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1 Os Nu´meros Naturais Neste cap´ıtulo estudamos os nu´meros naturais. Alguns autores assumem o nu´mero zero como um nu´mero natural, outros na˜o, dependendo do tipo de construc¸a˜o e de utilizac¸a˜o desse conjunto. Neste livro, o zero pertence ao conjunto dos nu´meros naturais (que denotaremos por N). Assim, N = {0, 1, 2, 3, . . .}. Mesmo assim, e´ conveniente introduzir um s´ımbolo para denotar o conjunto dos nu´meros naturais diferentes de 0, e denotamos N∗ = {1, 2, 3, . . .}. 1.1 Induc¸a˜o Matema´tica Na pro´xima sec¸a˜o vamos introduzir os nu´meros naturais de uma maneira rigorosa. No conjunto N dos nu´meros naturais vamos ter duas operac¸o˜es ba´sicas, a adic¸a˜o e a multiplicac¸a˜o, e mais duas operac¸o˜es, a subtrac¸a˜o e a divisa˜o, que sera˜o definidas a partir das duas operac¸o˜es ba´sicas. Muitas propriedades importantes e interessantes sa˜o va´lidas. Outras na˜o sera˜o va´lidas, por exemplo, nem sempre sera´ poss´ıvel subtrair ou dividir em N, o resultado poderia na˜o ser um nu´mero natural. Em conjuntos nu´mericos mais amplos, por exemplo, no conjunto dos nu´meros racionais ou no conjunto dos nu´meros reais, todas essas operac¸o˜es sera˜o poss´ıveis, com excec¸a˜o da divisa˜o por 0. No entanto, existe uma propriedade que, dentre todos esses conjuntos nume´ricos, vale apenas para o conjunto dos nu´meros naturais. E´ o Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica. Iniciaremos, por razo˜es dida´ticas, por essa propriedade u´nica dos nu´meros naturais. Nesta sec¸a˜o ainda trataremos da induc¸a˜o matema´tica de maneira informal, deixando para a pro´xima sec¸a˜o um tratamento mais rigoroso, onde sera´ revelado o seu papel verdadeiramente fundamental na teoria. Para que fique mais claro, preferimos nesta sec¸a˜o proceder da maneira mais informal poss´ıvel. Antes mesmo de dizer o que e´ a induc¸a˜o matema´tica, daremos alguns exemplos. Esperamos que assim as ideias fiquem mais claras. Exemplo 1.1.1. Suponhamos que se queira obter uma expressa˜o para a soma Sn = 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) dos n primeiros nu´meros ı´mpares. Iniciamos calculando os Sn para os primeiros valores de n e organizando uma tabela. n Sn n Sn 1 1 6 1 + 3 + 5 + · · ·+ 11 = 36 2 1 + 3 = 4 7 1 + 3 + 5 + · · ·+ 13 = 49 3 1 + 3 + 5 = 9 8 1 + 3 + 5 + · · ·+ 15 = 64 4 1 + 3 + 5 + 7 = 16 9 1 + 3 + 5 + · · ·+ 17 = 81 5 1 + 3 + · · ·+ 9 = 25 10 1 + 3 + 5 + · · ·+ 19 = 100 Observando a tabela acima, chama a atenc¸a˜o o fato que os resultados obtidos sa˜o quadrados perfeitos: 1 = 12, 4 = 22, 9 = 32, 16 = 42, . . . Neste momento fazemos uma conjectura (uma conjectura e´ uma afirmac¸a˜o para a qual existe ja´ um forte ind´ıcio de que ela seja verdadeira, mas para a qual na˜o temos ainda uma demonstrac¸a˜o). Conjectura: Para qualquer nu´mero natural n ≥ 1, vale Sn = 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) = n2. Agora que ja´ temos nossa conjectura, passamos a uma fase totalmente diferente, que e´ a de provar que nossa conjectura e´ verdadeira. Para isto usaremos a induc¸a˜o matema´tica. A demons- trac¸a˜o de que uma determinada propriedade e´ verdadeira para qualquer nu´mero natural n, pode ser feita em duas etapas independentes: 1 a) Verificar que a propriedade vale para o primeiro valor de n; b) Verificar que se a propriedade valer para um certo nu´mero natural n, enta˜o a propriedade vale tambe´m para o nu´mero seguinte n+ 1. Voltemos a` proposic¸a˜o 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) = n2. Note que o menor n para o qual nossa proposic¸a˜o faz sentido e´ n = 1. Vamos provar por induc¸a˜o que ela vale para qualquer n ≥ 1. Como explicado acima, a demonstrac¸a˜o se da´ em duas etapas, usualmente chamadas de base de induc¸a˜o e passagem de induc¸a˜o, respectivamente. Base de induc¸a˜o: Verificar que vale para n = 1. No caso de n = 1, nossa proposic¸a˜o afirma que 1 = 12, que e´ verdadeira. Passagem de induc¸a˜o: Supondo que para um certo n a igualdade 1+3+5+ · · ·+(2n−1) = n2 se verifica, vamos provar que isto implica que para o nu´mero seguinte, n+1, a igualdade tambe´m se verifica. Fazemos enta˜o a hipo´tese (usualmente chamada de hipo´tese de induc¸a˜o) de que para um certo n vale 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) = n2. Temos que mostrar que 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2(n+ 1)− 1) = (n+ 1)2, ou seja, temos que mostrar que 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) + (2n+ 1) = (n+ 1)2. Aplicando a hipo´tese de induc¸a˜o e o produto nota´vel, segue que 1 + 3 + 5 + · · ·+ (2n− 1) + (2n+ 1) = n2 + (2n+ 1) = (n+ 1)2. Esta´ justificado que se a propriedade valer para um certo n, enta˜o vale tambe´m para n+1. Assim, fica conclu´ıdo o racioc´ınio, provando que a propriedade vale para qualquer n ≥ 1. Exemplo 1.1.2. Suponhamos que nos perguntamos quem e´ maior, 2n ou n2? Calculando para os n 2n n2 0 1 0 1 2 1 2 4 4 3 8 9 4 16 16 5 32 25 6 64 36 7 128 49 8 256 64 9 512 81 10 1024 100 primeiros valores de n, temos a tabela ao lado. Nossos ca´lculos sugerem que ha´ um forte ind´ıcio de que, a partir de n = 5, vamos ter sempre 2n > n2. Consideremos agora a proposic¸a˜o P (n) : 2n > n2 e vamos tentar provar por induc¸a˜o que P (n) e´ verdadeira para todo n ≥ 5. O primeiro passo sera´ mostrar que P (n) e´ va´lida para o primeiro n em questa˜o, ou seja Base de induc¸a˜o: P (5) e´ verdadeira. De fato, P (5) e´ 25 > 52, que e´ verdadeira, pois 32 > 25. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que, para um certo n ≥ 5, P (n) seja verdadeira. Enta˜o, 2n > n2 =⇒ 2 · 2n > 2n2 =⇒ 2n+1 > n2 + n2. (∗) Acontece que, como n ≥ 5, enta˜o n2 > 2n + 1. De fato, se n ≥ 5, multiplicando por n obtemos n2 ≥ 5n = 2n+ 3n ≥ 2n+ 15, ja´ que n ≥ 5 =⇒ 3n ≥ 15 (basta multiplicar por 3 > 0). 2 Como 15 > 1, somando 2n obtemos 2n + 15 ≥ 2n + 1. Logo, pela propriedade transitiva da desigualdade n2 > 2n+ 1. Somando n2 a ambos os lados da u´ltima desigualdade, obtemos n2+n2 > n2+2n+1 = (n+1)2. Voltando para (∗) e usando a transitividade obtemos 2n+1 > (n+ 1)2. Segue que se 2n > n2 para um certo n ≥ 5, enta˜o 2n+1 > (n + 1)2, concluindo a passagem de induc¸a˜o. Fica assim provado que P (n) vale para todo nu´mero natural n ≥ 5. Observac¸a˜o 1.1.3. Os exemplos acima mostram que a induc¸a˜o matema´tica na˜o e´ um me´todo para descobrir fatos em Matema´tica, e sim uma te´cnica de demonstrar esses fatos. Nos exemplos vistos, por outros me´todos fomos levados a fazer uma conjectura. A induc¸a˜o matema´tica nos possibilitou, enta˜o, provar que nossa conjectura era verdadeira. Em outras palavras, se ja´ temos um forte ind´ıcio de que uma certa propriedade possa ser verdadeira, podemos enta˜o usar a te´cnica da induc¸a˜o para tentar prova´-la. Pode tambe´m acontecer que ja´ sabemos que uma certa propriedade e´ verdadeira e ja´ temos ate´ uma demonstrac¸a˜o para ela, mas desejamos obter uma demonstrac¸a˜o diferente (por exemplo, para explicar para uma pessoa que ainda na˜o tem os pre´-requisitos necessa´rios para entender a demonstrac¸a˜o ja´ conhecida). Podemos, enta˜o, tentar obter uma demonstrac¸a˜o por induc¸a˜o para nossa propriedade. Exemplo 1.1.4. (O problema da moeda falsa.) Sejam dadas M moedas de mesmo valor, uma das quais e´ falsa. Todas teˆm o mesmo peso, exceto a falsa, que pesa menos. Dispomos de uma balanc¸a de dois pratos, mas de nenhum peso. Consideremos o problema de encontrar a moeda falsa atrave´s da realizac¸a˜o de pesagens. Vamos resolver esse problema no caso em que M = 2n. Queremos encontrar a moeda falsa utilizando um me´todo sistema´tico, evitando a comparac¸a˜o duas a duas, que resultaria em 2n−1 pesagens, que e´ um nu´mero excessivamente grande. Quando n = 0, temos M = 20 = 1, portanto, a u´nica moeda e´ a falsa. Assim, nem precisamos pesar, ou seja, pesamos 0 vezes. Quando n = 1, temos M = 21 = 2; colocando uma moeda em cada prato da balanc¸a, a de menor peso sera´ a moeda falsa. Nesse caso, precisamos de uma pesagem. Quando n = 2, temos M = 22 = 4; colocando duas moedas em cada prato da balanc¸a,o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Agora pesamos as duas moedas retiradas do prato com menor peso, colocando uma moeda em cada prato; a de menor peso sera´ a moeda falsa. Nesse caso, precisamos de duas pesagens. Quando n = 3, temos M = 23 = 8; colocando quatro moedas em cada prato da balanc¸a, o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Agora pesamos as quatro moedas retiradas do prato com menor peso, colocando duas moedas em cada prato; o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Pesamos agora, as duas moedas retiradas do prato de menor peso, colocando uma moeda em cada prato; a de menor peso e´ a moeda falsa. Nesse caso necessitamos de treˆs pesagens. Neste ponto ja´ estamos inclinados a conjecturar. Conjectura: Para todo n ∈ N e´ poss´ıvel encontrar a moeda falsa, dentre as 2n moedas, com n pesagens. Testamos mais uma vez. Quando n = 4 temos M = 24 = 16; colocando oito moedas em cada prato da balanc¸a, o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Agora pesamos as oito moedas retiradas do prato com menor peso, colocando quatro moedas em cada prato; o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Pesamos, agora, as quatro moedas retiradas do prato com menor peso, colocando duas moedas em cada prato; o prato com menor peso conte´m a moeda falsa. Pesamos agora, as duas moedas retiradas do prato com menor peso, colocando uma moeda em cada prato; a de menor peso e´ a moeda falsa. Nesse caso necessitamos de quatro pesagens. Note que sempre que vamos resolver um caso acabamos utilizando o caso anterior; e´ esse racioc´ınio que nos permite usar a induc¸a˜o. Provamos a nossa conjectura por induc¸a˜o. 3 Base de induc¸a˜o: Ja´ foi feita acima, no caso n = 0. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que para um certo n ∈ N, se temos 2n moedas e´ poss´ıvel encontrar a moeda falsa com n pesagens. Vamos mostrar que se temos 2n+1 moedas e´ poss´ıvel encontrar a moeda falsa com n+ 1 pesagens. De fato, se temos 2n+1 moedas, colocamos a metade delas (2n) em cada prato. O prato de menor peso conte´m a moeda falsa. Pesamos, agora, as 2n moedas retiradas do prato de menor peso. Pela hipo´tese de induc¸a˜o, sa˜o suficientes n pesagens para encontrar a moeda falsa. Logo, junto com a pesagem inicial, utilizamos n+ 1 pesagens para determinar a moeda falsa. Observac¸a˜o: Note que se temos 2n moedas, n na˜o e´ o nu´mero mı´nimo de pesagens necessa´rias para obter a moeda falsa; por exemplo, para 8 moedas podemos proceder da seguinte forma, primeiro separamos as moedas em dois grupos, o grupo 1 com 6 moedas e o grupo 2 com 2 moedas. Tomamos as 6 moedas do grupo1 e colocamos 3 em cada prato da balanc¸a. Se os pesos de cada prato forem iguais, enta˜o a moeda falsa esta´ no grupo 2 e com mais uma pesagem determinamos a moeda falsa; neste caso necessitamos apenas de 2 pesagens (e na˜o 3). Se os pesos forem diferentes, o prato com o menor peso conte´m a moeda falsa. Retiramos uma moeda do prato com o menor peso e pesamos as outras duas colocando uma em cada prato. Se os pesos forem iguais, a moeda falsa e´ a retirada do prato, se forem diferentes a moeda falsa e´ a de menos peso, em ambos os casos necessitamos apenas 2 pesagens. O que demonstramos por induc¸a˜o foi que o nu´mero mı´nimo de pesagens para encontrar a moeda falsa dentre 2n moedas e´ menor do que ou igual a n. Voltaremos ao problema da moeda falsa mais adiante. Observac¸a˜o 1.1.5. A induc¸a˜o matema´tica e´ um me´todo para demonstrar proposic¸o˜es a respeito de um nu´mero natural n. Uma proposic¸a˜o do tipo “A soma dos aˆngulos internos de qualquer triaˆngulo e´ 180o”na˜o pode ser provada por induc¸a˜o, pois na˜o e´ uma afirmac¸a˜o a respeito de um nu´mero natural. Exemplo 1.1.6. (Desigualdade de Bernoulli) Provar que (1+ x)n ≥ 1+ nx, ∀x ∈ [−1,+∞), ∀n ≥ 0. Em primeiro lugar, vamos nos convencer que apesar da Desigualdade de Bernoulli envolver um nu´mero real x ∈ [−1,+∞), e´ uma afirmac¸a˜o a respeito de um nu´mero natural e, portanto, tem sentido querer demonstra´-la por induc¸a˜o. Para cada n natural, consideremos a proposic¸a˜o P (n) : (1 + x)n ≥ 1 + nx , ∀ x ∈ [−1,+∞). Note que P (n) e´ uma propriedade do nu´mero natural n. Passemos a` demonstrac¸a˜o dessa pro- priedade por induc¸a˜o. Base de induc¸a˜o: P (0) e´ verdadeira. De fato, como (1 + x)0 = 1, P (0) afirma que 1 ≥ 1, que e´ verdadeira. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que, para um certo n, P (n) seja verdadeira, ou seja, que (1 + x)n ≥ 1 + nx , ∀x ∈ [−1,+∞). Podemos multiplicar ambos os lados dessa desigualdade por 1 + x, pois 1 + x > 0, ∀ x ∈ [−1,+∞). Obtemos (1 + x)(1 + x)n ≥ (1 + x)(1 + nx) = 1 + x+ nx+ nx2 = 1 + (n+ 1)x+ nx2. Como nx2 ≥ 0, segue que (1 + x)n+1 ≥ 1 + (n+ 1)x , ∀x ∈ [−1,+∞). A induc¸a˜o e´ usada na˜o so´ para demonstrar, mas tambe´m para definir. Temos o que se chama de definic¸a˜o por induc¸a˜o ou, mas frequentemente, definic¸a˜o recursiva. E´ aquela definic¸a˜o em que se define em duas etapas, inicialmente para o primeiro nu´mero e, num segundo momento, supondo que o conceito ja´ esteja definido para um determinado n, define-se para o pro´ximo. 4 Exemplo 1.1.7. (Poteˆncia) Para x real, xn e´ o produto de x por si pro´prio n vezes, xn = x · x · x · · · · x︸ ︷︷ ︸ n vezes , entendendo-se ainda que x1 = x e x0 = 1. Essa definic¸a˜o e´ pouco rigorosa, por causa dos treˆs pontinhos. Uma maneira de torna´-la mais rigorosa e´ dar uma definic¸a˜o recursiva, dizendo que (i) x0 = 1; (ii) xn+1 = xn · x. Exemplo 1.1.8. (Fatorial) O fatorial de um nu´mero natural e´ o produto de todos os naturais de 1 ate´ n, n! = 1 · 2 · 3 · · ·n, definindo-se ainda 1! = 0! = 1. Neste caso tambe´m temos uma certa falta de rigor por causa das reticeˆncias. Para melhorar isso, podemos dar uma definic¸a˜o recursiva para o fatorial de um nu´mero natural, dizendo (i) 0! = 1; (ii) (n+ 1)! = n! · (n+ 1). Observac¸a˜o 1.1.9. Vamos nos perguntar agora, qual e´ a propriedade que o conjunto dos nu´meros naturais tem que permite que se tenha o me´todo da induc¸a˜o matema´tica. Suponhamos que se queira provar uma certa proposic¸a˜o P (n) envolvendo um nu´mero natural n. Podemos considerar o conjunto A de todos os nu´meros naturais para os quais P (n) e´ verdadeira, A = {n ∈ N | P (n) e´ verdadeira}. Enta˜o, provar que P (n) e´ verdadeira para todo n ∈ N equivale a provar que A = N. Ora, a base de induc¸a˜o que consiste em verificar que P (0) e´ verdadeira, nada mais e´ do que verificar que 0 ∈ A. E a passagem de induc¸a˜o P (n) =⇒ P (n+1) equivale a mostrar que se o conjunto A conte´m um elemento n enta˜o A tambe´m conte´m o nu´mero seguinte n+ 1 (o sucessor de n), n ∈ A =⇒ n+ 1 ∈ A. Portanto, a propriedade que o conjunto dos nu´meros naturais possui, que faz com que o me´todo de induc¸a˜o matema´tica funcione, e que os outros conjuntos nume´ricos usuais na˜o possuem e´ a seguinte. Propriedade. Seja A ⊆ N um subconjunto de N. Se valem (i) 0 ∈ A; (ii) n ∈ A =⇒ n+ 1 ∈ A, enta˜o A = N. Podemos nos convencer facilmente que se (i) e (ii) sa˜o va´lidas enta˜o A = N. De fato, por (i) 0 ∈ A, logo, por (ii) 1 = 0+1 ∈ A. Agora 1 ∈ A logo, por (ii) 2 = 1+1 ∈ A. Assim, 2 ∈ A logo, por (ii) 3 = 2 + 1 ∈ A. E assim por diante. Na pro´xima sec¸a˜o, veremos que propriedade acima tera´ uma importaˆncia fundamental. 5 1.2 Os Axiomas de Peano A Matema´tica e´ uma cieˆncia que estuda principalmente a estrutura das coisas, se preocupando menos com a natureza nos objetos. Por isso, em Matema´tica frequentemente adotamos o me´todo axioma´tico. No caso presente, dos nu´meros naturais, isto significa que na˜o vamos nos preocupar com questo˜es como o que e´ um nu´mero natural, o que e´ o 0, o que e´ o 1, o que e´ a soma de dois nu´meros naturais, etc. Em vez disso, vamos apresentar uma lista de axiomas, que sa˜o as propriedades fundamentais que caracterizam a estrutura do conjunto dos nu´meros naturais e o papel que o nu´mero 0, por exemplo,desempenha nessa estrutura. Assim, o conjunto N = {0, 1, 2, 3, . . .} dos nu´meros naturais e´ caracterizado por algumas noc¸o˜es primitivas, que na˜o sa˜o definidas, mas teˆm suas propriedades descritas por uma lista de axiomas, conhecidos como Axiomas de Peano (Giuseppe Peano, 1858–1932, matema´tico italiano). Sa˜o treˆs os conceitos primitivos: nu´mero natural, zero e sucessor. Esses treˆs conceitos primi- tivos sa˜o caracterizados por cinco axiomas: 1. 0 e´ um nu´mero natural. 2. Todo nu´mero natural n tem um u´nico sucessor s(n) ∈ N. 3. 0 na˜o e´ sucessor de nenhum nu´mero natural. 4. Se dois nu´meros naturais n e m teˆm o mesmo sucessor s(n) = s(m), enta˜o n = m. 5. Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica. Se A ⊆ N e´ um subconjunto dos naturais tal que 0 ∈ A n ∈ A =⇒ s(n) ∈ A enta˜o A = N. Uma primeira consequeˆncia desses axiomas e´ que 0 e´ o U´NICO nu´mero natural que na˜o e´ sucessor de nenhum nu´mero natural. De fato, se existe u ∈ N∗ tal que u na˜o e´ sucessor de nenhum nu´mero natural, ou seja u 6= s(n), ∀n ∈ N, enta˜o tomamos A = N − {u} e temos que 0 ∈ A e n ∈ A =⇒ s(n) ∈ A, pela definic¸a˜o de A. Pelo Princ´ıpio da Induc¸a˜o A = N, o que e´ uma contradic¸a˜o. Usando essa primeira consequeˆncia podemos reformular os quatro primeiros axiomas acima em uma linguagem mais formal dizendo que existe uma func¸a˜o s : N→ N e existe um elemento 0 ∈ N tais que 1’. A func¸a˜o s e´ injetora; 2’. A imagem da func¸a˜o s e´ o conjunto s(N) = N \ {0}. Proposic¸a˜o 1.2.1. (∀n ∈ N)(s(n) 6= n). Demonstrac¸a˜o. Seja A = {n ∈ N | s(n) 6= n}. Basta mostrar que A = N. Para isto, vamos usar o Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica (Axioma 5). Segue do Axioma 2’ que s(0) ∈ N \ {0} e, portanto, s(0) 6= 0. Logo, 0 ∈ A Suponhamos que um certo nu´mero natural n ∈ N pertenc¸a a A. Enta˜o, s(n) 6= n. Como a func¸a˜o s e´ injetora, conclu´ımos que s(s(n)) 6= s(n). Enta˜o, pela definic¸a˜o do conjunto A, temos que s(n) ∈ A. Do Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica, segue que A = N. 6 1.3 A adic¸a˜o em N Definic¸a˜o 1.3.1. A soma de dois nu´meros naturais e´ definida recursivamente por (i) m+ 0 = m, ∀m ∈ N; (ii) m+ s(n) = s(m+ n), ∀m,n ∈ N. Observac¸a˜o 1.3.2. Note que, pela definic¸a˜o de soma, s(m) = s(m+ 0) = m+ s(0). (1) Definimos o nu´mero natural 1 como 1 = s(0). Enta˜o, a igualdade (1) acima pode ser reescrita como s(m) = m+ 1. (2) Proposic¸a˜o 1.3.3. (Propriedade associativa) ∀ a, b, c ∈ N, (a+ b) + c = a+ (b+ c). Demonstrac¸a˜o. A demonstrac¸a˜o e´ por induc¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o a seguinte propriedade do nu´mero natural c P (c) : ∀ a, b ∈ N, (a+ b) + c = a+ (b+ c). Base de induc¸a˜o: Verificamos que vale para c = 0, ou seja, que (a + b) + 0 = a + (b + 0). De fato, (a+ b) + 0 = a+ b = a+ (b+ 0). Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que para um certo c ∈ N vale (a+ b) + c = a+ (b+ c), ∀ a, b ∈ N. (3) Enta˜o, (a+ b) + s(c) = s((a+ b) + c) = s(a+ (b+ c)) = a+ s(b+ c) = a+ (b+ s(c)). Logo, se (3) valer para um certo c ∈ N, enta˜o vale tambe´m para s(c). Aplicando o Princ´ıpio de Induc¸a˜o, segue que (3) vale para qualquer c ∈ N, concluindo a demonstrac¸a˜o. Proposic¸a˜o 1.3.4. Valem as seguintes igualdades: (i) n+ 1 = s(n) = 1 + n, ∀n ∈ N; (ii) (Elemento neutro) 0 e´ o elemento neutro da adic¸a˜o, ou seja, n+ 0 = 0 + n = n, ∀n ∈ N. Demonstrac¸a˜o. Conforme foi observado em (2), acima, temos n+ 1 = s(n), ∀n ∈ N. A igualdade 1+n = s(n) vai ser mostrada por induc¸a˜o (note que ainda na˜o provamos a propriedade comutativa, ela vai ser provada na pro´xima proposic¸a˜o). Base de induc¸a˜o: Verificar que 1 + 0 = s(0). De fato, 1 + 0 = 1 pela definic¸a˜o de soma, logo 1 + 0 = 1 = s(0). Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que 1+ n = s(n) vale para um certo n. Enta˜o, 1 + s(n) = 1+(n+1), pela parte ja´ mostrada. Usando a propriedade associativa, obtemos 1+s(n) = (1+n)+1. Enta˜o, pela hipo´tese de induc¸a˜o, temos que 1 + s(n) = s(n) + 1. E, novamente pela parte ja´ 7 mostrada, segue que 1 + s(n) = s(s(n)), ou seja, se a propriedade valer para um certo n ∈ N, enta˜o vale tambe´m para s(n), terminando a demonstrac¸a˜o. A segunda igualdade tem uma parte que decorre diretamente da definic¸a˜o de soma, n+0 = n. A demonstrac¸a˜o de que 0 + n = n tambe´m e´ feita por induc¸a˜o. Base de induc¸a˜o: Verificar que 0 + 0 = 0. Segue diretamente da definic¸a˜o. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que 0 + n = n vale para um certo n. Enta˜o, 0 + s(n) = 0+ (n+1) = (0+n) + 1, pela propriedade associativa. Aplicando a hipo´tese de induc¸a˜o, obtemos 0 + s(n) = n + 1 = s(n), provando que se valer para um certo n, enta˜o a igualdade vale tambe´m para s(n). Proposic¸a˜o 1.3.5. (Propriedade comutativa) ∀ a, b ∈ N, a+ b = b+ a. Demonstrac¸a˜o. A demonstrac¸a˜o e´ por induc¸a˜o. Vamos mostrar que para qualquer a ∈ N vale a seguinte afirmac¸a˜o a respeito de a P (a) : ∀ b ∈ N, a+ b = b+ a. Base de induc¸a˜o: Verificamos que 0 + b = b+ 0, ∀ b ∈ N. De fato, b + 0 = b = 0 + b, pela propriedade de que 0 e´ o elemento neutro da soma (proposic¸a˜o anterior). Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que para um certo a ∈ N vale a+ b = b+ a, ∀ b ∈ N. (4) Enta˜o, s(a)+ b = (1+ a)+ b = 1+ (a+ b) = 1+ (b+ a) = (1+ b)+ a = (b+1)+ a = b+(1+ a) = b + s(a), ∀ b ∈ N, ou seja, se a propriedade (4) valer para um certo a ∈ N, enta˜o vale tambe´m para s(a). Proposic¸a˜o 1.3.6. (Lei do cancelamento para a adic¸a˜o) ∀ a, b, c ∈ N, a+ b = a+ c =⇒ b = c. (5) Demonstrac¸a˜o. A demonstrac¸a˜o e´ por induc¸a˜o em a. Base de induc¸a˜o: (5) vale para a = 0. E´ imediato. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que (5) vale para um certo a ∈ N. Vamos verificar que vale tambe´m para s(a). De fato, s(a) + b = s(a) + c =⇒ s(a+ b) = s(a+ c) =⇒ a+ b = a+ c =⇒ b = c. Observac¸a˜o 1.3.7. A Adic¸a˜o e´ uma operac¸a˜o bina´ria, ou seja, tem sentido a soma de dois nu´meros naturais, apenas. Quando escrevemos uma expressa˜o do tipo a + b + c, na˜o estamos somando os treˆs nu´meros de uma so´ vez, pois isso na˜o tem sentido; podemos somar (a+b)+c ou a+(b+c). No entanto, pela propriedade associativa da adic¸a˜o, somando de qualquer uma dessas maneiras obte´m- se o mesmo resultado. Portanto, na˜o e´ necessa´rio indicarmos em que ordem estamos considerando a soma, e podemos escrever sem os pareˆnteses a + b + c, ficando assim com uma escrita menos carregada. 8 1.4 Multiplicac¸a˜o em N Definic¸a˜o 1.4.1. O produto de dois nu´meros naturais e´ definido recursivamente por (i) a · 0 = 0, ∀ a ∈ N; (ii) a · s(b) = a · b+ a, ∀ a, b ∈ N. Observac¸a˜o 1.4.2. Em primeiro lugar, notemos que, a partir da definic¸a˜o de produto, para qualquer n ∈ N temos n · 1 = n · s(0) = n · 0 + n = 0 + n = n. (6) Proposic¸a˜o 1.4.3. (Absorc¸a˜o). Vale a propriedade 0 · b = 0, ∀ b ∈ N. (7) Demonstrac¸a˜o. Base de Induc¸a˜o: A condic¸a˜o (7) vale para b = 0. E´ imediato. Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que (7) vale para um certo b ∈ N. Enta˜o, 0 · s(b) = 0 · b+ 0 = 0 · b = 0. Segue que se (7) vale para um certo b, enta˜o vale tambe´m para s(b). Logo, (7) vale para todo b ∈ N. Proposic¸a˜o 1.4.4. (Elemento neutro do produto). n · 1 = 1 · n = n, ∀n ∈ N. Demonstrac¸a˜o. Conforme foi observado em (6) acima, temos n · 1 = n, ∀n ∈ N. A igualdade 1 · n = n, ∀n ∈ N vai ser provada por induc¸a˜o. Base de Induc¸a˜o: 1 · 0 = 0 segue da definic¸a˜o de produto. Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que para um certo nu´mero natural n vale 1 ·n = n. Enta˜o, 1 · s(n) = 1 · n+ 1 = n+ 1 = s(n). Lema 1.4.5. (a+ 1)b = ab+ b, ∀ a, b ∈ N. Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o a seguinte propriedade do nu´mero natural b P (b) : (a+ 1)b = ab+ b, ∀ a ∈ N. P (0) e´ verdadeira pela definic¸a˜o da multiplicac¸a˜o. Supondo que P (b) seja verdadeira para um certo b, vamos mostrar que P (s(b)) tambe´m e´ verdadeira. De fato, usando a definic¸a˜o de multiplicac¸a˜o e a hipo´tese deinduc¸a˜o, temos (a+ 1)s(b) = (a+ 1)b+ a+ 1 = ab+ b+ a+ 1. Usando as propriedades comutativa e associativa da adic¸a˜o e novamente a definic¸a˜o da multi- plicac¸a˜o, segue que (a+ 1)s(b) = (ab+ a) + (b+ 1) = a · s(b) + s(b). O racioc´ınio acima mostra que se P (b) for verdadeira para algum b ∈ N, enta˜o P (s(b)) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (b) e´ verdadeira para qualquer b ∈ N. 9 Proposic¸a˜o 1.4.6. (Comutatividade). ab = ba, ∀ a, b ∈ N. Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o em a. Consideremos a afirmac¸a˜o ab = ba, ∀ b ∈ N. (8) Base de induc¸a˜o: A condic¸a˜o (8) vale para a = 0. De fato, pela definic¸a˜o de produto, temos b · 0 = 0. Por outro lado, por (7), temos 0 · b = 0. Logo, 0 · b = b · 0. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que a condic¸a˜o (8) vale para um certo a ∈ N. Enta˜o, s(a)b = (a+ 1)b = ab+ 1 · b = ba+ b = b · s(a), ∀ b ∈ N. Logo, se a condic¸a˜o (8) vale para um certo a ∈ N, enta˜o ela tambe´m, vale para s(a). Logo, a condic¸a˜o (8) vale para qualquer a ∈ N. Proposic¸a˜o 1.4.7. (Distributividade). (i) (a+ b)c = ac+ bc, ∀ a, b, c ∈ N. (ii) a(b+ c) = ab+ ac, ∀ a, b, c ∈ N. Demonstrac¸a˜o. Vamos provar a afirmac¸a˜o (i) por induc¸a˜o em c. Consideremos a afirmac¸a˜o (a+ b)c = ac+ bc, ∀ a, b ∈ N. (9) Base de induc¸a˜o: (9) vale para c = 0. De fato, (a+ b) · 0 = 0 = 0 + 0 = a · 0 + b · 0. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que (9) vale para um certo c ∈ N. Vamos mostrar que ela vale tambe´m para s(c). Usando a definic¸a˜o de produto e a hipo´tese de induc¸a˜o, temos (a+ b)s(c) = (a+ b)c+ a+ b = ac+ bc+ a+ b = (ac+ a) + (bc+ b) = as(c) + bs(c). Portanto, se (9) vale para um certo c ∈ N, enta˜o ela tambe´m vale para s(c). Logo, (9) vale para todo c ∈ N. A propriedade (ii) segue da propriedade (i) e da comutatividade da multiplicac¸a˜o. Proposic¸a˜o 1.4.8. (Associatividade). (a · b) · c = a · (b · c), ∀ a, b, c ∈ N. Demonstrac¸a˜o. A demonstrac¸a˜o e´ por induc¸a˜o em c. Consideremos a afirmac¸a˜o (a · b) · c = a · (b · c), ∀ a, b ∈ N. (10) Base de induc¸a˜o: (10) vale para c = 0. De fato, (a · b) · 0 = 0 = a · 0 = a · (b · 0). Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que (10) vale para um certo c. Enta˜o, pela definic¸a˜o recursiva da multiplicac¸a˜o e pela hipo´tese de induc¸a˜o, (a · b) · s(c) = (a · b) · c+ a · b = a · (b · c) + a · b. Utilizando a distributividade, obtemos (a · b) · s(c) = a · (b · c+ b). Utilizando novamente a definic¸a˜o do produto, segue que (a · b) · s(c) = a · (b · s(c)). Portanto, se (10) vale para um certo c, enta˜o vale tambe´m para s(c). Logo, (10) vale para qualquer c ∈ N. 10 Proposic¸a˜o 1.4.9. (Integridade). ∀ a, b ∈ N, a · b = 0 =⇒ a = 0 ou b = 0. Demonstrac¸a˜o. Por contraposic¸a˜o basta mostrar que a 6= 0 e b 6= 0 =⇒ ab 6= 0. Suponhamos que a 6= 0 e b 6= 0. Como a 6= 0, enta˜o existe u ∈ N tal que a = s(u) = u+ 1. Da mesma forma b 6= 0 implica que existe v ∈ N tal que b = s(v) = v + 1. Enta˜o, ab = (u+ 1)(v + 1) = (u+ 1)v + (u+ 1) = uv + u+ v + 1. Portanto, ab e´ o sucessor do elemento uv + u + v. Conclu´ımos que ab 6= 0, pois 0 na˜o e´ sucessor de nenhum outro natural. Proposic¸a˜o 1.4.10. (Lei do cancelamento). ∀ a, b, c ∈ N, a · c = b · c e c 6= 0 =⇒ a = b. Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o a sequinte proposic¸a˜o P (a) : ∀b, ∀c 6= 0, a · c = b · c =⇒ a = b. Base de Induc¸a˜o: P (0) e´ verdadeira. De fato, se a = 0, enta˜o a · c = 0, de modo que P (0) e´ a afirmac¸a˜o ∀b, ∀c 6= 0, b · c = 0 =⇒ b = 0 = a, que e´ verdadeira pela propriedade de integridade. Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos P (a) verdadeira para um certo a. Vamos mostrar que P (a + 1) tambe´m e´ verdadeira. Para isso, suponhamos que (a + 1) · c = b · c e c 6= 0. Como a + 1 6= 0 e c 6= 0, pela propriedade de integridade, temos que (a + 1) · c 6= 0, logo b · c 6= 0 e, portanto, b 6= 0. Segue que existe u ∈ N tal que b = u+ 1. Portanto, (a+ 1) · c = (u+ 1) · c =⇒ ac+ c = uc+ c =⇒ ac = uc. Aplicando a hipo´tese de induc¸a˜o de que P (a) e´ verdadeira, temos que a = u. Logo, a+1 = u+1, ou seja, a+ 1 = b. Portanto, P (a+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Obs. Uma nova demonstrac¸a˜o da Lei do Cancelamento sera´ vista na pro´xima sec¸a˜o, como aplicac¸a˜o da Tricotomia. Proposic¸a˜o 1.4.11. Valem as implicac¸o˜es: (i) ∀ a, b ∈ N, a+ b = 0 =⇒ a = b = 0; (ii) ∀ a, b ∈ N, a · b = 1 =⇒ a = b = 1. Demonstrac¸a˜o. Para provar a propriedade (i) acima, suponhamos que a, b ∈ N, com a + b = 0. Existem duas possibilidades, ou o nu´mero natural b e´ 0 (b = 0), ou b e´ o sucessor de algum outro nu´mero natural (∃ d ∈ N tal que b = s(d)). Se valesse essa segunda alternativa, b = s(d), enta˜o, pela definic¸a˜o de soma, ter´ıamos a + b = a + s(d) = s(a + d), contrariando a hipo´tese de que a + b = 0, pois 0 na˜o e´ o sucessor de nenhum nu´mero natural. Portanto, o que vale e´ que b = 0. Enta˜o, como a+ b = 0, temos que a = a+ 0 = a+ b = 0. Agora vamos provar a propriedade (ii). Suponhamos que a, b ∈ N com a · b = 1. Pela propriedade de absorc¸a˜o, a 6= 0 e b 6= 0, pois se um dos dois nu´meros se anulasse, o produto seria 0. Enta˜o, existem u, v ∈ N tais que a = s(u) e b = s(v), pois 0 e´ o u´nico natural que na˜o sucessor de nenhum outro. Enta˜o, 1 = ab = a · s(v) = av + a = av + s(u) = (av + u) + 1. Segue que 0 + 1 = (av + u) + 1. Aplicando a Lei do Cancelamento, conclu´ımos que av + u = 0. Enta˜o, pela parte (i), ja´ demonstrada, conclu´ımos que av = 0 e u = 0. Mas de u = 0, segue que a = s(u) = s(0) = 1, que e´ uma das afirmac¸o˜es que queremos mostrar. A outra agora e´ fa´cil, b = 1 · b = a · b = 1. 11 1.5 Ordem em N Definic¸a˜o 1.5.1. Dizemos que o nu´mero natural a e´ menor ou igual a b e anotamos por a ≤ b se existe c ∈ N tal que a + c = b. Dizemos que a e´ menor do que b e anotamos por a < b se existe c ∈ N, com c 6= 0 e tal que a+ c = b. Em outras palavras a < b se a ≤ b e a 6= b. Dizemos que b e´ maior ou igual a a e anotamos b ≥ a se a ≤ b. Analogamente, b > a se a < b. Segue diretamente da definic¸a˜o que 0 ≤ n, ∀n ∈ N e que ∀ a, b ∈ N, a ≤ a+ b. Proposic¸a˜o 1.5.2. A relac¸a˜o de ordem tem as seguintes propriedades: (i) Reflexiva: a ≤ a, ∀ a ∈ N; (ii) Anti-sime´trica: a ≤ b e b ≤ a =⇒ a = b. (iii) Transitiva: a ≤ b e b ≤ c =⇒ a ≤ c. Demonstrac¸a˜o. Reflexiva: a+ 0 = a =⇒ a ≤ a, ∀ a ∈ N. Anti-sime´trica: Suponhamos que a ≤ b e b ≤ a. Enta˜o, existem c, d ∈ N tais que a + c = b e b+ d = a. Segue que a+ (c+ d) = (a+ c) + d = b+ d = a, isto e´, a+ (c+ d) = a+ 0. Pela Lei do Cancelamento, temos c+ d = 0. Enta˜o, pela Proposic¸a˜o 1.4.11, temos que c = d = 0. Logo, a = b. Transitiva: Suponhamos que a ≤ b e b ≤ c. Enta˜o, existem s, t ∈ N tais que a+ s = b e b+ t = c. Segue que a+ (s+ t) = (a+ s) + t = b+ t = c. Enta˜o, pela definic¸a˜o da desigualdade, a ≤ c. Proposic¸a˜o 1.5.3. (Compatibilidade da ordem com as operac¸o˜es). (i) ∀ a, b, c ∈ N, a < b =⇒ a+ c < b+ c. (i)′ ∀ a, b, c ∈ N, a ≤ b =⇒ a+ c ≤ b+ c. (ii) ∀ a, b ∈ N, ∀ c ∈ N∗, a < b =⇒ a · c < b · c. (Propriedade cancelativa) Valem as rec´ıprocas das afirmac¸o˜es (i) e (ii) acima, (iii) ∀ a, b, c ∈ N, a+ c < b+ c =⇒ a < b. (iv) ∀ a, b ∈ N, ∀ c ∈ N∗, a · c < b · c =⇒ a < b. Demonstrac¸a˜o. Para provar a propriedade (i), suponhamos que a < b. Enta˜o, pela Definic¸a˜o 1.5.1, existe u ∈ N∗ tal que a+ u = b. Segue que a+ u+ c = b+ c e, usando as propriedades comutativa e associativa, (a + c) + u = b + c. Novamente, pela Definic¸a˜o 1.5.1, temos que a + c < b + c. A demonstrac¸a˜o da propriedade (i)′ e´ ana´loga, substituindo a condic¸a˜o u ∈ N por u ∈ N∗. A demonstrac¸a˜o da propriedade (ii) tambe´m e´ ana´loga e na˜o faremos aqui. Para provar (iii), suponhamos que a+ c < b+ c. Enta˜o, ∃u ∈ N∗ tal que a+ c+ u = b+ c, ou seja, (a+ u) + c = b+ c. Pela lei do cancelamento para a adic¸a˜o, segue que a+ u = b com u ∈ N∗ e, portanto, a < b. O item (iv) vai ser demonstrado depois da pro´xima proposic¸a˜o. Proposic¸a˜o 1.5.4. (Tricotomia).Se a, b ∈ N, vale uma e apenas uma das alternativas: a < b, b < a ou a = b. Demonstrac¸a˜o. Primeiro vamos mostrar que na˜o podem valer ao mesmo tempo duas das alter- nativas. Por exemplo, na˜o podem valer ambas a < b e b < a. De fato, supondo que valem a < b e b < a, enta˜o existem u, v ∈ N∗ tais que a + u = b e b + v = a. Conclu´ımos que a+ 0 = a = b+ v = a+ (u+ v). Pela propriedade cancelativa, segue que u+ v = 0. Aplicando a parte (i) da Proposic¸a˜o 1.4.11, temos que u = v = 0, mas isto e´ uma contradic¸a˜o pois u, v ∈ N∗. 12 Portanto, as duas desigualdades na˜o podem ocorrer simultaneamente. Da mesma forma, mostra-se que a igualdade a = b na˜o pode ocorrer simultaneamente com nenhuma das desigualdades. Agora precisamos mostrar que sempre ocorre pelo menos uma das treˆs alternativas. Basta mostrar que dados dois quaisquer a, b ∈ N, vale pelo menos uma das duas a ≤ b ou b ≤ a. Vamos adotar a seguinte estrate´gia de demonstrac¸a˜o. Fixamos um a ∈ N arbitrariamente e consideramos, para qualquer b ∈ N, a propriedade P (b) : a ≤ b ou b ≤ a. Provamos que vale P (b), ∀ b ∈ N, por induc¸a˜o. Base de Induc¸a˜o: P (0) e´ verdadeira. De fato, como 0 ≤ a, enta˜o vale P (0). Passagem de Induc¸a˜o: Se P (b) e´ verdadeira para um certo b, enta˜o P (s(b)) tambe´m e´ ver- dadeira. De fato, suponhamos que, para um certo b ∈ N, P (b) seja verdadeira. Enta˜o vale que a ≤ b ou b ≤ a. Precisamos mostrar que a ≤ s(b) ou s(b) ≤ a. Se a ≤ b, enta˜o ∃u ∈ N tal que a+ u = b. Logo, a+ u+ 1 = b+ 1 = s(b) e, portanto, a ≤ s(b) e temos que a ≤ s(b) ou s(b) ≤ a. Se b ≤ a, temos duas possibilidades, ou b = a ou b < a. Se b = a enta˜o s(b) = b + 1 = a + 1, logo s(b) > a. Se b < a, enta˜o ∃ v ∈ N∗ tal que b+ v = a. Mas v 6= 0 =⇒ ∃ p ∈ N tal que v = s(p). Segue que a = b + v = b + s(p) = b + p + 1 = s(b) + p, de onde se deduz que s(b) ≤ a e tambe´m temos que a ≤ s(b) ou s(b) ≤ a. Como aplicac¸a˜o da Lei da Tricotomia, vamos dar uma outra demonstrac¸a˜o da Proposic¸a˜o 1.4.10 (lei do cancelamento para a multiplicac¸a˜o). 2 a Demonstrac¸a˜o da Proposic¸a˜o 1.4.10. Suponhamos que a, b ∈ N, c ∈ N∗ e a · c = b · c. Queremos provar que a = b. Pela propriedade da Tricotomia, vale uma e apenas uma das treˆs a = b, a < b ou b < a. Portanto, para mostrar que a = b basta justificar que nenhuma das duas desigualdades pode ocorrer. Se a < b, enta˜o, pela parte (ii) da Proposic¸a˜o 1.5.3, seguiria que ac < bc, o que contraria a hipo´tese de que ac = bc. Portanto, a < b na˜o ocorre. Pela mesma raza˜o b < a n ao ocorre. Logo, a = b, provando a proposic¸a˜o. Demonstrac¸a˜o da Proposic¸a˜o 1.5.3 (iv). Provamos por contraposic¸a˜o. Sejam a, b ∈ N e c ∈ N∗. Se na˜o valer a < b, enta˜o, pela Tricotomia, temos b ≤ a. Pela parte (i)′ desta mesma Proposic¸a˜o 1.5.3, segue que bc ≤ ac e, portanto, na˜o vale ac < bc, concluindo a demonstrac¸a˜o. 1.6 Resumindo N Vimos na sec¸a˜o anterior que podemos construir N atrave´s dos Axiomas de Peano e assim definir uma soma e um produto com as seguintes propriedades. • Associatividade da soma ∀ a, b, c ∈ N, (a+ b) + c = a+ (b+ c). do produto ∀ a, b, c ∈ N, (a · b) · c = a · (b · c). • Comutatividade 13 da soma ∀ a, b ∈ N, a+ b = b+ a. do produto ∀ a, b ∈ N, a · b = b · a. • Elemento neutro da soma ∀n ∈ N, n+ 0 = n = 0 + n. do produto ∀n ∈ N, n · 1 = n = 1 · n. • Distributividade ∀ a, b, c ∈ N, (a+ b) · c = a · c+ b · c = c · (a+ b). • Leis do cancelamento para a soma ∀ a, b, c ∈ N, a+ b = a+ c =⇒ b = c. para o produto ∀ a, b, c ∈ N, ac = bc e c 6= 0 =⇒ a = b. • Absorc¸a˜o ∀ a ∈ N, a · 0 = 0 = 0 · a. • Integridade ∀ a, b ∈ N, a · b = 0 =⇒ a = 0 ou b = 0. • Propriedades u´nicas de N ∀ a, b,∈ N, a+ b = 0 =⇒ a = b = 0. ∀ a, b,∈ N, a · b = 1 =⇒ a = b = 1. Tambe´m definimos uma ordem ≤ dada por a ≤ b⇐⇒ ∃ c ∈ N tal que a+ c = b, que satisfaz as seguintes propriedades. • 0 ≤ n, ∀n ∈ N. • ∀ a, b ∈ N, a ≤ a+ b. • Reflexiva a ≤ a, ∀ a ∈ N. • Anti-sime´trica a ≤ b e b ≤ a =⇒ a = b. • Transitiva a ≤ b e b ≤ c =⇒ a ≤ c. • E´ compat´ıvel e cancelativa com a soma ∀ a, b, c ∈ N, a < b ⇐⇒ a+ c < b+ c. e o produto ∀ a, b ∈ N, ∀ c ∈ N∗, a < b ⇐⇒ ac < bc. • Tricotomia Se a, b ∈ N, vale uma e apenas uma das alternativas: a < b, b < a ou a = b. 14 1.7 Subtrac¸a˜o em N Sejam a e b dois nu´meros naturais, se a ≤ b, enta˜o, por definic¸a˜o, existe um nu´mero natural c tal que a+c = b. E´ importante notar que esse nu´mero c tal que a+c = b e´ u´nico. De fato, se a+c = b e a + c′ = b, enta˜o a + c = a + c′. Podemos, enta˜o, definir o nu´mero b menos a, denotado por b− a, como sendo esse nu´mero c. Assim, por essa definic¸a˜o, c = b− a⇐⇒ b = a+ c. Observamos que nos nu´meros naturais a subtrac¸a˜o entre dois nu´meros quaisquer nem sem- pre existe, note que para definir b menos a acima necessitamos que a ≤ b. Ale´m disso, muitas propriedades que valem para a soma na˜o sa˜o verdadeiras para a subtrac¸a˜o. Um exemplo e´ a associatividade. (10− 4)− 2 = 6− 2 = 4, mas 10− (4− 2) = 10− 2 = 8. Mostramos a seguir, alguns resultados envolvendo a subtrac¸a˜o. Proposic¸a˜o 1.7.1. ∀ a ∈ N, a− a = 0. Demonstrac¸a˜o. Como 0 e´ o elemento neutro da soma temos que ∀ a ∈ N, a + 0 = a, logo, pela definic¸a˜o de subtrac¸a˜o, a− a = 0. Proposic¸a˜o 1.7.2. ∀ a, b ∈ N, (a+ b)− b = a. Demonstrac¸a˜o. Para t = b, temos que a+t = a+b. Enta˜o, pela definic¸a˜o da ordem e da subtrac¸a˜o, temos que a ≤ a+ b e (a+ b)− a = t = b. Proposic¸a˜o 1.7.3. ∀ a, b ∈ N, a ≤ b =⇒ (b− a) + a = b. Demonstrac¸a˜o. Como a ≤ b existe, por definic¸a˜o, c ∈ N tal que b = a + c e, portanto, b− a = c ; somando a obtemos (b− a) + a = c+ a = b, pela primeira igualdade. Proposic¸a˜o 1.7.4. ∀ a, b, c ∈ N, c ≤ b =⇒ (a+ b)− c = a+ (b− c). Demonstrac¸a˜o. Suponhamos que c ≤ b. Enta˜o, ∃ t ∈ N tal que b = t+ c. Enta˜o, pela Proposic¸a˜o 1.7.2, (a+ b)− c = (a+ t+ c)− c esta´ bem definido e e´ igual a a+ t, isto e´, (a+ b)− c = a+ t = a+ (b− c). Proposic¸a˜o 1.7.5. ∀ a, b, c ∈ N, a ≤ b =⇒ c · (b− a) = c · b− c · a Demonstrac¸a˜o. Como a ≤ b, existe, por definic¸a˜o, t ∈ N tal que b = a + t e portanto b − a = t. Multiplicando as duas igualdades por c obtemos b · c = (a+ t) · c = a · c+ t · c e (b− a) · c = t · c. Assim, pela definic¸a˜o de subtrac¸a˜o, b · c− a · c = t · c = (b− a) · c. Proposic¸a˜o 1.7.6. Sejam a, b, c ∈ N tais que a − (b − c) esta´ definido, enta˜o (a + c) − b esta´ definido e a− (b− c) = (a+ c)− b. Demonstrac¸a˜o. Como a − (b − c) esta´ definido sabemos que (b − c) ≤ a e c ≤ b. Somando c na primeira desigualdade e usando a Proposic¸a˜o 1.7.3, obtemos b = (b − c) + c ≤ a + c e, portanto, (a+c)− b esta´ definido. Agora, como ambos esta˜o definidos, existe s, t ∈ N tais que a− (b−c) = s e (a+ c)− b = t. Logo, pela definic¸a˜o de subtrac¸a˜o temos que a = s+(b− c) (∗) e (a+ c) = t+ b, somando c em (*) e usando a Proposic¸a˜o 1.7.3, obtemos a + c = s + (b − c) + c = s + b. Assim, s+ b = a+ c = t+ b. Pela lei do cancelamento, temos a− (b− c) = s = t = (a+ c)− b. 15 1.8 Mais propriedades u´nicas de N Ja´ vimos nas sec¸o˜es anteriores propriedades de N que na˜o sa˜o va´lidas nos conjuntos nume´ricos mais populares Z, Q, R e C. Sa˜o elas: • Induc¸a˜o • ∀ a, b ∈ N, a+ b = 0 =⇒ a = b = 0 • ∀ a, b ∈ N, a · b = 1 =⇒ a = b = 1. Nesta sec¸a˜o exploramos outras propriedades desse tipo. Proposic¸a˜o 1.8.1. ∀ a, b ∈ N, a + b = 1 =⇒ a = 1 ou b = 1. Em particular, se a 6= 0 enta˜o b = 0. Demonstrac¸a˜o. Suponhamos que a + b = 1. Temos que mostrar que um dos dois, a ou b, e´ igual a 1. Temos duas possibilidades a considerar, a = 0 ou a 6= 0. Se a = 0, enta˜o 1 = a+ b = 0 + b = b. Nesse caso, a = 0 e b = 1. Se a 6= 0, sabemos que a e´ sucessor de algum nu´mero natural, ou seja, ∃ u ∈ N tal que a = s(u). Desse modo, temos s(u+ b) = s(u) + b = a+ b = 1 = s(0). Como s e´ uma func¸a˜o injetora, temos que u+ b = 0, logo, pela segunda propriedade acima, u= 0 e b = 0 e, portanto, a = s(u) = s(0) = 1 e b = 0. A proposic¸a˜o acima nos diz que as u´nicas decomposic¸o˜es do nu´mero 1 como soma de dois nu´meros naturais sa˜o 1 = 0 + 1 e 1 = 1 + 0. Na Sec¸a˜o 1.3 vimos que 0 ≤ n, ∀n ∈ N, em particular, 0 < 1. Em seguida perguntamos, sera´ que existe algum nu´mero natural entre 0 e 1? A resposta e´ na˜o. De fato, se existe x ∈ N e x 6= 0 tal que 0 < x < 1, enta˜o existe u, v ∈ N∗ tais que 0 + u = x e x + v = 1. Desse modo, 1 = x + v = (0 + u) + v = 0 + (u + v) = u + v. Assim, pela Proposic¸a˜o 1.8.1, como u 6= 0, temos v = 0 que e´ uma contradic¸a˜o (consequentemente, n ∈ N∗ =⇒ n ≥ 1). Estendemos esse argumento na seguinte proposic¸a˜o. Proposic¸a˜o 1.8.2. Na˜o existe nenhum nu´mero natural entre um nu´mero natural e o seu sucessor. Ou seja, (∀n ∈ N)(@ x ∈ N) n < x < n+ 1. Demonstrac¸a˜o. Dado n ∈ N seja x ∈ N tal que n < x < n + 1. Logo, existem u e v ∈ N∗ tais que x = n + u e n + 1 = x + v. Substituindo a primeira igualdade na segunda obtemos, n+ 1 = (n+ u) + v = n + (u+ v). Pela lei do cancelamento, temos 1 = u+ v e, pela Proposic¸a˜o 1.8.1, uma contradic¸a˜o, ja´ que u e v ∈ N∗. Outra propriedade interessante e´ a seguinte (que tambe´m vale em Z). (∀n ∈ N)(∀m ∈ N) n < m =⇒ n+ 1 ≤ m Demonstrac¸a˜o. Faremos a demonstrac¸a˜o por contraposic¸a˜o. Suponhamos que n + 1 > m. Logo, por definic¸a˜o de < existe u ∈ N∗ tal que m + u = n + 1. Logo, pela definic¸a˜o de subtrac¸a˜o, (m + u) − 1 = n. Como u ∈ N∗, temos 1 ≤ u, logo u − 1 ∈ N e, pela Propisic¸a˜o 1.7.2 temos n = (m+ u)− 1 = m+ (u− 1), ou seja, m ≤ n. 16 Uma consequeˆncia importante do Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica e´ que N e´ bem ordenado (todo subconjunto na˜o vazio de N possui menor elemento). Na verdade, o Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica e o Princ´ıpio da Boa Ordenac¸a˜o sa˜o equivalentes, ou seja, supondo um obtemos o outro. Como em nossa construc¸a˜o de N tomamos o Princ´ıpio da Induc¸a˜o Matema´tica como axioma, vamos mostrar agora que este implica o da Boa Ordenac¸a˜o. Definic¸a˜o 1.8.3. Seja A ⊆ N. Dizemos que (i) A possui um menor elemento, ou um elemento mı´nimo, se e somente se existe a∗ ∈ A tal que a∗ ≤ a, ∀ a ∈ A. (ii) A possui um maior elemento, ou um elemento ma´ximo, se e somente se existe a′ ∈ A tal que a ≤ a′, ∀ a ∈ A. Note que se A possui um menor elemento, enta˜o ele e´ u´nico. De fato, se a∗ e a∗∗ sa˜o elementos mı´nimos de A enta˜o, como ambos esta˜o em A, temos a∗ ≤ a∗∗ e a∗∗ ≤ a∗; ou seja, a∗ = a∗∗. Agora podemos falar no elemento mı´nimo (e na˜o um elemento mı´nimo), que denotaremos por min A. Da mesma maneira, se A possui um maior elemento, enta˜o ele e´ u´nico e sera´ denotado por max A. Existem va´rias demonstrac¸o˜es diferentes para o Princ´ıpio da Boa Ordenac¸a˜o (supondo o Princ´ıpio da Induc¸a˜o) escolhemos uma que usa a contraposic¸a˜o do Princ´ıpio da Induc¸a˜o. Teorema 1.8.4. (Princ´ıpio da Boa Ordenac¸a˜o). Se A ⊆ N e´ na˜o vazio, enta˜o A possui menor elemento, ou seja, existe a∗ ∈ N tal que a∗ ≤ x, ∀x ∈ A. Demonstrac¸a˜o. Seja A ⊆ N e A 6= ∅. Se 0 ∈ A enta˜o 0 e´ o menor elemento de A, ja´ que 0 ≤ n, ∀n ∈ N. Podemos supor, enta˜o, que 0 6∈ A, ou seja, que {0} ∩ A = ∅. Seja B o conjunto de todos os nu´meros naturais n tais que {0, 1, 2, 3, . . . , n} ∩ A = ∅, temos que 0 ∈ B. Como A 6= ∅, existe m ∈ A, mas m ∈ {0, 1, 2, 3, . . . ,m} ∩ A, logo m 6∈ B, ou seja, B 6= N. Como 0 ∈ B 6= N, o Princ´ıpio da Induc¸a˜o nos garante que existe n∗ ∈ B tal que n∗ + 1 6∈ B (caso contra´rio B = N). Portanto, {0, 1, 2, 3, . . . , n∗} ∩ A = ∅ e {0, 1, 2, 3, . . . , n∗ + 1} ∩ A 6= ∅. Segue que n∗ + 1 ∈ A ⊆ {n∗ + 1, n∗ + 2, . . .}, e assim, a∗ = n∗ + 1 e´ o elemento mı´nimo de A. Essa proposic¸a˜o garante que todo o subconjunto na˜o vazio de N possui menor elemento, mas e maior elemento? Sera´ que tem? A resposta e´, evidentemente, que na˜o, pois, por exemplo, o conjunto dos nu´meros pares na˜o possui maior elemento. Nos perguntamos quando possui. Dizemos que um conjunto A ⊆ N e´ limitado superiormente se e somente se existir um nu´mero n ∈ N tal que a ≤ n, ∀ a ∈ A. Neste caso, diremos que n e´ uma cota superior para A. A pergunta que surge naturalmente depois dessa definic¸a˜o e´: qual a diferenc¸a entre o maior elemento da Definic¸a˜o 1.8.3 e de cota superior? A diferenc¸a e´ que o maior elemento tem que pertencer ao conjunto, em particular isso garante que ele e´ u´nico, ja´ uma cota superior na˜o, e portanto qualquer nu´mero maior que uma cota superior tambe´m e´ cota superior. O seguinte resultado decorre do Princ´ıpio da Boa Ordenac¸a˜o. Corola´rio 1.8.5. Se A ⊆ N e´ na˜o vazio e limitado superiormente, enta˜o A possui maior elemento. Demonstrac¸a˜o. Seja A ⊆ N, A 6= ∅ e limitado superiormente. Logo, ∃n ∈ N que e´ cota superior de A, ou seja, a ≤ n, ∀ a ∈ A. Tomamos B = {y ∈ N; y = n− a, a ∈ A}. Como A 6= ∅, temos que B 6= ∅, logo B possui menor elemento n− a∗ para algum a∗ ∈ A. Afirmamos que max A = a∗. De fato, para cada a ∈ A temos que n− a ∈ B e, portanto, n− a∗ ≤ n− a, ja´ que min B = n− a∗. Somando a∗ + a e aplicando a Proposic¸a˜o 1.7.3, obtemos n+ a ≤ n+ a∗. Cancelando n, obtemos a ≤ a∗. 17 1.9 Binoˆmio de Newton Nesta sec¸a˜o estudaremos o Binoˆmio de Newton, que e´ uma ferramenta importante para o estudo da Aritme´tica. Nossa abordagem sera´ de um ponto de vista puramente alge´brico. Isto sera´ complementado por uma abordagem do ponto de vista combinato´rio, que sera´ feita posteriormente, na disciplina de Combinato´ria. Consideremos a expressa˜o f(x) = (1 + x)n, onde n ∈ N e x e´ uma varia´vel. Enta˜o f(x) e´ um polinoˆmio de grau n. Por exemplo, (1 + x)2 = 1 + 2x+ x2, (1 + x)3 = (1 + 2x+ x2)(1 + x) = 1 + 3x+ 3x2 + x3, (1 + x)4 = (1 + 3x+ 3x2 + x3)(1 + x) = 1 + 4x+ 6x2 + 4x3 + x4. Enta˜o, (1 + x)n = a0 + a1x+ a2x 2 + · · ·+ akxk + · · ·+ anxn, (11) para certos coeficientes a0, a1, a2, . . . , an. Queremos determinar esses coeficientes ak. Os nu´meros ak sa˜o chamados de coeficientes binomiais e sera˜o denotados por ak = ( n k ) . Com isto, (11) se torna (1 + x)n = ( n 0 ) + ( n 1 ) x+ ( n 2 ) x2 + · · ·+ ( n k ) xk + · · ·+ ( n n ) xn = n∑ k=0 ( n k ) xk. (12) Nosso objetivo e´ determinar uma expressa˜o em forma fechada para os coeficientes binomiais ( n k ) . Observac¸a˜o 1.9.1. Dado um polinoˆmio p(x) = bnx n+bn−1xn−1+· · ·+b1x+b0, costuma-se chamar de rec´ıproco de p(x) o polinoˆmio b0x n+ b1x n−1+ · · ·+ bn−1x+ bn, que se obte´m invertendo a ordem dos coeficientes de p(x). Por exemplo, o rec´ıproco do polinoˆmio p(x) = 2x4+x3− 5x2− 3x+4 e´ o polinoˆmio 4x4− 3x3− 5x2+ x+2. O rec´ıproco de um polinoˆmio p(x) de grau n e´ obtido primeiro substituindo x por 1 x e, em seguida, multiplicando por xn. De fato, se p(x) = bnx n + bn−1xn−1 + · · ·+ b1x+ b0, enta˜o p ( 1 x ) = bn ( 1 x )n + bn−1 ( 1 x )n−1 + · · ·+ b1 ( 1 x ) + b0, de modo que xnp ( 1 x ) = b0x n + b1x n−1 + · · ·+ bn−1x+ bn. Assim, o rec´ıproco de um polinoˆmio p(x) de grau n e´ xnp(1/x). Outra observac¸a˜o importante e´ que o polinoˆmio (1 + x)n e´ o rec´ıproco de si mesmo. De fato, xn · (1 + 1/x)n = (x · (1 + 1/x))n = (1+x)n. Este fato sera´ usado na demonstrac¸a˜o do lema abaixo. Finalmente, observemos que se um polinoˆmio p(x) = bnx n+bn−1xn−1+ · · ·+b1x+b0 e´ o rec´ıproco de si mesmo, enta˜o seus coeficientes sa˜o sime´tricos, ou seja, b0 = bn, b1 = bn−1, b2 = bn−2, . . . . 18 Lema 1.9.2. Para todo n ∈ N∗ e para todo k ∈ N com 0 ≤ k ≤ n, valem as propriedades( n 0 ) = 1; (13)( n n ) = 1; (14)( n k ) = ( n n− k ) . (15) Demonstrac¸a˜o. Para justificar que vale (13), basta tomar x = 0 em (12). Para provar que vale (15), utilizamos os fatos mencionados na Observac¸a˜o 1.9.1 acima. Vimos que o polinoˆmio(1 + x)n = ( n 0 ) + ( n 1 ) x+ ( n 2 ) x2 + · · ·+ ( n k ) xk + · · ·+ ( n n ) xn e´ o rec´ıproco de si mesmo. Logo, seus coeficientes sa˜o sime´tricos, isto e´,( n 0 ) = ( n n ) , ( n 1 ) = ( n n− 1 ) , ( n 2 ) = ( n n− 2 ) , · · · ( n k ) = ( n n− k ) , · · · provando que vale a propriedade (15). A propriedade (14) segue de (13) e (15). Proposic¸a˜o 1.9.3. (Relac¸a˜o de Stifel) Para todo n ∈ N∗ e todo k ∈ N, com 0 ≤ k ≤ n − 1, vale ( n k ) + ( n k + 1 ) = ( n+ 1 k + 1 ) , (16) Demonstrac¸a˜o. Por um lado, temos que (1 + x)n+1 = ( n+ 1 0 ) + ( n+ 1 1 ) x+ ( n+ 1 2 ) x2 + · · ·+ ( n+ 1 n+ 1 ) xn+1. (17) Por outro lado, (1 + x)n+1 = (1 + x) · (1 + x)n = (1 + x) [( n 0 ) + ( n 1 ) x+ · · ·+ ( n n− 1 ) xn−1 + ( n n ) xn ] = ( n 0 ) + [( n 0 ) + ( n 1 )] x+ · · ·+ [( n n− 1 ) + ( n n )] xn + ( n n ) xn+1. (18) Para cada k ∈ {0, 1, 2, . . . , n − 1}, comparando o coeficiente de xk em (17) e na u´ltima linha de (18), obtemos (16). Proposic¸a˜o 1.9.4. Para todos k, n ∈ N∗, com 1 ≤ k ≤ n, temos k! ( n k ) = n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 1)). 19 Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o que para todo n ∈ N∗ vale a propriedade P (n) : k! ( n k ) = n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 1)), ∀ k ∈ N∗, com 1 ≤ k ≤ n. Base de Induc¸a˜o: Verificar que vale P (1). De fato, n = 1 =⇒ k = 1, logo 1! ( 1 1 ) = 1 se verifica. Logo, P (1) e´ verdadeira. Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n, P (n) seja verdadeira. Vamos mostrar que P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Se k = 1 temos, pela relac¸a˜o de Stifel, 1! ( n+ 1 1 ) = 1! · [( n 1 ) + ( n 0 )] . Ja´ sabemos que( n 0 ) = 1 e por hipo´tese de induc¸a˜o que ( n 1 ) = n. Logo, 1! ( n+ 1 1 ) = 1! · [( n 1 ) + ( n 0 )] = n+1. Se k = n+ 1 temos, (n+ 1)! ( n+ 1 n+ 1 ) = (n+ 1)! · 1 = (n+ 1)!. Se 2 ≤ k ≤ n, enta˜o, pela Relac¸a˜o de Stifel, k! ( n+ 1 k ) = k! · [( n k ) + ( n k − 1 )] = k! ( n k ) + k · (k − 1)! ( n k − 1 ) . Aplicando a hipo´tese de induc¸a˜o, obtemos k! ( n+ 1 k ) = [ n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 1)) ] + k · [ n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 2)) ] = n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 2)) · [(n− (k − 1)) + k] = n(n− 1)(n− 2) · · · (n− (k − 2)) · (n+ 1) = (n+ 1)n(n− 1) · · · ((n+ 1)− (k − 1), ou seja, vale para todo k com 2 ≤ k ≤ n. Portanto, se P (n) for verdadeira para algum n enta˜o P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para qualquer n ≥ 1. Corola´rio 1.9.5. Para todos n, k ∈ N, com 0 ≤ k ≤ n, temos( n k ) = n! k!(n− k)! . (19) Demonstrac¸a˜o. Pela Proposic¸a˜o 1.9.4, (19) vale para todo k com 1 ≤ k ≤ n. E´ imediato verificar que (19) vale tambe´m para k = 0. Exemplo 1.9.6. Usando (12), podemos calcular facilmente 100∑ i=0 ( 100 i ) ·7i. De fato, tomando x = 7 em (12), obtemos 100∑ i=0 ( 100 i ) · 7i = (1 + 7)100 = 8100 = (23)100 = 2300. Teorema 1.9.7. (Binoˆmio de Newton) Sejam a, b ∈ R e seja n ∈ N∗. Enta˜o, (a+ b)n = an + ( n 1 ) an−1b+ ( n 2 ) an−2b2 + · · ·+ ( n n− 1 ) abn−1 + bn. (20) 20 Demonstrac¸a˜o. Se a = 0, o resultado e´ imediato. Se a 6= 0, aplicando (12) com x = b a , temos (a+ b)n = an ( 1 + b a )n = an [ 1 + ( n 1 ) b a + ( n 2 )( b a )2 + · · ·+ ( n n )( b a )n] = an + ( n 1 ) an−1b+ ( n 2 ) an−2b2 + · · ·+ ( n n− 1 ) abn−1 + bn. Exemplo 1.9.8. Como uma aplicac¸a˜o direta do Binoˆmio de Newton obtemos, por exemplo, (a+ b)0 = 1 (a+ b)1 = a+ b (a+ b)2 = a2 + 2ab+ b2 (a+ b)3 = a3 + 3a2b+ 3ab2 + b3 (a+ b)4 = a4 + 4a3b+ 6a2b2 + 4ab3 + b4 (a+ b)5 = a5 + 5a3b+ 10a3b2 + 10a2b3 + 5ab4 + b5 Olhando apenas para os coeficientes da tabela acima, costuma-se considerar o chamado triaˆngulo 1 1 1 1 2 1 1 3 3 1 1 4 6 4 1 1 5 10 10 5 1 1 6 15 20 15 6 1 1 7 21 35 35 21 7 1 de Pascal, mostrado a` esquerda. Note que somando as linhas do triaˆngulo de Pascal, obtemos os nu´meros 1, 2, 4, 8, 16, etc, ou seja, poteˆncias de 2. Somos levados assim a conjecturar a seguinte propriedade. Propriedade. ( n 0 ) + ( n 1 ) + ( n 2 ) + · · · + ( n n ) = 2n, ou seja, a soma da linha n do triaˆngulo de Pascal vale 2n. Para provar a propriedade que acabamos de conjecturar, basta tomar a = 1 = b no Binoˆmio de Newton (20). 1 1 1 1 2 1 1 3 3 1 1 4 6 4 1 1 5 10 10 5 1 1 6 15 20 15 6 1 1 7 21 35 35 21 7 1±°²¯ Vamos agora somar os elementos iniciais de uma coluna do triaˆngulo de Pascal. Somando, por exemplo, os ele- mentos da coluna indicada na figura a` esquerda, temos 1+3+6+10+15 = 35. O resultado, 35, e´ um elemento da pro´xima coluna, que aparece circulado na figura. O resultado que encontramos foi( 2 2 ) + ( 3 2 ) + ( 4 2 ) + ( 5 2 ) + ( 6 2 ) = ( 7 3 ) . Somos levados a conjecturar uma outra propriedade. Propriedade. Para quaisquer n, k ∈ N com 0 ≤ k ≤ n, vale( k k ) + ( k + 1 k ) + ( k + 2 k ) + · · ·+ ( n k ) = ( n+ 1 k + 1 ) . (21) Demonstrac¸a˜o. Do lado esquerdo da igualdade temos( k k ) = coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)k 21 ( k + 1 k ) = coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)k+1( k + 2 k ) = coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)k+2 ...( n k ) = coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)n. Portanto, o lado esquerdo de (21) e´ igual ao coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)k + (1 + x)k+1 + (1 + x)k+2 + · · ·+ (1 + x)n. (22) Mas (22) e´ a soma de uma p.g. de raza˜o (1+ x), cujo primeiro termo e´ (1+x)k cujo u´ltimo termo e´ (1 + x)n e, portanto, vale (1 + x)n+1 − (1 + x)k (1 + x)− 1 . Enta˜o, lado esquerdo de (21) = coeficiente de xk no desenvolvimento de (1 + x)n+1 − (1 + x)k x = coeficiente de xk+1 no desenvolvimento de (1 + x)n+1 − (1 + x)k = coeficiente de xk+1 no desenvolvimento de (1 + x)n+1 = ( n+ 1 k + 1 ) , pois o desenvolvimento de (1+x)k na˜o conte´m nenhum termo em xk+1. Esta´ provada a propriedade. Exemplo 1.9.9. O objetivo deste exemplo e´ dar uma aplicac¸a˜o interessante da propriedade (21) do triaˆngulo de Pascal. 1 1 2 1 2 3 1 2 3 4 ... 1 2 3 4 · · · n (a) Comec¸amos mostrando que a soma da k−e´sima linha do triaˆngulo ao lado vale ( k + 1 2 ) . De fato, a soma da k−e´sima linha do triaˆngulo e´ 1 + 2 + 3 + · · ·+ k = k(k + 1) 2 = ( k + 1 2 ) . (b) A seguir, calculamos a soma de todos os elementos do triaˆngulo de duas maneiras diferentes. A primeira maneira consiste em somar as linhas e depois somar os resultados. Somando desse modo, obtemos ( 2 2 ) + ( 3 2 ) + ( 4 2 ) + · · ·+ ( n+ 1 2 ) , que, pela propriedade (21), e´ igual a ( n+ 2 3 ) . A segunda maneira e´ somando primeiro as diagonais e depois somando os resultados. A soma da primeira diagonal e´ 1 + 1 + · · · + 1 = n, a soma da 22 segunda diagonal e´ 2 + 2 + · · ·+ 2 = 2 · (n− 1), e assim por diante. Somando todos os elementos do triaˆngulo dessa segunda maneira, obtemos 1 · n+ 2 · (n− 1) + 3 · (n− 2) + · · ·+ n · 1. Como somamos de maneiras diferentes os mesmos nu´meros, os resultados obtidos, devem coincidir. Obtemos assim a igualdade 1 · n+ 2 · (n− 1) + 3 ·(n− 2) + · · ·+ n · 1 = ( n+ 2 3 ) . J J J J J J JJ J J J J J JJ J J J JJ J J JJ JJ a a′ b b′ c c′ v (c) Vamos agora contar o nu´mero de triaˆngulos com ve´rtice para cima e base para baixo que podem ser vistos em um reticulado como o que esta´ mostrado ao lado, mas formado por n fileiras. Dividimos esses triaˆngulos em casos, conforme em qual linha horizontal esta´ a base. O nu´mero de triaˆngulos com base na linha aa′ e´ 1. O nu´mero de triaˆngulos com base na linha bb′ e´ 1+2, um com ve´rtice em v e dois com ve´rtice sobre a linha aa′. O nu´mero de triaˆngulos com base na linha cc′ e´ 1 + 2 + 3, um com ve´rtice em v, dois com ve´rtice sobre a linha aa′ e treˆs com ve´rtice sobre a linha cc′. E assim por diante. Conclu´ımos que o nu´mero total de triaˆngulos e´ a soma considerada no item (b), ou seja, o total de triaˆngulos e´ ( n+ 2 3 ) . Exemplo 1.9.10. Outra aplicac¸a˜o interessante dos coeficientes binomiais e´ a sua relac¸a˜o com o nu´mero de subconjuntos de um conjunto. Seja A um conjunto com n elementos, n 6= 0. Enta˜o, (i) O nu´mero de subconjuntos de A distintos com i elementos, 0 ≤ i ≤ n, e´ ( n i ) ; (ii) O nu´mero de elementos do conjunto das partes de A e´ 2n. Note que utilizando (i) e (ii) temos uma outra demonstrac¸a˜o de ( n 0 ) + ( n 1 ) + ( n 2 ) +· · ·+ ( n n ) = 2n, ja´ que o conjunto das partes de A e´ o conjunto formado por todos os subconjuntos de A. Demonstrac¸a˜o. Ambas demonstrac¸o˜es sa˜o por induc¸a˜o em n ∈ N∗. (i) Base de induc¸a˜o: Se n = 1 enta˜o os u´nicos subconjuntos de A sa˜o ∅ e Amesmo, confirmando( 1 0 ) = 1 e ( 1 1 ) = 1. Passagem de induc¸a˜o: Suponhamos que para um certo n ∈ N∗, o nu´mero de subconjuntos distintos (de um conjunto com n elementos) com i elementos e´ ( n i ) , ∀i com 0 ≤ i ≤ n. Seja A um conjunto com n + 1 elementos. Podemos escrever A = A′ ∪ {x}, onde x ∈ A e A′ = A − {x}. Logo, A′ tem n elementos. Seja B um subconjunto de A com i elementos, onde 0 ≤ i ≤ n+ 1. Se x 6∈ B, enta˜o B ⊆ A′ e temos, por hipo´tese de induc¸a˜o ( n i ) conjuntos desse tipo. Se x ∈ B, enta˜o B = {x} ∪ C com C ⊆ A′ e o nu´mero de elementos de C e´ i − 1. Neste caso temos ( n i− 1 ) conjuntos distintos desse tipo. 23 Logo, o nu´mero total de subconjuntos de A com i elementos e´ ( n i− 1 ) + ( n i ) = ( n+ 1 i ) , onde a igualdade vale pela fo´rmula de Stiffel. (ii) A demonstrac¸a˜o e´ muito semelhante a anterior e e´ deixada como exerc´ıcio. 2 Divisibilidade em N 2.1 Mu´ltiplos e Divisores Definic¸a˜o 2.1.1. Dados a, b ∈ N e b 6= 0 dizemos que b divide a, ou que a e´ um mu´ltiplo de b, ou ainda que b e´ um divisor de a , e anotamos b | a, se e somente se existe c ∈ N tal que a = b · c. Assim, 3 | 6 pois 6 = 2 · 3. Cuidado! Na˜o devemos confundir o s´ımbolo | com o trac¸o de frac¸a˜o. Note que o c da definic¸a˜o e´ uma soluc¸a˜o da equac¸a˜o bx = a. Esta equac¸a˜o pode na˜o ter soluc¸a˜o em N, por exemplo, 3x = 8 na˜o tem soluc¸a˜o em N, mas sempre tem soluc¸a˜o em Q. Logo, a definic¸a˜o de divisibilidade na˜o faria sentido em Q. Por esse motivo, so´ estudamos divisibilidade em N e posteriormente em Z. Ale´m disso, se bx = a tem soluc¸a˜o, enta˜o esta soluc¸a˜o e´ u´nica. De fato, se c1 e c2 satisfazem a equac¸a˜o, enta˜o bc1 = a = bc2. Como b 6= 0, podemos cancela´-lo e obtemos c1 = c2. Esse inteiro e´ denominado o “quociente” de a por b. Se b = 0, enta˜o bx = 0, para qualquer x ∈ N, portanto, a equac¸a˜o bx = a tem soluc¸a˜o se e somente se a = 0. Nesse caso a soluc¸a˜o da equac¸a˜o na˜o so´ na˜o e´ u´nica, como existe uma infinidade de soluc¸o˜es. Se a = 0 na Definic¸a˜o 2.1.1, temos que b = 0 ou c = 0; em ambos os casos, 0 | a. Assim, 0 | a se, e somente se, a = 0. Desse modo, vemos que o caso b = 0 “estraga” a nossa definic¸a˜o de divisibilidade e, por isso, b 6= 0 na definic¸a˜o. Se bx = a na˜o tem soluc¸a˜o em N, dizemos que b na˜o divide a e anotamos b - a. Observac¸a˜o 2.1.2. Note que a relac¸a˜o de divisibilidade ( | ) tem uma certa semelhanc¸a com a relac¸a˜o de ordem (≤); ela e´ a versa˜o multiplicativa da relac¸a˜o de ordem. • b ≤ a ⇐⇒ (∃ c ∈ N) a = b+ c • b | a ⇐⇒ (∃ c ∈ N) a = b · c Ale´m disso, elas esta˜o relacionadas da seguinte maneira. ∀ a, b ∈ N, b | a e a 6= 0 =⇒ b ≤ a. De fato, b | a e a 6= 0 =⇒ ∃ c ∈ N tal que 0 6= a = b · c, logo, c 6= 0 e portanto 1 ≤ c. Multiplicando por b, temos b ≤ b · c = a. Destacamos treˆs consequeˆncias imediatas dessa relac¸a˜o. (i) ∀ a ∈ N , 1 | a; ja´ que a = a · 1. (ii) ∀ a ∈ N∗ , a | a; ja´ que a = a · 1. (reflexiva) (iii) ∀ a ∈ N∗ , a | 0; ja´ que 0 = a · 0. A seguir coletamos va´rias propriedades de | em uma mesma proposic¸a˜o. Proposic¸a˜o 2.1.3. As seguintes propriedades sa˜o va´lidas. D1 : ∀ a, b ∈ N∗, a | b e b | a =⇒ a = b (anti-sime´trica) D2 : ∀ a, b, c ∈ N∗, a | b e b | c =⇒ a | c (transitiva) 24 D3 : ∀ a, b, c ∈ N , a 6= 0 , a | b e a | c =⇒ a | (b · x+ c · y) , ∀ x, y ∈ N Em particular: a | b =⇒ a | b · x, ∀x ∈ N e a 6= 0 , a | b e a | c =⇒ a | (b+ c). D4 : ∀ a, b, c, d ∈ N , a 6= 0 , c 6= 0 , a | b e c | d =⇒ a · c | b · d. D5 : ∀ a, b, c ∈ N , a 6= 0 e a | (b+ c) =⇒ [ a | b⇐⇒ a | c]. D6 : ∀ a, b, c ∈ N , a 6= 0 , a | b , a | c e c ≤ b =⇒ a | (b− c). Demonstrac¸a˜o. Demonstraremos apenas D1, D3 e D5 as outras provas sa˜o similares e deixamos a cargo do leitor. D1 : Suponhamos que a | b e b | a, logo pela definic¸a˜o de | , ∃u, v ∈ N tais que b = a · u e a = b · v. Substituindo a segunda igualdade na primeira, obtemos b = a · u = b · v · u. Como b 6= 0, cancelamos b e obtemos 1 = v · u, logo u = v = 1; o que implica que a = b. D3 : Suponhamos que a 6= 0 , a | b e a | c, logo, pela definic¸a˜o de divisibilidade, ∃u, v ∈ N tais que b = a · u e c = a · v. Assim, b · x+ c · y = a · u · x+ a · v · y = a · (u · x+ v · y), ∀x, y ∈ N. Logo, a | (b · x+ c · y) , ∀x, y ∈ N. D5 : Suponhamos que a, b, c ∈ N , a 6= 0 e a | (b + c). Enta˜o, ∃ t ∈ N tal que b + c = a · t. Temos que mostrar que vale a equivaleˆncia a | b⇐⇒ a | c. (=⇒) Se a | b, enta˜o ∃ u ∈ N, b = a · u, logo, a · u = b ≤ b + c = a · t; cancelamos a 6= 0 e obtemos u ≤ t. Enta˜o, o elemento t − u ∈ N esta´ definido. Aplicando a Proposic¸a˜o 1.7.5 do cap´ıtulo anterior, temos que c = a · t − b = a · t − a · u = a · (t − u). Assim, existe um elemento v = t− u ∈ N tal que c = a · v. Enta˜o, da definic¸a˜o de divisibilidade, segue que a | c. (⇐=) Ana´logo. Passamos agora a alguns resultados sobre divisibilidade em N que tambe´m podem ser vistos como uma aplicac¸a˜o da divisa˜o polinomial e vice-versa. Dados b, n ∈ N∗ e x uma varia´vel, tomamos o polinoˆmio f(x) = xn − bn. Como b e´ uma raiz de f(x), pois f(b) = bn − bn = 0, sabemos que f(x) e´ divis´ıvel por (x − b), ou seja, existe um polinoˆmio g(x) tal que f(x) = (x− b) ·g(x). Esse polinoˆmio g(x) pode ser obtido fazendo a divisa˜o polinomial usual, onde obtemos f(x) = xn − bn = (x− b) · (xn−1 + b · xn−2 + b2 · xn−3 + · · ·+ bn−2 · x+ bn−1). Fazendo x = a ∈ N, com b < a obtemos an − bn = (a− b) · g(a). Como os coeficientes de g(x) sa˜o nu´meros naturais temos que g(a) ∈ N e portanto (a− b) | (an − bn). Esse resultado tambe´m pode ser demonstrado por induc¸a˜o. Proposic¸a˜o 2.1.4. Sejam a, b, n ∈ N∗ tais que b < a. Enta˜o (a− b) | (an − bn). Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o que para todo n ∈ N∗ vale a propriedade P (n) : (a− b) | (an − bn) ∀ a, b ∈ N∗, com b < a. Base de Induc¸a˜o: Verificar que vale P (1). E´ claro que (a− b) | (a− b). Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n, P (n) seja verdadeira. Vamos mostrar que P (n+1) tambe´m e´ verdadeira, ou seja, que (a−b) | (an+1−bn+1), ∀ a, b ∈ N∗, com b< a. De fato, an+1 − bn+1 = a · an − b · an + b · an − b · bn = (a− b) · an + (an − bn) · b. Como por hipo´tese de induc¸a˜o, (a− b) | (an− bn) e (a− b) | (a− b), temos, por D3, que (a− b) | (an+1− bn+1). Portanto, se P (n) for verdadeira para algum n enta˜o P (n + 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para qualquer n ≥ 1. 25 No caso n = 2 podemos usar a diferenc¸a de quadrados e nem necessitamos fazer a divisa˜o; f(x) = x2 − b2 = (x − b) · (x + b). Para n = 4 tambe´m, f(x) = x4 − b4 = (x2 − b2) · (x2 + b2) = (x+b) · [(x−b) · (x2+b2)]. Note que nos dois casos acima o fator (x+b) esta´ presente; isso acontece em geral. Se o polinoˆmio f(x) = xn − bn, acima, tiver grau par, enta˜o −b tambe´m e´ raiz de f(x), logo, f(x) e´ divis´ıvel por (x − (−b)) = (x + b). Desse modo, existe um polinoˆmio h(x) tal que f(x) = (x+ b) · h(x). Calculando h(x) obtemos, f(x) = xn− bn = (x+ b) · (xn−1− b ·xn−2+ b2 ·xn−3+ · · ·+(−1)kbkxn−(k+1)+ · · ·+ bn−2 ·x− bn−1). Novamente tomando x = a ∈ N, com b ≤ a obtemos an− bn = (a+ b) · h(a). Agora os coeficientes de h(x) na˜o sa˜o todos nu´meros naturais, mas, apesar disso, ainda temos que h(a) ∈ N. De fato, h(a) = (an−1 − b · an−2) + (b2 · an−3 − b3 · an−4) + · · ·+ (bn−2 · a− bn−1) = (a− b) · (an−2 + b2 · an−4 + · · ·+ bn−2). Como a − b ∈ N∗, ja´ que b < a, vemos que h(a) ∈ N∗, pois pode ser obtido multiplicando e somando elementos (a− b), an−2, an−4, . . . , 1, b2, b4, . . . , bn−2, todos eles pertencentes a N∗. Como no caso do resultado anterior, este u´ltimo tambe´m pode ser provado por induc¸a˜o (Exer- c´ıcio). Vejamos uma terceira maneira de provar esse resultado. Proposic¸a˜o 2.1.5. Sejam a, b, n ∈ N∗ tais que b ≤ a. Enta˜o (a+ b) | (a2n − b2n). Demonstrac¸a˜o. Pela Proposic¸a˜o 2.1.4, (a2 − b2) | ((a2)n − (b2)n), ou seja, (a2 − b2) | (a2n − b2n). Mas (a + b) | (a2 − b2), pois a2 − b2 = (a + b)(a − b). Logo, pela propriedade D2 (transitiva) da Proposic¸a˜o 2.1.3, temos que (a+ b) | (a2n − b2n). Um fato similar ocorre quando tomamos q(x) = x2n+1+b2n+1 para b, n ∈ N, −b e´ raiz de q(x) ja´ que q(−b) = (−b)2n+1+b2n+1 = −b2n+1+b2n+1 = 0. Logo, q(x) e´ divis´ıvel por (x−(−b)) = (x+b). Desse modo, existe um polinoˆmio r(x) tal que q(x) = (x+ b) · r(x). Calculando r(x) obtemos, q(x) = x2n+1+b2n+1 = (x+b) ·(x2n−b ·x2n−1+b2 ·x2n−2+ · · ·+(−1)kbkx2n−k+ · · ·−b2n−1 ·x+b2n). Novamente tomando x = a ∈ N, obtemos a2n+1 + b2n+1 = (a + b) · r(a). Do mesmo modo que na proposic¸a˜o anterior, os coeficientes de r(x) na˜o sa˜o todos nu´meros naturais, mas apesar disso temos que r(a) ∈ N. Como no caso anterior, isso pode ser justificado de duas maneiras diferentes, diretamente ou por induc¸a˜o. Para uma justificativa direta, podemos dividir em casos, conforme a ≥ b ou a ≤ b. Por exemplo, se a ≤ b, enta˜o r(a) = a2n + (b2 · a2n−2 − b · a2n−1) + (b4 · a2n−4 − b3 · a2n−3) + · · ·+ (b2n − b2n−1 · a) = a2n + (b− a) · (b · a2n−2 + b3 · a2n−4 + · · ·+ b2n−1) podemos concluir que r(a) ∈ N. No caso em que a ≥ b, por um procedimento ana´logo, obtemos r(a) = (a− b) · (a2n−1 + b2 · a2n−3 + · · ·+ b2n−2 · a)+ b2n e conclu´ımos da mesma forma que r(a) ∈ N. Vejamos agora a justificativa por induc¸a˜o. Proposic¸a˜o 2.1.6. Sejam a, b, n ∈ N tais que a+ b 6= 0. Enta˜o (a+ b) | (a2n+1 + b2n+1). 26 Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o que para todo n ∈ N vale a propriedade P (n) : (a+ b) | (a2n+1 + b2n+1) ∀ a, b ∈ N, com a+ b 6= 0. Base de Induc¸a˜o: Verificar que vale P (0). E´ claro que (a+ b) | (a1 + b1) = (a+ b). Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n, P (n) seja verdadeira. Vamos mostrar que P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira, ou seja, que (a+ b) | (a2(n+1)+1 + b2(n+1)+1) ∀ a, b ∈ N, com a+ b 6= 0. De fato, sem perda de generalidade (spg), podemos supor que b ≤ a. Enta˜o a2(n+1)+1+b2(n+1)+1 = a2 ·a2n+1−b2 ·a2n+1+b2 ·a2n+1+b2 ·b2n+1 = (a2−b2)·a2n+1+(a2n+1+b2n+1)·b2. Pela hipo´tese de induc¸a˜o, temos que (a+ b) | (a2n+1 + b2n+1) e a proposic¸a˜o anterior garante que (a+ b) | (a2 − b2), logo, por D3, (a+ b) | (a2(n+1)+1 + b2(n+1)+1). Note que se a < b, somamos a2 · b2n+1 − a2 · b2n+1 a a2(n+1)+1 + b2(n+1)+1 e obtemos a2(n+1)+1+b2(n+1)+1 = a2 ·a2n+1+a2 ·b2n+1−a2 ·b2n+1+b2 ·b2n+1 = a2 ·(a2n+1+b2n+1)+b2n+1 ·(b2−a2). Do mesmo modo obtemos P (n+ 1). Portanto, se P (n) for verdadeira para algum n enta˜o P (n + 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para qualquer n ∈ N. De posse das treˆs proposic¸o˜es acima podemos determinar divisores de certos nu´meros grandes de maneira fa´cil. Exemplo 2.1.7. Como 44− 27 = 17 e 44 + 27 = 71, temos 17 | (4419 − 2719) e 71 | (4419 + 2719) 17 | (4422 − 2722) e 71 | (4422 − 2722) Note que esses nu´meros sa˜o muito grandes, 4419 − 2719 = 16809712730159890806101837810141 4419 + 2719 = 16812852815958054969325118879267 4422 − 2722 = 1432021408585872913854623018673462007 4422 + 2722 = 1432083214894638179079346859957069065 2.2 Divisa˜o Euclidiana 2.2.1 A segunda forma do Princ´ıpio de Induc¸a˜o Dada uma proposic¸a˜o P (n) envolvendo nu´meros naturais nem sempre e´ fa´cil, ou ate´ poss´ıvel, demonstrar que P (n) =⇒ P (n + 1), muitas vezes necessitamos mais informac¸o˜es. A segunda forma do princ´ıpio de induc¸a˜o garante que podemos usar todos os P (i) anteriores a P (n+ 1). Teorema 2.2.1. (Segunda forma do Princ´ıpio de Induc¸a˜o) Sejam P (n) uma proposic¸a˜o envolvendo um nu´mero natural n e a ∈ N. Se (i) P (a) e´ verdadeira; (ii) P (a) e P (a+ 1) e . . . e P (n) =⇒ P (n+ 1) 27 enta˜o P (n) e´ verdadeira ∀n ≥ a. Demonstrac¸a˜o. Suponhamos que as condic¸o˜es (i) e (ii) sa˜o verdadeiras. Tomamos o conjunto A = {t ∈ N | P (a + t) e´ falsa}. Se A 6= ∅ , enta˜o, pelo Princ´ıpio da Boa Ordenac¸a˜o, existe m ∈ N∗ tal que m = minA. Note que m 6= 0, ja´ que P (a) e´ verdadeira. Assim, se n < m, enta˜o n 6∈ A e, consequentemente, P (a+n) e´ verdadeira. Desse modo, P (a) e P (a+1) e . . . P (a+m−1) sa˜o verdadeiras e por (ii) isso implica que P (m) e´ verdadeira. Contradic¸a˜o. Assim, A = ∅. O exemplo a seguir sera´ revisitado quando estudarmos equac¸o˜es diofantinas. Exemplo 2.2.2. (Problema de Postagem) Qualquer valor de postagem maior ou igual a 12 reais pode ser formado utilizando exclusivamente selos de 4 e 5 reais. Ou seja, (∀n ∈ N) n ≥ 12 =⇒ (∃ k, l ∈ N) t.q. n = 4 · k + 5 · l. Demonstrac¸a˜o. Utilizando a Segunda Forma do Princ´ıpio de Induc¸a˜o, vamos provar que para todo n ≥ 12 vale a propriedade P (n) : (∃ k, l ∈ N) n = 4 · k + 5 · l. Base de Induc¸a˜o: Verificar que vale P (12). De fato, 12 = 3 · 4 + 0 · 5 . Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n, P (i) e´ verdadeira para cada i com 12 ≤ i ≤ n. Vamos mostrar que P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Se n = 12, P (12 + 1), ou seja, P (13) e´ verdadeira, pois 13 = 2 · 4 + 1 · 5. Se n = 13, P (14) e´ verdadeira, pois 14 = 1 · 4 + 2 · 5. Se n = 14, P (15) e´ verdadeira, pois 15 = 0 · 4 + 3 · 5. Se n ≥ 15, notamos que n+ 1 = (n− 3) + 4, e assim utilizamos os selos da postagem de n− 3 mais um selo de 4 reais. Note que 12 ≤ n − 3 ≤ n. Portanto, se P (i) for verdadeira para cada i com 12 ≤ i ≤ n, enta˜o P (n − 3) e´ verdadeira, e conclu´ımos que P (n + 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para qualquer n ≥ 12. O pro´ximo exemplo usa a sequeˆncia de Fibonacci. Exemplo 2.2.3. Sejam Fn a sequeˆncia de Fibonacci definida por F0 = 0, F1 = 1 e Fk = Fk−1 + Fk−2, para k ≥ 2. e α = 1 + √ 5 2 o nu´mero de ouro, ou seja, a soluc¸a˜o positiva da equac¸a˜o x2 − x− 1 = 0 . Enta˜o, (∀n ≥ 3) Fn > αn−2 . Antes de iniciarmos a prova desta proposic¸a˜o fazemos duas observac¸o˜es. (1) Como 2 < √ 5 < 3, temos que 3 < 1 + √ 5 < 4 e assim 3 2 < 1 + √ 5 2 < 4 2 ; ou seja, α < 2. (2) Como α e´ raiz de x2 − x− 1 = 0, temos que α2 − α− 1 = 0, e assim α2 = α+ 1. Demonstrac¸a˜o. Vamos provar por induc¸a˜o que, para todo n ≥ 3, vale a propriedade P(n) : Fn > α n−2. Base de Induc¸a˜o: Verificar que vale P (3). De fato, F3 = F2+F1 = 1+1 = 2 e α 3−2 = α. Logo, pela observac¸a˜o (1), F3 > α. 28 Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n, P (i) e´ verdadeira para cada 3 ≤ i ≤ n. Vamos mostrar que P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira, ou seja, Fn+1 > α (n+1)−2 = αn−1. De fato, pela definic¸a˜o da sequeˆncia de Fibonacci, temos que Fn+1 = Fn + Fn−1. Como P (n) e P (n− 1) sa˜o verdadeiras pela hipo´tese de induc¸a˜o, temos Fn+1 = Fn + Fn−1 > αn−2 + α(n−1)−2 = αn−2 + αn−3 = αn−3 · (α + 1) = αn−3 · α2 = αn−1, onde a penu´ltima igualdade e´ va´lida pela observac¸a˜o (2). Portanto, se P (i) for verdadeira para cada 3 ≤ i ≤ n, enta˜o P (n + 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para qualquer n ≥ 3. 2.2.2 O Algoritmo da Divisa˜o (de Euclides) Sejam n, d ∈ N com d 6= 0. Se n na˜o e´ um mu´ltiplo de d, ou seja, se d - n, podemos nos perguntar dentre os mu´ltiplos de d qual chega mais perto de n. A verdade e´ que sempre poderemos colocar n entre dois mu´ltiplos consecutivos (muito bem escolhidos e determinados) de d. Teorema 2.2.4. (Algoritmo da Divisa˜o) Sejam n, d ∈ N com d 6= 0. Enta˜o, existem e sa˜o u´nicos q, r ∈ N tais que n = q · d+ r, com r < d. Demonstrac¸a˜o. O teorema conte´m duas afirmac¸o˜es independentes, a existeˆncia e a unicidade dos nu´meros q e r. Vamos provar esses dois fatos separadamente. Existeˆncia: Fixemos d ∈ N∗. Vamos mostrar que para qualquer n ∈ N vale P (n) : ∃ q, r ∈ N t.q. n = q · d+ r e r < d. Para isto, vamos utilizar a Segunda Forma do Princ´ıpio da Induc¸a˜o. Base de Induc¸a˜o: P (0) e´ verdadeira. De fato, se n = 0, tomamos q = 0 e r = 0. Passagem de Induc¸a˜o: Suponhamos que, para algum n ∈ N, P (i) e´ verdadeira para todo i ≤ n. Vamos mostrar que P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Dividimos em dois casos. Se n+ 1 < d, tomamos q = 0 e r = n+ 1. Se n + 1 ≥ d, enta˜o o elemento (n + 1 − d) ∈ N esta´ bem definido e satisfaz n + 1 − d ≤ n. Enta˜o, pela hipo´tese de induc¸a˜o, existem q′, r′ ∈ N tais que n+ 1− d = q′ · d+ r′ e r′ < d. Segue que n+ 1 = d+ q′ · d+ r′ = (q′ + 1) · d+ r′. Enta˜o, definindo q = q′ + 1 e r′ = r, temos que existem q, r ∈ N tais que n+ 1 = q · d+ r e r < d, ou seja, P (n+ 1) tambe´m e´ verdadeira. Logo, P (n) e´ verdadeira para todo n ∈ N. Desse modo a existeˆncia esta´ demonstrada. Passemos agora a` prova da unicidade. Unicidade: Sejam q1, q2, r1, r2 ∈ N tais que n = q1 · d+ r1 , n = q2 · d+ r2 , r1 < d e r2 < d. Precisamos mostrar que r1 = r2 e q1 = q2. Sem perda de generalidade, podemos supor que r1 ≤ r2 (temos um par de restos, reservamos o s´ımbolo r1 para o menor dos dois). Assim, esta´ bem definido r2 − r1 ∈ N. Da igualdade q1 · d + r1 = n = q2 · d + r2 e da definic¸a˜o de subtrac¸a˜o, temos q1 · d = q2 · d + (r2 − r1). Como d | q1 · d, temos que d divide a soma d | ( q2 · d + (r2 − r1) ) e d divide a parcela d | q2 · d. Logo, pela propriedade D5, d | (r2 − r1). Mas r2 − r1 ≤ r2 < d. Se r2 − r1 fosse diferente de 0, enta˜o d ≤ r2 − r1, o que contradiz que r2 − r1 < d. Logo, r2 − r1 = 0, isto e´, r1 = r2. 29 Segue que q1d = q2d. Como d 6= 0, pela lei do cancelamento, conclu´ımos que q1 = q2. Os nu´meros q e r do teorema anterior sa˜o chamados, respectivamente, de quociente e resto da divisa˜o de n por d. Corola´rio 2.2.5. Sejam a, b ∈ N tais que 1 ≤ a ≤ b. Enta˜o existe n ∈ N tal que n·a ≤ b < (n+1)·a. Demonstrac¸a˜o. Pelo Teorema 2.2.4 acima, existem e sa˜o u´nicos os nu´meros q e r ∈ N tais que b = q · a + r com r < a. Tomamos q = n e obtemos, b = n · a + r; como r < a, temos b = n · a+ r < n · a+ a = (n+1) · a. Por outro lado, n · a ≤ n · a+ r = b. Assim, n · a ≤ n · a+ r = b < n · a+ a = (n+ 1) · a. O Algoritmo da Divisa˜o e´ um dos resultados mais ba´sicos e importantes da Aritme´tica. A seguir, veremos alguns exemplos, com o objetivo de dar uma ideia de sua utilidade. Exemplo 2.2.6. Vamos determinar o quociente e o resto da divisa˜o de 53 por 7. Calculando os mu´ltiplos de 7, vemos que 49 = 7 · 7 < 53 < 7 · 8 = 56. Logo, r = 53 − 7 · 7 = 53 − 49 = 4 < 7 e q = 7. A ideia em geral e´ a mesma. Quando dividimos n por d, determinamos o menor m ∈ N tal que md > n e o quociente q sera´ o antecessor desse m. O resto e´ obtido calculando r = n− q · d. Isso legitima o algoritmo conhecido. 53 | 7 −49 7 4 Exemplo 2.2.7. Vamos agora dividir 533 por 7. Pelo algoritmo usual temos, 533 | 7 −49 76 43 −42 1 Na primeira etapa do algoritmo, o 7 do quociente e´ o algarismo das dezenas do quociente procurado. Pelo exemplo anterior 53 = 7 · 7 + 4, multiplicando por 10 temos 530 = 70 · 7 + 40, somando 3 finalizamos com 533 = 70 · 7+43. Utilizando o teorema para dividir 43 por 7 obtemos, 43 = 6 · 7 + 1. Substituindo na u´ltima equac¸a˜o, temos 533 = 70 · 7 + 43 = 70 · 7 + 6 · 7 + 1 = 76 · 7 + 1. Exemplo 2.2.8. Na coluna da esquerda abaixo, esta´ mostrado um ca´lculo, como se costuma fazer 2 −1 1 9 1 2 1 −8 5 8 6 −6 8 7 6 −5 1 5 8 6 6 2 1 1 7 3 4 5 0 7 58 = 3 · 17 + 7 76 = 4 · 17 + 8 86 = 5 · 17 + 1 12 = 0 · 17 + 12 121 = 7 · 17 + 2 580000− 70000 = 30000 · 17 76000− 8000 = 4000 · 17 8600− 100 = 500 · 17 120− 120 = 00 · 17 121− 2 = 7 · 17 »»» » ¡ »» »» ¡ »»» ¡ » »» ¡¡ utilizando o algoritmo usual. Na coluna do meio esta˜o mostrados os ca´lculos que foram feitos na coluna da esquerda. Finalmante, na coluna da direita, o resto foi subtra´ıdo de ambos os lados e as igualdades foram multiplicadas por poteˆncias convenientes de 10. 30 Somando as igualdades da u´ltima coluna, os cancelamentos indicados surgem naturalmente e obtemos 580000 + 6000 + 600 + 20 + 1− 2 = 30000 · 17 + 4000 · 17 + 500 · 17 + 7 · 17 e, portanto, 586621 = 34507 · 17 + 2 . Exemplo 2.2.9. Quando dividimos um nu´mero natural n por d = 2, temos apenas duas possibi- lidades para o resto r, r = 0 ou r = 1, pois r < 2 = d. Se r = 0 enta˜o n = 2 · k para algum k ∈ N, neste caso dizemos que n e´ par. Se r = 1 enta˜o n = 2 · t+ 1 para algum t ∈ N, neste caso dizemos que n e´ ı´mpar. Assim podemos dividir o conjunto dos nu´meros naturais em dois subconjuntos disjuntos, o conjunto dos nu´meros pares e o conjunto dos nu´meros ı´mpares. A classificac¸a˜o feita no exemplo acima pode ser generalizada, faremos isso com mais detalhes no cap´ıtulo dos nu´meros inteiros; entretanto ilustramos ainda os casos d = 3 e d = 4. Exemplo 2.2.10. Quando dividimos um nu´mero natural n por d = 3 temos treˆs possibilidades para o resto r, r = 0 ou r = 1 ou r = 2. Assim, n pode ser escrito de uma e somente uma da seguintes formas, n = 3 · k ou n = 3 · k + 1 ou n = 3 · k + 2. Assim, de maneira semelhante a` classificac¸a˜o dos nu´meros naturais em pares e ı´mpares, podemos classifica´-los (na˜o existe uma nomenclatura especial, neste caso) como pertencentes a um e apenas um dos subconjuntos da decomposic¸a˜o N = {0, 3, 6, 9, . . .} ∪ {1, 4, 7, 10, . . .} ∪ {2, 5, 8, 11, . . .}. Analogamente, considerando o resto na divisa˜o por 4, qualquer nu´mero natural n pode ser escrito de uma e somente uma das formas, n = 4 · k ou n = 4 · k + 1 ou n = 4 · k + 2 ou n = 4 · k + 3. Como uma aplicac¸a˜o interessante dessa classificac¸a˜o, vamos provar a propriedade seguinte. Propriedade. ∀n ∈ N, 3 | n(n + 1)(n + 2). Em outras palavras, o produto de treˆs nu´meros naturais consecutivos e´ sempre um mu´ltiplo de 3. Demonstrac¸a˜o. Para provar, dividimos em treˆs casos. Caso 1 : Se n e´ da forma n = 3k. Enta˜o, n(n+ 1)(n+ 2) = 3k(n+ 1)(n+ 2). Segue que ∃ c = k(n+ 1)(n+ 2) ∈ N tal que n(n+ 1)(n+ 2) = 3c. Logo, 3 | n(n+ 1)(n+ 2). Caso 2 : Se n e´ da forma n = 3k + 1. Enta˜o, n+ 2 = 3k + 1 + 2 = 3(k + 1) e, portanto, n(n+ 1)(n+ 2) = 3n(n+ 1)(k + 1). Logo, temos, tambe´m neste caso, que 3 | n(n+ 1)(n+ 2). Caso 3 : Se n e´ da forma n = 3k + 2. Enta˜o, n+ 1 = 3k + 2 + 1 = 3(k + 1) e, portanto,
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