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1 A SEXUALIDADE INFANTIL E O DESEJO DO SABER Jacqueline Ferreira de Souza (1) Helena Maria Melo Dias (2) Kelvinn Modesto Carvalho Barbosa (3) 1Tribunal de Justiça do Estado do Amapá 2 Universidade do Estado do Para 3 Círculo Psicanalítico de Minas Gerais/Sessão Belém A descoberta do inconsciente e da relevância da sexualidade na constituição do psiquismo constitui a base das elaborações psicanalíticas. No texto “Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade” publicado em 1905, Freud lançou as bases para a compreensão do desenvolvimento da sexualidade infantil e consequentemente da sexualidade humana. Para tanto, introduziu e trabalhou um dos conceitos fundamentais em Psicanálise: a pulsão. Conforme Laplanche e Pontalis (2001) a pulsão pode ser entendida como uma carga energética, pressão ou força que faz o organismo tender para um objetivo; é um processo dinâmico que se origina em uma tensão corporal (fonte pulsional) tendo o objetivo de mobilizar o organismo para suprimir tal estado de tensão, encontrando um objeto que possa satisfazê-lo. Assim, “é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir sua meta” (2001, p. 394) O termo ‘pulsão’ foi usado para traduzir, nas obras de Freud, o seu equivalente alemão “trieb”, em seu significado enfatiza mais a impulsão, ou o ato de impelir de forma irreprimível, do que uma finalidade definida com objetivo e objeto fixos. É neste aspecto que o conceito de pulsão mostra-se como uma maneira de contrapor a noção de instinto ao se tratar da sexualidade humana, visto que, este último, carrega em seu significado a designação de um comportamento hereditariamente fixado, característico de uma espécie (objetos e objetivos fixos e pré-determinados, correspondendo a uma 2 finalidade) variando pouco de um indivíduo para o outro (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). Desta forma, a concepção inovadora de Freud sobre a sexualidade, tal como a experiência analítica o conduziu a elaborar, emergiu progressivamente da noção comum e dominante na sua época – segundo a qual sexualidade seria um comportamento regido pelo instinto destinado à união dos órgãos genitais de dois parceiros de sexo oposto com fins de reprodução da espécie – para uma ideia mais extensa e abrangente, de sexualidade regida pela pulsão, tendo em vista que esta não pode ser reduzida à genitalidade, pois as zonas genitais não são as únicas zonas erógenas, e a reprodução da espécie não é única finalidade do exercício da sexualidade, sendo, portanto, variáveis os objetivos e objetos da pulsão (MILLOT, 1986). Assim, a labilidade destaca-se como característica principal da pulsão freudiana, assinalando que não há uma determinação natural da pulsão sobre seu objeto como ocorre na noção do instinto animal, logo, a relação que une um sujeito aos seus objetivos sexuais podem ser trocados com frequência e a finalidade buscada pode ser outra distinta do coito ‘normal’. Com esta nova forma de compreender a sexualidade humana, foi subvertida pela Psicanálise, a ideia de sexualidade baseada no instinto, que tinha como fundamento se tratar de uma ação biológica na qual o circuito da satisfação estaria regulado por um objeto e objetivo a priori fixados. Para Freud (1905) a perversão - definida como padrão de desvio em relação ao ato sexual com obtenção de orgasmo por penetração genital do sexo oposto - é considerada inata e parte da constituição normal da sexualidade, sendo inerente a todos os seres humanos. O autor chega a esta conclusão ao voltar-se aos momentos da constituição da sexualidade, ainda na infância, quando segundo suas observações e postulados, são demonstráveis as fases e desvios que a pulsão sexual passa ao evoluir até o domínio das práticas genitais, tendo estas o objetivo do prazer orgástico ou da procriação. Os desvios que a pulsão sexual sofre durante a infância foram considerados por Freud como decomposição desta pulsão, formando o que chamou de pulsões parciais. As pulsões parciais são cada um dos aspectos perversos presentes na sexualidade infantil, manifestações da descoberta do prazer, experimentadas pela estimulação de determinadas áreas do corpo (zonas erógenas) vividas livremente pela criança em um momento no qual o domínio da zona genital ainda não foi despertado. Tratam-se, portanto, de pulsões dirigidas ao próprio corpo (auto-eróticas), não buscando ainda 3 outro corpo para satisfazerem-se, como acontecerá com o desenvolvimento da genitalidade, quando as pulsões parciais se reunirão sob a primazia da zona genital, passando a necessitar de um objeto para dirigir seu impulso (KUPFER, 2006). Para Freud (1905) são expressões das pulsões parciais e manifestações observáveis da sexualidade infantil: como o ato de chucar (repetição rítmica de sucção, com a boca), o qual já demonstraria um primeiro descolamento da necessidade de nutrição do prazer da sucção (mamar no seio), pois, a criança frequentemente toma partes de seu próprio corpo como objeto para exercer esta ação. A retenção e expulsão das fezes, já no período de treino ao toilet, em que estimulação erógena da zona anal produz sensações de prazer. Finalmente, a atividade masturbatória que surge em geral, antes do quarto ano de vida da criança e que tende a ser recalcada no período de latência. Embora se destaque as zonas erógenas como pontos de excitabilidade devido à estimulação, é importante ressaltar que na concepção freudiana todo corpo é erógeno e, “assim, a sexualidade humana se constitui por meio da gradativa erogeneização do corpo pulsional, um processo a rigor interminável, havendo sempre a promessa e a possibilidade da constituição de experiências inéditas de obtenção de prazer.” (KUPERMAN, 2008, p. 231) - Evolução da libido A psicanálise, a exemplo da biologia evolucionista e da psicologia, sempre teve o cuidado de diferenciar os momentos da vida ou etapas que o sujeito passa em sua evolução através da noção de fases ou estádios. Deste modo, no que concerne à sexualidade humana, após várias reformulações e considerações adicionais, Freud, já em 1915 (dez anos após a primeira publicação dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade) convencionou chamar de fase ou estádio oral o primeiro momento desta evolução libidinal, no qual se destaca a sucção oral, ou o chucar. O segundo momento considerou-se a fase/estádio anal; o terceiro momento, a fase fálica ou organização genital infantil e por último, a fase/estádio genital propriamente dita, considerada definitiva sendo atingida somente na puberdade (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). É importante esclarecer que uma fase não elimina a outra, o que se toma em consideração é o predomínio da libido em determinada zona erógena. Na fase oral, observa-se que o prazer sexual está predominantemente ligado à excitação da cavidade bucal e dos lábios que acompanha a alimentação. Assim, considera-se que a sexualidade infantil surge apoiada em uma função vital (no caso, 4 necessidade de alimentação), e dissocia-se desta, tornando-se independente e passando a satisfazer-se de forma auto-erótica. Desta perspectiva, a criança, a priori, mama para suprir a fome, mas ao registrar a sensação de prazer oriunda do contato da zona oral com o seio, passa a estimular esta fonte pulsional de várias maneiras, como por exemplo, ao levar objetos à boca ou chupar o próprio dedo; assinalando o surgimento do registro do prazer e consequentemente, do desejo (pulsão sexual) (FREUD, 1905; LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). Na fase anal, geralmente vivenciada após a criança obter o controle esfincteriano, destaca-se a organização da libido sob a primazia da região erógenaanal; este período corresponde ao momento em que a criança começa a controlar a retenção e expulsão das fezes, produzindo sensações de prazer. Nesse processo de evolução libidinal, a fase fálica ou organização genital infantil constitui o momento em que as pulsões parciais reúnem-se sob o primado das zonas genitais, sendo que, ainda não se trata de uma submissão completa das pulsões parciais, como acontecerá na puberdade por ocasião da genitalidade definitiva. Neste período, de organização genital infantil, a criança descobre a diferença dos sexos, reconhecendo apenas um órgão genital, o masculino (falo); de forma que a oposição entre os sexos corresponde inconscientemente à oposição “fálico/castrado”. É durante a fase fálica que acontecerá o momento culminante e o declínio das fantasias de amor e hostilidade infantil dirigidas às figuras parentais - o Complexo de Édipo (LAPLANCHE e PONTALIS, 2001). De acordo com Kupfer (2006) o que se costuma transmitir a respeito das descobertas de Freud é que ele é o responsável pela descrição do desenvolvimento afetivo-emocional das crianças, o qual começaria com a fase oral, em que predominam os interesses ligados à boca, posteriormente a fase anal, quando os interesses se ligam ao prazer de defecar e manipular as fezes e uma fase fálica, em que a criança se interessa pela existência do pênis. Contudo, para a autora, o que Freud na verdade intentou construir foi um modelo dos processos através dos quais um indivíduo se torna sexuado, já que sua teoria preconiza uma sexualidade que não é determinada pela biologia. É nesse ponto de suas elaborações teóricas que gradualmente instituiu o Complexo de Édipo como conjunto conceitual chave para compreensão de como um indivíduo “aprende” a se tornar mulher ou homem segundo o modelo fornecido por aqueles ocuparem a função de pai e mãe. 5 O Complexo de Édipo passa a ser então uma estrutura pré-fixada, uma espécie de roteiro que pai, mãe e filho (a) irão preencher quando chegar a hora, pois de acordo com a teoria psicanalítica, talvez estivesse reservado a todos dirigir à mãe o primeiro impulso sexual e ao pai o primeiro sentimento de ódio e desejo destruidor. Neste momento, muitas são as colorações afetivo-emocionais vivenciadas pelas crianças em relação aos seus pais, até que enfim possam articular seu desejo com a lei humana universal de proibição ao incesto. Logo, em jogo na vivência do Complexo de Édipo, está a necessidade da criança de definir seu lugar no desejo de seus pais e consequentemente no mundo, e esse lugar é a princípio um lugar sexual (KUPFER, 2006). A passagem pelo Édipo é considerada o momento crucial, no qual a vida sexual da criança chega a sua florescência, o que de acordo com Freud (1905) ocorre entre os três e cinco anos de idade. Surge ainda neste momento, atraída ou até despertada pelos problemas sexuais, os quais correspondem às questões existenciais da criança quanto ao seu nascimento (de onde vêm os bebês?) e posteriormente quanto à diferença dos sexos - a pulsão de saber. Como toda pulsão sexual não genital (parcial), a pulsão de saber não tem seu fim determinado pelo instinto, de maneira que muitas e variadas podem ser sua forma de satisfação, assim, tanto pode dar origem a atividades de investigação e construção de conhecimento de valor social elevado, como igualmente, aos sintomas neuróticos (KUPFER, 2006; MILLOT,1986). A pulsão de saber ou investigar constitui-se em uma forma sublimada de dominação e uma energia escopofílica (prazer de ver). Uma pulsão sublimada é aquela que deriva para um alvo não-sexual, sendo que este alvo figura como algo socialmente valorizado. A energia que empurra a pulsão continua a ser sexual (a libido), mas o objeto não é mais. Desta forma, espera-se que ao final da vivência edipiana, parte das investigações sexuais das crianças sofra repressão e outra parte sublime-se em pulsão de saber associada a pulsões de domínio e a pulsões de ver, ou seja, a pulsão sublimada de investigação associa-se com o dominar o objeto (tocá-lo, desmontá-lo, dissecá-lo) poder vê-lo, de maneira que derivam da pulsão de saber o prazer de pesquisar, o interesse por observar a natureza, o gosto pela leitura, o prazer de viajar (ver coisas novas e distantes) etc. (KUPFER, 2006). É importante destacar, deste modo, que para a psicanálise o que impulsiona o desenvolvimento intelectual é de cunho sexual, pois se trata da pulsão sexual sublimada. 6 Logo, a curiosidade intelectual filia-se a curiosidade sexual e a inteligência emerge deste apoio da pulsão de saber na pulsão sexual. Nas palavras de Kupermann: “as primeiras inquietações vividas pelo intelecto podem ser definidas como o enigma das origens; o enigma do amor; e o enigma da diferença sexual.” (KUPERMANN, 2008, p. 231) Para Millot (1986) a descoberta da sexualidade infantil, ao mesmo tempo em que indica o reconhecimento de uma atividade sexual espontânea na criança (como a atividade masturbatória), desvela a existência de pulsões sexuais não genitais, com toda sua carga de importância na formação da neurose e no desenvolvimento do indivíduo – a partir de então, a explicação para a origem da neurose passa a ser compreendida como a sobrevivência inconsciente das tendências sexuais infantis. O ser humano padeceria de um infantilismo em sua sexualidade, ou seja, predomínio de tendências perversas e zonas erógenas não genitais. Tais tendências perversas são as que podem sofrer o recalque dando origem aos sintomas neuróticos. Isso revela que no processo de evolução pulsional estão presentes os mecanismos psíquicos inconscientes da fixação e da regressão. - Inibição intelectual Segundo Freud (1926), a inibição é uma expressão do EU, sendo, até certo ponto, a diminuição normal da função. Porém, nos quadros neuróticos, a inibição representa o abandono ou renúncia de tal função, porque sua prática produzia angústia, podendo, em certos casos, ser considerada como um sintoma, pois funciona sob a lógica de formação de compromisso entre sistemas psíquicos. Assim, cada vez que a sexualidade associada a um ato é excessiva, ao ponto de pôr em risco certo equilíbrio do psiquismo, o mecanismo da inibição é acionado impedindo o acesso de idéias incompatíveis com o EU à consciência. É válido ressaltar que a inibição do objetivo de uma pulsão não ocorreria sem uma satisfação parcial, pois quando o prazer decorrente de um ato é renunciado, a pulsão se reorienta por outros caminhos a fim de obter satisfação, o que ocorre, no caso da inibição intelectual, de forma sintomática e neurótica. Para Cordié (1996), o sujeito, ao manifestar a inibição intelectual, revela alguma coisa de sua verdade por meio de um “não” de recusa, esse “não” não é produzido no discurso, mas é produzido no ato, a parada de pensar, ato este significativo, pois não depende da vontade consciente, sendo antes de tudo, do âmbito inconsciente. Dessa perspectiva, para este autor, o mecanismo de inibição intelectual é o mecanismo original 7 da maior parte dos comportamentos de fracasso escolar, tendo em vista que, para a psicanálise é impossível dissociar a compreensão do funcionamento intelectual de tudo aquilo que constitui o ser, como seus afetos, a libido, fantasias, pulsões, desejos e modo de ser no mundo. Considerações finais Considera-se que no momento atual já existe uma produção teórico-clínica suficientemente rica de sustentação da psicanálise em ambiente institucional escolar. Assim, a psicanálise e a educação ao caminharem juntas a uma abordagem da criança com problemas de aprendizagem, instigam cada vez mais psicanalistas e educadores arefletir nos “impossíveis” de suas práticas, registrando aqui o desejo de que esses profissionais, na busca dos “modos de como fazer”, sejam cada vez mais operativos e assim se pautem na educação para o sujeito e a educação do futuro. REFERÊNCIAS CORDIÉ, A. Os atrasados não existem: psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905) ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1980. FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e angústia. (1926[1925]) ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1980. KUPFER, Maria Cristina. Pequeno Hans: uma educação psicanaliticamente orientada. Seminário LEPSI/USP, 2006. KUPERMANN, Daniel. Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2001. MILLOT, Catherine. Freud, antipedagogo. Rio de Janeiro: Zahar editor, 1986. 8 Sobre os autores Jaqueline Ferreira de Sousa Psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, Especialista em Psicologia Educacional. Endereço: Rodovia JK, Nº 3481, Jardim Marco Zero, Macapá AP. Telefone: (96) 8124-8822. Email: Jacque_jfs@hotmail.com Helena Maria Melo Dias Psicóloga, Psicanalista, Professora Adjunta IV da Universidade do Estado do Pará/UEPa. Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/AUPPF. Endereço: Av. Gov. José Malcher, 2858, apto 200. Cep 66090-100. Telefone (91)3246- 6131/(91) 8228-6262. E-mail: hmelodias@uol.com.br Kelvinn Modesto Carvalho Barbosa Escola Superior da Amazônia, aluno do curso de formação em Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais/CPMG, sessão Belém. Endereço: Rodovia Artur Bernardes, Condomínio Alto de Pinheiros, Rua equador, Quadra 09, Lote 31. CEP: 66816800. Telefone (91)81318461/(91)93287274. Email: psikelvinn@gmail.com
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