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DOENÇA MENINGOCÓCICA – PARTE 1 Introdução Causada pelo bacilo gram-negativo Neisseria meningitides é uma importante causa de morte em crianças, pela dificuldade diagnóstica e rápida progressão da doença. Neisseria está presente nas vias aéreas em portadores assintomáticos, podendo causar a doença quando penetra através da mucosa da nasofaringe e atinge a corrente sanguínea em indivíduos suscetíveis. Pode evoluir como septicemia ou meningite. Esta distinção é importante pela diferença na terapia entre os dois quadros. SEPTICEMIA MENINGOCÓCICA - MENINGOCOCCEMIA O quadro clínico se desenvolve a partir da ativação e estimulação contínua do sistema imune através da liberação de citocinas pró-inflamatórias. Este processo ocorre pela ação direta da bactéria, pela liberação de endotoxinas da parede bacteriana e, indiretamente, pela ativação de células inflamatórias. Epidemiologia - Morbidade/Mortalidade Meningite isolada tem melhor prognóstico que a septicemia meningocócica. A doença meningocócica tem taxa de mortalidade de 10% em países desenvolvidos, mas atinge valores mais altos em países em desenvolvimento, sendo de 20% no Brasil. - Sexo A doença invasiva é mais comum em meninos durante a infância; esta relação diminui com a idade. - Idade A maior incidência é na faixa etária de 6 meses a 2 anos. Estes pacientes perderam os anticorpos maternos e ainda não amadureceram seu sistema imunitário humoral. Outro pico de incidência, embora menos grave, ocorre na adolescência, onde o comportamento típico desta fase favorece agrupamentos. Fatores de Risco - Contato íntimo com paciente com doença invasiva; - Doença respiratória viral recente; - Fumante ativo ou passivo; - Asplenia anatômica ou funcional; - Suscetibilidade determinada geneticamente: variações genéticas de opsoninas plasmáticas que participam da ativação do complemento são responsáveis por doença meningocócica invasiva; baixos níveis de fator de necrose tumoral e altos níveis de interleucina 10 estão associados à doença meningocócica fatal; mutações em fatores de coagulação aumentam o risco de complicações trombóticas que necessitam amputações ou enxertos cutâneos, mas não aumentam a mortalidade. Quadro Clínico - Febre; - Exantema - maculopapular no início e, a seguir, evoluindo para púrpura ou petéquias em 80% dos casos. Em 13% dos pacientes o exantema permanece maculopapular e, em 7% não ocorre exantema. - Vômitos; - Cefaléia; - Mialgia; - Dor abdominal; - Taquicardia – em geral, indica a necessidade de mais líquido, mas pode ser causada por febre e medicações; - Hipotensão; - Extremidades frias; - Nível de consciência - normal no início do quadro. Confusão, extremidades frias e aumento da taquicardia assinalam a iminência de hipotensão. O aumento da freqüência respiratória indica edema pulmonar ou choque. Os sintomas iniciais são indistinguíveis de doenças virais, principalmente quando a mialgia é importante. Os sintomas de septicemia e meningite podem ocorrer juntos, tornando difícil a distinção do quadro de depressão do nível de consciência devido à hipotensão (septicemia) ou à hipertensão intracraniana ocasionada pela meningite. O quadro clínico da septicemia meningocócica é causado por quatro alterações básicas: extravasamento capilar, coagulopatia, distúrbio metabólico e falência do miocárdio. Extravasamento capilar Entre 2 a 4 dias do início da doença há aumento maciço da permeabilidade vascular com perda de albumina e outras proteínas plasmáticas, o que resulta em hipovolemia. A correção da hipovolemia, em casos graves, requer volumes altos nas primeiras horas, o que pode resultar em edema pulmonar que deve ser tratado com ventilação mecânica, já que a correção volumétrica é essencial. O extravasamento capilar é o evento clínico mais importante, mas sua fisiopatologia não é clara. A hipótese mais provável é que o meningococcus e neutrófilos causem a perda da carga negativa de moléculas de glicosaminoglicans, presentes no endotélio vascular, o que causaria a diminuição da rejeição endotelial à albumina, pela carga negativa desta, permitindo o seu escapamento. Coagulopatia Na meningococcemia estão presentes, simultaneamente, a tendência à hemorragia e trombose na microvasculatura da pele, frequentemente em distribuição tipo luva-meia, que pode levar à necessidade de amputação de membros e dedos. O comprometimento da coagulação se dá por 3 mecanismos: - Lesão endotelial resulta em agregação plaquetária, que junto à vasoconstricção, inicia o processo de trombose intravascular; - Proteína C em baixos níveis causa púrpura fulminante. Em alguns pacientes, mesmo com níveis baixos de proteína C, não ocorre o exantema, o que ainda não tem explicação; - O sistema fibrinolítico está com função reduzida, pela diminuição de plasminogênio e aumento dos níveis do inibidor do ativador de plasminogênio. Distúrbios metabólicos Estão presentes: acidose metabólica profunda, hipocalemia, hipocalcemia, hipomagnesemia e hipofosfatemia, hiperglicemia. Falência do miocárdio O comprometimento miocardico na meningococcemia é multifatorial, mas evidências apontam para a presença de fatores depressores do miocárdio, ainda não identificados. A lesão miocardica é identificada pela redução da fração de ejeção e níveis plasmáticos elevados de troponina; o quadro clínico apresenta ritmo de galope, pressão venosa central elevada e hepatomegalia. O comprometimento da função miocardica permanece mesmo após a restauração do volume sanguíneo e correção dos distúrbios metabólicos. Laboratório - Hemograma – leucocitose. Não é um marcador confiável porque pacientes podem não apresentar aumento importante de leucócitos, embora a leucopenia indique pior prognóstico. - Proteína C-reativa – aumentada. - Alterações de coagulação – consumo dos fatores de coagulação. - Distúrbios metabólicos – hipopotassemia, hipocalcemia, hipomagnesemia, hiperglicemia e acidose metabólica. - Teste do látex – alta sensibilidade e especificidade, mas também apresenta alta taxa de resultados falso-negativos. - Reação da polimerase em cadeia – em sangue ou líquor fornece diagnóstico rápido. - Culturas de sangue, garganta, líquor e aspirados de pele – podem ajudar no diagnóstico, mas podem ser negativos após uso de antibióticos. Punção lombar Confirma a presença de meningite, identifica a bactéria causadora e a sensibilidade antibiótica. Seus achados são: - Neutrófilos - níveis de 100 a 60 000 células/ml; - Proteínas – 100 a 1000mg/ml; - Glicose - <60% do nível de glicose plasmática; - Gram – positivo em até 60% dos casos, mesmo após uso de antibiótico; pode ser negativo em caso de uso anterior prolongado de antibiótico. Embora útil a punção apresenta contra-indicações: - Convulsões focais ou prolongadas; - Sinais neurológicos focais; - Exantema purpúrico ou petequial extenso; - Escala de Glasgow <13; - Pupilas dilatadas ou assimétricas; - Reflexos oculoencefálicos alterados; - Postura ou movimentos anormais – descerebração ou decorticação; - Alterações da coagulação; - Papiledema; - Hipertensão; - Sinais de herniação iminente – pulso lento, aumento de pressão sanguínea, respiração irregular. Além desses fatores citados acima, em pacientes com depressão do nível de consciência ou choque, a punção lombar não deveser realizada e o tratamento iniciado imediatamente. Em pacientes com suspeita de hipertensão intracraniana, tomografia normal não é indicação de pressão normal em meningite. Tratamento Engloba o combate à infecção com antibiótico, ao choque e à hipertensão intracraniana. Os seguintes fatores indicam a gravidade do quadro com possibilidade de rápida deterioração: - Choque; - Ausência de meningite; - Exantema rapidamente progressivo; - Leucopenia; - Coagulopatia; - Deterioração do nível de consciência. Antibióticos A sua administração deve ser iniciada imediatamente quando há suspeita de doença meningocócica. Não se devem esperar exames confirmatórios e o esquema antibiótico, no início do quadro, deve cobrir todas as possibilidades etiológicas: doença meningocócica invasiva, meningite meningocócica e a causada por outras bactérias. Esquema empírico que cobre todas as possibilidades, de acordo com a faixa etária: - Neonatos - Ampicilina e Cefotaxima; - 1 a 3 meses – Ampicilina e Cefotaxima com ou sem Vancomicina (quando há suspeita de Pneumococcus resistente); - Lactentes com >3 meses, crianças e adultos – Cefotaxima ou Ceftriaxone com ou sem Vancomicina. Em casos comprovados de meningococcemia o antibiótico de escolha é a Penicilina; em pacientes alérgicos, Cefotaxima ou Ceftriaxone. Choque O paciente deve ser considerado em choque quando apresenta extremidades frias, enchimento capilar prolongado e taquicardia. O tratamento consiste em: Inicialmente devem ser realizados os procedimento de suporte básicos, incluindo o uso de oxigênios, 10 a 15L/min, através de máscara e administração de antibióticos. 1) Reposição de volume: - Administração de soro fisiológico ou albumina, em bolus de 20 ml/kg; este volume será repetido até que haja redução da freqüência cardíaca e melhora da perfusão periférica. Em alguns casos podem ser necessários volumes de 100 a 200ml/kg; estes pacientes necessitarão de suporte ventilatório. Há controvérsias sobre o tipo de fluido a ser usado, soro fisiológico ou albumina, não sendo possível uma indicação precisa. Em alguns estudos, a albumina mostrou reduzir a mortalidade, por isso, existe uma recomendação, não baseada em evidências, do uso de 20 ml/kg de albumina para cada 40ml/kg de soro fisiológico. Monitorizar freqüência cardíaca, pressão sanguínea, tempo de enchimento capilar, amplitude da pressão de pulso, dosagem de lactato e saturação venosa mista – auxilia na determinação da reposição volumétrica adicional, lembrando que após a administração inicial de volume pode ser atingido um estado de equilíbrio, mas o extravasamento capilar continua, por isso, a necessidade de avaliação contínua. Lembrar ainda que a taquicardia indica, geralmente, necessidade de mais volume, mas pode ser causada por febre e medicações. 2) Intubação endotraqueal e Ventilação assistida – indicadas quando o paciente apresenta sinais de choque após ter recebido mais de 40ml/kg, porque a continuação da infusão de líquidos pode levar ao edema pulmonar. Há casos em o volume total de líquidos administrados, nas primeiras horas, é >dobro do volume sanguíneo circulante, por isso, a necessidade de monitorização rigorosa e instalação de suporte ventilatório. Alguns cuidados devem ser tomados durante a intubação: - A sedação pode causar vasodilatação, piorando o choque – corrige-se com bolus de soro fisiológico e, se não houver boa resposta, usa-se vasopressores; - Quetamina – pode ser usada na ausência de hipertensão intracraniana, pelos seus efeitos hemodinâmicos mais leves; não use etomidato porque esta droga inibe a liberação de corticóide; - Atropina – inibe a bradicardia reflexa que piora o choque. 3) Correção dos distúrbios metabólicos e eletrolíticos – da acidose, hiperglicemia, hipocalcemia e hipomagnesemia. 4) Suporte inotrópico - pacientes que não respondem à infusão de volume, mesmo com administração repetida se soro fisiológico, necessitam de suporte inotrópico: - Noradrenalina – é o vasopressor de primeira linha, administrada através de veia central; - Dopamina – 10 a 20 mcg/kg/min, através de veia periférica. - Dobutamina –10 a 20 mcg/kg/min; caso persista a hipotensão, administrar adrenalina – 0,1 a 5 mcg/kg/min. Vasopressores em doses excessivas podem comprometer a perfusão periférica. Correção dos distúrbios de coagulação e anemia – com sangue e plasma fresco: - Concentrado de hemácias – quando nível de hemoglobina <7; - Plaquetas – manter nível de plaquetas em 20 a 50 000, sem sangramento evidente e >50 a 100 000, em caso de sangramento. Hipertensão intracraniana O quadro de hipertensão deve ser considerado na presença de diminuição do nível de consciência, sinais neurológicos focais, hipertensão, bradicardia e agitação. A conduta deverá ser: - Suporte básico; - Antibiótico; - Correção do choque – quando estão presentes choque e hipertensão intracraniana, o choque deverá ser corrigido inicialmente, para que oxigênio e nutrientes sejam liberados para o cérebro; - Manitol – 0,25g/kg, EV, durante 10 minutos, seguido de furosemida, 1 mg/kg; - Intubação e ventilação – com o uso de sedação, relaxantes musculares e elevação da cabeça do paciente; - Correção dos distúrbios bioquímicos. Terapia experimental para septicemia meningocócica - Agentes anti-endotoxina; - Anticorpos monoclonais contra fator de necrose tumoral; - Corticóides – como antagonistas da ativação de leucócitos; é comum o seu uso em doses de: 5 a 10mg/kg/dia de 8/8horas, com dose máxima total de 300mg/dia; - Vasodilatadores periféricos – prostaciclina; - Proteína C e Proteína C ativada – para tratamento de coagulação intravascular disseminada; - Oxigenação por membrana extra-corpórea – para quadro de síndrome de dificuldade respiratória aguda. Nenhuma destas condutas provou redução de morbidade e mortalidade. Tratamento cirúrgico Fasciotomia – em casos severos com gangrena periférica iminente e aumento da pressão de compartimento; esta medida pode preservar membros e dedos. Quando o edema é acentuado ou a perfusão dos membros é prejudicada, a medida da pressão de compartimento e análise dos pulsos periféricos deve ser realizada com Ultra – sonografia Doppler. A amputação precoce de membros deve ser evitada porque pode ocorrer recuperação tecidual. Complicações - Insuficiência cardiorespiratória – necessita intubação traqueal e suporte inotrópico; em casos refratários ao tratamento convencional utiliza-se ECMO; - Insuficiência renal - tratada com hemofiltração, hemodiálise ou diálise peritoneal; - Gangrena periférica – pode resultar em amputação e enxerto; - Distúrbios imunológicos – resultando em artrite, pericardite e pneumonite, 10 a 14 dias após a infecção primária; - Síndrome do compartimento peritoneal – devido a escapamento capilar abdominal, requerendo o uso de drenagem. Prevenção Quimioprofilaxia Consiste na administração de antibióticos a contatos de alto risco: - Todos os contatos familiares; - Contatos durante 7 dias antes da doença, nas seguintes situações: - Creches ou jardim de infância; - Secreções – contato direto através de beijo, uso de escova de dentes, uso de talheres ou estreito contato social; - Ressuscitação boca a boca ou contato durante intubação endotraqueal; - Dormir ou comer no mesmo cômodo que o paciente. Antibióticos Antibiótico Idade DoseRifampicina Adulto >1 mês <1 mês 600mg de 12/12horas – durante 2 dias 10mg/kg de 12/12 horas – durante 2 dias 5mg/kg de 12/12 horas – durante 2 dias Ceftriaxone >15 anos <15 anos 250 mg IM - dose única 125mg IM – dose única Ciprofloxacin >18 anos 500 mg – dose única Imunização Vacina conjugada quadrivalente (A, C, Y, W-135) – indicada de 11- 12 anos e no primeiro ano de faculdade para alunos que morem em alojamentos conjuntos. Esta vacina também é indicada para pacientes imunodeprimidos, com asplenia anatômica ou funcional e com deficiências dos componentes terminais do complemento. Vacina conjugada contra meningococo C – indicada para lactentes a partir de 2 meses, aplicada em esquema de: <1 ano: 3 doses, com intervalo mínimo de 1 mês entre as doses; >1 ano, dose única. Indicada para contatos familiares e membros da equipe de saúde expostos a secreções orais, como intubação. Os antibióticos usados são Rifampicina, Ceftriaxone e, somente em adultos, Ciprofloxacina. Prognóstico A mortalidade da septicemia meningocócica é maior que a meningite meningocócica isolada. Entre os sobreviventes há possibilidade de seqüelas. Algumas medidas podem melhorar o prognóstico: - Reconhecimento da doença e tratamento imediato, com ênfase na terapia contra o choque e uso precoce de antibióticos; - Considerar qualquer criança com exantema petequial ou purpúrico que não clareia com compressão, como tendo doença meningocócica e instituir tratamento. REFERÊNCIAS: 1) Faust S, CathieK. Meningococcal Infections. www.emedicine.com. Acesso: 07/09/2007; 2) Kumar, A, Gaur, AH. Meningitis Bacterial. www.emedicine.com. Acesso: 07/09/2007; 3) Branco RG, Amoretti CF, Tasker RC. Meningococcal disease and meningitis. JPediatr (Rio J) 2007; 83 (2Suppl): S46-53. 4) Farhat CK, Marques SR. Doença Meningocócica. In: Farhat CK, Carvalho LHFR, Succi RCM, editores. Infectologia pediátrica. São Paulo: Atheneu; 2007.p. 413 – 429. TANHA ALMEIDA SCHMIDT – E-MAIL: tanha.almeida@terra.com.br
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