afins: de um lado, os juristas e as Faculdades de Direito, que resistem à penetração, em seu campo, de uma disciplina estranha à Dogmática Jurídica; de outro, os sociólogos e as faculdades de Ciências Sociais ou Sociologia, que desconfiam da objetividade e do caráter científico dos estudos vinculados à normatividade jurídica"1[1]. Como se vê, o processo de institucionalização da Sociologia Jurídica teria sido menos conturbado se não houvesse a hostilidade e a desconfiança despropositadas entre os dois campos do conhecimento. Na contramão desta controvérsia, Sociologia Jurídica Contemporânea veio a lume oportunamente. Neste momento em que florescem as atenções sobre a matéria 1[1] MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 25 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 514. na arena acadêmica brasileira, vimos surgir uma profusão de manuais dispostos a orientar o estudante de Direito em seu primeiro contato com o repertório sociológico. No entanto, raros são aqueles nos quais se encontram discussões a respeito dos matizes que enformam os temas conjunturais; em que pesem suas preocupações didáticas, limitam-se a enumerar e fixar conceitos. Não é este, por certo, o objetivo basilar de Regis de Morais em seu livro de ensaios. Nele o autor logo deixa claro que pretende "auxiliar os estudantes e demais apreciadores do direito a sentirem, de fato, o direito como uma realidade social, isto é, nascida do meio social, que se volta para a sociedade e que objetiva contribuir com a melhora da qualidade social de vida" (p. xi). Sua intenção, fielmente levada a termo, consiste em abordar os meandros dos temas sociológicos e jurídicos relativos aos tempos atuais. Além da elegância que perpassa a sua escrita, é possível notar uma oportuna cautela ao tocar em certos problemas. Em determinados trechos do livro, procura dissociar a análise histórica da conceitual, dando ao leitor, entretanto, a devida dimensão da importância dessas duas esferas analíticas. É o que se observa, por exemplo, quando trata de examinar, do ponto de vista histórico, a "Evolução dos Direitos Humanos" (p. 197). Após discorrer longamente sobre tal evolução, passa a concentrar seu foco em uma apreciação "mais analítica". Contudo, embora delimite os dados históricos e os conceituais, não se furta a mostrar como eles se interpenetram, convergindo para a meta precípua de seu texto: discutir aquilo que qualifica "as novas dimensões dos direitos humanos". É também nesta perspectiva que se evidencia um outro cuidado: o de não se deixar levar por jargões e reducionismos geralmente creditados à análise sociológica. No ensaio intitulado "Visão sociológica da criminalidade atual", a seguinte passagem ilustra bem as nossas observações: "Em momento de desequilíbrio de forças, um distúrbio orgânico, uma crise neurótica ou psicótica podem desencadear um ato criminoso. Sublinhamos isto de forma especial porque é freqüente ver-se afirmar, levianamente, que os sociólogos põem tudo que diga respeito ao crime em razões socioeconômicas ou sociopolíticas. Reconheçamos, então, já de pronto, que a criminalidade não tem toda a sua origem em fatores do meio social, não deixando, porém, de também reconhecermos que quanto mais pesadas e negativas forem as pressões do meio, mais fragilizadas ficam as resistências dos indivíduos, tendo, assim, importantíssima ação, as pressões do meio social" (p. 164). De certa maneira, a um leitor desatento, poderia parecer que suas colocações recendem a um determinismo incauto, algo semelhante às teses de Lombroso que procurava enxergar nas características físicas e biológicas do indivíduo a disposição natural para o crime. No entanto, Regis de Morais, desde logo suprime esta possível interpretação ao explicar, com zelo, as "situações ditas de biocriminalidade", nas quais um distúrbio tiroidiano e crises epiléticas podem ser a causa de homicídios e "outros crimes violentos" (p. 162). Não se trata de negar as causas socioeconômicas ou sóciopolíticas dos crimes; antes, o que está em pauta é o fato de existir um outro componente a ser considerado. A despeito da temática dos ensaios ser um tanto diversa, não nos é dado preterir o eixo central que os liga, formando uma equilibrada unidade. Assim, parece haver uma preocupação assaz interessada para com os problemas levantados. Problemas, aliás, cujas soluções Regis de Morais faz questão de salientar que não poderá dá-las. Esse é o motivo pelo qual acredita desapontar os imediatistas que anseiam por uma fórmula cabal para os dilemas em evidência. Não poderia ser de outro modo a discussão feita por um autor compromissado com o debate intelectual franco, situado no âmbito das idéias propriamente. É em "Tempos de agir" – subtítulo do ensaio já mencionado – que propõe uma reflexão com o fito de criar as bases de uma ação prática. Diz ele: "Neste início de século XXI não cabem vacilações e adiamentos. Agora mesmo as sociedades têm que decidir que se querem sobreviver com cidadania e democracia ou se aceitam desintegrar-se em mãos mafiosas. Todas as nações necessitarão de um auto-exame. Se de fato o fizerem, de pronto constatarão que até aqui sua necrofilia tem sido vazão de pura 'pulsão de morte', de auto-destrutividade. Muitas instâncias e órgãos, principalmente as sempre bem aceitas ONGs, devem por-se em ação para conduzir a tal reflexão de auto-exame" (p. 180). Aqui, talvez fique claro que pressuponha o leitor como possível agente transformador da realidade social. Salvo engano, é este leitor o seu interlocutor e a ele são creditadas as possibilidades de concretização da ação sugerida. Caso nossas observações sejam pertinentes, poderíamos ler este trecho com uma espécie de convite àquele que desfruta da narrativa e que é chamado a participar do momento contemporâneo, a fim de que não passe pela história como mero espectador. Note- se, ademais, que esse convite resulta de uma espécie de imperativo endereçado àqueles para quem a dinâmica da vida social exige a adoção de compromissos. Não menos importantes do que essa particularidade de seus ensaios, são as considerações sobre própria contemporaneidade. É nas possibilidades de compreensão do complexo jogo que articula as instâncias nacionais e internacionais que podemos reter a dimensão da época em que vivemos, de sorte a interpretá-la em sua singularidade. Neste sentido, Regis de Morais assinala o teor subjacente de fatos e processos que, muitas vezes, nos passam despercebidos. De acordo com suas palavras: "A grande ingenuidade está em não vermos que os pequeninos fatos fazem parte de algo estrutural, como uma mentalidade deépoca; o assalto ou o latrocínio a que assistimos na esquina mais próxima pode ter sua origem em mecanismos internacionais dos quais, às vezes, nem suspeitamos" (p. xiii). O trecho citado, constante da apresentação do livro, terá desenvolvimento amplo na discussão que elabora a respeito criminalidade contemporânea. Como a corroborar o que dissera anteriormente, comenta de maneira mais categórica: "Por menos que o percebamos, os pequenos crimes de rua refletem estruturas e dinamismos sociais de âmbito internacional" (p. 188). Assim, os fatos locais são dotados de uma dimensão internacional; sua interpretação só poderá ser feita de forma adequada se pudermos ler nas entrelinhas a engrenagem da qual fazem parte. Isto, contudo, não significa preterir a peculiaridade eminentemente nacional relativa à sua natureza. O que se coloca em questão é a possibilidade de analisá-los de uma perspectiva que contemple sua dúplice inserção na realidade social. A esse propósito, também seria pertinente lembramos que, ao abordar o tema da globalização e suas conseqüências no plano dos direitos modernos, o autor não se esquiva da análise das soberanias nacionais, rechaçando a idéia, freqüentemente difundida, de que elas estão debilitadas, quando, em realidade, o que acontece é que estão "readaptando-se às alterações antes havidas na ordem mundial" (p. 220). Disso decorre a constatação da superação do antagonismo entre o direito interno e o direito internacional. Ao mostrar que entre ambos deve haver "colaboração e coordenação" (p. 221), sugere não interpretar os aparatos inerentes à globalização como mero arsenal de subsunção da realidade nacional. Note-se que à essa discussão sobre a mútua colaboração entre as instâncias nacionais segue-se uma pertinente crítica relativa aos efeitos da globalização. No último ensaio do livro – "Direito nos mundos moderno e contemporâneo" –, como a pintar um diagnóstico, Regis de Morais desenha com traços precisos a tela de nosso tempo: "Assim foi que, terminados os sofrimentos explicitamente impostos pela guerra fria, o mundo vê-se aparentemente sem alternativa, a não ser deixar-se cair nas armadilhas do neoliberalismo e da sua decantada globalização econômica. Eis-nos chegados ao núcleo dos tempos atuais e procuremos entender o que se está passando conosco neste momento, sobretudo com nossos olhos voltados para as vítimas das exclusões sócioeconômicas, que empurram imensas multidões para o nada social e para infernos existenciais que dificilmente podemos imaginar (p. 242). E, mais adiante, ao se referir aos ideólogos do neoliberalismo observa: "Todos os adeptos do neoliberalismo batem insistentemente na tecla do mercado livre dos capitais sem qualquer forma de regulamentação. Detestam a idéia de uma organização internacional que supervisionasse os movimentos de capitais (p. 244). Não restam dúvidas de que, neste ponto da exposição, o processo de exclusão socioeconômica gerado pelo movimento do capital internacional marca forte presença no debate. Mas, engana-se o leitor que supõe tratar-se apenas de um debate calcado no aspecto econômico. Mostrando versatilidade com vários enfoques da análise crítica, o autor cede o passo até que possa trafegar com tranqüilidade entre os pressupostos de uma Sociologia Jurídica contemporânea. Neste sentido, aponta o papel da Dogmática Jurídica diante do quadro de excludência social e do poderio avassalador do capital: "Este não é o momento para defendermos a dogmática jurídica e seus aspectos de inflexibilidade positivista. Mas de defendermos seu aspecto positivo, isto é, que os Estados de direito não admitam a selvageria da lei do mais forte do mercado, e se empenhem para que sejam criados órgãos mais efetivos de justiça internacional que, com sua precisa e franca atuação, contenham a mixórdia que hoje aí está e devolvam o respeito ao direito" (p. 249- 250). Aqui seria perfeitamente possível entendermos o caráter instrumental que atribui à Dogmática Jurídica diante dos novos tempos. Caráter que, por suas múltiplas aplicações, deve ser aquilatado dentro de uma visão social, propícia a restituir a justiça aos novos atores da modernidade. Ademais, seria ela a responsável pela capacidade de intervenção no processo histórico, como a ressoar a tarefa que outrora estivera circunscrita a um ethos iluminista, na busca pela racionalização do poder. Discussões como essas, dotadas de tamanha complexidade, quando empreendidas por olhos críticos e sagazes enriquecem o repertório intelectual de qualquer disciplina acadêmica e nos fazem crer que o trabalho científico ainda tem voz capaz de enfrentar os desafios impostos pela modernidade. Conforme bem assinala o autor, na conclusão do livro: "O discurso sociológico crítico, bem o sabemos, às vezes tem sabor de impertinência, por freqüentemente desestabilizar a chamada lei do menor esforço ou por questionar posições humanas e profissionais cômodas, ainda que estas nem sempre sejam honestas e fecundas". (p. 254). Não seria demasiado exagero afirmar que, aos desavisados, a leitura de Sociologia Jurídica Contemporânea certamente suscitará um sabor de impertinência. E também aí reside a originalidade de sua interpretação, na medida em que procura associar a análise sociológica requintada a uma visão interessada e atual dos fenômenos jurídicos. Mais que isso, contribui para que a "hostilidade" entre juristas e sociólogos se transforme, a cada dia, em uma noção superada.
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