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Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem - Cura - Michael Taussig

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Segunda parte
Cura
Uma história de sorte e infortúnio
Conheci José Garcia sm dezembro de 1975, quando ele participou de um 
grupo que esperava para beber yagé com Santiago Mutumbajoy, um reputado 
xamã índio que vivia nos contrafortes do Putumayo, onde os sopés orientais dos 
Andes se encontram com a floresta pluvial da bacia do alto Amazonas, na Co­
lômbia. Ele foi o último a juntar-se a nosso grupo de pobres forasteiros brancos e 
de índios da região que observavam o crepúsculo das montanhas, e me foi assi­
nalado como amigo íntimo e discípulo do xamã. O que chamou minha atenção 
foi o fato de que José Garcia era um branco que se dispusera a estudar com um 
curandeiro índio.
Lembrei-me de que havia alguns meses, quando eu me encontrava na com­
panhia de outro xamã, dois brancos se aproximaram da casa certa noite e um deles 
se pôs a berrar: “Graças a Deus eu sei\ Mate-me agora, com tudo aquilo que você 
sabe, seu monte de merda, filho de uma puta! Feiticeiro de merda, filho da puta! 
Eles não podem fazer nada! Maldito! Mas eu sei... Estou parado, aqui... Eles não 
sabem nada, filhos da puta! Não conseguem fazer nada contra mim!". Quando 
atravessei pela primeira vez a pequena cidade, próximcJ ao lugar onde Santiago 
morava, um técnico empregado pelo serviço especial de saúde do governo dis­
sera em altos brados: “Nós do INPES combatemos os curacas (xamãs). Somos a 
vanguarda do progresso. Nossa tarefa é nos livrarmos de toda essa charlatanice". 
Os proprietários brancos dos armazéns em volta da praça garantiram-me que os 
xamãs eram inúteis ou perigosos. Somente mais tarde fiquei sabendo que aqueles 
mesmos proprietários procuravam os xamãs para dar um jeito em seu pequeno 
comércio.
Devo assinalar que o yagé cresce unicamente na floresta pluvial das terras 
baixas e dos sopés das montanhas e que os índios que conheço, habitantes dos 
contrafortes do Putumayo, dizem de vez em quando que se trata de uma dádiva 
especial de Deus para os índios, e unicamente para eles. “Yagé é nossa escola”, 
“yagé é nosso estudo", poderão dizer, e o yagé é concebido como algo ligado à
origem do conhecimento e de sua sociedade. Foi o yagé quem ensinou aos índios 
o bem e o mal, as propriedades dos animais, os remédios e as plantas comestí­
veis. Alguns índios Cofán, ao sul do rio Putumayo, certa vez me contaram uma 
história sobre a origem do yagé que ilustra as tensões bem como as mediações 
que se dão entre as tradições indígenas e cristãs: Quando Deus criou o mundo ele 
arrancou com a mão esquerda um fio de cabelo e o plantou no chão, mas unica­
mente para os índios. Abençoou-o com sua mão esquerda. Os índios descobriram 
suas propriedades e desenvolveram os ritos do yagé e de todo o complexo xamâ- 
nico. Ao ver isto, Deus demonstrou incredulidade. Disse que eles estavam men­
tindo. Pediu e Lhe foi dado um pouco de infusão de yagé. Ele tremeu, vomitou, 
defecou e gritou bastante, fascinado com as muitas coisas maravilhosas que viu. 
Quando o dia amanheceu ele declarou: “É verdade o que esses índios dizem. A 
pessoa que toma isto sofre, mas se beneficia. É assim que a gente aprende: atra­
vés do sofrimento”.
Embora possam beber o yagé com um xamã índio a fim de se livrarem do 
mal, seria excepcionalmennte raro que os brancos considerassem com seriedade 
assumir todos os perigos que se acumulam sobre a pessoa encarregada da respon­
sabilidade de seu preparo e ritual. José Garcia é um desses poucos brancos.
A noite caiu e entramos na casa de dois quartos, empoleirada na colina. A 
luz de uma vela tremeluzia, iluminando as traves do teto e as redes que balouça­
vam. Encardidas estampas católicas contemplavam a penumbra oscilante, e São 
Miguel, o santo padroeiro da pequena cidade vizinha e que Santiago Mutumba- 
joy afirma ser o santo dos índios, que os preveniu da chegada dos espanhóis, 
começou a livrar-se de Satanás, que se afundava no fogo do inferno. Uma con­
versa em voz baixa sobre os momentos difíceis de cada um deu lugar à expecta­
tiva e ao temor, até certo ponto dissipados pelo curandeiro, que fazia piadas e 
brincava. O incenso de copal invadiu a sala e os sons noturnos do rio e do vento 
se uniram aos ruídos da floresta, preenchendo nosso silêncio. Um rapaz ajudou o 
curandeiro a encher uma panela de yagé. O curandeiro se agachou e começou a 
cantar ao ritmo do compasso de seu leque de cura, waira sacha — espírito da 
floresta, escova do vento.
Ele estava curando o yagé do mal que este traz da floresta. Entoava sons 
yagé, mas não palavras, pedindo-lhe que fosse forte e trouxesse boa pinta, isto é, 
pintura, visões. Decorridos uns dez minutos ele bebeu, cuspiu, pigarreou e então 
serviu a todos nós, cantando diante do copo cheio, antes que cada pessoa bebesse. 
Sentamo-nos e aguardamos. Daí a meia hora alguém foi vomitar no escuro, trope­
çando, e o xamã recomeçou a cantar, mal parando até o dia amanhecer. Solicitou 
boas visões; sua voz e o ritmo que ele imprimia ao leque ressoavam em nossos 
corpos trêmulos. Eis alguns trechos de minhas anotações, feitas naquela noite:
Então surge o feo (feio). Meu corpo se distorce e estou muito assustado. Minhas 
pernas se esticam e se desprendem, meu corpo não mais me pertence e então volta a me 
pertencer. Sou um polvo, condenso-me em uma forma bem pequena. A luz da vela cria
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formas de um mundo novo, formas animais e ameaçadoras. A metade inferior de meu corpo 
desaparece. Aprendo a usar a dissociação como uma vantagem, como um modo de escapar 
ao horror. Não sou a pessoa que está passando por aquilo tudo, mas o rosto-prcsença, sem 
corpo, calmo, que olha com atenção e observa aquele outro eu desprovido de importância. 
Espio meu outro eu e sinto-me seguro. Mas então este segundo eu, este observador objetivo 
e desligado, também sucumbe e tenho de dissociar-me em um terceiro e, em seguida, em 
um quarto, pois a relação entre meus eus se rompe, criando uma série quase infinita de 
espelhos confusos de eus que espiam e de outros que sentem. O ódio a mim mesmo e a 
paranóia são estimulados por animais horríveis — porcos que grunhem estranhamente, co­
bras coleantes que deslizam uma em cima da outra, roedores com asas que se assemelham a 
barbatanas. Estou tá fora, tento vomitar, as estrelas e o vento pairam sobre mim, apoio-me 
na cerca do curral. Está repleto de animais, que se mexem. A história de minha vida se 
desenrola diante de mim, em uma torrente de medo e de autocensura. Volto para dentro e 
assim que entro vejo o xamã, Santiago; ele transformou-se em um tigre! Está sentado na 
rede e José Garcia ajoelha-se diante dele. A sala se transformou e sinto o vômito que chega. 
Vou lá para fora, vomito e defeco. Sinto as odiosas situações do passado e o medo sendo 
expelidos. Junto-me ao grupo, calmo, e agora flutuo em cores e visões maravilhosas. Dou- 
me conta que Santiago pôs seu colar de dentes de tigre. Sua cabeça aninha-se naquele 
suporte de dentes de tigre, criando uma nova imagem: a parte superior de seu corpo é como 
a de um tigre. Ele acaricia suavemente José Garcia e pergunta-lhe se quer mais yagé. Esten­
dem um pano e se agacham no chão. Alvoroçados, excitados, pedem uma faca para abrir 
uma concha de madrepérola. Mais tarde José Garcia faz perguntas relativas a seu gado; 
quer vê-lo curado naquela mesma noite e quer que Santiago vá até sua fazenda e veja o que 
está acontecendo. Mais tarde percebo que ele está se referindo à feitiçaria. Pela manhã 
Santiago contou-me que mal conseguiu funcionar durante a noite, pois esbarrava no gado o 
tempo todo; era um bonito gado. Oh! Um belo gado de todas as cores, que mugia, o lambia 
e era muito gotdo. O Banco Mundial finandou um projeto de criação de gado, naquelas 
regiões da floresta pluvial desde o inicio da década de 70.
O genro de Santiago me conta que José Garcia deseja ser um xamã, que ele sabe 
muita coisa e que está passando por um período de má sorte.
Muitomais tarde ficou claro para mim que José Garcia estava aprendendo a ser 
um curandeiro como parte do fato de ele estar sendo curado de uma aflição 
profundamente perturbadora. Ao fazer isso, ele atravessava todo um ciclo de 
aflição, salvação e transformação, que parece tão eterno quanto a humanidade. 
No entanto o poder deste ciclo não se origina da eternidade, mas do ativo engaja­
mento com a história, do qual a aflição depende para sua cura. José Garcia não 
deve ser historicizado, pois o passado do qual sua aflição e sua cura dependem é 
uma ativa construção do passado, original para cada novo {»esente, e isto tam­
bém se aplica ao xamanismo
Os contrafortes dos Andes, na região do Putumayo, foram percorridos pela 
primeira vez por europeus, em 1541, á procura da cidade de El Dorado — O Rei 
Dourado. Os índios que habitavam a selva, na região do rio Mocoa (descritos 
pelos contemporâneos como canibais que lutaram ferozmente contra os espa­
nhóis, colocando-os em fuga), asseguraram a Hemán Pérez de Quesada e seus 
260 companheiros de conquista que a Terra Dourada situava-se ali perto, nas 
montanhas que se erguiam na direção oeste, em uma terra fabulosa chamada 
Achibichi, onde os espanhóis encontraram o vale do Sibundoy, mas não o ouro e,
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mais adiante, a-nova vila espanhola de Pasto. Após essa predadora expedição 
surgiram por lá alguns traficantes de escravos espanhóis e missionários francis- 
canos. Era um punhado de homens amargurados, que muito padeceram com o 
clima e com a hostilidade dos índios dos contrafortes dos Andes, que, segundo se 
dizia, rebelaram-se instigados por seus xamãs.
No entanto o cristianismo assumiu importância na cultura da conquista. A 
distinção entre índios cristãos e pagãos se tomou ideologicamente decisiva de­
vido á importância que ela assumiu, ao facilitar a legalidade da escravização e o 
emprego da força militar. Em seu manual de instrução para os missionários, pu­
blicado em 1668, o superior da missão franciscana estabelecida em Quito, bispo 
Pena Montenegro, forneceu um exemplo de racionalização cristã, tendo em vista 
o emprego da força contra os índios do Putumayo. A conquista por meio da força 
armada, escreveu ele, era justificada “para reduzir aqueles que, embora não 
sendo vassalos de alguém, injuriaram gravemente aqueles que o eram, a exemplo 
dos índios pagãos que, sendo vizinhos naquelas regiões de índios católicos, inva­
diam suas terras, suas vidas e fazendas, aprisionando as mulheres e as crianças, 
como ocorre comumente e como ocorreu este ano de 1663, nos contrafortes da 
montanha, em Mocoa".1 Outros relatos de franciscanos declaravam que índios 
cristianizados do vale do Sibundoy (provavelmente os “índios católicos" a que se 
refere o bispo) estavam sendo usados para escravizar pagãos (tais como os de 
Mocoa) nas terras baixas, a fim de trabalharem na mineração do ouro.
Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduzi­
ram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao 
poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam 
firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especial­
mente dados a praticá-la, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio. 
O bispo Pena Montenegro afirmava que sendo tão brutos e ignorantes, os índios 
haviam sido conquistados pelo diabo, a ponto que ele se tomou unha e carne com 
os nativos. As características do demônio se tomaram um traço hereditário. Atra­
vés de seus ritos e superstições, os índios mantinham a memória da idolatria e da 
feitiçaria. Quando ficavam doentes e procuravam os xamãs, reforçavam a ambas. 
Além do mais o bispo se preocupava com a influência herética qué os índios exer­
ciam sobre os brancos, pois estes também procuravam os curandeiros índios.2
O bispo instruiu seus frades a tomar cuidado, ao tirarem os “instrumentos” 
dos feiticeiros índios e ao proibirem suas danças e seus cânticos, “pois neles os 
índios guardam a recordação da idolatria e da feitiçaria”. Tendo em vista essa finali­
dade, era necessário destruir “seus membros, cabeças de veado e penas, pois 
estes são os instrumentos do mal e trazem à baila a recordação do paganismo”.3
No entanto a memória de que se trata aqui não seria a dos espanhóis e não a 
dos índios? A ironia estava no fato de que ao se empenhar em apagar essas 
“recordações", a Igreja, na verdade, as criava e as fortalecia como uma nova força
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social e, em conseqüência, garantia a transmissão do mito para a realidade e a 
transmissão da memória para o futuro.
Expulsos das missões em 1767, os franciscanos deixaram o Putumayo, que 
se tomou um lugar ainda mais isolado, virtualmente livre de contatos com bran­
cos durante um século, com exceção de alguns comerciantes á procura de laca de 
bamiz (verniz) e de plantas medicinais para as pequenas cidades das serras. Se­
guindo-se ao boom da casca de quinino, nas décadas de 1860 e 1870, o da bor­
racha irrompeu nas terras baixas do Putumayo, bem no fim do século XIX, 
acarretando durante cerca de vinte anos aquilo que Walter Hardenburg descreveu 
como “O Paraíso do Demônio”, isto é, o espaço onde ocorreu a escravização e a 
morte, a uns 3S0 quilômetros ao sudoeste do lugar onde José Garcia se estabele­
ceu, meio século mais tarde. Foi concedido a capuchinhos da Espanha o controle 
quase total da Amazônia colombiana em 1900, e eles estabeleceram sua primeira e 
mais importante base nas toras altas do vale do Sibundoy. Suas escolas e clínicas 
foram bem-sucedidas, em contraposição ao fracasso dos franciscanos, e sua tenta­
tiva, um tanto falha, de colonizar a região através de camponeses brancos pobres foi 
grandemente impulsionada pela Texaco Oil Company, que construiu estradas no 
início da década de 50, pelas quais camponeses pobres, negros e brancos afluíram 
em grande número. Um desses brancos pobres era José Garcia.
Nascido em 1925 em Narino, localidade situada no altiplano andino, José 
Garcia desceu para os contrafortes da bacia do Putumayo em 1950, em compa­
nhia de sua mãe e de seu irmão, após a morte do pai. Haviam ouvido falar da 
beleza de Santa Marta, esperavam encontrar lá a riqueza e passaram anos árduos 
preparando a terra para a criação do gado. Contou-me que tomou yagé pela pri­
meira vez com um curador índio da região, chamado Andrés Hinchoa. Sua irmã 
ficara gravemente doente, após romper com o homem de quem estava noiva. Ela 
e José Garcia temiam que tivesse sido enfeitiçada, em um ato de vingança e, 
finalmente, procuraram Andrés Hinchoa para ver o qué ele poderia fazer. José 
Garcia relembra:
Andrés Hinchoa era meu compadre. Foi quem me ensinou a tomar yagé. Me deu a 
primeira pinta e passei por coisas que jamais tinha visto. Ele me disse: “Bom. Vou te dar 
um copo de yagé para que você tenha boa sorte e assim sempre se lembrará de mim. Mas 
você terá de ser corajoso, compadre\". Então ele me deu o primeiro copo e dai chegou a 
chuma (embriaguez e visões). Mas Ave Maria!... Eu estava morrendo. Vi um outro mnndo. 
Estava em uma outra vida. Vi-me num atalho estreito, comprido, que não terminava mais. E 
me sentia angustiado, sofrendo. Tinha ido embora por toda a eternidade. Estava naquele 
atalho, caminhava sem parar; e dal cheguei a uma planície imensa, bela como a savana. Os 
campos eram verdes. Lá estava um quadro de Nossa Senhora do Carmo, e eu disse para 
mim mesmo: “Agora vou até Nossa Senhora do Carmo“. Então vi uma ponte bem pequena, 
com um buraco no meio; não havia nada além daquela pontezinha, fina como um dedo, e 
pensei com meus botões: “Tenho medo de atravessar. Minha Virgem Santa, não me deixe 
cair! Não deixe que nada de mal me aconteça!“. Fiz o sinal-da-cruz e comecei a atravessar 
a ponte, mas comecei a cair. De repente fiquei assustado. Naquele momento invoquei a
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Santíssima Virgem do Carmo, pedindo que me ajudasse a passar. Daí chegueiaté perto dela 
e disse: “Vim para que todos os meus pecados sejam perdoados!". Forque eu estava morto, 
não é mesmo? E então ela disse: “Não vou perdoar nada!'. Então me pus a chorar com 
amargura, soluçava, procurava aquela salvação que a Virgem Santa me negava. Chorava 
sem parar e implorava que ela me salvasse. Daí ela me disse que eu estava perdoado, que 
eu estava salvo! Fiquei feliz e voltei pata este mundo. Estava sentado no mesmo lugar; com 
o rosto banhado de lígrimas.
Em seguida, pelo que deduzi — pois José Garcia se mostrou um tanto reti­
cente em seu relato —, ele se envolveu em um caso amoroso e conflitante. O fim 
do relacionamento se deu em um clima desagradável, até mesmo agressivo. Com 
efeito, as cicatrizes ou aquilo que ele considera como tal, estão presentes até o 
dia de hoje. A jovem e sua mãe, proprietárias da fazenda vizinha, nunca estão 
longe de seu pensamento, quando as coisas não vão bem.
Foi por tomar yagé, segundo me contou Santiago Mutumbajoy, que José 
Garcia pôde escolher entre três mulheres, e a eleita foi Rosário, com quem casou 
em 1962. Nascida em 1935, ela viera da região de Narino mais ou menos na 
mesma época que José Garcia e morava em uma fazenda das redondezas. Tinha 
16 anos quando o homem a quem amava e com quem desejava se casar moiTeu 
em um acidente com um caminhão. Ficou desolada, chorou e sonhou com ele 
durante meses.
Após oito anos de casamento saíram da floresta e foram morar na cidade- 
zinha de Mocoa, no sopé da montanha. Alugaram quartos da tia da jovem que 
fora a primeira noiva de José Garcia. Essa tia se tomou a madrinha da primeira 
filha do casal, mas tomou a vida impossível para eles, segundo me contou José 
Garcia, pois dizia que eles sentiam excessivo orgulho da beleza da criança e que 
ela morreria em breve. Assim o orgulho deles seria castigado.
Mudaram-se para o outro lado da estrada e passaram por uma fase difícil de 
doença e pobreza. À noite estranhos sons os assustavam, e Rosário foi assom­
brada por um espírito que, muitas vezes, sentava-se acima de seu ombro es­
querdo. Ele a seguia por toda a casa, sobretudo quando José Garcia não se 
encontrava presente, de acordo com o que ela me contou. Não ficou claro de 
quem era aquele espírito (em 1977 ela contou-me que era um rapaz com aparên­
cia de gringo, alto, bonito e que a desejava profundamente). Seu lado direito 
tomou-se pesado e sem reflexos. Em seguida ficou parcialmente paralisado. Em 
um ato de desespero José Garcia procurou um curandeiro poderoso.
Fui tomar yagé em um lugar, em seguida em outro e depois em mais outro e nada! 
Não vi nada! Fui até o xamã Flavio Pena. Ele sabia! Ele sabia como curar! Mas nem 
mesmo ele conseguiu fazer alguma coisa! “Não!**, disse ele, "isto é realmente difícil”. Ele 
cuidou bem de mim. Preparou um bom yagé, curou-me como deve ser feito, mas nada! Não 
tive visões. O yagé era como uma garapa. Nada! Nada!
Fomos procurar outro xamã em Umbría. "Isto é um maleficio com magia"', disse ele. 
“Não é qualquer um que pode curar isso. O maleficio a gente pode curar; mas a magia, não."
Quando Andrés Hinchoa morreu, todas as minhas visões acabaram. Algo terrível tinha 
acontecido comigo. Procurei seis xamãs, mas com nenhum deles obtive sucesso.
148
Então um amigo perguntou se eu já tinha ouvido falar de Santiago Mutumbajoy. “Vá 
lá", disse-me ele. “É uma boa pessoa e alguém que sabe, de verdade, como tomar yagé." 
Assim, cato dia, visitei-o e levei-lhe alguns presentes. Ele se mostrou muito atencioso e, após 
conversar um pouco, disse-me: "Don José, de acordo com o que me disse, quer tomai yagé a 
fim de ver; mas não posso prometer nada! Se Deus e a Virgem me ajudarem, então, sim, 
poderei ajudá-lo. Venha, mas somente sob essa condição".
O dia marcado chegou c tomamos yagé. Sim! Era aquilo que eu queria! Sim! Surgiu 
uma clara visão de minha casa e eu estava vendo tudo, exatamente como na época em que 
Andrés Hinchoa me dava yagé. Bebemos yagé a noite inteira. Sets copos! Finalmente ele 
disse: "Gosto, gosto de fato deste José García. Ele foi feito para tomar yagé. É uma boa 
pessoa. Você vai ficar rico". Eu estava em um estado de estupor, deitado no chão, mas 
ouvia o que ele dizia. Não perguntei a ele como, nem por quê, mas fiquei cheio de con­
fiança em suas palavras. No dia seguinte, porém, as dúvidas assaltaram minha mente. Fal­
tava-me fé!
À luz do dia Santiago lhe disse que uma outra pessoa teria de curá-lo. Tratava-se 
de um maleficio terrivelmente difícil, feito com magia, e ele não queria ficar com 
o dinheiro de José García em troco de nada.
Mais tarde a esposa de José García, Rosario, explicou-me: “Existem índios 
que fazem feitiçaria. Don Santiago não faz. Essa feitiçaria que se faz entre os 
índios... bem, os índios não conseguem curar, por causa da magia, somente a 
pessoa que trabalha com a magia... Os índios não conhecem a magia. Não conse­
guem curá-la. As pessoas que conhecem são os compactados, aqueles que estu­
daram o livro da magia e que fizeram um pacto com Satanás. São eles que conhecem 
a magiaV.
“Tudo aquilo que os índios conhecem", prosseguiu, “é o yagé e as plantas 
com as quais eles curam e praticam sua própria feitiçaria. As feiticeiras coloca­
ram capachos — que é como elas chamam isso. É muito especial. Uma pessoa 
branca faz cruzes com terra do cemitério, tirada de um túmulo. O que mais pode 
existir?”.
José García continuou a procurar um curandeiro suficientemente poderoso 
para combater a magia. Consultou um velho conhecido, Luis Alegria, um mé­
dium espírita mulato que curava com os espíritos dos santos e dos mortos e que, 
anteriormente, lhe havia dado conselhos relativos a seu irmão doente, Antonio, 
hoje um médium espírita de sucesso, segundo me contaram, que mora no vale do 
Sibundoy. Antonio começou sua carreira como aprendiz de um xamã índio, e 
José García me contou a história de seu irmão:
Antonio era um yagecero, sabia como servir o yagé. Tinha muitos conhecimentos 
sobre o yagé, mas foi enganado pelo amigo que o estava ensinando a curar. Foi danado 
(enfeitiçado) por seu mestre, um velho xamã índio que vivia em Sibundoy. Bem, lá estava 
ele, e tudo o que conseguia dizer era que o yagé era terrível. Ele estava em um estado 
medonho, lutava o tempo todo, dizia que o yagé era tremendamente perigoso. Era só o que 
ele dizia. Mais tarde iniciou-se como médium espirita, com um homem de Sibundoy cha­
mado Don Pedro. Este, porém, viu que ele estava fazendo progressos tremendos com o 
espiritismo e também enfeitiçou Antonio. Ele ficava virando de um lado para outro na
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cama, à noite, sem conseguir dormit, lutando contra Satanis, contra os espíritos. Eles o 
emboscavam na floresta com suas armadilhas.
Mal falei sobre isto com Luis Alegria e ele me disse: ’‘Ouça! A magia é muito boa. 
Por exemplo, a magia encerra um segredo que diz respeito à flor do alhecho. Ouça! Com 
essa flor você consegue curar o que quer que seja! Qualquer coisa! Pode curar qualquer 
pessoa, atrair a boa sorte e tudo o mais. Sim! É uma maravilha'*. Foi o que ele disse.
’Compre a magia", dissem-me ele, "e na página tal procure o segredo. Com isto 
podemos fazer o segredo, de modo a enfeitiçar o feiticeiro com a mesma magia que ele usou!”.
Luis Alegria começou seu trabalho, visando a cura de José Garcia, mas 
pediu um alto preço. Desconfiado, José Garcia voltou a procurar Santiago Mu- 
tumbajoy para tomar yagé e adivinhar se Luis Alegria o estaria ou não trapaceando. 
Teve uma visão que lhe mostrou que era exatamente o que estava acontecendo e, ao 
voltar para casa, enfrentou Luis Alegria. “Você está nos enganando; ninguém 
nunca mais vai acreditar em você.”
“Isto é uma história mal contada, compadre", ele disse. “Vá lá em casa que 
eu te curarei de verdade." José Garcia disse-lhe que estava esperando uma mu­
lher branca que adivinhava por meio de um baralho. Seu nome era Lydia. “Muitobem", disse ele, “traga ela também Ela examina para ver o que está acontecendo 
e eu me encarrego da cura!”.
Foi assim que as coisas se passaram. Lydia examinou primeiramente Luis 
Alegria e, em seguida, José Garcia. “Ai!”, exclamou, “Ave Maria, você foi mesmo 
atingido. É de fato um bobo! Já que quer se afogar, por que não pula no rio? 
Amanhã irei até sua casa e providenciarei uma cura".
“Mas Luis Alegria ouvia e implorou que ficássemos e comêssemos com ele. 
Recusei, mas Lydia comeu e ficou doente. Estava querendo prejudicar a ela 
também.”
Lydia organizou a cura deles. Levou a família para os Andes, até a cidade 
de Pasto. Primeiro foram ao hospital, para um exame detalhado e, em seguida, à 
casa de um médium espírita. A casa, porém, estava fechada e procuraram outra, o 
próspero centro de “irmã" Carmela, uma mulher branca que adivinhava e curava 
invocando o espírito de José Gregorio Hemández, atualmente um santo popular 
muito prestigiado na Venezuela e na Colômbia. José Gregorio morreu em Cara­
cas em 1919, onde, segundo me disseram, foi o introdutor do microscópio. 
Grande cirurgião, era extremamente piedoso e benevolente. Foi morto por um 
carro, quando atravessava a rua ás pressas, a fim de ir buscar remédios para um 
paciente pobre. Retratos seus, pequenos ícones como aquele que aqui se mostra, 
são facilmente encontrados em diferentes formatos na Colômbia e na Venezuela. 
Não há a menor dúvida que José Gregorio inseriu o mito e a lenda na era mo­
derna, ainda que essa lenda se transformasse em algo profundamente burguês. 
Nas estampas o vemos todo pomposo, vestido de temo, colete, engravatado, com 
uma ponta de um lenço branco saindo do bolso. Ele se apresenta sereno, con­
fiante e, lá no fundo, as montanhas se alteiam até o céu coberto de nuvens, acima
150
f
dos torreões e de uma planície relvosa na qual, extraída do mais puro surrea­
lismo, uma figura de avental cirúrgico, com máscara e touca, debruça-se sobre 
uma figura seminua, que definha inconsciente, deitada em um feixe de palha, a 
qual também serve como mesa de operação. “O servo de Deus”, reza a legenda.
Colocando as mãos sobre o paciente, em seu quarto na cidade de Pasto, situada 
em uma planície relvosa, entre altas montanhas, Irmã Carmela invoca o espírito de 
José Gregorio e começa a tremer. Seu espírito a está possuindo. A voz dela toma- 
se áspera e masculina, enquanto ela se refere aos órgãos doentes e ao tratamento 
necessário, que, com freqüência, inclui cirurgias profundas, praticadas espiritual­
mente. “Ela é grande amiga do bispo de Pasto”, contou-me José Garcia. “Ele vai 
ao centro espírita dela para rezar a missa.” A irmã Carmela chega a atender 150 
pacientes por dia.
“Quando eu estava lá, ás cinco da manhã", informou-me José Garcia, “todos 
nos encontrávamos na cama, acordados, mas com os olhos fechados. Então vi 
claro como o dia, perto da margem do rio, um padre com um grosso livro, que 
fazia um exorcismo. Eu tinha a impressão de estar vendo minha fazenda em Santa 
Marta. Sim, eu via tudo. Via meu gado sendo exorcizado com aquele livro grosso, 
que tinha vinte centímetros de espessura”.
O padre era o espírito de Francisco Montebello, um santo popular mulato, 
segundo me disse José Garcia. Ele começou a rezar. “Nós nos encontrávamos 
numa situação terrível. Alguém fizera um malefício contra nós. As crianças esta­
vam muito, muito doentes, e minha mulher também Tudo o que tínhamos eram 
nossos méritos e nada mais."
Isso se passou em 1973. Naquela ocasião o Banco Mundial iniciou seu projeto 
de criação de gado. José Garcia adquiriu sua primeira fazenda por uma quantia 
equivalente a mais ou menos 2 mil dólares; em 1975 comprou a segunda, por idêntica 
quantia e, em 1978, mais outra. Por voltà de 1979 possuía uns noventa hectares e 
pouco mais de cem cabeças de gado. Além das crianças nascidas em 1965 e 1971, 
havia mais duas, nascidas em 1973 e 1977.
Rosário foi informada por um xamã índio que estava padecendo de mal 
aires, isto é, ataque de um espírito, e tomou yagé três vezes. O espírito parou de 
assombrá-la, a paralisia parecia curada e, em suas visões, ela enxergou uma tre­
menda confusão de pessoas desconhecidas, uma igreja e a Virgem. Contou-nos 
que a única pessoa a quem reconheceu foi uma sobrinha, que estava se casando. 
Durante todos aqueles anos José Garcia continuou a tomar yagé com Santiago 
toda semana, ou a cada duas semanas, e de vez em quando também visitava a 
irmã Carmela na cidade de Pasto. Em 1977 ele convenceu a irmã Carmela a 
descer das montanhas e curar sua família. Em seguida levou-a para tomar yagé 
com Santiago, que não se sentia bem. Ela dirigiu ritos de cura na casa de San­
tiago e este ficou impressionado com o fervor com que ela orava. Disse-me,
151
porém, que não entendia nada de espíritos e de médiuns espíritas e ficou, senão 
em estado de dúvida, pelo menos de perplexidade.
Foi assim que José Garcia prosperou. Seus filhos desabrocharam, Rosário es­
tava bem e ele desenvolvia com assiduidade seus poderes curativos.
Atraía pacientes e para alguns deles atuava como intermediário, enviando- 
os a Santiago ou a irmã Catmela. Suas técnicas de cura e os mistérios em que 
elas se baseavam representavam, segundo me parece, não tanto o sincretismo ou 
a unificação presentes nas curas de Santiago e de Carmela, quanto o fato de que 
nenhum desses dois curadores existiam isolados um do outro. Cada um deles 
pressupunha o outro, e figuras como José Garcia tomavam manifesto esse pres­
suposto.
Suas concepções relativas àquilo que acarretava o infortúnio ou quaisquer 
que sejam os nomes que se queira dar a semelhantes coisas pareciam, ao que me 
consta, com as concepções dos xamãs índios a quem conheci. Uma grave aflição 
era provavelmente o resultado de uma substância de feitiçaria que penetrava no 
corpo ou então a obra de espíritos caprichosos — dos mortos ou da natureza — 
que, na aparência, agiam independentemente da malícia humana. Talvez José 
Garcia se diferenciasse de modo muito significativo dos xamãs índios na medida 
em que ele atribuía um peso maior aos espíritos dos mortos. Em todo caso, à 
semelhança dos xamãs, o objetivo de seu ritual era o exorcismo após a adivinha­
ção, atingido através de um estado alucinatório ou parecido com ele. José Garcia 
usava um leque de cura igual ao dos xamãs, e seus cânticos também se asseme­
lhavam até certo ponto. A fase de abertura, de grande importância aliás, ocorria 
quando ele consagrava seus remcdios, invocando o poder de transformar o mal 
em um poder dispensador de vida. É aqui que percebemos mais claramente o 
caráter das oposições que ele encarnava e que lhe davam poder, sobretudo 
quando tomava yagé com Santiago.
Depois de Santiago cantar para o yagé e servi-lo, José Garcia começava a 
cantar baixinho. Chamando Deus e a Virgem, ele invocava os espíritos dos san­
tos populares católicos, bem como os dos xamãs índios mortos que o haviam 
ajudado em sua busca anterior da cura. No que se referia a Andrés Hinchoa, o 
xamã índio que lhe deu yagé pela primeira vez e morrera, ele dizia o seguinte: 
“O espírito dele está entrando no centro espírita dirigido pela irmã Carmela. 
Agora ele está fazendo curas perfeitas. Está entrando no centro espírita dela. 
Tomás Becerra (outro xamã índio morto) também vem entrando no centro. A 
mesma coisa acontece com Salvador, de Umbría. Todos estão com a irmã Car­
mela e lá se concentram Falam línguas indígenas”. Ao entrarem no centro espí­
rita da irmã Carmela eles se purificam... a exemplo do que acontece com ele, 
iluminado pela luz das velas, na casa de Santiago, junto á floresta. José Garcia 
começa a ver coisas — como a irmã Carmela, na cidade de Pasto, está concen­
trando o poder dos espíritos dos xamãs índios, articulando-os com os espíritos de 
santos populares católicos, tais como o de José Gregorio, o cirurgião venezuelano
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morto,unindo todos eles com a Virgem de Lajas. Evocando esse panteão, articu­
lando o índio com o branco, a floresta com a cidade, o xamã índio com a médium 
espírita branca, José Garcia punha-se então a cantar o Magnificat, purificando e 
fortalecendo o yagé que o purificará e o fortalecerá.
Graças a isso ele podia enxergar o interior dos corpos e as intenções secre­
tas dos outros. Exatamente como um xamã índio, quando tomava yagé José Gar­
cia tomava-se delicado e aberto aos ataques. Ao beber o yagé e penetrar em seu 
mundo ele precisava ser capaz de se defender. Ele fez essa descrição, ao explicar 
como combinava o yagé com aquilo que Caimela lhe ensinara.
O yagé me dá o poder de trabalhar, não é? Vou lhe contar uma história. Certa vez que 
tomei yagé vi uma vizinha de nossa fazenda nova tentando subir em uma árvore muito fina, 
mas sem conseguir (essa mulher era mãe da jovem com quem ele rompeu o noivado no 
inicio de 1960). "Pobre mulher... pobre mulhei; ela não consegue subir", disse eu a mim 
mesmo, mas sem conseguir entender o que aquilo significava. "Essa árvore í muito fina, 
ela nãò vai poder subir", eu disse. "Pobre velha." Aquilo fazia parte da visão do yagé, não é 
mesmo?
Depois disso tomei yagé uma outra noite. Era muito forte. Eu estava com o amigo 
Santiago. A chuma (embriaguez) do yagé pegou para valer. Foi muito bonito, eu estava 
atuando de fato quando voltei a ver aquela velha. Eu estava de costas para ela. A velha se 
aproximou e derramou um pouco de água nas minhas costas. Era uma água muito limpa. 
Uma chuma terrivelmente forte se apoderou de mim. Virgen Sanlísima! Senti que estava 
morrendo... que exaustão, que tenor! Era uma coisa tão forte que eu não tinha a menor 
idéia do que fazer
Então, como eu tinha meus próprias remédios, disse a mim mesmo: "Conheço essa 
mulher, ela está atrás de mim e eu sei quem ela é". Eu estava na minha fazenda. Sabia quem 
estava praticando o mal contra mim. Nesse momento peguei uma garrafa de álcool, meus 
remédios e me massageei com eles. Acendi incenso e seu cheiro me fez tossir. Esconjurei, 
em nome do Senhor. E assim que a gente cura.
Dai pedi ao amigo Santiago um galho de urtiga e comecei a bater ele em todo meu 
corpo com muita força. A chuma foi embora, sabe? Em outras palavras, o mal se dissipou.
E foi uma linda pinta (visão) que me curou, ouviu? Naquela noite vi que eles esta­
vam fazendo mal para mim. Tentaram matar todo meu gado. Vi a velha que fez mal para 
mim, com a intenção de que um dia todos nós morreríamos. Pedi a Deus e à Virgen Santi- 
sima que me ajudassem, me concentrei e comecei a me curar. Ganhei força, mas não conse­
gui entrar na casa dela para poder curar minha fazenda.
Rezei e rezei até ter a capacidade de me concentrar na casa dela. Então tive condição 
de limpar todas aquelas coisas más que ela jogou no meu gado. Ela tinha poder e conhecia 
aquilo tudo. Bem, Deus me assistiu e eu fiz a cura bem lá na casa de Santiago. Foi uma cura 
espiritual. Peguei todas as coisas más, entrei na casa dela, voltei e tornei a fazer. Assim, ao 
curar, vi que não estava enfeitiçando ela; não prejudiquei ninguém, apenas me certifiquei de 
que não tinha ficado nenhum feitiço para trás, que tudo estava de volta para ela e que ficaria 
por lá, deixando ela ás voltas com aquilo.
Ao voltar para casa ele contou a Rosário o que havia acontecido. “Conhece 
aquela mulher?”, perguntou. “Sim”, respondeu Rosário, “conheço, sim Ela sabe 
como fazer o mal!”. Rosário, porém, mostrou-se cética, e José Garcia disse-lhe 
que iria procurar Lydia, aquela mulher que adivinhava por meio do baralho. Esta 
confirmou tudo o que ele havia visto na companhia do índio.
153
Daí a algunS dias, segundo ele me contou, Rosário ficou assustada com a 
braveza do gado, o que dificultava a ordenha. José Garcia disse que o iria curar. 
Ao chegar ao pasto deparou com sinais de feitiçaria. Aturdido, começou a traba­
lhar imediatamente com seus remédios e o incenso. À tarde apressou-se em ir até a 
casa de Santiago, mas a preocupação era tanta que se esqueceu dc levar os pró­
prios remédios. Naquela noite tomaram yagé.
Quando a chuma chegou — que chumal Virgen Santísimal Pensei que estava mor­
rendo! Que exaustão. Eu vomitava sem parar e não podia fazer nada. Senti-me dominado 
pelas substâncias da feitiçaria. Não conseguia fazer nada, estava a ponto de morrer. Então 
pedi ao amigo Santiago: ‘Tem incenso? Pelo amor de Deus, me dê um pouco'*. Ele, porém, 
disse que não tinha nem sequer um grão. Dal tive a sensação de que eu ia engasgar até 
morrer. Estava sem meus remédios; era o fim. Trabalhei sem parar na chuma do yagé, mas 
sem resultado. Eu tinha perdido todo meu poder para a feitiçaria.
Pedi um pouco de ortiga a Santiago. “Pegue o quanto você quiser“, disse ele. Agarrei 
um belo galho, assoprei nele e o curei. Curei a ortiga para valer... Então purifiquei, me 
curei. Cantava sem parar, me limpava, rezava e batia a ortiga em meu corpo, mas com 
força, com muita força!
Daí tudo começou a clarear. As coisas estavam indo embora. Mais uma vez as visões 
mais feias se afastavam, a força da feitiçaria me deixava. E vi minha fazenda mais bonita 
do que nunca.
Fui envolvido por uma linda visão. Olhei para mim mesmo e vi a feidçaria em três 
lugares. Aquilo era uma força, uma força para me esmagar, para me obrigar a abandonar a 
esperança de que não valia a pena cuidar de minha fazenda e que seria melhor desistir dela. 
Era disso que se tratava, mas consegui me curar. Deus me ajudou. A velha não conseguiu 
me atingir. Ela é uma feiticeira. Em breve vai querer me matat; mas não conseguirá.
Daí a mais ou menos um ano, em 1978, Santiago ficou doente. Perdeu a 
visão de um olho, enquanto pescava á noite, e começou a sentir tonturas. Não 
conseguia ficar de pé sem vomitar. Suas pernas incharam A morte parecia imi­
nente. Ficava sozinho, entoando canções de cura, baixinho, mas, quando tomava 
yagé, ou não via nada ou tinha visões de milhares de espinhos de ouriços, muito 
eriçados, como acontece quando o animal está se defendendo. Eles entravam em 
sua boca, engasgando-o, e em seus olhos, cegando-o.
E isso sob a influência do yagé! Que exaustão isso provoca! E as cobras, rãs, lagar­
tos, jacarés... dentro de meu corpo... E ninguém conseguia tirá-los de lá! Quando eu tomava 
yagé era só o que eu via. Só isso.
Mas quando a gente não está doente vê coisas lindas; pássaros de todas as cores, tão 
belas como quando a gente vê um bonito tecido e diz: “Oh! gosto deste tecido. Tem cores 
maravilhosas!“. Então uma pessoa está vendo de verdade e dificilmente sente que está bêbado.
A casa dele estava repleta de gente, sobretudo de índios, que bebiam cerveja 
de milho e de mandioca e, de vez em quando, se entregavam a especulações: quem 
o enfeitiçara e por quê? Seria um outro xamã que usava yagé e apenas yagé? Ou 
seria uma feitiçaria que incluía a magia e, portanto, passível de estar acima dos 
poderes do yagé?
154
José Garcia subiu a montanha até Pasto, a fim de consultar-se com a irmã 
Carmela, e levou uma vela que havia sacudido por cima do corpo de Santiago. 
Ela confirmou as suspeitas que circulavam na região onde ele morava: Esteban, 
um índio Ingano da serra, xamã originário do vale do Sibundoy, enfeitiçara San­
tiago, usando ao mesmo tempo a magia e o yagé.
A inimizade existente entre Santiago e Esteban pareceu-me enfocar e am­
pliar muitas das tensões provocadas pela expansão da economia nacional na re­
gião das fronteiras, operando em uma esfera pouco habitual, isto é, a transformação 
do poder mágico e da aura mágica da “indianidade” em mercadoria. Durante 
muitos anos xamãs índios da serra, originários do vale do Sibundoy, índioã In- 
gano tais como Esteban, ganharam a vida percorrendo as pequenas cidades e 
aldeias da Colômbia, onde vendiam aos brancos e negros ervas medicinais, amu­
letos, estampas de santos católicos, livros deencantamentos mágicos e seus ser­
viços de curadores populares. Hoje os índios xamãs do vale do Sibundoy chegam 
até mesmo a Venezuela, onde o dinheiro é mais abundante do que na Colômbia, e 
alguns deles, segundo os padrões dos camponeses locais, se tomaram ricos. Ro­
sário os comparou com os índios das regiões dos contrafortes e das planícies, os 
quais, disse ela, ignoram a magia e conhecem unicamente suas plantas medici­
nais, seu yagé e seus próprios tipos de feitiçaria.
“Mas os índios da serra”, disse ela, referindo-se a curandeiros como Este­
ban, do vale do Sibundoy, “conhecem outro sistema, que dá mais dinheiro para 
outra pessoa, sabe? Eles atravessam a fronteira que separa as nações e vão de um 
lugar a outro, com seus frutos, suas castanhas e outras coisas, dizendo que sabem 
curar, quando na verdade são uns charlatães. São astuciosos como ninguém! Gra­
ças a isto conseguem juntar um bom dinheiro. Vão até a Venezuela, ao Peru... O 
sistema deles é diferente porque conseguem o dinheiro com mais facilidade e 
porque a cura deles é uma mentira e não passa de um jeito de enriquecerem fazendo 
sujeiras!".
“E os índios da planície não fazem isso?", perguntei.
“Ah! Não! Não! O povo daqui? Não! Não! Essa gente de que eu falo é 
chegada a viajar. Gostam de uma viagem São tão espertos! Vão por aí, dizendo 
que sabem curar. E não curam nada! A única coisa que fazem é mistificar e 
enfeitiçar!”
É provável que os índios Ingano do vale do Sibundoy tenham sido curan­
deiros itinerantes há vários séculos. Frank Salomon descreveu um julgamento, 
levado a efeito por funcionários espanhóis em 1727, que envolvia um índio da 
serra, originário de uma aldeia situada nas vizinhanças de Pasto, acusado de enfeiti­
çar seis parentes e um funcionário espanhol. As testemunhas atribuíram a sobre­
vivência deles a um curandeiro de Sibundoy, que recorreu a uma planta que 
provocava visões, provavelmente o yagé* Ao desempenhar semelhante papel, é 
provável que os curandeiros do Sibundoy agissem como mediadores de um sis-
155
tema pan-andino de cura e de crença mágicas, que atribuía aos índios da selva, 
habitantes dos contrafortes e das planícies, poderes xamânicos especiais. Era possí­
vel recorrer a eles por intermédio dos moradores da serra ou através da mediação 
dos índios que moravam entre a serra e a planície, tais como os Sibundoy.
Hoje, em todos os lugares por onde passam e obtêm clientes, é sua imagem 
mítica de índios na posse de poderes ocultos que lhes garante o sucesso. No entanto, 
nem todos os índios da Colômbia fazem o mesmo que os curandeiros do Sibun­
doy. Eles possuem confiança e um orgulho enorme, pois estão fora do alcance de 
contra-ataques mágicos, graças a sua habilidade e ao conhecimento do yagé e das 
visões que este provoca ou — o que é mais provável — porque simplesmente 
insinuam que as coisas se passam assim. Para isso apóiam-se na existência dos 
xamãs da região dos contrafortes ou da planície, não apenas no que se refere ao 
yagé, que cresce apenas abaixo do vale, mas no poder supostamente superior dos 
xamãs, os quais em outras circunstâncias estão abaixo deles, no sentido literal e 
figurado. As sementes da discórdia entre xamãs como Esteban, no vale do Sibun­
doy, e Santiago, que habita mais abaixo, nos contrafortes, são plantadas neste 
solo de contradições peculiares, mas muito firmes, as quais provavelmente ad­
quirem intensidade na medida em que oportunidades de um mercado cada vez 
mais amplo favorecem a capacidade dos xamãs do Sibundoy de ganharem mais 
dinheiro e fama do que os da planície. Por ocasião de suas jornadas de cura, os 
raizeiros e xamãs do Sibundoy se deparam com um amplo espectro de técnicas de 
cura e de fantasias demonológicas ocultas nas ansiedades de um povo mais dire­
tamente integrado á sociedade nacional do que eles. Tomam-se mais cosmopoli­
tas do que os xamãs da planície, isolados em um bolsão muito remoto da nação; 
aperfeiçoam tanto o discurso da magia, baseada em um pacto com Satanás, 
quanto o uso de sua imagem como indios misticamente revestidos de poder.
Prisioneiros de sua imagem de pagãos que têm laços inerentes ao oculto, 
eles ganham a vida a partir dessa imagem, assegurando sua vitalidade na imagi­
nação popular da nação e para além dela. No entanto, para se apropriarem e se 
aproveitarem amplamente dessa imagem, os xamãs itinerantes do Sibundoy, tais 
como Esteban, não apenas necessitam do yagé — e, talvez, dos serviços rituais
— dos xamãs da planície, tais como Santiago; necessitam também dos xamãs da 
planície como objetos míticos, a fim de realizar aquela mitologia, colonialmente 
inspirada, que confere o poder pagão.
Nem é preciso dizer que os xamãs da planície não se sentem satisfeitos com 
isso. De modo geral desconfiam dos xamãs da serra e até mesmo os desprezam. 
Consideram-nos trapaceiros e inferiores, excetuando sua capacidade de praticar o 
mal por meio da magia e de capachos, isto é, pacotes de feitiçaria. Tudo isto 
culmina com a questão do fornecimento do yagé aos xamãs da serra, ao que se 
sabe cada vez mais escasso. Os habitantes da planície, tal como Santiago, relu­
tam em vender-lhes yagé, e ele se mostrou inflexível diante das solicitações de 
Esteban. Os moradores da planície com quem conversei receiam que, com o
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yagé, a gente da serra poderá misturá-lo com a magia e os dominará. Graças a 
isso, entre outras coisas, terá um suprimento garantido de yagé. Por outro lado, 
recusar seu pedido poderá resultar em morte pela magia daquela mesma gente. 
É, segundo se imagina, a triste sorte que se abateu sobre Santiago.
À medida que a saúde de Santiago se deteriorava até alcançar a iminência 
da morte, José Garcia envolveu-se como nunca. Até então fora um paciente e 
uma espécie de discípulo, que lutava o tempo todo para livTar-se da feitiçaria. 
Agora ele era convocado para curar seu mentor.
Certa tarde fui até a casa dele. Estava terrivelmente bêbado e sua mulher implorou- 
me que o curasse. Contou que ele estava muito mau humorado em relação a ela e a todo 
mundo. Ficamos lá sentados, conversando, bebendo e, quando caiu a noite, Santiago disse 
que todos nós tomaríamos yagé — ele, seu sobrinho, seu genro e eu. “Ótimo, estamos todos 
aqui”, observou.
Ele serviu o yagé, cantou para ele e deu a cada pessoa um copo cheio, mas esqueceu- 
se de mim. Então lembrou-se e me serviu o copo mais cheio que eu já tomara até então. 
“Ah!“, eu disse, “em nome da Santa Virgem isso há de fazer alguma coisa“. Consagrei o 
yagé, invoquei Deus e os espíritos dos xamãs índios, Tomás Becerra e Andrés Hinchoa, para 
que viessem me ajudar, para que curassem aquele yagé, em nome de Tomás Becerra, e assim 
por diante, pois eram dos melhores bebedores de yagé. Enlão Santiago disse; “Mas quem vai 
cantar? Ninguém? Bom, cante o senhor, Don José! Não vive cantando só pata o senhor, 
debaixo desse poncho? Durante o tempo todo em que tomou yagé aqui ficou cantando e 
curando, escondido debaixo de seu poncho, não é mesmo? Pois então agora se mostre, para 
vermos se sabe de fato ou não!“.
"Muito bem, senor”, respondi, “é o que faremos". Naquele mesmo instante ele caiu 
no chão, como se estivesse morto. Nós nos levantamos is pressas e deitamos ele em sua 
rede, mas ele ficou como se estivesse morto. Apenas suas mãos se mexiam. Estava mudo, 
só falava com as mãos. Os outros acharam que ele ia morrer. Seu genro me implorou para 
que eu tentasse curá-lo. Então o yagé estava me pegando. Peguei um leque de cura c come­
cei a curar. A chuma estava chegando em mim. Era lindo e eu comecei a ver em que estado 
a casa se encontrava. Era um cemitério e estava tendo um enterro. O que estava aconte­
cendo era uma total aniquilação. Muito bem! Ocupei-me com meus remédios, a chuma 
pegou todo mundo e foi terrível! O genro dele chorava. "Don José, por favor, por favor, 
venha me curar porque eu estou morrendo!" Dcbrucci-me sobreele e exorcizei, limpando, 
varrendo, chupando. Foi a mesma coisa com o sobrinho dele. Foi terrível. Eu ia de um para 
outro e voltava. Eles logo melhoraram e eu fui atender o amigo Santiago. Trabalhei com ele 
até as três da madrugada e enlão ele começou a reviver, a falar de novo. "Sim, ha, ha, ha!" 
Ele assoviava e gritava. “Nós não somos qualquer um, Don José”, ele dizia. “Nós sabemos, 
não é mesmo, Don José?” Daí então voltava a ficar inconsciente. “Nós sabemos. Eles não 
podem nos pegar! Não é mesmo, Don José?“ Ele também viu o cemitério inteiro. "Ave 
Maria", disse, “os mortos estão apodrecendo em todos os lugares". Outros agonizavam, a 
ponto de morrer. A casa inteira era uma sepultura. Ave Maria!
Continuamos a tomar yagé. Finalmente ele disse: "Muito bem. Voltem na terça-feira. 
Se eles vão nos matar; então eles também morrerão!”.
Na terça-feira voltamos a tomar yagé e ele começava a cantar quando, de repente, 
declarou que tinha uma doença bem no fundo dele e que ia pata a outra sala, para ver se podia 
curá-la! Levou o leque de cura e podíamos ouvir ele cantando. De repente a vela se apagou 
e ficou tudo na mais completa escuridão. Figuei lá, nervoso, assustado, certo de que estava 
para morrer. O amigo Santiago calou-se. Parou de cantar. Curei-me com meus remédios, 
que passei por todo o meu corpo, assoprando incenso. Acabei melhorando daí a mais ou 
menos uma hora. Quando minha força voltou comecci a cantar e curar os outros. Cantava e
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curava, cantava e curava. "Ah, Don José", disse Santiago, “parece que eles estão querendo 
nos matai; não? Mas eles não vão conseguir! Portanto, vamos tomar mais um pouco e daí 
veremos se eles têm poder para isso! Tome mais yag/1".
Tomamos mais um copo e quando a chuma chegou ele voltou a cair no chão. Dessa 
vez durou uma hora e meia. Ele levantou, começou a cantar e disse: “Na sexta-feira tomare­
mos mais um pouco”. Na sexta-feira voltei à casa dele e a chuma foi boa. Pui até Pasto e 
trouxe de lá água-benta e incenso. Curei o gado, fui uma segunda vez a Pasto, e a irmã 
Carme la me deu remédios para eu levar a Santiago. As coisas ficaram assim.
A doença de Santiago cedeu muito pouco até que, decorrido um mês, o 
mais apreciado xamã da região dos contrafortes do Putumayo veio e o curou. Era 
Salvador, filho de uma índia Cofán e de um branco, um cauchero (pequeno co­
merciante de borracha) da região serrana de Narino, que deixara o meninozinho 
com os índios. Há muito esperávamos que Salvador aparecesse. Sua jornada foi 
muito demorada e ele precisava colher rapidamente o arroz, devido à época das 
chuvas que se aproximava. Foi a notícia que chegou até nós, enquanto esperáva­
mos um dia após outro. Santiago, enquanto isso, cantarolava para si mesmo sua 
canção de cura, e o restante das pessoas bebia a maior parte do tempo. O motivo 
verdadeiro pelo qual Salvador não aparecia, de acordo com Santiago, era o fato 
de que sua mulher estava receosa. Preocupava-se com sua voz e sua saúde deli­
cadas, com todos aqueles índios Ingano que viviam nas proximidades de Mocoa 
e se embebedavam sem parar, como sempre fazem, ao passo que os Cofán mal 
bebem chicha. “Ela sabe que se ele vier aqui vai beber e então ficará doente. É 
esse o problema", suspirou Santiago. Ele finalmente apareceu, acompanhado de 
sua mulher e da mãe dela, a mama sefiora, viúva de um xamã Siona. A mama 
senora é muito velha, toma yagé sem que nada lhe aconteça e canta lindamente, 
disse-me Santiago. É ela e unicamente ela quem prepara uma chicha muito espe­
cial, feita de abacaxi, milho e mandioca, que Salvador oferece aos animais, os 
quais, por intermédio de suas cantigas de yagé, atrai para os caçadores. Mais 
tarde me contaram que vieram muitas outras pessoas para a cura com yagé, que 
durou três noites, e a maior parte delas tomava a bebida. A mama senora também 
cantou; mi novia (minha noiva), eis como Santiago se referia a ela, com uma 
risada zombeteira. Dom Apolinar também cantou. Era um velho xamã Core- 
guaje, sogro de uma das filhas de Santiago, e viera da província de Caquetá. Era 
uma viagem árdua e até mesmo perigosa, devido às ações que o Exército colom­
biano desencadeava lá contra as guerrilhas.
Santiago melhorou consideravelmente, a não ser por seu olho. Porém não 
ficou claro o que acontecera de fato com ele ou o que Salvador dissera sobre a 
causa de sua doença. Seria yagé misturado com magia, segundo dissera a irmã 
Carmela e José Garcia repetira? Seria culpa de Esteban? Todo mundo dissera 
algo diferente. À medida que o tempo se passasse, todos modificariam o que 
haviam dito.
158
Quando voltei daí a um ano, no início de 1979, verifiquei que muita coisa 
mudara. Santiago estava bastante bem e ativo, mas Salvador morrera, e Rosário, 
a mulher de José Garcia, encontrava-se muito doente. O sobrinho de Salvador 
declarou que ele morrera em razão de ter perdido o poder, através das muitas 
curas que fez para muite gente de fora, sobretudo brancos e negros. Assim, tor­
nou-se poluído e incapaz de lidar com os ataques de feitiçaria dos xamãs índios 
da região do rio Napo, no Equador. Rosário tinha virtualmente paralisados o 
braço e a pema direitos. O braço direito se agitava, e sua fala era ininteligível. 
Ela parecia desolada e triste. Sem a menor expressão em sua voz, afirmava que o 
espírito do homem de quem fora noiva aos 16 anos, e que morrera em um aci­
dente de caminhão, viera assombrá-la e sentava-se em seu ombro direito.
Essa fase de doença começou em 1978, segundo ela me contou, quando surgi­
ram problemas em um dos sítios do casal. Foram roubadas cabeças de gado, e ela 
teve que trabalhar arduamente na ordenha, enquanto José Garcia e seu filho iam 
à procura dos animais. Contraiu pneumonia por ocasião de um temporal e foi 
tratada com antibióticos por um dos médicos locais. Experimentou um certo alí­
vio, mas começou a sentir-se pesada, com dores de cabeça, a que se seguiu uma 
paralisia gradual. Voltou a ser tratada pelo mesmo médico, que lhe deu tranqüili­
zantes, até que Lydia, aquela velha amiga do casal que adivinhava por meio do 
baralho, convenceu-os a procurar tratamento na capital, Bogotá, onde o diagnós­
tico foi um derrame cerebral. Recebeu os cuidados necessários, voltou para casa 
e não conseguia parar de chorar, segundo me disse sua filha. Voltou a Bogotá e 
ali procurou vários médicos. Um médium espírita disse-lhe que sua doença era 
parcialmente devida a Deus (uma causa natural) e, em parte, á feitiçaria, agindo 
juntamente com a causa “natural".
Então Lydia, a adivinha responsável por apresentá-los à irmã Carmela em 
Pasto, em 1973, graças a que eles ingressaram no caminho da riqueza, trabalhou 
mais uma vez com seu baralho e adivinhou que a doença de Rosário era obra da 
irmã Carmela! Esta evocara o espírito do noivo de Rosário, morto havia tanto 
tempo, para atuar como um poder malévolo.
Rosário e José Garcia lembraram-se então que Carmela sempre insistira que 
os poderes dele, tais como foram desenvolvidos em associação com a irmã, eram 
destinados ao bem da humanidade; ela também afirmava que ele estava adqui­
rindo um número muito grande de cabeças de gado, muitos sítios e deveria dar os 
animais e as terras para os pobres, guardando apenas uma pequena parte para si. 
Carmela se voltara contra ele porque ele se negava a fazer isso, contou-me o 
casal com muita calma. Ao mesmo tempo, acrescentou José Garcia, Carmela 
sentia inveja de seu sucesso e agia movida pelo despeito.
O próprio José Garcia entendia seus poderes de cura em termos que corres­
pondiam à denúncia que Carmela fizera de seu sucesso material. Por exemplo, há 
pouco mais de um ano ele fizera o seguinte pronunciamento:
159
Sim! Eu vi a grandeza deste mundo. É algo de que a gente se lembra, leva em conta e 
conduz sua vida de acordo com isso. É por este motivo que Deus me ajuda. Deus me 
escolheu especialmente, para eu ser bem-sucedidoem tudo aquilo que eu desejar, mas não 
em excesso: fazer grandes coisas, realizar grandes curas... de acordo com minha fé e com o 
modo como me comporto. Mas sabe que tudo isto não me pertence? Sou apenas o adminis­
trador dos bens deste mundo. Não tenho nenhum orgulho, não sou como aquelas pessoas 
ricas a quem a gente cumprimenta e que nem sequer respondem. Sou apenas um adminis­
trador. O dia que o Pai quisei; ele me chamará à sua presença para que eu preste conta de 
tudo: “Venha, mayordomol Vamos prestar contas!“.
Este sentimento cristão anticapitalista, que corre paralelo à acumulação e posse 
da riqueza, é igualmente reforçado por outros aspectos de sua filosofia enquanto 
curador:
• O quadro do mundo, evocado por este texto, nos remete a uma ha- 
cienda feudal, na qual Deus é o senhor e José Garcia o mayordomo — 
um mordomo que cuida dos domínios de Deus e não um proprietário 
dos bens deste mundo. Um impulso importante, por detrás da credibili­
dade desse quadro ou cosmologia, reside no fato de que José Garcia 
“viu a grandeza deste mundo”, lembrou-se dela e a levou em considera­
ção. Isto tomou-se patente de modo extremamente vigoroso pelo fato de 
ele tomar yagé, um remédio e um ritual indígenas. A inter-ligação orgâ­
nica deste quadro do mundo pressupõe uma hierarquia de reciprocida- 
des que ascendem ao Ente Supremo.
Nessa hierarquia um curador como José Garcia se vê como participante 
de uma relação de troca com Deus, a Virgem, os santos católicos popu­
lares e os espíritos dos xamãs índios mortos. Seu poder deriva dessa 
cadeia de trocas recíprocas, uma cadeia que evoca um passado tomado 
mítico, por meio das gerações de santos e de xamãs índios. É o poder 
que pode curar a doença e combater a feitiçaria, conforme depreende­
mos quando José Garcia descreve este tipo de canto:
Não canto como os xamãs, mas canto uma outra cantiga que vem com o yagé; por 
exemplo, com uma música que ouço. O próprio yagé nos ensina o que cantar... baixo ou 
alto e dai por diante. Você vê as orações, mas são orações cantadas... com o cântico do 
yagé. Assim, você faz sua cura através disso; cantando... por exemplo o Magnificat. Você 
canta o Magnificat sob a influência do yagé, curando os doentes, ou sob a influência da­
quele que está curando. O Magnificat tem a seguinte letra: “Minha alma está repleta da 
graça que emana do Senhor e meu espírito se eleva a Deus, meu Salvador. À luz de Seus 
olhos, agora todas as gerações dizem-me: 'Sejas bem-vindo!’, pois, em mim, grandes coisas 
se fizeram e, em mim, está o poder onipotente, cuja misericórdia se estende de geração em 
geração para aqueles que o temem; de meu coração seus braços se estendem para todos os 
necessitados. Livrai-vos dos poderosos; elevai os humildes. Enchei os famintos de bens e 
dispensai os ricos, sem nada lhes dar. Em memória de Vossa compaixão, por terdes tomado 
Israel como Vosso servo, de acordo com Vossas promessas, feitas a nossos pais, Abraão e 
seus descendentes, por todos os séculos dos séculos... Amém“.
É isso o que eu canto, bêbado com yagé. Canto o Magnificat, curo e limpo. Com isso 
a gente pode curar a feitiçaria, por mais séria que ela seja. Com isso a gente está cantando, 
entoa o Magnificat, com isso a gente acalma a doença.
160
(Entre as classes populares, no Peru inteiro, escreveu Hermillio Valdizán, 
juntamente com Angel Maldonado, em sua obra La medicina popular peruana, 
impressa em 1922, ocorre um grande número de crenças, mais comuns entre os 
brancos e mestiços do que entre os índios, relacionadas com os perturbados espí­
ritos do purgatório. Quando tudo o mais fracassa, no sentido de afastar esses 
espíritos, quando eles, em conseqüência, são os verdadeiros condenados e, possi­
velmente, pertencem ao próprio demônio, então é preciso cantar o Magnificat. 
Os autores transcrevem os versos finais: “Despossuí os poderosos; elevai os hu­
mildes. Enchei os necessitados de bens, deixai os ricos sem nada... Gloria al 
Padre y al Hijo".*)
• A ênfase que o cristianismo coloca na virtude da caridade e na negação 
dos bens deste mundo emparelha-se com a necessidade que o curador 
tem de atender os pobres. Um homem como Santiago jamais seria sufi­
cientemente hipócrita para se incomodar com um discurso de negação 
dos bens mundanos. Ele os ama. Seu apetite é rabelaisiano. Quanto 
mais, melhor, e ele não aceita aquele servilismo que José Garcia, o 
espírito branco piedoso, demonstra. No entanto Santiago não se consi­
deraria menos cristão ou menos sujeito às manobras do invejoso.
O subtexto desse atendimento ao pobre é o campo cósmico subconsciente 
de vícios e virtudes, nos quais o curador adquire poder através da luta contra o 
mal. O poder do curador diz respeito a um relacionamento dialético com a doença e 
o infortúnio. O mal confere poder e é por isso que um curador por necessidade 
atende os “pobres", ou seja, aquelas pessoas economicamente pobres e atingidas 
pelo infortúnio. Desse modo é possível compreender a relação entre Deus e o 
diabo, pois eles não se colocam apenas em oposição, mas em uma sinergia mu­
tuamente fortalecedora. A percepção que Dante tem do paraíso só é alcançada 
graças e após a jornada que ele fez ao inferno, onde encontrou Satanás (e, tendo 
em vista nossos propósitos, convém notar que Dante realizou essa jornada acom­
panhado de um guia pagão — leia-se um “curador" ou “xamã" —, proveniente 
de um passado pré-cristão).
No entanto essa necessidade de descer e imergir na luta contra o mal pode 
ser autodestrutiva. A vida de um curador se equilibra no limite dessa estratégia, e 
é por isso que ele sempre precisa fazer uma aliança com um curador mais pode­
roso. José Garcia os encontrou na pessoa da irmã Carmela, na cidade da mon­
tanha e no xamã índio, Santiago, na borda das florestas da planície. O mais 
poderoso curador poderá, no entanto, matá-lo.
• De todas as reciprocidades existentes nesse quadro orgânico do mundo, 
com sua hierarquia de formas e emaranhado dialético do bem e do mal, 
a que mais ressalta é aquela que ocorre entre o cristianismo e o paga­
nismo, equivalente àquela que se dá entre Deus e o demônio. Os pode­
res de José Garcia derivam dessa reciprocidade de contrários. É uma 
antifonia, estabelecida em sua particularidade concreta, bem como em
161
suas abstrações harmoniosamente cadenciadas, pela conquista européia 
do Novo Mundo, ocorrida alguns séculos antes, como se pode testemu­
nhar, por exemplo, nos escritos dos franciscanos, que abriam as trilhas 
para Cristo nas selvas ao leste de Quito e Pasto. Além do mais, essa 
antifonia provavelmente existia na sociedade transandina antes da che­
gada dos espanhóis, bem como na relação entre os habitantes do alti­
plano, no império Inca, e os índios das florestas.
É naquilo que, com muita hesitação, podemos denominar a “lógica” da cura 
e da história de vida de José Garcia (conforme ele a narra) que podemos ver essa 
moldagem de oposições, esse crescimento de um esplendor apocalíptico atiçado 
pelas oposições. No entanto, com outros povoadores da floresta, bem como com 
Manuel Gómez, um velho conhecido meu do rio Guaymuez, essa padronização 
pode assumir uma expressão mais vividamente explícita, tal como ocorreu na 
visão que Manuel teve, ao tomar o yagé. Nela um xamã índio, que distribuía o 
yagé, foi visto transformando-se numa onça e, em seguida, no demônio. Então 
Manuel morreu, e em sua ascensão ao céu, tal como se deu no Paradiso de 
Dante, ele alcançou a glória, após transcender o mal, ganhou as bênçãos do Se­
nhor, foi curado e obteve algo mais do que uma simples cura.
Ao enfrentar a feitiçaria da magiapraticada contra ele há muitos anos, José 
Garcia tomou-se não somente um curador, que podia transformar o mal; tomou- 
se também um homem rico aos olhos de seus vizinhos. Em uma sociedade na 
qual as pressões a favor da acumulação individual do capital encontram a oposi­
ção daforça da inveja, contra-hegemônica, sua carreira de homem empreendedor 
exigiu o desenvolvimento de sua capacidade espiritual de cura, em um ritmo cada 
vez mais arrebatado, de tal modo que ele pudesse resistir ás farpas dessa inveja.
Finalmente, conforme ele já dissera em uma ocasião, chegara o dia em que 
seu pai o chamou: “Venha, mayordomo! Vamos prestar contas”.
Desde o início da doença de Rosário, José Garcia parou de tomar yagé e de 
visitar Santiago. Rosário sempre se mostrara cética e talvez um tanto temerosa 
pelo fato de ele confraternizar com os índios e, sobretudo, tomar yagé. Carmela, 
bem como outros médiuns, freqüentemente o preveniam em relação ao fato de 
ele exceder-se no consumo do yagé. Agora ele também parecia assustado.
Lydia disse-lhe que parasse ou que o tomasse raramente, pois quando al­
guém está bien chumado os outros tomadores de yagé “jogam" uma feitiçaria 
nele. “Certa vez caí no chão”, ele me confidenciou. “Don Santiago bateu em mim 
com galhos de urtiga. Tomei um copo cheio e vi alguns índios de um lugar distante 
do Putumayo, com os rostos pintados de achiote. Eram eles que tinham feito 
aquilo comigo!” “De uma outra vez", ele prosseguiu, “um vento forte soprou, 
vindo não se sabe de onde. Chegou a apagar a vela. Estranho... Cantei o Magnifi- 
cat. Defendi-me. Continuamos a curar".
Rosário ouviu falar de famoso médico de Popayán, uma cidade serrana ao
162
noite de Pasto. Ela e José Garcia foram consultar-se com ele várias vezes. O 
tratamento era doloroso. Segundo ela, o médico aplicou injeções em sua língua 
em várias ocasiões. Era também um tratamento caríssimo. Formado por uma 
universidade renomada, o médico aprendera sua especialidade na Rússia e em 
muitos outros países estrangeiros, frisava Rosário. Então ela ficou conhecendo 
uma médium espírita nova no Putumayo, uma mulher branca do Brasil, que não 
permitia contatos pessoais. Rosário comunicava-se com ela através de uma inter­
mediária, amiga de ambas. A brazilera conseguiu livrar Rosário do espírito que 
flutuava em seu ombro direito. Afirmou que Carmela havia provocado a doença 
de Rosário por meio da magia e acrescentou que ela também era a culpada pelo 
fato de Santiago ter estado à morte. Era por isso que ele ainda padecia de can­
saço, vertigens e tinha um problema em um dos olhos. Devo acrescentar, a esta 
altura, que Carmela (grande amiga do bispo, conforme José Garcia dissera), 
havia alguns meses, fora mandada embora de Pasto graças aos esforços combina­
dos de médicos, da polícia e da Igreja e lutava para manter-se em uma pequena 
aldeia situada a alguns quilômetros da cidade. Sua estrela se apagara, pelo menos 
no momento.
Tentei convencer José Garcia a acompanhar-me a visitar Santiago, mas ele 
se recusou. Assim, seu filho, Pedro, foi em minha companhia. Seguimos pela 
trilha e entramos na floresta, quando a noite caía. Ele tinha 14 anos e tomava 
yagé desde os oito. Passamos pela fazenda de seu pai. O garoto contou-me que o 
gado, bem como as bananas e outros produtos agrícolas, sempre corria o risco de 
ser roubado. Recentemente seu pai fora atacado por um trabalhador que pedira 
um salário maior e revidou com seu facão. O trabalhador foi embora, roubou o 
cachorro preferido da família, castrou-o e cortou suas orelhas. Ao que parecia, 
Pedro temia constantemente a feitiçaria. Por que ele tomava yagé? Ele declarou 
que uma pessoa o tomava para ver quem a estava enfeitiçando, para clarear a 
própria situação e, ao mesmo tempo, para limpar os males provocados por al­
guém Sentia medo de andar por aquele caminho â noite. Ao chegarmos a uma 
bifurcação, seguimos pela trilha que entrava na floresta. O sol se punha. Chega­
mos ao rio e atravessamos a pinguela feita de bambu e arame, suspensa a nove 
metros acima de uma catarata que despencava pelas pedras. Tinha uns três me­
tros de largura e precipitava-se por entre as águas reluzentes. Perguntei a Pedro o 
que via quando tomava yagé.
“Vi um homem fazendo o que chamamos de brujerias (feitiçaria) em nossa 
fazenda", respondeu.
Ele queria ver todo nosso gado morto e nós pedindo esmola. Ele queria que ficásse­
mos como eu estava vendo. Daí a pouco vi meu pai, e seus maus amigos queriam ver ele 
como se fosse um feiticeiro como eles. Então vi meu pai de cueca, com um rabo (igual ao 
do demônio), como se fosse uma corrente, e o resto do corpo nu. Foi o que vi. Os outros 
disseram que era assim que o queriam. E riram quando viram o que eu vi. Queriam levar
163
meu pai embora. Disseram que queriam que eu visse exatamente daquele jeito, como eles, 
fazendo o mal.
Mais tarde a irmã Carmela disse que o homem que eu vira fazendo bnixaria era o 
feiticeiro. Ela ouve os espíritos e consegue curar através deles. Ela chama os espíritos... 
como o de Tomás Becerra (o xamã índio, já morto, que deu yagé ao pai de Pedro pela 
primeira vez).
Mais tarde, tomando yagé, vi meu pai curando a fazenda. A chuma me pegou e me 
levou até IÂ. Achei que eu também ia sofrer. Então vi meu pai se transformando em pombo 
e, na força do yagé, vi a irmã Carmela e meu tio Antonio, todos vestidos de branco, lim­
pando a fazenda.
Certa vez vi a Virgem Maria. Passei para o outro lado e a encontrei parada, como 
uma estátua. Rezei e chorei. Daí a pouco a chuma mudou e vi a Virgem como se fosse uma 
pessoa igual a qualquer outra. Então chamei meu pai e disse: “Veja! Veja! A Virgem do 
Carmo!”. E ele perguntou: “Onde está ela?” Ele também sentiu vontade de chorar, mas 
disse para mim: “Não chore. Por que está chorando7 Não está vendo a Virgem do Carmo?”. 
E lá estava ela, me abençoando, com um rosário nas mãos. A partir daí a chuma mudou e 
não vi mais nada.
Eu estava chorando porque pedia o perdão dela... para todos nós. Então ela me aben­
çoou... Meu pai contou que o mesmo aconteceu com ele, só que ele passou por cima de um 
abismo, apoiado em um cajado pequenininho. Não conseguia enxergar o fundo do abismo, 
mas a Virgem levou ele até o outro lado sem que nada de mal acontecesse.
Pedro fez dois desenhos dessas visões e mais tarde os comentou:
A Virgem
Este é o rio para onde eu ia e que tinha de atravessar. Está é a pinguela de bambu que 
eu tinha de atravessar. Quando cheguei na metade quis voltar. Este é o sol que ilumina tudo, 
que traz sua luz para o lugar onde estamos. A face do sol está na frente da Virgem. Na 
frente do sol está o chão amarelo. Aí está a pena (peanha) e a Virgem está de pé nela. Tudo 
isto é a pena. Foi onde eu encontrei a Virgem... parecia uma estátua de santo feita de gesso. 
E ela ficou viva, como se fosse uma mulher, e me deu sua bênção.
(O arame farpado na frente do desenho é a cerca de uma fazenda. Ao interrogar Pedro, 
pareceu-lhe que a Virgem estava em uma fazenda, no campo onde o gado vai pastar.)
O Feiticeiro
Este desenho consiste de três partes; 1. canto superior esquerdo; 2. canto superior 
direito e 3. parte inferior.
1. Este é o rosto de um daqueles índios maus. Vi três, todos com o mesmo rosto, 
igual ao dos índios do vale do Sibundoy.
2. Então eu me voltei para a fazenda e vi um vizinho colocando coisas de feitiçaria 
(um capacho ou pacote de feitiçaria) dentro do tronco podre de uma árvore.
3. Este homem está vestido apenas com as cuecas, segura o rabo do demônio e uma 
vassoura com a mão esquerda e o capacho com a direita. O capacho contém pó de ossos 
humanos, retirados do cemitério, tetra do cemitério, cabelo humano etc... É este homem, Sán- 
chez (um vizinho), que queria ver meu pai fazendo feitiçaria; queria ver do jeito que viu.
Daí a um ano, no mesmo lugar da estrada e quando o sol se punha, recordei
nossa conversa. Ele voltou-se para mim e tirou uma garrucha debaixo da camisa.
“Sim”, disse “e agora tenho isto”.
164
Perguntei à mãe dele, Rosário, se ela havia pensado em procurar tratamento 
com um xamã índio como Santiago. Ela deu um muxoxo. “O índio é um bruto, oíndio não entende nada. Quando se embriagam, peidem a razão; onde quer que 
sintam vontade de vomitar, vomitam e então deitam e dormem. Não são como as 
pessoas educadas. Os índios... Ha! É por isso que não quero nada com eles. Fico 
longe deles...”
“E José, seu marido?", perguntei.
“Bem... ele está contente com Santiago. Aprendeu as idéias deles. Isto me 
deixa aflita. Isto me aflige de verdade porque não aceito. Ele está com essa idéia. 
São amigos velhos. É o yagé."
“Mas que idéia?”
“É que ele aprendeu os costumes deles, não? O sentimento, o genio (genio 
pode significar temperamento, brilho, gênio).
“Lá em Sibundoy”, ela prosseguiu, “tem um índio que sabe falar catorze 
línguas. Esqueço o nome dele. É muito capaz. Porém, quando chega o carnaval, 
é o índio mais porco que existe. Ele se emporcalha, cai na lama, se suja todo, 
dança na lama, cantando. Põe uma daquelas máscaras índias, pois normalmente 
usa as roupas de um branco. Aí chega o tempo do carnaval, os índios põem 
máscaras de índios, dançam, bebem chicha, brigam, se espojam na lama como 
porcos. É por isso que eu digo que educar os índios é um desperdício. Puxa! Ele 
fala catorze línguas! Não é pouco!”.
O irmão de Rosário chegou e começou a falar da recente visita dela ao 
santuário do Senhor dos Milagres, na cidade de Buga, a centenas de quilômetros 
ao noroeste, no vale do rio Cauca, e que é uma região agrícola. Trata-se de um 
santuário popular e, de acordo com Rosário e seu irmão, ele se originou ao ser 
descoberto por uma lavadeira índia, há muitos e muitos anos, quando ela estava 
economizando dinheiro para comprar uma imagem de Cristo. Ela trabalhava na 
margem do rio, em Buga, quando chegou a polícia, que levava um homem para a 
prisão, devido ao fato de ele não ter pago uma dívida. Compassiva, a índia deu 
ao homem o dinheiro necessário para sua liberdade e, ao voltar a lavar roupa, 
deparou com um pedaço de madeira que descia o rio. Nele se encontrava escul­
pida grosseiramente a figura de Cristo na cruz. Ela o tirou da água e a cada dia 
que passava a figura assumia traços cada vez mais perfeitos. O bispo de Popayán 
condenou aquilo como uma heresia e enviou gente para queimá-lo. No entanto 
ele resistia às chamas, transpirava, assumia uma semelhança cada vez maior, até 
que a Igreja reconheceu que se tratava de uma imagem verdadeiramente mila­
grosa, descoberta por uma índia para a redenção da sociedade colonial, há milha­
res de anos, em um tempo mítico.
165
8
Realismo mágico
O poder do imaginário suscitado pelo infortúnio e sua cura, no caso da doença 
de Rosário e José Garcia, é um poder que adquire existência quando uma história 
de vida se ajusta como uma alegoria aos mitos da conquista, da selvageria e da 
redenção. A esta altura deve ter ficado claro que a fé religiosa e a magia envolvi­
das nesse processo não são místicas ou programáticas e, certamente, não consti­
tuem uma adesão cega a uma doutrina ofuscante. Constituem, ao contrário, uma 
epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com 
a esperança, e na qual o sonho — nesse caso o de pobres camponeses — reela- 
bora o significado do imaginário de que instituições de classes dirigentes, tais 
como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias 
utópicas.
Ao objetivar essa realidade através do real maravilloso ou realismo mágico, 
a literatura latino-americana moderna constrói uma ponte de mão única direcio­
nada para a literatura oral, mas ainda assim, segundo me parece, encontra dificul­
dades em subtrair-se àquela mão pesada contra a qual Alejo Carpentier reagiu, no 
surrealismo parisiense — a saber, o esforço de criar a magia onde podia existir 
unicamente uma forma metaforizada. O surrealismo congelou o tempo e suprimiu 
toda a narrativa das composições previsíveis da realidade burguesa por meio de 
formas tiradas dos sonhos e dos artefatos descontextualizados (e, portanto, ainda 
mais suneais) do mundo primitivo, tal como ele foi percebido de relance e com 
imaginação graças às máscaras africanas e objetos semelhantes exibidos no Tro­
ca de to. Pois bem, Carpentier descobriu que não precisava desses artefatos, pois 
nas ruas, campos e na história do Haiti o maravilhosamente real o encarava de 
frente. Lá tudo isso era vivido, era cultura, maravilhosa e, no entanto, comum.
Sua descoberta do real maravilloso em 1943 traz todas as marcas do pró­
prio maravilhoso. Ao descrever como, após voltar de Paris, ele tropeçou nos 
fatos ordinários do extraordinário, Alejo Carpentier escreve o seguinte:
166
Isto se tomou particularmente evidente para mim por ocasião de minha estada no 
Haiti, ao eftoontrar-me diariamente em contato com aquilo que poderiamos denominar o mara­
vilhosamente teaL. Dei-me conta, além do mais, que essa presença e essa foeça do maravilho­
samente real não pertencia unicamente ao Haiti, mas constituía um patrimônio de toda a 
América, cujo inventário da cosmogonia ainda precisa ser terminado. O maravilhosamente 
real é encontrado a cada passo nas vidas daqueles que inscreveram datas na história do 
continente e deixaram nomes ainda gerados por ela: os exploradores da Fonte da Eterna 
Juventude... Devido à virgindade de sua paisagem, de sua formação, de sua ontologia, da 
fantástica presença do índio e do negro, devido i revelação que sua descoberta constituía e
i fecunda síntese que ela favorecia, a América está longe de ter exanrido sua riqueza de 
mitologias.1
Mas por que lo real maravilloso toma-se uma categoria tão importante no 
consciente das escolas literárias a partir de 1940, após quatrocentos anos de ela­
boração de mitos e de magia na cultura latino-americana? O despertar dessa sensi­
bilidade para a qualidade mágica da realidade e para o papel do mito na história é, 
talvez, uma indicação daquilo que Emst Block denominou “contradições não- 
sincrônicas", e é um solo feito para que dele brotem “imagens dialecticiais”, con­
forme a terminologia empregada por Walter Benjamin, para quem (e aqui cito o 
ensaio de Susan Buck-Morss sobre as notas que ele escreveu em Passagenwerk)
o sonhar coletivo do passado recente surgiu como um gigante adormecido, pronto para ser 
despertado pela geração presente, e o poder mítico de ambos os estados de sonho (o da geração 
recente e o da geração presente) foram afirmados; o mundo reencantou-se, mas apenas para 
romper com o encantamento mítico da história e, na verdade, para reaptopriar-se do poder 
conferido aos objetos da cultura de massa, que se tomaram símbolos utópicos do sonho.2
A contradição não-sincrônica ocorre quando mudanças qualitativas no modo 
de produção de uma sociedade animam imagens do passado, na esperança de um 
futuro melhor. Na Alemanha, o fascismo canalizou essas imagens e essas espe­
ranças e, de acordo com Bloch, o empobrecimento da esquerda em relação á 
fantasia revolucionária a tomou cúmplice de sua própria derrota. Do mesmo modo 
Benjamin censurou seus companheiros da esquerda; o materialismo histórico po­
deria tomar-se vitorioso na luta ideológica “se ele acolhesse os serviços da teolo­
gia, a qual hoje, conforme sabemos, anda mirrada e precisa ser mantida fora do 
alcance do olhar”.3 Ele argumentou que à persistência de formas mais antigas de 
produção, no desenvolvimento do capitalismo, correspondiam imagens que en- 
tremesclavam o velho e o novo como ideais que transfiguravam a promessa ofe­
recida pelo presente, mas que este bloqueava. Essas imagens utópicas, embora 
estimuladas pelo presente, reportam-se ao passado de modo radical — aquilo que 
Benjamin denominou “pré-história”, isto é, uma sociedade sem classes.4 Os fas­
cistas se mostravam dispostos e tinham a capacidade de explorar esses sonhos, 
mas isto não significava que o mito e a fantasia fossem necessariamente reacio­
nários. Ao contrário, as imagens continham sementes revolucionárias, que o solo 
arado

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