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Segunda parte Cura Uma história de sorte e infortúnio Conheci José Garcia sm dezembro de 1975, quando ele participou de um grupo que esperava para beber yagé com Santiago Mutumbajoy, um reputado xamã índio que vivia nos contrafortes do Putumayo, onde os sopés orientais dos Andes se encontram com a floresta pluvial da bacia do alto Amazonas, na Co lômbia. Ele foi o último a juntar-se a nosso grupo de pobres forasteiros brancos e de índios da região que observavam o crepúsculo das montanhas, e me foi assi nalado como amigo íntimo e discípulo do xamã. O que chamou minha atenção foi o fato de que José Garcia era um branco que se dispusera a estudar com um curandeiro índio. Lembrei-me de que havia alguns meses, quando eu me encontrava na com panhia de outro xamã, dois brancos se aproximaram da casa certa noite e um deles se pôs a berrar: “Graças a Deus eu sei\ Mate-me agora, com tudo aquilo que você sabe, seu monte de merda, filho de uma puta! Feiticeiro de merda, filho da puta! Eles não podem fazer nada! Maldito! Mas eu sei... Estou parado, aqui... Eles não sabem nada, filhos da puta! Não conseguem fazer nada contra mim!". Quando atravessei pela primeira vez a pequena cidade, próximcJ ao lugar onde Santiago morava, um técnico empregado pelo serviço especial de saúde do governo dis sera em altos brados: “Nós do INPES combatemos os curacas (xamãs). Somos a vanguarda do progresso. Nossa tarefa é nos livrarmos de toda essa charlatanice". Os proprietários brancos dos armazéns em volta da praça garantiram-me que os xamãs eram inúteis ou perigosos. Somente mais tarde fiquei sabendo que aqueles mesmos proprietários procuravam os xamãs para dar um jeito em seu pequeno comércio. Devo assinalar que o yagé cresce unicamente na floresta pluvial das terras baixas e dos sopés das montanhas e que os índios que conheço, habitantes dos contrafortes do Putumayo, dizem de vez em quando que se trata de uma dádiva especial de Deus para os índios, e unicamente para eles. “Yagé é nossa escola”, “yagé é nosso estudo", poderão dizer, e o yagé é concebido como algo ligado à origem do conhecimento e de sua sociedade. Foi o yagé quem ensinou aos índios o bem e o mal, as propriedades dos animais, os remédios e as plantas comestí veis. Alguns índios Cofán, ao sul do rio Putumayo, certa vez me contaram uma história sobre a origem do yagé que ilustra as tensões bem como as mediações que se dão entre as tradições indígenas e cristãs: Quando Deus criou o mundo ele arrancou com a mão esquerda um fio de cabelo e o plantou no chão, mas unica mente para os índios. Abençoou-o com sua mão esquerda. Os índios descobriram suas propriedades e desenvolveram os ritos do yagé e de todo o complexo xamâ- nico. Ao ver isto, Deus demonstrou incredulidade. Disse que eles estavam men tindo. Pediu e Lhe foi dado um pouco de infusão de yagé. Ele tremeu, vomitou, defecou e gritou bastante, fascinado com as muitas coisas maravilhosas que viu. Quando o dia amanheceu ele declarou: “É verdade o que esses índios dizem. A pessoa que toma isto sofre, mas se beneficia. É assim que a gente aprende: atra vés do sofrimento”. Embora possam beber o yagé com um xamã índio a fim de se livrarem do mal, seria excepcionalmennte raro que os brancos considerassem com seriedade assumir todos os perigos que se acumulam sobre a pessoa encarregada da respon sabilidade de seu preparo e ritual. José Garcia é um desses poucos brancos. A noite caiu e entramos na casa de dois quartos, empoleirada na colina. A luz de uma vela tremeluzia, iluminando as traves do teto e as redes que balouça vam. Encardidas estampas católicas contemplavam a penumbra oscilante, e São Miguel, o santo padroeiro da pequena cidade vizinha e que Santiago Mutumba- joy afirma ser o santo dos índios, que os preveniu da chegada dos espanhóis, começou a livrar-se de Satanás, que se afundava no fogo do inferno. Uma con versa em voz baixa sobre os momentos difíceis de cada um deu lugar à expecta tiva e ao temor, até certo ponto dissipados pelo curandeiro, que fazia piadas e brincava. O incenso de copal invadiu a sala e os sons noturnos do rio e do vento se uniram aos ruídos da floresta, preenchendo nosso silêncio. Um rapaz ajudou o curandeiro a encher uma panela de yagé. O curandeiro se agachou e começou a cantar ao ritmo do compasso de seu leque de cura, waira sacha — espírito da floresta, escova do vento. Ele estava curando o yagé do mal que este traz da floresta. Entoava sons yagé, mas não palavras, pedindo-lhe que fosse forte e trouxesse boa pinta, isto é, pintura, visões. Decorridos uns dez minutos ele bebeu, cuspiu, pigarreou e então serviu a todos nós, cantando diante do copo cheio, antes que cada pessoa bebesse. Sentamo-nos e aguardamos. Daí a meia hora alguém foi vomitar no escuro, trope çando, e o xamã recomeçou a cantar, mal parando até o dia amanhecer. Solicitou boas visões; sua voz e o ritmo que ele imprimia ao leque ressoavam em nossos corpos trêmulos. Eis alguns trechos de minhas anotações, feitas naquela noite: Então surge o feo (feio). Meu corpo se distorce e estou muito assustado. Minhas pernas se esticam e se desprendem, meu corpo não mais me pertence e então volta a me pertencer. Sou um polvo, condenso-me em uma forma bem pequena. A luz da vela cria 144 formas de um mundo novo, formas animais e ameaçadoras. A metade inferior de meu corpo desaparece. Aprendo a usar a dissociação como uma vantagem, como um modo de escapar ao horror. Não sou a pessoa que está passando por aquilo tudo, mas o rosto-prcsença, sem corpo, calmo, que olha com atenção e observa aquele outro eu desprovido de importância. Espio meu outro eu e sinto-me seguro. Mas então este segundo eu, este observador objetivo e desligado, também sucumbe e tenho de dissociar-me em um terceiro e, em seguida, em um quarto, pois a relação entre meus eus se rompe, criando uma série quase infinita de espelhos confusos de eus que espiam e de outros que sentem. O ódio a mim mesmo e a paranóia são estimulados por animais horríveis — porcos que grunhem estranhamente, co bras coleantes que deslizam uma em cima da outra, roedores com asas que se assemelham a barbatanas. Estou tá fora, tento vomitar, as estrelas e o vento pairam sobre mim, apoio-me na cerca do curral. Está repleto de animais, que se mexem. A história de minha vida se desenrola diante de mim, em uma torrente de medo e de autocensura. Volto para dentro e assim que entro vejo o xamã, Santiago; ele transformou-se em um tigre! Está sentado na rede e José Garcia ajoelha-se diante dele. A sala se transformou e sinto o vômito que chega. Vou lá para fora, vomito e defeco. Sinto as odiosas situações do passado e o medo sendo expelidos. Junto-me ao grupo, calmo, e agora flutuo em cores e visões maravilhosas. Dou- me conta que Santiago pôs seu colar de dentes de tigre. Sua cabeça aninha-se naquele suporte de dentes de tigre, criando uma nova imagem: a parte superior de seu corpo é como a de um tigre. Ele acaricia suavemente José Garcia e pergunta-lhe se quer mais yagé. Esten dem um pano e se agacham no chão. Alvoroçados, excitados, pedem uma faca para abrir uma concha de madrepérola. Mais tarde José Garcia faz perguntas relativas a seu gado; quer vê-lo curado naquela mesma noite e quer que Santiago vá até sua fazenda e veja o que está acontecendo. Mais tarde percebo que ele está se referindo à feitiçaria. Pela manhã Santiago contou-me que mal conseguiu funcionar durante a noite, pois esbarrava no gado o tempo todo; era um bonito gado. Oh! Um belo gado de todas as cores, que mugia, o lambia e era muito gotdo. O Banco Mundial finandou um projeto de criação de gado, naquelas regiões da floresta pluvial desde o inicio da década de 70. O genro de Santiago me conta que José Garcia deseja ser um xamã, que ele sabe muita coisa e que está passando por um período de má sorte. Muitomais tarde ficou claro para mim que José Garcia estava aprendendo a ser um curandeiro como parte do fato de ele estar sendo curado de uma aflição profundamente perturbadora. Ao fazer isso, ele atravessava todo um ciclo de aflição, salvação e transformação, que parece tão eterno quanto a humanidade. No entanto o poder deste ciclo não se origina da eternidade, mas do ativo engaja mento com a história, do qual a aflição depende para sua cura. José Garcia não deve ser historicizado, pois o passado do qual sua aflição e sua cura dependem é uma ativa construção do passado, original para cada novo {»esente, e isto tam bém se aplica ao xamanismo Os contrafortes dos Andes, na região do Putumayo, foram percorridos pela primeira vez por europeus, em 1541, á procura da cidade de El Dorado — O Rei Dourado. Os índios que habitavam a selva, na região do rio Mocoa (descritos pelos contemporâneos como canibais que lutaram ferozmente contra os espa nhóis, colocando-os em fuga), asseguraram a Hemán Pérez de Quesada e seus 260 companheiros de conquista que a Terra Dourada situava-se ali perto, nas montanhas que se erguiam na direção oeste, em uma terra fabulosa chamada Achibichi, onde os espanhóis encontraram o vale do Sibundoy, mas não o ouro e, r 145 mais adiante, a-nova vila espanhola de Pasto. Após essa predadora expedição surgiram por lá alguns traficantes de escravos espanhóis e missionários francis- canos. Era um punhado de homens amargurados, que muito padeceram com o clima e com a hostilidade dos índios dos contrafortes dos Andes, que, segundo se dizia, rebelaram-se instigados por seus xamãs. No entanto o cristianismo assumiu importância na cultura da conquista. A distinção entre índios cristãos e pagãos se tomou ideologicamente decisiva de vido á importância que ela assumiu, ao facilitar a legalidade da escravização e o emprego da força militar. Em seu manual de instrução para os missionários, pu blicado em 1668, o superior da missão franciscana estabelecida em Quito, bispo Pena Montenegro, forneceu um exemplo de racionalização cristã, tendo em vista o emprego da força contra os índios do Putumayo. A conquista por meio da força armada, escreveu ele, era justificada “para reduzir aqueles que, embora não sendo vassalos de alguém, injuriaram gravemente aqueles que o eram, a exemplo dos índios pagãos que, sendo vizinhos naquelas regiões de índios católicos, inva diam suas terras, suas vidas e fazendas, aprisionando as mulheres e as crianças, como ocorre comumente e como ocorreu este ano de 1663, nos contrafortes da montanha, em Mocoa".1 Outros relatos de franciscanos declaravam que índios cristianizados do vale do Sibundoy (provavelmente os “índios católicos" a que se refere o bispo) estavam sendo usados para escravizar pagãos (tais como os de Mocoa) nas terras baixas, a fim de trabalharem na mineração do ouro. Com o cristianismo, ao que me parece, os missionários também introduzi ram a magia, como ela é denominada atualmente no Putumayo, em referência ao poder que deriva de um pacto com o demônio. Os missionários acreditavam firmemente na eficácia da feitiçaria e supunham que os índios eram especial mente dados a praticá-la, devido ao fato de terem sido seduzidos pelo demônio. O bispo Pena Montenegro afirmava que sendo tão brutos e ignorantes, os índios haviam sido conquistados pelo diabo, a ponto que ele se tomou unha e carne com os nativos. As características do demônio se tomaram um traço hereditário. Atra vés de seus ritos e superstições, os índios mantinham a memória da idolatria e da feitiçaria. Quando ficavam doentes e procuravam os xamãs, reforçavam a ambas. Além do mais o bispo se preocupava com a influência herética qué os índios exer ciam sobre os brancos, pois estes também procuravam os curandeiros índios.2 O bispo instruiu seus frades a tomar cuidado, ao tirarem os “instrumentos” dos feiticeiros índios e ao proibirem suas danças e seus cânticos, “pois neles os índios guardam a recordação da idolatria e da feitiçaria”. Tendo em vista essa finali dade, era necessário destruir “seus membros, cabeças de veado e penas, pois estes são os instrumentos do mal e trazem à baila a recordação do paganismo”.3 No entanto a memória de que se trata aqui não seria a dos espanhóis e não a dos índios? A ironia estava no fato de que ao se empenhar em apagar essas “recordações", a Igreja, na verdade, as criava e as fortalecia como uma nova força 146 social e, em conseqüência, garantia a transmissão do mito para a realidade e a transmissão da memória para o futuro. Expulsos das missões em 1767, os franciscanos deixaram o Putumayo, que se tomou um lugar ainda mais isolado, virtualmente livre de contatos com bran cos durante um século, com exceção de alguns comerciantes á procura de laca de bamiz (verniz) e de plantas medicinais para as pequenas cidades das serras. Se guindo-se ao boom da casca de quinino, nas décadas de 1860 e 1870, o da bor racha irrompeu nas terras baixas do Putumayo, bem no fim do século XIX, acarretando durante cerca de vinte anos aquilo que Walter Hardenburg descreveu como “O Paraíso do Demônio”, isto é, o espaço onde ocorreu a escravização e a morte, a uns 3S0 quilômetros ao sudoeste do lugar onde José Garcia se estabele ceu, meio século mais tarde. Foi concedido a capuchinhos da Espanha o controle quase total da Amazônia colombiana em 1900, e eles estabeleceram sua primeira e mais importante base nas toras altas do vale do Sibundoy. Suas escolas e clínicas foram bem-sucedidas, em contraposição ao fracasso dos franciscanos, e sua tenta tiva, um tanto falha, de colonizar a região através de camponeses brancos pobres foi grandemente impulsionada pela Texaco Oil Company, que construiu estradas no início da década de 50, pelas quais camponeses pobres, negros e brancos afluíram em grande número. Um desses brancos pobres era José Garcia. Nascido em 1925 em Narino, localidade situada no altiplano andino, José Garcia desceu para os contrafortes da bacia do Putumayo em 1950, em compa nhia de sua mãe e de seu irmão, após a morte do pai. Haviam ouvido falar da beleza de Santa Marta, esperavam encontrar lá a riqueza e passaram anos árduos preparando a terra para a criação do gado. Contou-me que tomou yagé pela pri meira vez com um curador índio da região, chamado Andrés Hinchoa. Sua irmã ficara gravemente doente, após romper com o homem de quem estava noiva. Ela e José Garcia temiam que tivesse sido enfeitiçada, em um ato de vingança e, finalmente, procuraram Andrés Hinchoa para ver o qué ele poderia fazer. José Garcia relembra: Andrés Hinchoa era meu compadre. Foi quem me ensinou a tomar yagé. Me deu a primeira pinta e passei por coisas que jamais tinha visto. Ele me disse: “Bom. Vou te dar um copo de yagé para que você tenha boa sorte e assim sempre se lembrará de mim. Mas você terá de ser corajoso, compadre\". Então ele me deu o primeiro copo e dai chegou a chuma (embriaguez e visões). Mas Ave Maria!... Eu estava morrendo. Vi um outro mnndo. Estava em uma outra vida. Vi-me num atalho estreito, comprido, que não terminava mais. E me sentia angustiado, sofrendo. Tinha ido embora por toda a eternidade. Estava naquele atalho, caminhava sem parar; e dal cheguei a uma planície imensa, bela como a savana. Os campos eram verdes. Lá estava um quadro de Nossa Senhora do Carmo, e eu disse para mim mesmo: “Agora vou até Nossa Senhora do Carmo“. Então vi uma ponte bem pequena, com um buraco no meio; não havia nada além daquela pontezinha, fina como um dedo, e pensei com meus botões: “Tenho medo de atravessar. Minha Virgem Santa, não me deixe cair! Não deixe que nada de mal me aconteça!“. Fiz o sinal-da-cruz e comecei a atravessar a ponte, mas comecei a cair. De repente fiquei assustado. Naquele momento invoquei a 147 Santíssima Virgem do Carmo, pedindo que me ajudasse a passar. Daí chegueiaté perto dela e disse: “Vim para que todos os meus pecados sejam perdoados!". Forque eu estava morto, não é mesmo? E então ela disse: “Não vou perdoar nada!'. Então me pus a chorar com amargura, soluçava, procurava aquela salvação que a Virgem Santa me negava. Chorava sem parar e implorava que ela me salvasse. Daí ela me disse que eu estava perdoado, que eu estava salvo! Fiquei feliz e voltei pata este mundo. Estava sentado no mesmo lugar; com o rosto banhado de lígrimas. Em seguida, pelo que deduzi — pois José Garcia se mostrou um tanto reti cente em seu relato —, ele se envolveu em um caso amoroso e conflitante. O fim do relacionamento se deu em um clima desagradável, até mesmo agressivo. Com efeito, as cicatrizes ou aquilo que ele considera como tal, estão presentes até o dia de hoje. A jovem e sua mãe, proprietárias da fazenda vizinha, nunca estão longe de seu pensamento, quando as coisas não vão bem. Foi por tomar yagé, segundo me contou Santiago Mutumbajoy, que José Garcia pôde escolher entre três mulheres, e a eleita foi Rosário, com quem casou em 1962. Nascida em 1935, ela viera da região de Narino mais ou menos na mesma época que José Garcia e morava em uma fazenda das redondezas. Tinha 16 anos quando o homem a quem amava e com quem desejava se casar moiTeu em um acidente com um caminhão. Ficou desolada, chorou e sonhou com ele durante meses. Após oito anos de casamento saíram da floresta e foram morar na cidade- zinha de Mocoa, no sopé da montanha. Alugaram quartos da tia da jovem que fora a primeira noiva de José Garcia. Essa tia se tomou a madrinha da primeira filha do casal, mas tomou a vida impossível para eles, segundo me contou José Garcia, pois dizia que eles sentiam excessivo orgulho da beleza da criança e que ela morreria em breve. Assim o orgulho deles seria castigado. Mudaram-se para o outro lado da estrada e passaram por uma fase difícil de doença e pobreza. À noite estranhos sons os assustavam, e Rosário foi assom brada por um espírito que, muitas vezes, sentava-se acima de seu ombro es querdo. Ele a seguia por toda a casa, sobretudo quando José Garcia não se encontrava presente, de acordo com o que ela me contou. Não ficou claro de quem era aquele espírito (em 1977 ela contou-me que era um rapaz com aparên cia de gringo, alto, bonito e que a desejava profundamente). Seu lado direito tomou-se pesado e sem reflexos. Em seguida ficou parcialmente paralisado. Em um ato de desespero José Garcia procurou um curandeiro poderoso. Fui tomar yagé em um lugar, em seguida em outro e depois em mais outro e nada! Não vi nada! Fui até o xamã Flavio Pena. Ele sabia! Ele sabia como curar! Mas nem mesmo ele conseguiu fazer alguma coisa! “Não!**, disse ele, "isto é realmente difícil”. Ele cuidou bem de mim. Preparou um bom yagé, curou-me como deve ser feito, mas nada! Não tive visões. O yagé era como uma garapa. Nada! Nada! Fomos procurar outro xamã em Umbría. "Isto é um maleficio com magia"', disse ele. “Não é qualquer um que pode curar isso. O maleficio a gente pode curar; mas a magia, não." Quando Andrés Hinchoa morreu, todas as minhas visões acabaram. Algo terrível tinha acontecido comigo. Procurei seis xamãs, mas com nenhum deles obtive sucesso. 148 Então um amigo perguntou se eu já tinha ouvido falar de Santiago Mutumbajoy. “Vá lá", disse-me ele. “É uma boa pessoa e alguém que sabe, de verdade, como tomar yagé." Assim, cato dia, visitei-o e levei-lhe alguns presentes. Ele se mostrou muito atencioso e, após conversar um pouco, disse-me: "Don José, de acordo com o que me disse, quer tomai yagé a fim de ver; mas não posso prometer nada! Se Deus e a Virgem me ajudarem, então, sim, poderei ajudá-lo. Venha, mas somente sob essa condição". O dia marcado chegou c tomamos yagé. Sim! Era aquilo que eu queria! Sim! Surgiu uma clara visão de minha casa e eu estava vendo tudo, exatamente como na época em que Andrés Hinchoa me dava yagé. Bebemos yagé a noite inteira. Sets copos! Finalmente ele disse: "Gosto, gosto de fato deste José García. Ele foi feito para tomar yagé. É uma boa pessoa. Você vai ficar rico". Eu estava em um estado de estupor, deitado no chão, mas ouvia o que ele dizia. Não perguntei a ele como, nem por quê, mas fiquei cheio de con fiança em suas palavras. No dia seguinte, porém, as dúvidas assaltaram minha mente. Fal tava-me fé! À luz do dia Santiago lhe disse que uma outra pessoa teria de curá-lo. Tratava-se de um maleficio terrivelmente difícil, feito com magia, e ele não queria ficar com o dinheiro de José García em troco de nada. Mais tarde a esposa de José García, Rosario, explicou-me: “Existem índios que fazem feitiçaria. Don Santiago não faz. Essa feitiçaria que se faz entre os índios... bem, os índios não conseguem curar, por causa da magia, somente a pessoa que trabalha com a magia... Os índios não conhecem a magia. Não conse guem curá-la. As pessoas que conhecem são os compactados, aqueles que estu daram o livro da magia e que fizeram um pacto com Satanás. São eles que conhecem a magiaV. “Tudo aquilo que os índios conhecem", prosseguiu, “é o yagé e as plantas com as quais eles curam e praticam sua própria feitiçaria. As feiticeiras coloca ram capachos — que é como elas chamam isso. É muito especial. Uma pessoa branca faz cruzes com terra do cemitério, tirada de um túmulo. O que mais pode existir?”. José García continuou a procurar um curandeiro suficientemente poderoso para combater a magia. Consultou um velho conhecido, Luis Alegria, um mé dium espírita mulato que curava com os espíritos dos santos e dos mortos e que, anteriormente, lhe havia dado conselhos relativos a seu irmão doente, Antonio, hoje um médium espírita de sucesso, segundo me contaram, que mora no vale do Sibundoy. Antonio começou sua carreira como aprendiz de um xamã índio, e José García me contou a história de seu irmão: Antonio era um yagecero, sabia como servir o yagé. Tinha muitos conhecimentos sobre o yagé, mas foi enganado pelo amigo que o estava ensinando a curar. Foi danado (enfeitiçado) por seu mestre, um velho xamã índio que vivia em Sibundoy. Bem, lá estava ele, e tudo o que conseguia dizer era que o yagé era terrível. Ele estava em um estado medonho, lutava o tempo todo, dizia que o yagé era tremendamente perigoso. Era só o que ele dizia. Mais tarde iniciou-se como médium espirita, com um homem de Sibundoy cha mado Don Pedro. Este, porém, viu que ele estava fazendo progressos tremendos com o espiritismo e também enfeitiçou Antonio. Ele ficava virando de um lado para outro na 149 cama, à noite, sem conseguir dormit, lutando contra Satanis, contra os espíritos. Eles o emboscavam na floresta com suas armadilhas. Mal falei sobre isto com Luis Alegria e ele me disse: ’‘Ouça! A magia é muito boa. Por exemplo, a magia encerra um segredo que diz respeito à flor do alhecho. Ouça! Com essa flor você consegue curar o que quer que seja! Qualquer coisa! Pode curar qualquer pessoa, atrair a boa sorte e tudo o mais. Sim! É uma maravilha'*. Foi o que ele disse. ’Compre a magia", dissem-me ele, "e na página tal procure o segredo. Com isto podemos fazer o segredo, de modo a enfeitiçar o feiticeiro com a mesma magia que ele usou!”. Luis Alegria começou seu trabalho, visando a cura de José Garcia, mas pediu um alto preço. Desconfiado, José Garcia voltou a procurar Santiago Mu- tumbajoy para tomar yagé e adivinhar se Luis Alegria o estaria ou não trapaceando. Teve uma visão que lhe mostrou que era exatamente o que estava acontecendo e, ao voltar para casa, enfrentou Luis Alegria. “Você está nos enganando; ninguém nunca mais vai acreditar em você.” “Isto é uma história mal contada, compadre", ele disse. “Vá lá em casa que eu te curarei de verdade." José Garcia disse-lhe que estava esperando uma mu lher branca que adivinhava por meio de um baralho. Seu nome era Lydia. “Muitobem", disse ele, “traga ela também Ela examina para ver o que está acontecendo e eu me encarrego da cura!”. Foi assim que as coisas se passaram. Lydia examinou primeiramente Luis Alegria e, em seguida, José Garcia. “Ai!”, exclamou, “Ave Maria, você foi mesmo atingido. É de fato um bobo! Já que quer se afogar, por que não pula no rio? Amanhã irei até sua casa e providenciarei uma cura". “Mas Luis Alegria ouvia e implorou que ficássemos e comêssemos com ele. Recusei, mas Lydia comeu e ficou doente. Estava querendo prejudicar a ela também.” Lydia organizou a cura deles. Levou a família para os Andes, até a cidade de Pasto. Primeiro foram ao hospital, para um exame detalhado e, em seguida, à casa de um médium espírita. A casa, porém, estava fechada e procuraram outra, o próspero centro de “irmã" Carmela, uma mulher branca que adivinhava e curava invocando o espírito de José Gregorio Hemández, atualmente um santo popular muito prestigiado na Venezuela e na Colômbia. José Gregorio morreu em Cara cas em 1919, onde, segundo me disseram, foi o introdutor do microscópio. Grande cirurgião, era extremamente piedoso e benevolente. Foi morto por um carro, quando atravessava a rua ás pressas, a fim de ir buscar remédios para um paciente pobre. Retratos seus, pequenos ícones como aquele que aqui se mostra, são facilmente encontrados em diferentes formatos na Colômbia e na Venezuela. Não há a menor dúvida que José Gregorio inseriu o mito e a lenda na era mo derna, ainda que essa lenda se transformasse em algo profundamente burguês. Nas estampas o vemos todo pomposo, vestido de temo, colete, engravatado, com uma ponta de um lenço branco saindo do bolso. Ele se apresenta sereno, con fiante e, lá no fundo, as montanhas se alteiam até o céu coberto de nuvens, acima 150 f dos torreões e de uma planície relvosa na qual, extraída do mais puro surrea lismo, uma figura de avental cirúrgico, com máscara e touca, debruça-se sobre uma figura seminua, que definha inconsciente, deitada em um feixe de palha, a qual também serve como mesa de operação. “O servo de Deus”, reza a legenda. Colocando as mãos sobre o paciente, em seu quarto na cidade de Pasto, situada em uma planície relvosa, entre altas montanhas, Irmã Carmela invoca o espírito de José Gregorio e começa a tremer. Seu espírito a está possuindo. A voz dela toma- se áspera e masculina, enquanto ela se refere aos órgãos doentes e ao tratamento necessário, que, com freqüência, inclui cirurgias profundas, praticadas espiritual mente. “Ela é grande amiga do bispo de Pasto”, contou-me José Garcia. “Ele vai ao centro espírita dela para rezar a missa.” A irmã Carmela chega a atender 150 pacientes por dia. “Quando eu estava lá, ás cinco da manhã", informou-me José Garcia, “todos nos encontrávamos na cama, acordados, mas com os olhos fechados. Então vi claro como o dia, perto da margem do rio, um padre com um grosso livro, que fazia um exorcismo. Eu tinha a impressão de estar vendo minha fazenda em Santa Marta. Sim, eu via tudo. Via meu gado sendo exorcizado com aquele livro grosso, que tinha vinte centímetros de espessura”. O padre era o espírito de Francisco Montebello, um santo popular mulato, segundo me disse José Garcia. Ele começou a rezar. “Nós nos encontrávamos numa situação terrível. Alguém fizera um malefício contra nós. As crianças esta vam muito, muito doentes, e minha mulher também Tudo o que tínhamos eram nossos méritos e nada mais." Isso se passou em 1973. Naquela ocasião o Banco Mundial iniciou seu projeto de criação de gado. José Garcia adquiriu sua primeira fazenda por uma quantia equivalente a mais ou menos 2 mil dólares; em 1975 comprou a segunda, por idêntica quantia e, em 1978, mais outra. Por voltà de 1979 possuía uns noventa hectares e pouco mais de cem cabeças de gado. Além das crianças nascidas em 1965 e 1971, havia mais duas, nascidas em 1973 e 1977. Rosário foi informada por um xamã índio que estava padecendo de mal aires, isto é, ataque de um espírito, e tomou yagé três vezes. O espírito parou de assombrá-la, a paralisia parecia curada e, em suas visões, ela enxergou uma tre menda confusão de pessoas desconhecidas, uma igreja e a Virgem. Contou-nos que a única pessoa a quem reconheceu foi uma sobrinha, que estava se casando. Durante todos aqueles anos José Garcia continuou a tomar yagé com Santiago toda semana, ou a cada duas semanas, e de vez em quando também visitava a irmã Carmela na cidade de Pasto. Em 1977 ele convenceu a irmã Carmela a descer das montanhas e curar sua família. Em seguida levou-a para tomar yagé com Santiago, que não se sentia bem. Ela dirigiu ritos de cura na casa de San tiago e este ficou impressionado com o fervor com que ela orava. Disse-me, 151 porém, que não entendia nada de espíritos e de médiuns espíritas e ficou, senão em estado de dúvida, pelo menos de perplexidade. Foi assim que José Garcia prosperou. Seus filhos desabrocharam, Rosário es tava bem e ele desenvolvia com assiduidade seus poderes curativos. Atraía pacientes e para alguns deles atuava como intermediário, enviando- os a Santiago ou a irmã Catmela. Suas técnicas de cura e os mistérios em que elas se baseavam representavam, segundo me parece, não tanto o sincretismo ou a unificação presentes nas curas de Santiago e de Carmela, quanto o fato de que nenhum desses dois curadores existiam isolados um do outro. Cada um deles pressupunha o outro, e figuras como José Garcia tomavam manifesto esse pres suposto. Suas concepções relativas àquilo que acarretava o infortúnio ou quaisquer que sejam os nomes que se queira dar a semelhantes coisas pareciam, ao que me consta, com as concepções dos xamãs índios a quem conheci. Uma grave aflição era provavelmente o resultado de uma substância de feitiçaria que penetrava no corpo ou então a obra de espíritos caprichosos — dos mortos ou da natureza — que, na aparência, agiam independentemente da malícia humana. Talvez José Garcia se diferenciasse de modo muito significativo dos xamãs índios na medida em que ele atribuía um peso maior aos espíritos dos mortos. Em todo caso, à semelhança dos xamãs, o objetivo de seu ritual era o exorcismo após a adivinha ção, atingido através de um estado alucinatório ou parecido com ele. José Garcia usava um leque de cura igual ao dos xamãs, e seus cânticos também se asseme lhavam até certo ponto. A fase de abertura, de grande importância aliás, ocorria quando ele consagrava seus remcdios, invocando o poder de transformar o mal em um poder dispensador de vida. É aqui que percebemos mais claramente o caráter das oposições que ele encarnava e que lhe davam poder, sobretudo quando tomava yagé com Santiago. Depois de Santiago cantar para o yagé e servi-lo, José Garcia começava a cantar baixinho. Chamando Deus e a Virgem, ele invocava os espíritos dos san tos populares católicos, bem como os dos xamãs índios mortos que o haviam ajudado em sua busca anterior da cura. No que se referia a Andrés Hinchoa, o xamã índio que lhe deu yagé pela primeira vez e morrera, ele dizia o seguinte: “O espírito dele está entrando no centro espírita dirigido pela irmã Carmela. Agora ele está fazendo curas perfeitas. Está entrando no centro espírita dela. Tomás Becerra (outro xamã índio morto) também vem entrando no centro. A mesma coisa acontece com Salvador, de Umbría. Todos estão com a irmã Car mela e lá se concentram Falam línguas indígenas”. Ao entrarem no centro espí rita da irmã Carmela eles se purificam... a exemplo do que acontece com ele, iluminado pela luz das velas, na casa de Santiago, junto á floresta. José Garcia começa a ver coisas — como a irmã Carmela, na cidade de Pasto, está concen trando o poder dos espíritos dos xamãs índios, articulando-os com os espíritos de santos populares católicos, tais como o de José Gregorio, o cirurgião venezuelano 152 morto,unindo todos eles com a Virgem de Lajas. Evocando esse panteão, articu lando o índio com o branco, a floresta com a cidade, o xamã índio com a médium espírita branca, José Garcia punha-se então a cantar o Magnificat, purificando e fortalecendo o yagé que o purificará e o fortalecerá. Graças a isso ele podia enxergar o interior dos corpos e as intenções secre tas dos outros. Exatamente como um xamã índio, quando tomava yagé José Gar cia tomava-se delicado e aberto aos ataques. Ao beber o yagé e penetrar em seu mundo ele precisava ser capaz de se defender. Ele fez essa descrição, ao explicar como combinava o yagé com aquilo que Caimela lhe ensinara. O yagé me dá o poder de trabalhar, não é? Vou lhe contar uma história. Certa vez que tomei yagé vi uma vizinha de nossa fazenda nova tentando subir em uma árvore muito fina, mas sem conseguir (essa mulher era mãe da jovem com quem ele rompeu o noivado no inicio de 1960). "Pobre mulher... pobre mulhei; ela não consegue subir", disse eu a mim mesmo, mas sem conseguir entender o que aquilo significava. "Essa árvore í muito fina, ela nãò vai poder subir", eu disse. "Pobre velha." Aquilo fazia parte da visão do yagé, não é mesmo? Depois disso tomei yagé uma outra noite. Era muito forte. Eu estava com o amigo Santiago. A chuma (embriaguez) do yagé pegou para valer. Foi muito bonito, eu estava atuando de fato quando voltei a ver aquela velha. Eu estava de costas para ela. A velha se aproximou e derramou um pouco de água nas minhas costas. Era uma água muito limpa. Uma chuma terrivelmente forte se apoderou de mim. Virgen Sanlísima! Senti que estava morrendo... que exaustão, que tenor! Era uma coisa tão forte que eu não tinha a menor idéia do que fazer Então, como eu tinha meus próprias remédios, disse a mim mesmo: "Conheço essa mulher, ela está atrás de mim e eu sei quem ela é". Eu estava na minha fazenda. Sabia quem estava praticando o mal contra mim. Nesse momento peguei uma garrafa de álcool, meus remédios e me massageei com eles. Acendi incenso e seu cheiro me fez tossir. Esconjurei, em nome do Senhor. E assim que a gente cura. Dai pedi ao amigo Santiago um galho de urtiga e comecei a bater ele em todo meu corpo com muita força. A chuma foi embora, sabe? Em outras palavras, o mal se dissipou. E foi uma linda pinta (visão) que me curou, ouviu? Naquela noite vi que eles esta vam fazendo mal para mim. Tentaram matar todo meu gado. Vi a velha que fez mal para mim, com a intenção de que um dia todos nós morreríamos. Pedi a Deus e à Virgen Santi- sima que me ajudassem, me concentrei e comecei a me curar. Ganhei força, mas não conse gui entrar na casa dela para poder curar minha fazenda. Rezei e rezei até ter a capacidade de me concentrar na casa dela. Então tive condição de limpar todas aquelas coisas más que ela jogou no meu gado. Ela tinha poder e conhecia aquilo tudo. Bem, Deus me assistiu e eu fiz a cura bem lá na casa de Santiago. Foi uma cura espiritual. Peguei todas as coisas más, entrei na casa dela, voltei e tornei a fazer. Assim, ao curar, vi que não estava enfeitiçando ela; não prejudiquei ninguém, apenas me certifiquei de que não tinha ficado nenhum feitiço para trás, que tudo estava de volta para ela e que ficaria por lá, deixando ela ás voltas com aquilo. Ao voltar para casa ele contou a Rosário o que havia acontecido. “Conhece aquela mulher?”, perguntou. “Sim”, respondeu Rosário, “conheço, sim Ela sabe como fazer o mal!”. Rosário, porém, mostrou-se cética, e José Garcia disse-lhe que iria procurar Lydia, aquela mulher que adivinhava por meio do baralho. Esta confirmou tudo o que ele havia visto na companhia do índio. 153 Daí a algunS dias, segundo ele me contou, Rosário ficou assustada com a braveza do gado, o que dificultava a ordenha. José Garcia disse que o iria curar. Ao chegar ao pasto deparou com sinais de feitiçaria. Aturdido, começou a traba lhar imediatamente com seus remédios e o incenso. À tarde apressou-se em ir até a casa de Santiago, mas a preocupação era tanta que se esqueceu dc levar os pró prios remédios. Naquela noite tomaram yagé. Quando a chuma chegou — que chumal Virgen Santísimal Pensei que estava mor rendo! Que exaustão. Eu vomitava sem parar e não podia fazer nada. Senti-me dominado pelas substâncias da feitiçaria. Não conseguia fazer nada, estava a ponto de morrer. Então pedi ao amigo Santiago: ‘Tem incenso? Pelo amor de Deus, me dê um pouco'*. Ele, porém, disse que não tinha nem sequer um grão. Dal tive a sensação de que eu ia engasgar até morrer. Estava sem meus remédios; era o fim. Trabalhei sem parar na chuma do yagé, mas sem resultado. Eu tinha perdido todo meu poder para a feitiçaria. Pedi um pouco de ortiga a Santiago. “Pegue o quanto você quiser“, disse ele. Agarrei um belo galho, assoprei nele e o curei. Curei a ortiga para valer... Então purifiquei, me curei. Cantava sem parar, me limpava, rezava e batia a ortiga em meu corpo, mas com força, com muita força! Daí tudo começou a clarear. As coisas estavam indo embora. Mais uma vez as visões mais feias se afastavam, a força da feitiçaria me deixava. E vi minha fazenda mais bonita do que nunca. Fui envolvido por uma linda visão. Olhei para mim mesmo e vi a feidçaria em três lugares. Aquilo era uma força, uma força para me esmagar, para me obrigar a abandonar a esperança de que não valia a pena cuidar de minha fazenda e que seria melhor desistir dela. Era disso que se tratava, mas consegui me curar. Deus me ajudou. A velha não conseguiu me atingir. Ela é uma feiticeira. Em breve vai querer me matat; mas não conseguirá. Daí a mais ou menos um ano, em 1978, Santiago ficou doente. Perdeu a visão de um olho, enquanto pescava á noite, e começou a sentir tonturas. Não conseguia ficar de pé sem vomitar. Suas pernas incharam A morte parecia imi nente. Ficava sozinho, entoando canções de cura, baixinho, mas, quando tomava yagé, ou não via nada ou tinha visões de milhares de espinhos de ouriços, muito eriçados, como acontece quando o animal está se defendendo. Eles entravam em sua boca, engasgando-o, e em seus olhos, cegando-o. E isso sob a influência do yagé! Que exaustão isso provoca! E as cobras, rãs, lagar tos, jacarés... dentro de meu corpo... E ninguém conseguia tirá-los de lá! Quando eu tomava yagé era só o que eu via. Só isso. Mas quando a gente não está doente vê coisas lindas; pássaros de todas as cores, tão belas como quando a gente vê um bonito tecido e diz: “Oh! gosto deste tecido. Tem cores maravilhosas!“. Então uma pessoa está vendo de verdade e dificilmente sente que está bêbado. A casa dele estava repleta de gente, sobretudo de índios, que bebiam cerveja de milho e de mandioca e, de vez em quando, se entregavam a especulações: quem o enfeitiçara e por quê? Seria um outro xamã que usava yagé e apenas yagé? Ou seria uma feitiçaria que incluía a magia e, portanto, passível de estar acima dos poderes do yagé? 154 José Garcia subiu a montanha até Pasto, a fim de consultar-se com a irmã Carmela, e levou uma vela que havia sacudido por cima do corpo de Santiago. Ela confirmou as suspeitas que circulavam na região onde ele morava: Esteban, um índio Ingano da serra, xamã originário do vale do Sibundoy, enfeitiçara San tiago, usando ao mesmo tempo a magia e o yagé. A inimizade existente entre Santiago e Esteban pareceu-me enfocar e am pliar muitas das tensões provocadas pela expansão da economia nacional na re gião das fronteiras, operando em uma esfera pouco habitual, isto é, a transformação do poder mágico e da aura mágica da “indianidade” em mercadoria. Durante muitos anos xamãs índios da serra, originários do vale do Sibundoy, índioã In- gano tais como Esteban, ganharam a vida percorrendo as pequenas cidades e aldeias da Colômbia, onde vendiam aos brancos e negros ervas medicinais, amu letos, estampas de santos católicos, livros deencantamentos mágicos e seus ser viços de curadores populares. Hoje os índios xamãs do vale do Sibundoy chegam até mesmo a Venezuela, onde o dinheiro é mais abundante do que na Colômbia, e alguns deles, segundo os padrões dos camponeses locais, se tomaram ricos. Ro sário os comparou com os índios das regiões dos contrafortes e das planícies, os quais, disse ela, ignoram a magia e conhecem unicamente suas plantas medici nais, seu yagé e seus próprios tipos de feitiçaria. “Mas os índios da serra”, disse ela, referindo-se a curandeiros como Este ban, do vale do Sibundoy, “conhecem outro sistema, que dá mais dinheiro para outra pessoa, sabe? Eles atravessam a fronteira que separa as nações e vão de um lugar a outro, com seus frutos, suas castanhas e outras coisas, dizendo que sabem curar, quando na verdade são uns charlatães. São astuciosos como ninguém! Gra ças a isto conseguem juntar um bom dinheiro. Vão até a Venezuela, ao Peru... O sistema deles é diferente porque conseguem o dinheiro com mais facilidade e porque a cura deles é uma mentira e não passa de um jeito de enriquecerem fazendo sujeiras!". “E os índios da planície não fazem isso?", perguntei. “Ah! Não! Não! O povo daqui? Não! Não! Essa gente de que eu falo é chegada a viajar. Gostam de uma viagem São tão espertos! Vão por aí, dizendo que sabem curar. E não curam nada! A única coisa que fazem é mistificar e enfeitiçar!” É provável que os índios Ingano do vale do Sibundoy tenham sido curan deiros itinerantes há vários séculos. Frank Salomon descreveu um julgamento, levado a efeito por funcionários espanhóis em 1727, que envolvia um índio da serra, originário de uma aldeia situada nas vizinhanças de Pasto, acusado de enfeiti çar seis parentes e um funcionário espanhol. As testemunhas atribuíram a sobre vivência deles a um curandeiro de Sibundoy, que recorreu a uma planta que provocava visões, provavelmente o yagé* Ao desempenhar semelhante papel, é provável que os curandeiros do Sibundoy agissem como mediadores de um sis- 155 tema pan-andino de cura e de crença mágicas, que atribuía aos índios da selva, habitantes dos contrafortes e das planícies, poderes xamânicos especiais. Era possí vel recorrer a eles por intermédio dos moradores da serra ou através da mediação dos índios que moravam entre a serra e a planície, tais como os Sibundoy. Hoje, em todos os lugares por onde passam e obtêm clientes, é sua imagem mítica de índios na posse de poderes ocultos que lhes garante o sucesso. No entanto, nem todos os índios da Colômbia fazem o mesmo que os curandeiros do Sibun doy. Eles possuem confiança e um orgulho enorme, pois estão fora do alcance de contra-ataques mágicos, graças a sua habilidade e ao conhecimento do yagé e das visões que este provoca ou — o que é mais provável — porque simplesmente insinuam que as coisas se passam assim. Para isso apóiam-se na existência dos xamãs da região dos contrafortes ou da planície, não apenas no que se refere ao yagé, que cresce apenas abaixo do vale, mas no poder supostamente superior dos xamãs, os quais em outras circunstâncias estão abaixo deles, no sentido literal e figurado. As sementes da discórdia entre xamãs como Esteban, no vale do Sibun doy, e Santiago, que habita mais abaixo, nos contrafortes, são plantadas neste solo de contradições peculiares, mas muito firmes, as quais provavelmente ad quirem intensidade na medida em que oportunidades de um mercado cada vez mais amplo favorecem a capacidade dos xamãs do Sibundoy de ganharem mais dinheiro e fama do que os da planície. Por ocasião de suas jornadas de cura, os raizeiros e xamãs do Sibundoy se deparam com um amplo espectro de técnicas de cura e de fantasias demonológicas ocultas nas ansiedades de um povo mais dire tamente integrado á sociedade nacional do que eles. Tomam-se mais cosmopoli tas do que os xamãs da planície, isolados em um bolsão muito remoto da nação; aperfeiçoam tanto o discurso da magia, baseada em um pacto com Satanás, quanto o uso de sua imagem como indios misticamente revestidos de poder. Prisioneiros de sua imagem de pagãos que têm laços inerentes ao oculto, eles ganham a vida a partir dessa imagem, assegurando sua vitalidade na imagi nação popular da nação e para além dela. No entanto, para se apropriarem e se aproveitarem amplamente dessa imagem, os xamãs itinerantes do Sibundoy, tais como Esteban, não apenas necessitam do yagé — e, talvez, dos serviços rituais — dos xamãs da planície, tais como Santiago; necessitam também dos xamãs da planície como objetos míticos, a fim de realizar aquela mitologia, colonialmente inspirada, que confere o poder pagão. Nem é preciso dizer que os xamãs da planície não se sentem satisfeitos com isso. De modo geral desconfiam dos xamãs da serra e até mesmo os desprezam. Consideram-nos trapaceiros e inferiores, excetuando sua capacidade de praticar o mal por meio da magia e de capachos, isto é, pacotes de feitiçaria. Tudo isto culmina com a questão do fornecimento do yagé aos xamãs da serra, ao que se sabe cada vez mais escasso. Os habitantes da planície, tal como Santiago, relu tam em vender-lhes yagé, e ele se mostrou inflexível diante das solicitações de Esteban. Os moradores da planície com quem conversei receiam que, com o 156 yagé, a gente da serra poderá misturá-lo com a magia e os dominará. Graças a isso, entre outras coisas, terá um suprimento garantido de yagé. Por outro lado, recusar seu pedido poderá resultar em morte pela magia daquela mesma gente. É, segundo se imagina, a triste sorte que se abateu sobre Santiago. À medida que a saúde de Santiago se deteriorava até alcançar a iminência da morte, José Garcia envolveu-se como nunca. Até então fora um paciente e uma espécie de discípulo, que lutava o tempo todo para livTar-se da feitiçaria. Agora ele era convocado para curar seu mentor. Certa tarde fui até a casa dele. Estava terrivelmente bêbado e sua mulher implorou- me que o curasse. Contou que ele estava muito mau humorado em relação a ela e a todo mundo. Ficamos lá sentados, conversando, bebendo e, quando caiu a noite, Santiago disse que todos nós tomaríamos yagé — ele, seu sobrinho, seu genro e eu. “Ótimo, estamos todos aqui”, observou. Ele serviu o yagé, cantou para ele e deu a cada pessoa um copo cheio, mas esqueceu- se de mim. Então lembrou-se e me serviu o copo mais cheio que eu já tomara até então. “Ah!“, eu disse, “em nome da Santa Virgem isso há de fazer alguma coisa“. Consagrei o yagé, invoquei Deus e os espíritos dos xamãs índios, Tomás Becerra e Andrés Hinchoa, para que viessem me ajudar, para que curassem aquele yagé, em nome de Tomás Becerra, e assim por diante, pois eram dos melhores bebedores de yagé. Enlão Santiago disse; “Mas quem vai cantar? Ninguém? Bom, cante o senhor, Don José! Não vive cantando só pata o senhor, debaixo desse poncho? Durante o tempo todo em que tomou yagé aqui ficou cantando e curando, escondido debaixo de seu poncho, não é mesmo? Pois então agora se mostre, para vermos se sabe de fato ou não!“. "Muito bem, senor”, respondi, “é o que faremos". Naquele mesmo instante ele caiu no chão, como se estivesse morto. Nós nos levantamos is pressas e deitamos ele em sua rede, mas ele ficou como se estivesse morto. Apenas suas mãos se mexiam. Estava mudo, só falava com as mãos. Os outros acharam que ele ia morrer. Seu genro me implorou para que eu tentasse curá-lo. Então o yagé estava me pegando. Peguei um leque de cura c come cei a curar. A chuma estava chegando em mim. Era lindo e eu comecei a ver em que estado a casa se encontrava. Era um cemitério e estava tendo um enterro. O que estava aconte cendo era uma total aniquilação. Muito bem! Ocupei-me com meus remédios, a chuma pegou todo mundo e foi terrível! O genro dele chorava. "Don José, por favor, por favor, venha me curar porque eu estou morrendo!" Dcbrucci-me sobreele e exorcizei, limpando, varrendo, chupando. Foi a mesma coisa com o sobrinho dele. Foi terrível. Eu ia de um para outro e voltava. Eles logo melhoraram e eu fui atender o amigo Santiago. Trabalhei com ele até as três da madrugada e enlão ele começou a reviver, a falar de novo. "Sim, ha, ha, ha!" Ele assoviava e gritava. “Nós não somos qualquer um, Don José”, ele dizia. “Nós sabemos, não é mesmo, Don José?” Daí então voltava a ficar inconsciente. “Nós sabemos. Eles não podem nos pegar! Não é mesmo, Don José?“ Ele também viu o cemitério inteiro. "Ave Maria", disse, “os mortos estão apodrecendo em todos os lugares". Outros agonizavam, a ponto de morrer. A casa inteira era uma sepultura. Ave Maria! Continuamos a tomar yagé. Finalmente ele disse: "Muito bem. Voltem na terça-feira. Se eles vão nos matar; então eles também morrerão!”. Na terça-feira voltamos a tomar yagé e ele começava a cantar quando, de repente, declarou que tinha uma doença bem no fundo dele e que ia pata a outra sala, para ver se podia curá-la! Levou o leque de cura e podíamos ouvir ele cantando. De repente a vela se apagou e ficou tudo na mais completa escuridão. Figuei lá, nervoso, assustado, certo de que estava para morrer. O amigo Santiago calou-se. Parou de cantar. Curei-me com meus remédios, que passei por todo o meu corpo, assoprando incenso. Acabei melhorando daí a mais ou menos uma hora. Quando minha força voltou comecci a cantar e curar os outros. Cantava e 157 curava, cantava e curava. "Ah, Don José", disse Santiago, “parece que eles estão querendo nos matai; não? Mas eles não vão conseguir! Portanto, vamos tomar mais um pouco e daí veremos se eles têm poder para isso! Tome mais yag/1". Tomamos mais um copo e quando a chuma chegou ele voltou a cair no chão. Dessa vez durou uma hora e meia. Ele levantou, começou a cantar e disse: “Na sexta-feira tomare mos mais um pouco”. Na sexta-feira voltei à casa dele e a chuma foi boa. Pui até Pasto e trouxe de lá água-benta e incenso. Curei o gado, fui uma segunda vez a Pasto, e a irmã Carme la me deu remédios para eu levar a Santiago. As coisas ficaram assim. A doença de Santiago cedeu muito pouco até que, decorrido um mês, o mais apreciado xamã da região dos contrafortes do Putumayo veio e o curou. Era Salvador, filho de uma índia Cofán e de um branco, um cauchero (pequeno co merciante de borracha) da região serrana de Narino, que deixara o meninozinho com os índios. Há muito esperávamos que Salvador aparecesse. Sua jornada foi muito demorada e ele precisava colher rapidamente o arroz, devido à época das chuvas que se aproximava. Foi a notícia que chegou até nós, enquanto esperáva mos um dia após outro. Santiago, enquanto isso, cantarolava para si mesmo sua canção de cura, e o restante das pessoas bebia a maior parte do tempo. O motivo verdadeiro pelo qual Salvador não aparecia, de acordo com Santiago, era o fato de que sua mulher estava receosa. Preocupava-se com sua voz e sua saúde deli cadas, com todos aqueles índios Ingano que viviam nas proximidades de Mocoa e se embebedavam sem parar, como sempre fazem, ao passo que os Cofán mal bebem chicha. “Ela sabe que se ele vier aqui vai beber e então ficará doente. É esse o problema", suspirou Santiago. Ele finalmente apareceu, acompanhado de sua mulher e da mãe dela, a mama sefiora, viúva de um xamã Siona. A mama senora é muito velha, toma yagé sem que nada lhe aconteça e canta lindamente, disse-me Santiago. É ela e unicamente ela quem prepara uma chicha muito espe cial, feita de abacaxi, milho e mandioca, que Salvador oferece aos animais, os quais, por intermédio de suas cantigas de yagé, atrai para os caçadores. Mais tarde me contaram que vieram muitas outras pessoas para a cura com yagé, que durou três noites, e a maior parte delas tomava a bebida. A mama senora também cantou; mi novia (minha noiva), eis como Santiago se referia a ela, com uma risada zombeteira. Dom Apolinar também cantou. Era um velho xamã Core- guaje, sogro de uma das filhas de Santiago, e viera da província de Caquetá. Era uma viagem árdua e até mesmo perigosa, devido às ações que o Exército colom biano desencadeava lá contra as guerrilhas. Santiago melhorou consideravelmente, a não ser por seu olho. Porém não ficou claro o que acontecera de fato com ele ou o que Salvador dissera sobre a causa de sua doença. Seria yagé misturado com magia, segundo dissera a irmã Carmela e José Garcia repetira? Seria culpa de Esteban? Todo mundo dissera algo diferente. À medida que o tempo se passasse, todos modificariam o que haviam dito. 158 Quando voltei daí a um ano, no início de 1979, verifiquei que muita coisa mudara. Santiago estava bastante bem e ativo, mas Salvador morrera, e Rosário, a mulher de José Garcia, encontrava-se muito doente. O sobrinho de Salvador declarou que ele morrera em razão de ter perdido o poder, através das muitas curas que fez para muite gente de fora, sobretudo brancos e negros. Assim, tor nou-se poluído e incapaz de lidar com os ataques de feitiçaria dos xamãs índios da região do rio Napo, no Equador. Rosário tinha virtualmente paralisados o braço e a pema direitos. O braço direito se agitava, e sua fala era ininteligível. Ela parecia desolada e triste. Sem a menor expressão em sua voz, afirmava que o espírito do homem de quem fora noiva aos 16 anos, e que morrera em um aci dente de caminhão, viera assombrá-la e sentava-se em seu ombro direito. Essa fase de doença começou em 1978, segundo ela me contou, quando surgi ram problemas em um dos sítios do casal. Foram roubadas cabeças de gado, e ela teve que trabalhar arduamente na ordenha, enquanto José Garcia e seu filho iam à procura dos animais. Contraiu pneumonia por ocasião de um temporal e foi tratada com antibióticos por um dos médicos locais. Experimentou um certo alí vio, mas começou a sentir-se pesada, com dores de cabeça, a que se seguiu uma paralisia gradual. Voltou a ser tratada pelo mesmo médico, que lhe deu tranqüili zantes, até que Lydia, aquela velha amiga do casal que adivinhava por meio do baralho, convenceu-os a procurar tratamento na capital, Bogotá, onde o diagnós tico foi um derrame cerebral. Recebeu os cuidados necessários, voltou para casa e não conseguia parar de chorar, segundo me disse sua filha. Voltou a Bogotá e ali procurou vários médicos. Um médium espírita disse-lhe que sua doença era parcialmente devida a Deus (uma causa natural) e, em parte, á feitiçaria, agindo juntamente com a causa “natural". Então Lydia, a adivinha responsável por apresentá-los à irmã Carmela em Pasto, em 1973, graças a que eles ingressaram no caminho da riqueza, trabalhou mais uma vez com seu baralho e adivinhou que a doença de Rosário era obra da irmã Carmela! Esta evocara o espírito do noivo de Rosário, morto havia tanto tempo, para atuar como um poder malévolo. Rosário e José Garcia lembraram-se então que Carmela sempre insistira que os poderes dele, tais como foram desenvolvidos em associação com a irmã, eram destinados ao bem da humanidade; ela também afirmava que ele estava adqui rindo um número muito grande de cabeças de gado, muitos sítios e deveria dar os animais e as terras para os pobres, guardando apenas uma pequena parte para si. Carmela se voltara contra ele porque ele se negava a fazer isso, contou-me o casal com muita calma. Ao mesmo tempo, acrescentou José Garcia, Carmela sentia inveja de seu sucesso e agia movida pelo despeito. O próprio José Garcia entendia seus poderes de cura em termos que corres pondiam à denúncia que Carmela fizera de seu sucesso material. Por exemplo, há pouco mais de um ano ele fizera o seguinte pronunciamento: 159 Sim! Eu vi a grandeza deste mundo. É algo de que a gente se lembra, leva em conta e conduz sua vida de acordo com isso. É por este motivo que Deus me ajuda. Deus me escolheu especialmente, para eu ser bem-sucedidoem tudo aquilo que eu desejar, mas não em excesso: fazer grandes coisas, realizar grandes curas... de acordo com minha fé e com o modo como me comporto. Mas sabe que tudo isto não me pertence? Sou apenas o adminis trador dos bens deste mundo. Não tenho nenhum orgulho, não sou como aquelas pessoas ricas a quem a gente cumprimenta e que nem sequer respondem. Sou apenas um adminis trador. O dia que o Pai quisei; ele me chamará à sua presença para que eu preste conta de tudo: “Venha, mayordomol Vamos prestar contas!“. Este sentimento cristão anticapitalista, que corre paralelo à acumulação e posse da riqueza, é igualmente reforçado por outros aspectos de sua filosofia enquanto curador: • O quadro do mundo, evocado por este texto, nos remete a uma ha- cienda feudal, na qual Deus é o senhor e José Garcia o mayordomo — um mordomo que cuida dos domínios de Deus e não um proprietário dos bens deste mundo. Um impulso importante, por detrás da credibili dade desse quadro ou cosmologia, reside no fato de que José Garcia “viu a grandeza deste mundo”, lembrou-se dela e a levou em considera ção. Isto tomou-se patente de modo extremamente vigoroso pelo fato de ele tomar yagé, um remédio e um ritual indígenas. A inter-ligação orgâ nica deste quadro do mundo pressupõe uma hierarquia de reciprocida- des que ascendem ao Ente Supremo. Nessa hierarquia um curador como José Garcia se vê como participante de uma relação de troca com Deus, a Virgem, os santos católicos popu lares e os espíritos dos xamãs índios mortos. Seu poder deriva dessa cadeia de trocas recíprocas, uma cadeia que evoca um passado tomado mítico, por meio das gerações de santos e de xamãs índios. É o poder que pode curar a doença e combater a feitiçaria, conforme depreende mos quando José Garcia descreve este tipo de canto: Não canto como os xamãs, mas canto uma outra cantiga que vem com o yagé; por exemplo, com uma música que ouço. O próprio yagé nos ensina o que cantar... baixo ou alto e dai por diante. Você vê as orações, mas são orações cantadas... com o cântico do yagé. Assim, você faz sua cura através disso; cantando... por exemplo o Magnificat. Você canta o Magnificat sob a influência do yagé, curando os doentes, ou sob a influência da quele que está curando. O Magnificat tem a seguinte letra: “Minha alma está repleta da graça que emana do Senhor e meu espírito se eleva a Deus, meu Salvador. À luz de Seus olhos, agora todas as gerações dizem-me: 'Sejas bem-vindo!’, pois, em mim, grandes coisas se fizeram e, em mim, está o poder onipotente, cuja misericórdia se estende de geração em geração para aqueles que o temem; de meu coração seus braços se estendem para todos os necessitados. Livrai-vos dos poderosos; elevai os humildes. Enchei os famintos de bens e dispensai os ricos, sem nada lhes dar. Em memória de Vossa compaixão, por terdes tomado Israel como Vosso servo, de acordo com Vossas promessas, feitas a nossos pais, Abraão e seus descendentes, por todos os séculos dos séculos... Amém“. É isso o que eu canto, bêbado com yagé. Canto o Magnificat, curo e limpo. Com isso a gente pode curar a feitiçaria, por mais séria que ela seja. Com isso a gente está cantando, entoa o Magnificat, com isso a gente acalma a doença. 160 (Entre as classes populares, no Peru inteiro, escreveu Hermillio Valdizán, juntamente com Angel Maldonado, em sua obra La medicina popular peruana, impressa em 1922, ocorre um grande número de crenças, mais comuns entre os brancos e mestiços do que entre os índios, relacionadas com os perturbados espí ritos do purgatório. Quando tudo o mais fracassa, no sentido de afastar esses espíritos, quando eles, em conseqüência, são os verdadeiros condenados e, possi velmente, pertencem ao próprio demônio, então é preciso cantar o Magnificat. Os autores transcrevem os versos finais: “Despossuí os poderosos; elevai os hu mildes. Enchei os necessitados de bens, deixai os ricos sem nada... Gloria al Padre y al Hijo".*) • A ênfase que o cristianismo coloca na virtude da caridade e na negação dos bens deste mundo emparelha-se com a necessidade que o curador tem de atender os pobres. Um homem como Santiago jamais seria sufi cientemente hipócrita para se incomodar com um discurso de negação dos bens mundanos. Ele os ama. Seu apetite é rabelaisiano. Quanto mais, melhor, e ele não aceita aquele servilismo que José Garcia, o espírito branco piedoso, demonstra. No entanto Santiago não se consi deraria menos cristão ou menos sujeito às manobras do invejoso. O subtexto desse atendimento ao pobre é o campo cósmico subconsciente de vícios e virtudes, nos quais o curador adquire poder através da luta contra o mal. O poder do curador diz respeito a um relacionamento dialético com a doença e o infortúnio. O mal confere poder e é por isso que um curador por necessidade atende os “pobres", ou seja, aquelas pessoas economicamente pobres e atingidas pelo infortúnio. Desse modo é possível compreender a relação entre Deus e o diabo, pois eles não se colocam apenas em oposição, mas em uma sinergia mu tuamente fortalecedora. A percepção que Dante tem do paraíso só é alcançada graças e após a jornada que ele fez ao inferno, onde encontrou Satanás (e, tendo em vista nossos propósitos, convém notar que Dante realizou essa jornada acom panhado de um guia pagão — leia-se um “curador" ou “xamã" —, proveniente de um passado pré-cristão). No entanto essa necessidade de descer e imergir na luta contra o mal pode ser autodestrutiva. A vida de um curador se equilibra no limite dessa estratégia, e é por isso que ele sempre precisa fazer uma aliança com um curador mais pode roso. José Garcia os encontrou na pessoa da irmã Carmela, na cidade da mon tanha e no xamã índio, Santiago, na borda das florestas da planície. O mais poderoso curador poderá, no entanto, matá-lo. • De todas as reciprocidades existentes nesse quadro orgânico do mundo, com sua hierarquia de formas e emaranhado dialético do bem e do mal, a que mais ressalta é aquela que ocorre entre o cristianismo e o paga nismo, equivalente àquela que se dá entre Deus e o demônio. Os pode res de José Garcia derivam dessa reciprocidade de contrários. É uma antifonia, estabelecida em sua particularidade concreta, bem como em 161 suas abstrações harmoniosamente cadenciadas, pela conquista européia do Novo Mundo, ocorrida alguns séculos antes, como se pode testemu nhar, por exemplo, nos escritos dos franciscanos, que abriam as trilhas para Cristo nas selvas ao leste de Quito e Pasto. Além do mais, essa antifonia provavelmente existia na sociedade transandina antes da che gada dos espanhóis, bem como na relação entre os habitantes do alti plano, no império Inca, e os índios das florestas. É naquilo que, com muita hesitação, podemos denominar a “lógica” da cura e da história de vida de José Garcia (conforme ele a narra) que podemos ver essa moldagem de oposições, esse crescimento de um esplendor apocalíptico atiçado pelas oposições. No entanto, com outros povoadores da floresta, bem como com Manuel Gómez, um velho conhecido meu do rio Guaymuez, essa padronização pode assumir uma expressão mais vividamente explícita, tal como ocorreu na visão que Manuel teve, ao tomar o yagé. Nela um xamã índio, que distribuía o yagé, foi visto transformando-se numa onça e, em seguida, no demônio. Então Manuel morreu, e em sua ascensão ao céu, tal como se deu no Paradiso de Dante, ele alcançou a glória, após transcender o mal, ganhou as bênçãos do Se nhor, foi curado e obteve algo mais do que uma simples cura. Ao enfrentar a feitiçaria da magiapraticada contra ele há muitos anos, José Garcia tomou-se não somente um curador, que podia transformar o mal; tomou- se também um homem rico aos olhos de seus vizinhos. Em uma sociedade na qual as pressões a favor da acumulação individual do capital encontram a oposi ção daforça da inveja, contra-hegemônica, sua carreira de homem empreendedor exigiu o desenvolvimento de sua capacidade espiritual de cura, em um ritmo cada vez mais arrebatado, de tal modo que ele pudesse resistir ás farpas dessa inveja. Finalmente, conforme ele já dissera em uma ocasião, chegara o dia em que seu pai o chamou: “Venha, mayordomo! Vamos prestar contas”. Desde o início da doença de Rosário, José Garcia parou de tomar yagé e de visitar Santiago. Rosário sempre se mostrara cética e talvez um tanto temerosa pelo fato de ele confraternizar com os índios e, sobretudo, tomar yagé. Carmela, bem como outros médiuns, freqüentemente o preveniam em relação ao fato de ele exceder-se no consumo do yagé. Agora ele também parecia assustado. Lydia disse-lhe que parasse ou que o tomasse raramente, pois quando al guém está bien chumado os outros tomadores de yagé “jogam" uma feitiçaria nele. “Certa vez caí no chão”, ele me confidenciou. “Don Santiago bateu em mim com galhos de urtiga. Tomei um copo cheio e vi alguns índios de um lugar distante do Putumayo, com os rostos pintados de achiote. Eram eles que tinham feito aquilo comigo!” “De uma outra vez", ele prosseguiu, “um vento forte soprou, vindo não se sabe de onde. Chegou a apagar a vela. Estranho... Cantei o Magnifi- cat. Defendi-me. Continuamos a curar". Rosário ouviu falar de famoso médico de Popayán, uma cidade serrana ao 162 noite de Pasto. Ela e José Garcia foram consultar-se com ele várias vezes. O tratamento era doloroso. Segundo ela, o médico aplicou injeções em sua língua em várias ocasiões. Era também um tratamento caríssimo. Formado por uma universidade renomada, o médico aprendera sua especialidade na Rússia e em muitos outros países estrangeiros, frisava Rosário. Então ela ficou conhecendo uma médium espírita nova no Putumayo, uma mulher branca do Brasil, que não permitia contatos pessoais. Rosário comunicava-se com ela através de uma inter mediária, amiga de ambas. A brazilera conseguiu livrar Rosário do espírito que flutuava em seu ombro direito. Afirmou que Carmela havia provocado a doença de Rosário por meio da magia e acrescentou que ela também era a culpada pelo fato de Santiago ter estado à morte. Era por isso que ele ainda padecia de can saço, vertigens e tinha um problema em um dos olhos. Devo acrescentar, a esta altura, que Carmela (grande amiga do bispo, conforme José Garcia dissera), havia alguns meses, fora mandada embora de Pasto graças aos esforços combina dos de médicos, da polícia e da Igreja e lutava para manter-se em uma pequena aldeia situada a alguns quilômetros da cidade. Sua estrela se apagara, pelo menos no momento. Tentei convencer José Garcia a acompanhar-me a visitar Santiago, mas ele se recusou. Assim, seu filho, Pedro, foi em minha companhia. Seguimos pela trilha e entramos na floresta, quando a noite caía. Ele tinha 14 anos e tomava yagé desde os oito. Passamos pela fazenda de seu pai. O garoto contou-me que o gado, bem como as bananas e outros produtos agrícolas, sempre corria o risco de ser roubado. Recentemente seu pai fora atacado por um trabalhador que pedira um salário maior e revidou com seu facão. O trabalhador foi embora, roubou o cachorro preferido da família, castrou-o e cortou suas orelhas. Ao que parecia, Pedro temia constantemente a feitiçaria. Por que ele tomava yagé? Ele declarou que uma pessoa o tomava para ver quem a estava enfeitiçando, para clarear a própria situação e, ao mesmo tempo, para limpar os males provocados por al guém Sentia medo de andar por aquele caminho â noite. Ao chegarmos a uma bifurcação, seguimos pela trilha que entrava na floresta. O sol se punha. Chega mos ao rio e atravessamos a pinguela feita de bambu e arame, suspensa a nove metros acima de uma catarata que despencava pelas pedras. Tinha uns três me tros de largura e precipitava-se por entre as águas reluzentes. Perguntei a Pedro o que via quando tomava yagé. “Vi um homem fazendo o que chamamos de brujerias (feitiçaria) em nossa fazenda", respondeu. Ele queria ver todo nosso gado morto e nós pedindo esmola. Ele queria que ficásse mos como eu estava vendo. Daí a pouco vi meu pai, e seus maus amigos queriam ver ele como se fosse um feiticeiro como eles. Então vi meu pai de cueca, com um rabo (igual ao do demônio), como se fosse uma corrente, e o resto do corpo nu. Foi o que vi. Os outros disseram que era assim que o queriam. E riram quando viram o que eu vi. Queriam levar 163 meu pai embora. Disseram que queriam que eu visse exatamente daquele jeito, como eles, fazendo o mal. Mais tarde a irmã Carmela disse que o homem que eu vira fazendo bnixaria era o feiticeiro. Ela ouve os espíritos e consegue curar através deles. Ela chama os espíritos... como o de Tomás Becerra (o xamã índio, já morto, que deu yagé ao pai de Pedro pela primeira vez). Mais tarde, tomando yagé, vi meu pai curando a fazenda. A chuma me pegou e me levou até IÂ. Achei que eu também ia sofrer. Então vi meu pai se transformando em pombo e, na força do yagé, vi a irmã Carmela e meu tio Antonio, todos vestidos de branco, lim pando a fazenda. Certa vez vi a Virgem Maria. Passei para o outro lado e a encontrei parada, como uma estátua. Rezei e chorei. Daí a pouco a chuma mudou e vi a Virgem como se fosse uma pessoa igual a qualquer outra. Então chamei meu pai e disse: “Veja! Veja! A Virgem do Carmo!”. E ele perguntou: “Onde está ela?” Ele também sentiu vontade de chorar, mas disse para mim: “Não chore. Por que está chorando7 Não está vendo a Virgem do Carmo?”. E lá estava ela, me abençoando, com um rosário nas mãos. A partir daí a chuma mudou e não vi mais nada. Eu estava chorando porque pedia o perdão dela... para todos nós. Então ela me aben çoou... Meu pai contou que o mesmo aconteceu com ele, só que ele passou por cima de um abismo, apoiado em um cajado pequenininho. Não conseguia enxergar o fundo do abismo, mas a Virgem levou ele até o outro lado sem que nada de mal acontecesse. Pedro fez dois desenhos dessas visões e mais tarde os comentou: A Virgem Este é o rio para onde eu ia e que tinha de atravessar. Está é a pinguela de bambu que eu tinha de atravessar. Quando cheguei na metade quis voltar. Este é o sol que ilumina tudo, que traz sua luz para o lugar onde estamos. A face do sol está na frente da Virgem. Na frente do sol está o chão amarelo. Aí está a pena (peanha) e a Virgem está de pé nela. Tudo isto é a pena. Foi onde eu encontrei a Virgem... parecia uma estátua de santo feita de gesso. E ela ficou viva, como se fosse uma mulher, e me deu sua bênção. (O arame farpado na frente do desenho é a cerca de uma fazenda. Ao interrogar Pedro, pareceu-lhe que a Virgem estava em uma fazenda, no campo onde o gado vai pastar.) O Feiticeiro Este desenho consiste de três partes; 1. canto superior esquerdo; 2. canto superior direito e 3. parte inferior. 1. Este é o rosto de um daqueles índios maus. Vi três, todos com o mesmo rosto, igual ao dos índios do vale do Sibundoy. 2. Então eu me voltei para a fazenda e vi um vizinho colocando coisas de feitiçaria (um capacho ou pacote de feitiçaria) dentro do tronco podre de uma árvore. 3. Este homem está vestido apenas com as cuecas, segura o rabo do demônio e uma vassoura com a mão esquerda e o capacho com a direita. O capacho contém pó de ossos humanos, retirados do cemitério, tetra do cemitério, cabelo humano etc... É este homem, Sán- chez (um vizinho), que queria ver meu pai fazendo feitiçaria; queria ver do jeito que viu. Daí a um ano, no mesmo lugar da estrada e quando o sol se punha, recordei nossa conversa. Ele voltou-se para mim e tirou uma garrucha debaixo da camisa. “Sim”, disse “e agora tenho isto”. 164 Perguntei à mãe dele, Rosário, se ela havia pensado em procurar tratamento com um xamã índio como Santiago. Ela deu um muxoxo. “O índio é um bruto, oíndio não entende nada. Quando se embriagam, peidem a razão; onde quer que sintam vontade de vomitar, vomitam e então deitam e dormem. Não são como as pessoas educadas. Os índios... Ha! É por isso que não quero nada com eles. Fico longe deles...” “E José, seu marido?", perguntei. “Bem... ele está contente com Santiago. Aprendeu as idéias deles. Isto me deixa aflita. Isto me aflige de verdade porque não aceito. Ele está com essa idéia. São amigos velhos. É o yagé." “Mas que idéia?” “É que ele aprendeu os costumes deles, não? O sentimento, o genio (genio pode significar temperamento, brilho, gênio). “Lá em Sibundoy”, ela prosseguiu, “tem um índio que sabe falar catorze línguas. Esqueço o nome dele. É muito capaz. Porém, quando chega o carnaval, é o índio mais porco que existe. Ele se emporcalha, cai na lama, se suja todo, dança na lama, cantando. Põe uma daquelas máscaras índias, pois normalmente usa as roupas de um branco. Aí chega o tempo do carnaval, os índios põem máscaras de índios, dançam, bebem chicha, brigam, se espojam na lama como porcos. É por isso que eu digo que educar os índios é um desperdício. Puxa! Ele fala catorze línguas! Não é pouco!”. O irmão de Rosário chegou e começou a falar da recente visita dela ao santuário do Senhor dos Milagres, na cidade de Buga, a centenas de quilômetros ao noroeste, no vale do rio Cauca, e que é uma região agrícola. Trata-se de um santuário popular e, de acordo com Rosário e seu irmão, ele se originou ao ser descoberto por uma lavadeira índia, há muitos e muitos anos, quando ela estava economizando dinheiro para comprar uma imagem de Cristo. Ela trabalhava na margem do rio, em Buga, quando chegou a polícia, que levava um homem para a prisão, devido ao fato de ele não ter pago uma dívida. Compassiva, a índia deu ao homem o dinheiro necessário para sua liberdade e, ao voltar a lavar roupa, deparou com um pedaço de madeira que descia o rio. Nele se encontrava escul pida grosseiramente a figura de Cristo na cruz. Ela o tirou da água e a cada dia que passava a figura assumia traços cada vez mais perfeitos. O bispo de Popayán condenou aquilo como uma heresia e enviou gente para queimá-lo. No entanto ele resistia às chamas, transpirava, assumia uma semelhança cada vez maior, até que a Igreja reconheceu que se tratava de uma imagem verdadeiramente mila grosa, descoberta por uma índia para a redenção da sociedade colonial, há milha res de anos, em um tempo mítico. 165 8 Realismo mágico O poder do imaginário suscitado pelo infortúnio e sua cura, no caso da doença de Rosário e José Garcia, é um poder que adquire existência quando uma história de vida se ajusta como uma alegoria aos mitos da conquista, da selvageria e da redenção. A esta altura deve ter ficado claro que a fé religiosa e a magia envolvi das nesse processo não são místicas ou programáticas e, certamente, não consti tuem uma adesão cega a uma doutrina ofuscante. Constituem, ao contrário, uma epistemologia imagética que entrelaça a certeza com a dúvida e o desespero com a esperança, e na qual o sonho — nesse caso o de pobres camponeses — reela- bora o significado do imaginário de que instituições de classes dirigentes, tais como a Igreja, se apropriaram, tendo em vista a tarefa de colonizar fantasias utópicas. Ao objetivar essa realidade através do real maravilloso ou realismo mágico, a literatura latino-americana moderna constrói uma ponte de mão única direcio nada para a literatura oral, mas ainda assim, segundo me parece, encontra dificul dades em subtrair-se àquela mão pesada contra a qual Alejo Carpentier reagiu, no surrealismo parisiense — a saber, o esforço de criar a magia onde podia existir unicamente uma forma metaforizada. O surrealismo congelou o tempo e suprimiu toda a narrativa das composições previsíveis da realidade burguesa por meio de formas tiradas dos sonhos e dos artefatos descontextualizados (e, portanto, ainda mais suneais) do mundo primitivo, tal como ele foi percebido de relance e com imaginação graças às máscaras africanas e objetos semelhantes exibidos no Tro ca de to. Pois bem, Carpentier descobriu que não precisava desses artefatos, pois nas ruas, campos e na história do Haiti o maravilhosamente real o encarava de frente. Lá tudo isso era vivido, era cultura, maravilhosa e, no entanto, comum. Sua descoberta do real maravilloso em 1943 traz todas as marcas do pró prio maravilhoso. Ao descrever como, após voltar de Paris, ele tropeçou nos fatos ordinários do extraordinário, Alejo Carpentier escreve o seguinte: 166 Isto se tomou particularmente evidente para mim por ocasião de minha estada no Haiti, ao eftoontrar-me diariamente em contato com aquilo que poderiamos denominar o mara vilhosamente teaL. Dei-me conta, além do mais, que essa presença e essa foeça do maravilho samente real não pertencia unicamente ao Haiti, mas constituía um patrimônio de toda a América, cujo inventário da cosmogonia ainda precisa ser terminado. O maravilhosamente real é encontrado a cada passo nas vidas daqueles que inscreveram datas na história do continente e deixaram nomes ainda gerados por ela: os exploradores da Fonte da Eterna Juventude... Devido à virgindade de sua paisagem, de sua formação, de sua ontologia, da fantástica presença do índio e do negro, devido i revelação que sua descoberta constituía e i fecunda síntese que ela favorecia, a América está longe de ter exanrido sua riqueza de mitologias.1 Mas por que lo real maravilloso toma-se uma categoria tão importante no consciente das escolas literárias a partir de 1940, após quatrocentos anos de ela boração de mitos e de magia na cultura latino-americana? O despertar dessa sensi bilidade para a qualidade mágica da realidade e para o papel do mito na história é, talvez, uma indicação daquilo que Emst Block denominou “contradições não- sincrônicas", e é um solo feito para que dele brotem “imagens dialecticiais”, con forme a terminologia empregada por Walter Benjamin, para quem (e aqui cito o ensaio de Susan Buck-Morss sobre as notas que ele escreveu em Passagenwerk) o sonhar coletivo do passado recente surgiu como um gigante adormecido, pronto para ser despertado pela geração presente, e o poder mítico de ambos os estados de sonho (o da geração recente e o da geração presente) foram afirmados; o mundo reencantou-se, mas apenas para romper com o encantamento mítico da história e, na verdade, para reaptopriar-se do poder conferido aos objetos da cultura de massa, que se tomaram símbolos utópicos do sonho.2 A contradição não-sincrônica ocorre quando mudanças qualitativas no modo de produção de uma sociedade animam imagens do passado, na esperança de um futuro melhor. Na Alemanha, o fascismo canalizou essas imagens e essas espe ranças e, de acordo com Bloch, o empobrecimento da esquerda em relação á fantasia revolucionária a tomou cúmplice de sua própria derrota. Do mesmo modo Benjamin censurou seus companheiros da esquerda; o materialismo histórico po deria tomar-se vitorioso na luta ideológica “se ele acolhesse os serviços da teolo gia, a qual hoje, conforme sabemos, anda mirrada e precisa ser mantida fora do alcance do olhar”.3 Ele argumentou que à persistência de formas mais antigas de produção, no desenvolvimento do capitalismo, correspondiam imagens que en- tremesclavam o velho e o novo como ideais que transfiguravam a promessa ofe recida pelo presente, mas que este bloqueava. Essas imagens utópicas, embora estimuladas pelo presente, reportam-se ao passado de modo radical — aquilo que Benjamin denominou “pré-história”, isto é, uma sociedade sem classes.4 Os fas cistas se mostravam dispostos e tinham a capacidade de explorar esses sonhos, mas isto não significava que o mito e a fantasia fossem necessariamente reacio nários. Ao contrário, as imagens continham sementes revolucionárias, que o solo arado
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