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AT Pentateuco e Históricos (Apostila 2) 2015-2

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DIOCESE DE ESTÂNCIA/SE
INSTITUTO DE TEOLOGIA SÃO JOÃO XXIII
BÍBLIA II (Pentateuco e Livros Históricos)
Pe. Fagner Santos de Oliveira
DIOCESE DE ESTÂNCIA/SE
INSTITUTO DE TEOLOGIA BEATO SÃO XXIII
Curso: Teologia
Disciplina: Bíblia II (Pentateuco e Livros Históricos)	
Docente: Pe. Fagner Santos de Oliveira(
Discente:
Período curricular: 2015/2
PLANO DE ESTUDO
Aulas de 1 a 5 (08 de agosto): O Pentateuco (etimologia; os nomes dos livros; seções mais importantes; principais dificuldades; teorias de sua composição) (slide) (vídeo “O milagres de Moisés no Mar Vermelho”, 20min) (Atividade 1: objetiva, individual, com consulta)
Aulas de 6 a 10 (12 de setembro): Exegese de Gn 1-11 (1ª parte) (o hexaémeron; as origens do mundo e do homem; e, a queda original) (texto) (Atividade 2: apresentação dos grupos 1, 2 e 3, e entrega das questões) (vídeo “A criação do Universo”, 9min)
Aulas de 11 a 15 (31 de outubro): Exegese de Gn 1-11 (2ª parte) (Caim e Abel; o dilúvio bíblico; e, os setenta povos, Babel) (texto) (Atividade 2: apresentação dos grupos 4, 5 e 6, e entrega das questões) (vídeo “A arca de Noé”, 9min) (Atividade 3: objetiva, em dupla, com consulta)
Aulas de 16 a 20 (21 de novembro): Livros Históricos ou Livros da Tradição Profética Oral (1ª parte): Josué; Juízes; Rute; 1-2 Samuel; 1-2 Reis; Obra do cronista (1-2 Crônicas, Esdras e Neemias); Tobias; Judite, Ester; e, 1-2 Macabeus (slide) (vídeo “Os Dez mandamentos de Moisés”, 20min) (Atividade 4: objetiva, individual, com consulta)
( Pe. Fagner Santos de Oliveira, nascido aos 18 de Fevereiro de 1985, é natural de Lagarto/SE, e pertence ao clero da Diocese de Estância, SE. É bacharel em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santo Alberto Magno, de União da Vitória/PR (2006), e também licenciado em Filosofia pela Faculdade Católica de Anápolis/GO (2013); bacharel em Teologia pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santo Alberto Magno, de União da Vitória/PR (2009), e também bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba/PR (2010); pós-graduado em Filosofia pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá/RJ (2012); licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (2013); e, possui pós-graduação em Sagrada Escritura pelas Faculdades Claretianas (2014). Ordenado Sacerdote aos 23 de Abril de 2010, foi vigário da Paróquia de N. Sra. da Guia (em 2010). Atualmente é o reitor do Seminário Propedêutico N. Sra. de Guadalupe (desde 2010), vigário da Paróquia N. Sra. de Guadalupe, Catedral de Estância (desde 2011), promotor vocacional diocesano (desde 2012) e diretor do Instituto de Teologia São João XXIII, da Diocese de Estância/SE (desde 2012). Também é membro do Colégio de Consultores e do Conselho Presbiteral Diocesano (desde 2010). Lecionou a disciplina de Atos, Cartas Paulinas e Católicas, no Curso de Teologia de Leigos da Diocese de União da Vitória/PR, em 2009; a disciplina de Introdução à Bíblia no Curso de Teologia para Leigos da Paróquia de N. Sra. da Guia, em Umbaúba/SE, no ano de 2010; a disciplina de Introdução à Bíblia nos Cursos de Escola da Fé da Paróquia de Senhora Sant’Ana, em Boquim/SE e da Paróquia de Santa Luzia, em Santa Luzia do Itanhi, no ano de 2011; em 2012 lecionou as disciplinas de Bíblia I (AT: Pentateuco e Livros Históricos) e Bíblia II (AT: Escritos Sapienciais e Proféticos), em 2013, as disciplinas Bíblia I (AT: Pentateuco e Livros Históricos), Bíblia II (AT: Escritos Sapienciais e Proféticos), Bíblia III (NT: Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos), Bíblia VI (NT: Cartas Paulinas), em 2014, as disciplinas Bíblia I (AT: Pentateuco e Livros Históricos), Bíblia II (AT: Escritos Sapienciais e Proféticos) e Bíblia III (NT: Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos), em 2015, as disciplinas Bíblia I (Introdução e História de Israel) e Teologia Sistemática III (Trindade), No Instituto de Teologia São João XXIII, da Diocese de Estância; atualmente leciona na mesma instituição as disciplinas Bíblia II (Pentateuco e Históricos) e Bíblia VI (Cartas Paulinas); e a disciplina Introdução à Bíblia, no Seminário Propedêutico N. Sra. de Guadalupe. Igualmente, é titular da disciplina de Introdução à Bíblia no Seminário Propedêutico N. Sra. de Guadalupe, em Estância/SE, desde 2010; e das disciplinas Bíblia I (Introdução e História de Israel), Bíblia II (AT: Pentateuco e Livros Históricos), Bíblia III (AT: Escritos Sapienciais e Proféticos), Bíblia IV (NT: Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos), Bíblia VI (NT: Cartas Paulinas), Bíblia VII (Métodos de Leitura Bíblica), Bíblia VIII (Hermenêutica Bíblica Contextualizada) e Bíblia IX (Livros Apócrifos e Pseudepígrafos) no Instituto de Teologia São João XXIII, da Diocese de Estância, em Estância/SE, desde 2012. Por fim, é coordenador do Serviço de Animação Vocacional Diocesano (desde 2014) e assessor eclesiástico da Pastoral Universitária da Diocese de Estância (a partir de 2015). (Email: fagnerdeoliveira@hotmail.com)
Parte I – O PENTATEUCO
CONTEÚDO
ANTIGO TESTAMENTO (= 46 livros)
Pode ser dividido em 4 blocos:
 PENTATEUCO (= 5 livros);
 LIVROS HISTÓRICOS ou Livros da Profecia Oral (= 16 livros);
 Livros Sapienciais (= 7 livros);
 Livros Proféticos ou Livros da Profecia Escrita (= 18 livros).
PENTATEUCO:
Etimologia de PENTATEUCO:
A palavra “Pentateuco” (Pentáteukhos biblos) provém dos Padres gregos (Cirilo de Alexandria, †444), significa “livro em cinco estojos”.
Os nomes dos livros:
Os nomes dos livros, em grego referem-se ao conteúdo, enquanto no hebraico usa-se a primeira palavra (ou as primeiras) do livro:
	Grego
	Hebraico
	Gênesis (Origem)
	Bereshit (No princípio)
	Êxodos (Saída)
	Shemot (Nomes)
	Leuítikon (dos Levitas)
	Wayyikrá (E chamou)
	Arithmói (lat. Numeri)
	Bammidbar (No deserto)
	Deuteronómion (Segunda Lei)
	Debarim (Palavras)
Seções mais importantes:
GÊNESIS:
Gn 1-11: História das Origens;
Gn 12-50: História dos Patriarcas.
ÊXODO:
Ex 1-18: Israel no Egito, Pragas, Saída, caminhada até chegar aos pés do Monte Sinai;
Ex 19-40: Aliança do Sinai (Decálogo, Código da Aliança, construção do Santuário).
LEVÍTICO:
Leis sacerdotais:
1-7: Sacrifícios; 
8-10: Sacerdotes; 
11-16: Pureza; 
17-26: Código de Santidade; 
27: Apêndice.
NÚMEROS:
Nm 1-10: Preparativos para a marcha;
Nm 11-19: Marcha até Cades;
Nm 20-36: De Cades a Moab.
DEUTERONÔMIO:
Dt 1,1-4,43: Primeiro discurso de Moisés;
Dt 4,44-28,69: Segundo discurso de Moisés;
Dt 29-30: Terceiro discurso de Moisés;
Dt 31-34: Fim da vida de Moisés.
Em grandes linhas temos um percurso histórico:
Desde a Criação
Até a morte de Moisés
Principais dificuldades:
Anacronismos:
A narrativa da morte de Moisés (Dt 34);
A lista dos reis de Edom (Gn 36,31);
O nome de Dan (Gn 14,14);
A menção dos Filisteus (Gn 21,32);
A expressão “além do Jordão” (Dt 1,1);
Canaã, país dos Hebreus (Gn 40,15);
A frase “os Cananeus moravam no país” (Gn 12,6).
Contradições:
Os animais são criados:
antes do homem (Gn 1,20-25.26-28);
depois do homem (Gn 2,7.19).
A mulher é criada 
junto com o homem (Gn 1,27);
depois do homem (Gn 2,22).
Na arca de Noé:
entra um casal de cada espécie de animais (Gn 7,15);
dos animais puros entram sete casais (Gn 7,1).
A duração do Dilúvio é de:
40 dias (Gn 8,6);
150 dias (Gn 7,24).
Jacó vai à Mesopotâmia:
fugindo de Esaú (Gn 27,41-45);
para casar dentro da tribo (Gn 27,46-28,5).
José é vendido por seus irmãos:
aos ismaelitas (Gn 37,27);
aos madianitas (Gn 37,28).
A etimologia de Bersabéia é:
poço dos 7: das sete ovelhas (Gn 21,31);
poço do juramento (Gn 26,33).
Jacó nomeou Betel (“Casa de Deus”):
na ida de sua viagem à Mesopotâmia (Gn 28,19);
na volta (Gn 35,15).
Jacó é chamado Israel:
em Penuel (Gn 32,28);
em Betel (Gn 35,10).
Duplicados:
A Criação (Gn 1 e 2)
A aliança com Abraão (Gn 15 e 17)
A expulsão da Agar (Gn 16 e 21)
A vocação de Moisés (Ex 3 e 6)
O decálogo (Ex 20 e Dt 5)
A mulher cobiçada (Gn 12; 20 e 26)
	Nomes:
de Deus: Elohim, Javé, Javé-Elohim 
do lugar da Aliança: Sinai (Ex 19,11), Horeb (Ex 33,6)
do sogro de Moisés: Raguel (Ex 2,18) e Jetró (Ex 3,1)3
Teorias da composição do Pentateuco:
A partir do séc. XVIII são formuladas várias teorias para explicar a composição do Pentateuco:
Teoria das quatro fontes (J. Welhausen, 1918):
JAVISTA (J):
Séc. 9 a. C.;
Sapiencial;
Em Jerusalém, por sábios;
Trata problemas humanos;
Deus se manifesta antropomorficamente.
ELOÍSTA (E):
Séc. 8 a. C. ;
Profético;
No Reino de Israel;
Deus se comunica através de sonhos, profetas, anjos;
Deus não se confunde com o homem.
DEUTERONOMISTA (D):
Séc. 7-6 a. C.;
Do fim da época monárquica;
Em Jerusalém;
Profético e Sapiencial;
Grande preocupação cultual: unificar os templos, ficando somente o de Jerusalém;
Próxima ao Exílio.
SACERDOTAL (P):
Séc. 6 a. C.;
Pelos sacerdotes do Exílio: Ezequiel;
Após o Exílio, o sacerdote Esdras promulga a Torá na grande celebração: Ne 8.
Teoria de GERHARD VON RAD:
1930, séc. XX;
Dos Blocos Temáticos: criação, Patriarcas, Êxodo, deserto, Sinai, conquista da Terra etc.
Teoria da memória popular:
De Milton Schwantes;
O Pentateuco foi construído aos poucos, em épocas diferentes, de materiais diversos, formados por perícopes;
Atualmente é a teoria mais aceita para explicar a composição atual do Pentateuco. 
Parte V – EXEGESE DE Gn 1-11 (O hexaémeron; as origens do mundo e do homem; e, a queda original) (1ª parte)
CONTEÚDO
O HEXAÉMERON:
A pré-história bíblica
A seção de Gn 1-11 chama-se “pré-história bíblica” porque se refere a acontecimentos anteriores à história bíblica, que começou com o Patriarca Abraão (séc. XIX ou 1850 a.C.). Por conseguinte, a pré-história bíblica não coincide com a pré-história universal, que vai desde tempos imemoriais até o aparecimento da escrita (8000 a.C.).
O gênero literário dessa secção é o da história religiosa da humanidade primitiva. O autor sagrado não intencionou propor teses de ciências naturais, mas quis apresentar, em linguagem simbolista, alguns fatos importantes que constituem o fundo de cena e a justificativa da vocação de Abraão. Tais seriam:
1) A criação do mundo bom por parte de Deus, a elevação do homem à filiação divina e a violação dessa ordem inicial pelo pecado (Gn 1, 1-3, 24);
2) O fratricídio de Caim, consequência do fato de que o homem abandonou a Deus; perdeu também o amor ao seu semelhante (Gn 4, 1-16);
3) A linhagem dos cainitas, que mostra o alastramento do pecado (Gn 4, 17-24);
4) A linhagem dos setitas ou dos homens retos (Gn 5, 1-32);
5) O dilúvio, provocado pela propagação do pecado (Gn 6, 1-9, 28);
6) A tabela dos setenta povos (Gn 10, 1-32);
7) A torre de Babel, nova expressão do pecado (Gn 11, 1-9);
8) As linhagens dos semitas (Gn 11, 10-26) e dos teraquitas ou descendentes de Terá (11, 27-32), que fazem a ponte até o Patriarca Abraão.
Em síntese:
	
Desta maneira, o autor mostra que Deus fez o mundo bom e convidou o homem para o consórcio da sua vida (ordem sobrenatural). Todavia o homem disse Não. Deus houve por bem reafirmar seu desígnio de bondade, prometendo restaurar, mediante o Messias, a amizade violada pelo pecado (Gn 3, 15). Este foi-se alastrando cada vez mais, como atestam os episódios de Caim e Abel, do dilúvio e da torre de Babel. Então, para realizar seu intento de reconciliação do homem com Deus, o Criador quis chamar Abraão para constituir a linhagem portadora da fé e da esperança messiânicas. Assim chegamos a Gn 12 (a vocação de Abraão).
Passemos agora à consideração de cada qual dos bocós integrantes de Gn 1 -11.
O Hexaémeron
O primeiro bloco não é unitário, mas consta de duas narrações: Gn 1, 1-2, 4a, a obra dos seis dias (hexaémeron, em grego), da fonte P  (século V a.C.), e Gn 2, 4b-3, 24, da fonte J (séc. X a.C.)�. Isto se deduz do estilo e do vocabulário próprios de cada uma dessas secções como também do fato seguinte: em Gn 2, 1-4a o mundo está terminado, o homem e a mulher foram criados; todavia, em Gn 2, 4b.5, o autor sagrado afirma que não havia arbusto, nem erva, nem chuva, nem homem, e narra a criação do homem a partir do barro como se ignorasse a criação já narrada em Gn 1, 27.
Se, pois, há duas peças literárias justapostas em Gn 1, 1-3, 24, é preciso estudar cada uma de per si, pois cada qual tem sua mentalidade e sua mensagem próprias. Comecemos pelo hexaémeron (Gn 1, 1-2, 4a).
Para poder depreender a mensagem deste trecho bíblico, precisamos, antes do mais, de observar a sua forma literária.
Ora verifica-se que tal peça apresenta um cunho fortemente artificioso: após a introdução (1, 1s), o autor descreve uma semana de seis dias de trabalho e um de repouso; os dias de trabalho poderiam dispor-se em duas séries paralelas, das quais a primeira trata da criação das regiões do mundo e a segunda aborda a povoação dessas regiões, como se vê abaixo:
1º dia	4º dia
 	 1, 14-19
 1, 3-5	
	5º dia
2º dia
 1, 6-8 1, 20-23
3º dia	6º dia
 1, 9 - 13	 1, 24-31
	7º dia 
 
 2, 1-4a
Notemos também que cada um dos dias da criação é descrito segundo fórmulas que se repetem e que constituem estrofes de um hino litúrgico: 
“Deus disse... E houve... E assim se fez... E Deus chamou... E Deus viu que era bom... Deus fez... Deus abençoou... Houve tarde e manhã... dia”.
A imagem do mundo pressuposta pelo autor é bem diferente da nossa; haveria a região dos ares, a das águas e a da terra. Esta seria uma mesa plana, pousada sobre colunas; debaixo da terra haveria as águas, donde emergem as fontes, e também a região dos mortos ou o cheol. A luz era concebida como algo independente do sol e das estrelas, pois mesmo nos dias em que o sol não brilha, temos luz (por isto a luz é criada no 1º dia, ao passo que os astros no 4º dia). A vegetação seria o tapete inerente à terra; por isto terá sido criada no 3º dia, anteriormente ao sol. – Tais concepções podem parecer irrisórias ao leitor moderno; notemos, porém, que elas não são objeto de afirmação da parte do autor sagrado; o autor se refere a elas tão somente para propor uma mensagem religiosa a respeito do mundo e do homem, sem tencionar definir algum sistema de cosmologia.
Pergunte-se, pois: qual a mensagem de Gn 1,1-2, 4a?
A mensagem do hexaémeron
Três são as finalidades do texto em foco:
Antes do mais, o texto quer incutir a lei do repouso do sétimo dia (sábado). Com efeito, imaginemos um grupo de sacerdotes recebendo fiéis judeus para celebrarem o culto do sábado�; era óbvio que explicassem a esses fiéis o porquê daquela assembleia e do repouso do sétimo dia. Conceberam então um hino litúrgico, no qual Deus é apresentado a trabalhar no quadro de seis dias úteis e a repousar no sétimo dia; em vez de fabricar mesas ou cadeiras, como o homem, o Senhor Deus terá fabricado o mundo. O importante, porém, é que nesse hino Deus observa o repouso do sétimo dia.  Esse exemplo imaginário do Senhor seria a melhor recomendação da lei do sábado; o homem deveria, pois, trabalhar em seis dias e no sétimo dia afastar-se do trabalho para, no repouso, elevar mais detidamente o seu espírito a Deus. O exemplo divino é evocado em Ex 20,11. Deve-se notar, porém, que a lei do sábado é anterior ao texto do hexaémeron (séc. V a.C.); ela decorre do ritmo natural da Lua, muito importante para
os trabalhadores rurais (de sete em sete dias a Luz passa de nova para crescente, de crescente para cheia...). Por conseguinte, Deus repousa poeticamente por causa do ritmo da semana do homem, e não vice-versa.
Alguns perguntarão: o cristão não deveria então observar o sábado assim incutido? – A propósito lembramos que a palavra sábado vem de shabbath. A Bíblia prescreve o repouso do sétimo dia (cf. Ex 20, 8-11) sem definir qual deva ser o primeiro dia da semana. Ora os cristãos sabem que Jesus ressuscitou no dia seguinte ao sétimo dia (sábado) dos judeus; por isto começaram a contar os dias da semana no segundo dia (ou na segunda-feira) dos judeus para fazer o sétimo dia coincidir com o dia da ressurreição de Jesus. Assim fazendo, os cristãos observam todo sétimo dia (sábado); não é a materialidade do nome sábado que importa, mas é a observância de todo sétimo dia; o domingo dos cristãos vem a ser o sábado (sétimo e repouso) dos cristãos.
2) Os autores sagrados quiseram também relacionar o mundo todo (como os hebreus o podiam conhecer) com Deus, mostrando que tudo é criatura de Deus e, por conseguinte, não há muitos deuses. Com outras palavras, estas são as verdades teológicas que o hexaémeron nos transmite: 
a) Deus é um só. Não há, pois, astros sagrados (como os caldeus da terra de Abraão admitiam). Nem há bosques sagrados (como os cananeus da nova terra de Abraão professavam). Nem há animais sagrados (como os egípcios, entre os quais viveu Israel, professavam). 
b) Deus é bom e, por isto, fez o mundo muito bom. Se há mal no mundo, não vem de Deus, mas do homem (como explica o relato de Gn 3). Os autores assim rejeitavam toda forma de dualismo ou de repúdio à matéria como se fosse essencialmente má.
c) O mundo não é eterno, mas foi criado por Deus e começou a existir. Afirmando isto, o texto sagrado não tenciona dirimir a questão “fixismo ou evolucionismo?”, mas apenas assevera que a matéria e o espírito têm origem por um ato criador de Deus; qualquer teoria científica que admita isto, é aceitável aos olhos da fé. 
d) O homem é o lugar-tenente (imagem e semelhança) de Deus, não por sua corporeidade (Deus não tem corpo), mas por sua alma espiritual, dotada de inteligência e vontade. Tenhamos em vista o relevo que o autor dá à criação do homem: quebrando o esquema habitual, o texto refere as palavras de Deus: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança...” (Façamos é um plural intensivo, que põe em relevo a grandeza do sujeito falante). Note-se, aliás, que não há origem diversa, neste texto, para o homem e para a mulher, mas ambos surgem simultaneamente.
e) O casamento é abençoado por Deus, tornando-se uma instituição natural, que não depende dos deuses da fecundidade admitidos fora do povo bíblico.
f) O trabalho do homem é continuação da obra de Deus; é santo, qualquer que seja a sua modalidade, desde que executado em consonância com o plano do Criador.
De maneira geral, pode-se dizer que toda a tendência do hexaémeron é apresentar o homem como mediador entre o mundo inferior e Deus; esse mediador exerce, por sua posição e sua atividade na terra, um sacerdócio ou a missão de fazer que todas as criaturas irracionais, devidamente utilizadas pelo trabalho do homem, deem glória ao Criador.  É o que o esquema abaixo ilustra:
	DEUS
 Animais terrestres HOMEM
 Peixes e voláteis	6º dia
	Astros 
 	5º dia
	Terras	4º dia
	Águas	 3º dia 	
	Ares	
 2º dia
	1º dia	 	
Pode-se também dizer que o autor sagrado, utilizando o esquema 6 + 1 = 7, quer realçar a índole boa da obra de Deus. Sete é, sim, um símbolo de perfeição conforme os antigos; essa índole é enfatizada pelo fato de se pôr em evidência a sétima unidade (há seis dias de trabalho, homogêneos entre si, e um último, o sétimo, de índole diferente). Estes ensinamentos, como se vê, não pretendem dirimir questões de ciências naturais. Podem parecer pobres aos olhos de quem procura na Bíblia uma resposta para indagações de astronomia, cosmologia, geologia, botânica, zoologia... Todavia, são de enorme valor, pois nenhum povo anterior a Cristo, fora Israel, chegou a tão sublime conceito de Deus e de origem do mundo. O Deus da Bíblia é o Senhor único que, com sua onipotência, domina a natureza; por conseguinte, tudo produz a partir do nada ou por sua vontade criadora. Aliás, o verbo bará (= fez), ocorrente em Gn 1, 1, é sempre usado na Bíblia para indicar a ação prodigiosa e singular de Deus; cf. Is 48, 7; 45, 18; Jr 31, 22; Sl 50(51), 12; 103(104), 30...
Resta ainda observar que os dias do hexaémeron não significam eras ou períodos geológicos. No século passado, quando as ciências naturais mostraram claramente que o mundo não pode ter surgido em seis dias de 24 horas, muitos autores julgaram que os dias de Gn 1 eram períodos longos correspondentes aos da formação do globo terrestre (era azóica, primária, secundária...). Assim a Bíblia teria antecipadamente descrito a origem do mundo, que só a ciência do século XIX conseguiu averiguar! Tal atitude chama-se “concordismo”, porque tenciona obter concórdia (ainda que forçada) entre a Bíblia e as ciências, como se visassem ao mesmo objetivo de narrar os fenômenos físicos da origem do mundo. O concordismo é errôneo por causa deste seu pressuposto. O autor sagrado não tinha as preocupações de um cientista; não queria senão oferecer um ensinamento religioso tal como acabamos de enunciar; por isto ele tinha em mira dias de 24 horas (nos quais houve tarde e manhã, cf. 1, 5.8.13.19.23.31); em outras palavras: ele imaginou uma semana como a nossa, mas uma semana que nunca existiu,... a semana na qual Deus, como primeiro trabalhador, teria fabricado o mundo.
Dito isto, ficam ainda abertas certas questões como o “monogenismo ou poligenismo? ”, “fixismo ou evolucionismo?”, “origem das raças?”. 
AS ORIGENS DO MUNDO E DO HOMEM:
O relato javista e a origem do homem
Em Gn 2, 4b tem início outra narração referente às origens, de estilo mais primitivo que a anterior: Recorre a muitos antropomorfismos (Deus é oleiro, jardineiro, cirurgião, alfaiate, em vez de criar com a sua palavra apenas, como em Gn 1,1-2, 4a); não menciona nem o mar com seus peixes nem os astros (o que revela horizontes limitados). Data do século X a.C. (fonte javista, J). Essa descrição começa por notar que não havia arbusto, nem chuva, nem homem, mas apenas uma fonte de água, que ocasionava a existência de barro. Para compreender a intenção do autor sagrado, examinemos, antes do mais, a dinâmica do texto em pauta:
Muito estranhamente, Deus cria em primeiro lugar o homem (2,7). Depois planta um jardim ameno, onde o coloca (2, 8.15); verifica que o homem está só (2,18). Cria os animais terrestres (2,19); mas o homem continua só (2, 20). Então Deus cria a mulher e a apresenta ao homem, que exclama: “Esta sim! É osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (2,23). Este curso de ideias poderia ser assim reproduzido:
HOMEM	 MULHER
	Plantas	Animais
	(o homem está só)	(o homem está só)
Vê-se, pois, que o relato não tem em mira descrever a fenomenologia ou o aspecto científico da origem das criaturas, mas, sim, visa a responder a uma pergunta: qual o relacionamento existente entre o homem e a mulher? Qual o papel da mulher frente ao homem? Estas questões de ordem filosófico religiosa perpassam todo o relato. Para responder-lhes, o autor apresenta o homem (varão) sozinho�; verifica duas vezes que ele está só, porque nenhuma planta e nenhum animal se lhe equiparam; finalmente Deus tira matéria do próprio homem para com ela formar a mulher; assim se justifica a exclamação: “Esta sim! E da minha dignidade!” Desta forma, o texto sagrado nos diz que a mulher não é inferior
ao homem, mas compartilha a natureza do homem; é o vis-à-vis do homem. Esta afirmação é de enorme valor: já no século X a.C. a Sagrada Escritura propunha uma verdade que muitos povos hoje não conseguem reconhecer e viver.
Evolucionismo e Criacionismo
O autor sagrado apresenta origem distinta para o homem e para a mulher. Analisemos um e outro caso.
Origem do homem. Será que o texto de Gn 2, 7 quer dizer algo sobre o modo como apareceu o homem na face da terra?
Respondemos negativamente. O autor sagrado utilizou a imagem do Deus-Oleiro, que era assaz frequente nas tradições dos povos antigos. Com efeito, no poema babilônico de Gilgamesh conta-se que, para criar Enkidu, a deusa Aruru “plasmou argila”. Na lenda assiro-babilônica de Ea e Atar-hasis, a deusa Miami, intencionando criar sete homens e sete mulheres, fez quatorze blocos de argila; com estes, suas auxiliares plasmaram quatorze corpos; a deusa rematou-os, imprimindo-lhes traços de indivíduos humanos e configurando-os à sua própria imagem.
No Egito um baixo-relevo em Deir-el-Bahari e outro em Luxor apresentam o deus Cnum modelando sobre a roda de oleiro os corpos respectivamente da rainha Hatshepsout e do Farad Amenofis III; as deusas colocavam sob o nariz de tais bonecos o sinal hieroglífico da vida (ank), para que a respirassem e se tornassem seres vivos. 
Entre Os Maoris da Nova Zelândia, conta-se o seguinte episódio: Um certo deus, conhecido pelos nomes de Tu, Tiki e Tané, tomou argila vermelha à margem de um rio, plasmou-a, misturando-lhe o seu próprio sangue, e dela fez uma cópia exata da Divindade; depois, animou-a soprando-lhe na boca e nas narinas; ela então nasceu para a vida e espirrou. O homem plasmado pelo criador Maori parecia-se tanto com este que mereceu por ele ser chamado Tiki-Ahua, isto é., Imagem de Tiki. 
Compreende-se, pois, que o tema do Deus-Oleiro, ocorrente também na Bíblia, não passa de metáfora. Quer dizer que, como o oleiro está para o barro, assim Deus está para o homem. E como é que está o oleiro para o barro? Numa atitude de sabedoria, carinho, maestria, providência... Assim também Deus está para o homem, qualquer que tenha sido a modalidade de origem do ser humano. Não se queira extrair desta passagem alguma lição de teor cientifico.
Origem da mulher. Que significa a costela extraída de Adão (= homem) para dar origem à mulher? Não implica que esta tenha tido princípio diferente do homem. O tema da costela há de ser entendido a partir das palavras finais de Adão: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2, 23); tal afirmação é rnetafísica, e significa: a mulher é da natureza ou da dignidade do próprio homem, em oposição aos demais seres (pois, embora cercado destes, o autor enfatiza que o homem estava só). Ora, para preparar e justificar esta asserção a respeito da dignidade da mulher, o autor descreve o próprio Deus a tirar carne e osso (uma costela) do homem a fim de formar o corpo da mulher; a “extração” da costela e a formação da mulher, no caso, não tem sentido literal, mas vem a ser a maneira “plástica” de afirmar a igualdade de natureza do homem e da mulher.
É à luz desta verdade que se deve entender também o desfile de animais perante o homem e a imposição de nome a cada um deles (2, 1 9s). ”Impor o nome”, para os antigos, significa “reconhecer a essência, a identidade do ser nomeado”. O autor sagrado magma Adão a impor nomes aos animais para poder enfatizar de modo muito concreto que nenhum animal era adequado ao homem; notemos que, antes e depois do “desfile”, O texto verifica que o homem estava só (2,18.20). Devemos, pois, concluir que tal cena não tem sentido literal, mas visa apenas fazer o contraste entre o homem e os animais inferiores e assim preparar o surto da mulher “feita da costela” ou participante da dignidade do homem.
Não se deve, pois, na base do texto bíblico, atribuir a mulher origem diversa da que tocou ao homem.
Resta, então, indagar: que diz o texto sagrado sobre a maneira como apareceu o ser humano?
A Bíblia não foi escrita para dirimir o dilema “criação ou evolução”. Todavia, a partir de premissas filosóficas e teológicas, é preciso dizer que o dilema não existe. Vejamo-lo por partes.
Quanto ao homem, a pergunta é colocada popularmente nestes termos: “Vem do primata ou não?” - Responderemos distinguindo entre corpo e alma do homem. O corpo, sendo matéria, pode� provir de matéria viva preexistente; não proviria dos macacos hoje existentes, pois estes já são muito especializados e não evoluem mais; proviria, porém, do primata ou do ancestral dos macacos e do corpo humano. A alma, contudo, não teria origem por evolução, mas por criação direta de Deus; sendo espiritual, ela não provem da matéria em evolução (o espírito não é energia quantitativa, nem fluído nem éter; por isto não pode originar-se da matéria). Assim, se conciliam criação e evolução no aparecimento do homem; pode-se admitir que, quando o corpo do primata estava suficientemente evoluído ou organizado, Deus lhe infundiu a alma espiritual, diretamente criada para dar-lhe a vida de ser humano. Isto terá ocorrido tanto no surto do homem como no da mulher.
Considerando agora o universo, podemos dizer que a matéria inicial, caótica (nebulosa), donde terá procedido à evolução, foi criada diretamente por Deus (não é matéria eterna). Deus lhe haverá dado as leis de sua evolução de modo que dela tiveram origem os minerais, os vegetais e os animais irracionais até o limiar do homem. Quando o Senhor Deus quis que este aparecesse na face da terra, realizou outro ato criador, infundindo a alma espiritual no organismo do ser evoluído. É o que se pode reproduzir no seguinte esquema:
Ato Criador	 Evolução Ato Criador
 Alma espiritual
Matéria inicial minerais vegetais animais organismo aperfeiçoado
 (Nebulosa) irracionais
 HM
No tocante à origem da vida, é preciso distinguir vida vegetativa, da sensitiva e vida intelectiva. As duas primeiras modalidades dependem de um princípio vital material, que bem pode ter sido deduzido da matéria em evolução. Ao contrário, a vida intelectiva depende de um princípio vital (a alma) espiritual, que só pode provir de um ato criador de Deus.
Monogenismo ou poligenismo
Pergunta-se: quantos indivíduos houve na origem do gênero humano atual? É costume responder: um homem (Adão) e uma mulher (Eva). Esta afirmação pode ser licitamente repensada em nossos dias. 
A ciência reconhece três hipóteses referentes ao número de indivíduos primitivos:
Polifiletismo: muitos troncos ou berços do gênero humano (na Ásia, na África, na Europa...).
Monofitelismo
(Um só tronco)
Ora, a primeira hipótese (polifiletismo) contraria a fé e as probabilidades científicas. Não se diga que o gênero humano apareceu sobre a terra em localidades diversas simultaneamente. 
O monofiletismo monogenético (um casal só) é a clássica tese, aparentemente deduzida da Bíblia. Todavia verifica-se, após leitura atenta do texto sagrado, que não é a única hipótese conciliável com a fé. O poligenismo não se opõe a esta. E por quê? 
A palavra hebraica Adam significa homem; não é um nome próprio, mas substantivo comum. Por conseguinte, quando o autor sagrado diz que Deus fez Adam (ou Adão) quer dizer que fez o homem, o ser humano, sem tencionar especificar o número de indivíduos (um, dois ou mais...). Muito significativo é o texto de Gn 1, 27: “Deus criou o homem (Adam) a sua imagem; à imagem de Deus Ele o criou; homem e mulher Ele os criou”. Neste versículo verifica-se que a palavra Adam não designa um indivíduo,
mas a espécie humana diversificada em homem e mulher. O nome “Eva” também não é nome próprio, mas significa em hebraico “mãe dos vivos” (Gn 3, 20). Fica, pois, aberta ao fiel católico a possibilidade de admitir mais de um casal na origem do gênero humano. O que importa, em qualquer hipótese, é afirmar que os primeiros pais (dois ou mais) foram elevados à filiação divina (justiça original) e que, submetidos a uma prova, não se mantiveram no estado de amizade com Deus (cometeram o pecado original). - Seria falso, porém, dizer que Adão e Eva nunca existiram ou que são fábula ou alegoria: são tão reais quanto o gênero humano é real; o texto sagrado nos diz que Deus tratou com o homem nas suas origens,... com o homem real, e não com um ser fictício. E a história referente aos primeiros pais da história real, embora narrada em linguagem figurada (serpente, árvore, fruto...). De resto, é inútil insistir sobre a questão “poligenismo ou monogenismo?”, pois não há critérios científicos para dirimi-la (a ciência até hoje não tocou a estaca zero do gênero humano); apenas interessa notar que a hipótese poligenista não contraria a fé. 
A origem das raças não exige o polifiletismo. Com efeito: o conceito de “raça” é assaz flexível; raça resulta de um conjunto de determinados elementos do ser humano (cor da pele, forma dos olhos, tipo de cabelo...). Todavia a mesclagem desses elementos é tão variegada sobre a face da terra que há uma gama contínua de tipos entre o indivíduo branco, o negro, o amarelo... Em consequência, a origem desses tipos raciais pode explicar-se a partir de um só principio: devem-se não somente as diversas condições de clima, alimentação, trabalho, das populações, mas também ao fenômeno do mutacionismo (mudanças bruscas em indivíduos raros, que se transmitem estavelmente).
São estes alguns comentários que o texto de Gn sugere ao estudioso contemporâneo.
A QUEDA ORIGINAL:
O paraíso terrestre 
O documento javista, além de apresentar o casal humano e sua dignidade no mundo, aborda a difícil questão da origem do mal ou o tema do pecado original. Este assunto tem sido muito controvertido nos últimos decênios; não é de alcance das ciências naturais, nem da filosofia, mas pertence ao plano da fé. Por isso só poderá ser devidamente considerado se levarmos em conta as declarações do magistério da igreja atinentes à temática do pecado original. É o que vamos fazer: estudaremos o texto bíblico em seus aspectos linguísticos e humanos e procuraremos ouvir o que a respeito tem dito a S. igreja no decorrer dos séculos. O primeiro ponto a encarar é o do paraíso terrestre (Gn 2,8-15). A Bíblia nos fala de um jardim ameno, irrigado por quatro rios: o Fison, o Geon, o Tigre e o Eufrates. Os estudiosos têm procurado localizar esse paraíso: o Tigre e o Eufrates são rios da Mesopotâmia muito conhecidos, mas o Geon e o Fison não podem mais ser identificados. Foram propostas, no decurso dos tempos, cerca de oitenta sentenças para situar o paraíso terrestre. Hoje em dia, porém, os estudiosos julgam que esse “jardim bíblico” não significa um lugar determinado, mas tão somente o estado de harmonia e felicidade a que o homem foi elevado logo depois de criado.
Com efeito, o rio é, para os antigos, símbolo de vida e fecundidade. Quatro é o número que designa a totalidade das coisas deste mundo; por conseguinte, quatro rios significam o bem-estar interior e exterior de que gozavam os primeiros pais logo após a criação. Na verdade, quem lê atentamente o texto bíblico, verifica-se que os primeiros homens gozavam de dons especiais constitutivos da “justiça original” �; esta compreendia:
A filiação divina ou a graça santificante ou a elevação do homem à condição do filho de Deus, chamado a participar da vida e da felicidade do próprio Deus. É o que se deduz do texto sagrado, o qual indica claramente que Adão vivia na amizade com o Criador. Este Dom é dito “sobrenatural”, isto é, ultrapassa todas as exigências de qualquer criatura.
Os dons preternaturais, isto é, ampliavam as perfeições da natureza:
A imortalidade, pois em Gn 2,7; 3,3s.19 a morte é apresentada como consequência do pecado; isto significa que, antes do pecado, o homem não morreria dolorosa e tragicamente como hoje morre;
A impassibilidade ou ausência de sofrimentos, pois estes decorrem da sentença contraditória de Gn 3, 16;
A integridade ou a imunidade de concupiscência desregrada, visto que os primeiros pais, antes do pecado, não se envergonhavam da sua nudez (cf. Gn 2,25; 3,7-11); os seus instintos ou afetos estavam em consonância com a razão e a fé; não havia neles tendências contraditórias;
A ciência moral infusa, que os tornava aptos a assumir as suas responsabilidades diante de Deus. Os dons da justiça original não implicam que os primeiros homens fossem formosos; terão sido dons meramente interiores, compatíveis com a configuração rude e primitiva que as ciências naturais atribuem aos primeiros seres humanos.
A Bíblia menciona no paraíso duas árvores: a da ciência do bem e do mal e a da vida (Gn 2,9). Hoje em dia, sabe-se pelo estudo das literaturas antigas que a árvore era um símbolo religioso assaz frequente; é, pois, em sentido simbólico que entendemos as árvores de Gn 2. A árvore da ciência do bem e do mal designa um preceito ou um modelo de vida que daria ao homem a ciência ou a experiência concreta do que são o bem e o mal. Era justo que Deus indicasse ao homem um modelo de vida, pois o homem, elevado à filiação divina, não se deveria reger apenas por critérios racionais ou naturais, mas deveria seguir uma norma de vida incutida pelo próprio Deus. Devemos renunciar a pedir pormenores desse modelo de vida. – Quanto à árvore da vida, pode-se crer que ela dava ao homem o fruto da vida perpétua ou o sacramento da imortalidade; o homem saberia assim que a imortalidade é um dom de Deus.
O pecado dos primeiros pais
Em Gn 3, 1 entra em cena a serpente como “o mais astuto de todos os animais do campo”. Tal serpente é imagem do demônio tentador. O livro da Sabedoria (2,23) diz que “Deus não fez a morte, mas esta entrou no mundo por inveja do demônio”; e Jesus, aludindo a Gn 3, chama o Maligno “homicida desde o início, mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44). O demônio é um anjo, que Deus criou bom. Mas que se rebelou contra o Criador por soberba (vê-se que desde as suas primeira páginas a Escritura supõe e afirma a existência dos anjos, especialmente a dos anjos maus). O autor sagrado quis simbolizar o Maligno mediante a figura da serpente, porque esta frequentemente na S. Escritura representa o homem malvado e fraudulento (Gn 49,17; Is 59,5; Mq 7,17; Jó 20,14-16; Sl 140 [ 141 ], 4). Mais: é de observar que a serpente era, para os cananeus (antigos habitantes da terra de Israel), uma divindade associada à fecundidade e à vida; ora, precisamente para condenar essa figura, o autor talvez tenha apresentado o tentador sob forma de serpente; assim a descrição da serpente paradisíaca assumia, para o israelita, o valor de admoestação contra a sedução dos cultos idólatras que cercavam a verdadeira religião. 
Não é necessário admitir que a mulher tenha visto uma serpente diante de si, mas pode-se dizer que o diálogo entre o tentador e a mulher foi meramente interno, como acontece geralmente nas tentações ao pecado.
2. Em Gn 3,6s está dito que os primeiros pais comeram da fruta proibida. Isto quer dizer que desobedeceram a Deus ou não aceitaram o modelo de vida que o Senhor lhes havia apontado.
A raiz desse pecado foi a soberba. Notemos que a serpente, ao tentar os primeiros pais, disse explicitamente: “No dia em que comerdes… os vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, versados no bem e no mal” (Gn 3,5). Precisamente o homem quis ser como Deus, capaz de definir o que é  o bem e o que é o mal, sem ter que pedir normas ao Senhor. A soberba é o pecado do espírito, o único que os primeiros homens, portadores da harmonia original, podiam cometer. A soberba se exteriorizou em determinado ato, que
não podemos identificar.
Há quem diga que o primeiro pecado foi o de ordem sexual. Argumentam afirmando que 1) ciência ou conhecimento na Bíblia significa por vezes o relacionamento sexual (cf. Gn 4,1.17.25); 2) os primeiros pais estavam nus, e não se envergonhavam um do outro (2,25), mas após o pecado se recobriram (3,7); 3) a mulher foi punida pelas dores do parto (3,16). A propósito observamos: 1) quando se trata do relacionamento sexual, o texto sagrado diz “conhecer sua esposa” (cf. Gn 4,1.17.25), ao passo que em Gn 2,17; 3,5 se lê “conhecer o bem e o mal”; 2) o aparecimento da concupiscência sexual e a vergonha se seguem à culpa e não a precedem, como seria lógico no caso de um pecado sexual; 3) a mulher, punida pelas dores do parto, foi atingida em sua função específica de mãe, como o homem, condenado a ganhar o pão ao suor da sua fronte (3,19), foi atingido em sua função típica de trabalhador; não há, pois, necessidade de recorrer a pecado sexual para explicar o tipo de punição da mulher.
Vejamos agora.
As consequências do pecado
Enumeremos as consequências do pecado: 1) em relação aos primeiros pais e 2) em relação aos seus descendentes. 
Em relação aos primeiros pais, o pecado acarretou a perda da justiça original, ou seja, da filiação divina e dos dons que a acompanhavam. “O texto sagrado (Gn 3,7) diz que, após o pecado, “abriram-se-lhes os olhos e reconheceram que estavam nus” Essa nudez é, antes do mais, o despojamento interior ou a perda dos dons originais; a concupiscência ou a desordem das paixões se manifestou; por isto sentiram a necessidade de se vestir a fim de encobrir a sua natureza desregrada. Não há dúvida, a diversidade de tendências dentro do homem é algo decorrente da própria natureza humana (sensível e espiritual, ao mesmo tempo); todavia ela estaria superada se o homem não tivesse pecado em suas origens; ela hoje existe como consequência do pecado. Da mesma forma, os homens perderam o dom da imortalidade (ou o poder não morrer); sem dúvida, a morte é um fenômeno natural, inerente à criatura, mas a sua realidade hoje é consequência do primeiro pecado, conforme a S. Escritura (cf. Rm 5,12.19). O mesmo se diga em relação ao sofrimento; é um dos precursores da morte.
O pecado acarretou também a desarmonia no mundo irracional que cerca o homem; este já não é o ponto de convergência das criaturas inferiores; ao contrário, estas muitas vezes prejudicam o homem e lhe negam a sua serventia; tendo-se rebelado contra Deus, o homem sente contra si a rebelião das criaturas inferiores. 
Depois da queda, o  Senhor Deus quis interrogar os primeiros homens (Gn 2,8-13). As respostas são bem características de quem é culpado: o homem, antes de confessar, acusa, com certa covardia, a esposa como causa da sua desgraça (3,12); da mesma forma, a mulher acusa a outrem, a serpente (3,130. Ambos silenciam o verdadeiro motivo da sua desobediência: a soberba ou o desejo de serem iguais a Deus, arbitrando entre o bem e o mal ou definindo a sua própria regra de vida. Na  verdade, o pecado acovarda o homem e separa-o do seu semelhante e mesmo mais íntimo amigo. 
Todavia o Senhor não quis apenas condenar os pecadores. Ao mesmo tempo, propôs-lhe a esperança da reconciliação que é chamada, no caso, “o proto-evangelho” (ou o primeiro Evangelho). Ler Gn 3,14s… A sentença sobre a serpente não recai sobre o animal irracional, mas sobre o tentador: “rastejar  e comer a poeira da terra” são imagens que significam derrota (os vencedores, na antiguidade, colocavam os adversários derrotados no chão, debaixo de seus pés); o texto sagrado quer assim dizer que o demônio é um lutador já vencido; poderá maltratar os fiéis de Deus no decorrer da história, mas pode estar certo de sua derrota final. Para corroborar esta afirmação, o Senhor promete colocar inimizade entre a serpente (o tentador) e a mulher, entre a descendência da serpente (os homens maus) e a descendência da mulher (os homens bons) – o que significa: promete reconciliar a mulher e os seus descendentes são os homens bons, que não seguem as sugestões do tentador; todavia o papel da mulher e o de sua descendência só se tornaram plenos e perfeitos em Maria e em seu Filho Jesus Cristo; por isto o proto-evangelho alude indiretamente a Maria e a Jesus Cristo, prometendo a vitória do Senhor Jesus sobre o Maligno através da Cruz e da Ressurreição.
Em relação aos descendentes dos primeiros pais, o pecado original tornou-se algo de hereditário. Dizemos que todos os homens nascem com a culpa original. Todavia é preciso entender que não se trata de culpa pessoal ou de pecado voluntário nos descendentes de Adão e Eva. Nestes o pecado original consiste na ausência dos dons originais (graça santificante, dons preternaturais), que os primeiros pais deviam ter guardado e transmitido, mas não puderam transmitir porque pecaram. A criança que hoje nasce, devia nascer com a graça santificante, mas isto não acontece; ela nasce destoando do exemplar ou do modelo que o Senhor lhe tinha assinalado; essa dissonância (que implica a concupiscência desordenada e a morte) é que se chama, por analogia, “pecado original” nos pequeninos.
Por que Deus quis que a culpa dos primeiros pais assim repercutisse nos seus descendentes? Seria Deus vingativo? A criança, que não pediu a eventualidade de nascer, muito menos pediu nascer com pecado!
Em resposta, diremos: toda criança que vem ao mundo, nasce dentro de um contexto social, geográfico, do qual é solidária; assim há crianças que nascem no Brasil, outras na China, outras em Biafra, outras na Europa; há crianças que nascem no século XX, outras nasceram no século II a.C., outras no século X d. C… Cada uma  traz a herança da família, do lugar e da época em que nasce. Essa solidariedade é palpável, também no seguinte caso: imaginemos um pai de família que numa noite perde todos os seus bens numa jogatina de cassino; os filhos desse homem não têm culpa, mas hão de carregar as consequências (miséria, fome…) decorrentes do desatino de seu pai. Ora a solidariedade mais fundamental que cada um de nós traz, é a solidariedade com os primeiros pais; se estes perderam os dons originais, nós, sem culpa nossa, somos afetados por essa perda o que é muito lógico. Vê-se, pois, que a transmissão do pecado original não se deve a intenção vingativa de Deus, mas é consequência da índole mesma da natureza humana. 
Há, porém, quem julgue que o ato de gerar é pecaminoso se por ele se transmite o pecado dos primeiros pais, responderemos que o ato biológico de gerar foi instituído pelo próprio Criador; em si ele nada tem de pecaminoso; transmite a natureza como se acha nos genitores; tal ato não é a causa do pecado original ou do estado desregrado em que nascem as crianças, nem pode exercer influxo sobre tal estado. O ato biológico de gerar poderia transmitir também a graça santificante se os primeiros pais a tivessem conservado. O que a geração não dá, isto é, a graça santificante, a  regeneração ou o Batismo o deve dar. Por isto, é que não se deve protrair o Batismo das crianças. O segundo  Adão, Jesus Cristo, readquiriu a filiação divina para o gênero humano e a comunica mediante o Batismo. 
A doutrina do pecado original pertence estritamente ao patrimônio da fé. Não é lícito reduzir o conceito de pecado original ao de “pecado do mundo”, como se não fosse mais do que o acúmulo de faltas pessoais que se cometeram desde o início da história, fazendo que todo homem seja, desde os seus primeiros anos, seduzindo ao mal.
Os povos primitivos antigos e contemporâneos têm a noção de que os males existentes no mundo não são originais nem devidos ao Criador, mas provêm de uma culpa dos primeiros homens ou de um pecado original; tal crença, tão generalizada como é, pode ser entendida como valioso argumento em favor da doutrina católica.
Parte III – EXEGESE DE Gn 1-11 (Caim e Abel; o dilúvio bíblico e os sententa povos – Babel) (2ª parte)
CONTEÚDO
CAIM E ABEL – CAINITAS, SETITAS E SEMITAS:
Caim e Abel
Logo após a descrição da queda original, o autor sagrado apresenta o morticínio de Caim que mata seu irmão Abel. Cf. Gn 4, 1-16. 
Quem observa este episódio, verifica que supõe um estado adiantado da cultura humana, ou seja, o período neolítico: os homens já domesticavam os animais, de modo que Abel é pastor, e já cultivavam industriosamente a terra, de modo que Caim é agricultor (4, 2); Caim funda uma cidade (4, 17), tem medo de se encontrar com outros homens (4, 14), sabe que haverá um clã pronto para defendê-lo... Diante destes traços literários, os autores propõem duas maneiras de entender o episódio: 
Fato histórico antigo descrito com roupagem da época posterior. O autor sagrado estaria relatando um fratricídio realmente ocorrido nos inícios da pré-história bíblica, mas teria usado linguagem da época neolítica para tornar-se mais compreendido pelos leitores: os atores da cena terão sido apresentados como se fossem homens contemporâneos do escritor sagrado. Esta interpretação é aceitável, mas não parece ser a melhor. É preferível a seguinte: 
Fato meta-histórico ou trans-histórico�. Observemos que houve uma tribo dos quenitas ou quineus ou cineus na época de Moisés (séc. XIII a.C.); tinham por Patriarca fundador um certo Caim. Leiamos, por exemplo, Nm 24, 21: "Balaão viu os quenitas e pronunciou o seu poema. Disse: 'A tua morada está segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o rochedo"; os quenitas eram nômades (1Cr 2, 55); tinham relações estreitas com Madiã (Nm 10, 29; Jz 1, 16); ver também 1Sm 15, 4-6; Jz 4, 11.17; 5, 24. Ora pode-se crer que esse patriarca Caim tenha sido um fratricida famoso; o crime de Caim ocorrido nos tempos de Moisés ou pouco antes terá sido tomado como um fato típico da maldade humana. Por isto o autor sagrado haverá colocado esse fato logo no início da pré-história bíblica, querendo assim significar, de maneira muito concreta, que, quando o homem diz Não a Deus, passa a dizerNão também ao seu irmão; a fidelidade a Deus e a fidelidade ao próximo são inseparáveis uma da outra; por isto também o Senhor Jesus quis resumir toda a Lei em dois preceitos: o do amor a Deus e a do amor ao próximo (cf. Mt 22, 40). 
Neste caso não se pode dizer que Caim e Abel foram filhos diretos dos primeiros pais. Nem era a intenção do autor sagrado dizê-lo. Nos onze primeiros capítulos do Gênesis, a Bíblia propõe fatos históricos, sim, dispostos, porém, de maneira a nos fazer compreender o porquê da vocação de Abraão; ela quer mostrar que o primeiro Não dito a Deus desencadeou uma série de outras negações, das quais a primeira é o Não dito ao homem. Segundo tal interpretação, o fratricídio cometido por Caim contra seu irmão Abel é fato histórico, mas um fato que não ocorreu apenas uma vez no século XIII a.C.; Ocorre em todas as épocas, a partir da primeira fase da história da humanidade; até hoje há muitos Cains que matam seus irmãos, como houve também um no início da história sagrada.
Quem aceita tal interpretação, já não formula a pergunta tão frequentemente colocada por leitores da Bíblia: com quem se casou Caim, se Adão e Eva só tiveram dois filhos e Caim matou Abel? Se o episódio de Caim e Abel é datado do século XIII a.C., vê-se que não há por que formular a questão: a população humana já se alastrava sobre a terra. — De passagem, digamos: se alguém não aceita a interpretação proposta, pode-se-lhe responder apontando o texto de Gn 5, 4, onde está dito que Adão e Eva tiveram filhos e filhas; Caim tinha, pois, com quem se casar; o fato de se tratar de uma irmã de sangue, filha de Adão, não era impecilho, porque não havia, naquela primeira geração acúmulo de taras hereditárias.
 Continuando a ler o texto sagrado, defrontamo-nos com duas listas genealógicas: a dos cainitas e a dos setitas. Examinemos cada qual de per si.
Os Cainitas (Gn 4, 17-24)
Nessa tabela ocorrem sete gerações: Caim, Henoque, Irad, Maviael, Matusael, Lameque e seus filhos. Isto quer dizer que o autor sagrado quis propor um todo definido (sete é símbolo de totalidade). Observemos as características dessa lista genealógica: 
Não há menção de um só número de anos (ao contrário do que ocorre na lista dos setitas, toda marcada por números); 
Os Cainitas são todos promotores da civilização e da cultura: fundam uma cidade (4, 17), são pastores de gado (4, 20), trabalham em metalurgia (4, 22), tocam harpa e flauta (4, 21); 
São cada vez mais marcados pela vingança e sanguinolência: Caim será vingado sete vezes, mas Lameque, seu descendente, setenta e sete vezes (cf. 4, 24); 
A devassidão dos costumes se alastra nessa linhagem, de modo que Lameque tem duas esposas, Ada e Sila, em oposição à imagem do casamento monogâmico proposto em Gn 1-3: "Deixará o homem pai e mãe, e aderirá à sua esposa, e serão dois numa só carne" (Gn 2, 24). 
Destas notas se depreende o seguinte: o autor sagrado quis mostrar o progresso do pecado na linhagem do homicida Caim: luxúria e morticínio aí se instalaram. Além do que, associa entre si o pecado e as obras da civilização (cidades, domesticação de animais, metalurgia, cultivo da música...). Com isto o texto bíblico não quer condenar os produtos do engenho humano (estes podem servir à glorificação do Criador), mas quer mostrar como facilmente as conquistas da civilização estão associadas ao pecado e levam ao pecado; elas provocam a ganância do homem, são idolatradas, suscitam rixas e guerras... Era precisamente este o quadro que o autor sagrado podia contemplar quando considerava os grandes impérios da Mesopotâmia (Assíria e Babilônia) e do Egito, que cercavam o povo de Israel: eram impérios de elevada civilização, mas alheios ao verdadeiro Deus, imersos na idolatria e na demanda insaciável do poder. 
A audiência de números na linhagem dos cainitas é precisamente o sinal de que tais homens careciam de harmonia; não estavam inscritos no "livro da vida" (o número é símbolo de ordem e sabedoria, segundo a Bíblia). ("Livro da vida" é expressão figurada da S. Escritura para significar a parte da humanidade que vive a verdadeira vida, a vida conforme o plano de Deus: cf. Ex 32, 32; Sl 68(69), 29).
Os Setitas (Gn 5, 1-32)
Na linhagem dos setitas, contam-se dez nomes, desde Adão até Noé. De novo temos uma peça que pretende transmitir uma mensagem definida (dez é também um símbolo de totalidade). Observemos que nessa tabela:
Os números são muito frequentes: o autor diz com que idade cada Patriarca gerou o primeiro filho; quantos anos viveram depois disto, e com que idade morreu; 
Os anos de vida de cada Patriarca são muito elevados, variando entre oitocentos e novecentos. 
Não se menciona uma obra da civilização realizada pelos setitas. Qual o significado destes traços? 
O autor sagrado quis propor a linhagem dos bons; estes têm números, isto é, gozam de ordem e harmonia e estão inscritos no "livro da vida". Diz o livro da Sabedoria que "o Senhor tudo dispõe conforme número, peso e medida" (Sb 11, 20). Não se atribui aos setitas nenhuma obra civilizatória, pois tais obras estavam associadas, na mente do autor, aos impérios pagãos da vizinhança de Israel. 
A grande longevidade assinalada a cada Patriarca setita não quer dizer que, na verdade, viviam séculos; mesmo que entendamos os 930 anos de Adão, os 912 de Sete... como anos lunares (um pouco mais breves do que o ano solar), não estaremos atinando com a mensagem do autor sagrado. Para os antigos, a longevidade era sinal de venerabilidade e respeitabilidade; por conseguinte quando atribuíam a alguém longa duração de vida, queriam apenas dizer que tal pessoa era merecedora de toda estima e consideração. Este modo de falar está documentado, por exemplo, na tabela dos reis pré-diluvianos que o sacerdote Beroso, da Babilônia, nos deixou. 
Aloro reinou 36.000 anos; Alaparo 10.800 anos; Almelon 46.800 anos; Amenon 43.200 anos; Amegalaro 64.800 anos; Amenfsino 36.000 anos; Otiartes 28.800 anos; Daono 36.000 anos; Edoranco 64.800 anos; Xisutro 64.800 anos. 
Temos nesta lista dez nomes de reis de elevada
longevidade. Também no Egito se encontrou a lista de dez reis que governam o povo nos seus primórdios; os persas conheciam seus dez Patriarcas; os hindus enumeravam nove descendentes de Brama; com os quais Brama completava uma série de dez gerações pré-diluvianas. 
É a luz destes documentos que se deve entender Gn 5, 1-32. Os dez nomes significam os homens que transmitiram a fé e a fidelidade aos seus descendentes; visto que a vida é o bem fundamental, uma longa vida, para os antigos hebreus, era símbolo de bênção divina e honrabilidade; a indicação de que cada Patriarca viveu elevado número de anos após gerar o seu sucessor na lista, significa que esses pais do gênero humano tiveram a possibilidade de manter pura na sua família a revelação primitiva; donde se concluía que a religião que por tal via chegara a Israel, era a religião verdadeira, conservada através de uma série de gerações providencialmente favorecidas por Deus. 
Em síntese, não se deverá crer que os Patriarcas bíblicos viveram séculos. Ao contrário, sabe-se hoje com certeza que a duração da vida humana na pré-história era muito breve: oscilava entre os 20 e 40 anos, os homens não gozavam dos benefícios da medicina e da cirurgia para debelar seus males. 
É difícil explicar o porquê de cada uma das cifras atribuídas aos patriarcas setitas. Como quer que seja, em dois caos parece possível uma elucidação:
Henoque viveu 365 anos e, sem passar pela morte, foi arrebatado por Deus (Gn 5, 21-24). A sua vida é a mais breve na lista setita; não obstante, o número que a acompanha, diz que atingiu a consumação devida; de fato, 365 é o número característico do ano solar; por isto, Henoque é apresentado como um sol que consumou sua trajetória sobre a terra, difundindo luz e calor. Por isto também é o sétimo patriarca da lista setita (cf. Jd 14). Assim Henoque constitui o ponto culminante da tabela de Gn 5: em torno dele, o autor sagrado coloca os dois símbolos máximos de longevidade: seu pai Jared viveu 962, e seu filho Matusalém 969 anos; assim, diríamos, a bênção dada a Henoque se estendeu aos que lhe estão em comunhão. Ótimo comentário da figura de Henoque é a descrição do justo apresentada por Sb 4, 7-15. — À luz do que acaba de ser dito, vê-se que não há motivo para afirmar que Henoque não morreu. Lameque representa, depois de Henoque, a vida menos longa da linhagem setita: 777 anos. Mas também esta vida é tida como perfeita ou consumada, vista a insistência no número 7. Além do que, Lameque, ao gerar Noé (5, 28s), professa esperar deste filho alívio ou repouso, uma espécie de sábado (sétimo dia!).
Os Semitas (Gn 11, 10-26)
Em Gn 11, 10-26 outra tabela genealógica ocorre, também está marcada por números: é a descendência dos semitas, com dez gerações. Nesta os números hão de ser entendidos de acordo com a chave acima exposta: são símbolos de bênção divina e de venerabilidade. Esta proposição é confirmada de modo especial por um particular da vida de Sem, que mostra como o autor sagrado não dava importância matemática aos números: conforme 5, 32, Noé gerou Sem aos 500 anos de idade; o dilúvio terminou no ano 601 da vida de Noé (cf. 8, 13s), ou seja, quando Sem devia ter 101 anos completos. Ora, dois anos após o dilúvio, Sem ainda tinha 100 anos (em vez de 103), conforme 11, 10!
Note-se também que, com o tempo, vai diminuindo a longevidade atribuída pela Bíblia aos Patriarcas: na linhagem dos semitas, Sem, o primeiro, vive 600 anos (é o mais longevo), e Taré, o último, vive 205 anos.
Abraão viveu 175 anos, divididos em três períodos: chamado por Deus, deixou a terra de Harã aos 75 anos de idade (cf. On 12,4); gerou aos 100 anos (cf. 21, 5) e morreu aos 175 anos (cf. 25, 7). Ora esta distribuição em três períodos mais ou menos simétricos evidencia o artifício dos números. 
José do Egito viveu 110 anos (cf. Gn 50, 26). Moisés chegou a 120 (3 x 40) anos de idade cf. Dt 34, 7). Um salmo atribuído a Moisés reza: "Setenta anos é o tempo da nossa vida; só os mais vigorosos chegam aos oitenta" (Sl 89[90], 10). O salmista já não utilizava linguagem simbolista, mas descrevia a realidade da duração humana em termos que até hoje correspondem à nossa experiência. Poderíamos dizer que, apresentando o decréscimo da longevidade através dos tempos, o autor sagrado queria significar que os homens se iam afastando, cada vez mais, da fonte da bênção largamente concedida às primeiras gerações.
O DILÚVIO BÍBLICO:
Exame do texto de Gn 6-9
Logo após a linhagem dos setitas, o texto sagrado apresenta o dilúvio bíblico. Tal episódio se reveste de grande importância no contexto de Gn 1-11: ocupa quatro capítulos (6-9) e significa mais uma expressão do pecado, que, iniciado pelos primeiros pais, se vai alastrando cada vez mais.
O episódio do dilúvio tem-se prestado a comentários por vezes fantasistas, que destoam a mensagem do texto sagrado. Por isto começamos o estudo desse trecho bíblico examinando atentamente os seus dizeres.
Quem observa a seção de Gn 6-9 verifica que nela há repetições. Assim, por exemplo, 
Por duas vezes é indicada a corrupção moral dos homens como causa da catástrofe: Gen 6,5-7 e 11-13. 
Segundo Gn 7,7-12, Noé entra na arca com os seus e logo começa a grande inundação. Mas, a seguir, são relatados de novo o ingresso na arca e a subseqüente inundação ( 7,13-20), como se nada fora dito antes. 
Por duas vezes, e quase com as mesmas palavras, está dito que Noé executou tudo o que o Senhor lhe ordenara: 6,22 e 7,5. 
Há duas maneiras de explicar a enchente: ora é a chuva que desaba sobre a superfície da terra ( 7,4.12;8,2b);ora as águas jorram dos reservatórios postos acima do firmamento no alto e debaixo da terra ( 7,11;8,2a). 
Há diversas enumerações de animais que entram na arca: em 6,19s;7,15s, trata-se de um casal de cada espécie, ao passo que em 7,2 aparece a distinção entre animais puros e impuros ( sete casais daqueles, um casal destes). Tal distinção é anacrônica nos tempos de Noé; foi promulgada muito mais tarde pela lei de Moisés ( cf Lv 11; DT 14,3-20). 
Todos os seres vivos morrem duas vezes: 7,21 e 22s. 
Em 8, 5 já aparecem os cimos das montanhas, ao passo que em 8,9 as águas ainda recobrem toda a face da terra; 
Há duas cronologias do dilúvio: 
Conforme 7,4. 12.17 as águas duram 40 dias e 40 noites. Ao cabo de 40 dias, Noé soltou um corvo e, depois, por três vezes consecutivas, uma pomba, a fim de verificar o estado da terra ( 8,6-12); julga-se que entre esses quatro lançamentos de animais houve, de cada vez, um intervalo de sete dias; cf. 8,10.12. Em consequência, registra-se um total de 21 dias para a descida das águas após as chuvas. O dilúvio, então, terá durado 40 + 21 = 61 dias. 
Conforme 7, 11, porém, a enchente começou no 17º dia do segundo mês do ano 600 da vida de Noé e durou 150 dias (7,24;8,2s); depois destes as águas começaram a baixar, de modo que no 1o dia do 10o mês apareceram os cumes das montanhas ( 8,5), no 1o dia do 1o mês do ano 601 a terra estava toda visível ( 8,13) e no 27o dia do mês de 601 o continente estava seco ( 8,14). Em consequência, o dilúvio terá durado de 17/2/600 a 27/2/601. ora, sabendo-se que os israelitas contavam meses lunares, isto quer dizer: a catástrofe durou um ano lunar de 354 dias mais 11 dias, ou seja, precisamente um ano solar de 365 dias!
Ponderados todos estes indícios, os exegetas com razão concluem que a narração do dilúvio bíblico consta de dois documentos fundidos entre si, conservando cada qual seus pormenores próprios.
Quais seriam esses documentos? Não é difícil responder: trata-se do documento sacerdotal (P) e do Javista (J). Com efeito, encontramos em Gn 6-9 muitas expressões que caracterizam o haxaémeron (relato sacerdotal da criação):
“eis a história de...” (6, 9); cf. 2,4ª; 5,1.
“conforme a sua espécie”(6, 20. 7, 14); cf. Gn1, 11s. 21. 24s. “Macho e fêmea” aparece em 6, t9; 7, 9. 16 e em Gn 1, 27. 
As águas que jorram das comportas do céu e dos reservatórios subterrâneos,
lembram a cosmologia de Gn 1, 6-10.
A segunda cronologia do dilúvio, mais desenvolvida, parece estar no estilo de Gn 1, 1-2, 4ª.
Após o dilúvio segue-se a benção de Noé e de seus filhos, com termos quase idênticos aos da benção dada aos primeiros homens no paraíso. Cf. 9, 1s.7 e 1, 28. Deus fez aliança com Noé (9, 8-17), restaurando a amizade que estabelecera com adão (1, 26-31);
Em 9, 6, como em 1, 27, é inculcada a dignidade do homem, feito à imagem e semelhança de Deus;
Em todas as passagens atrás assinaladas, Deus é designado como Eloim e não como Javé, em paralelo ao que ocorre em Gn 1, 1-2, 4ª.
Doutro lado em Gn 6-9, notam-se antropomorfismo, que, por sua vez, lembram o estilo da segunda narrativa da criação (Gn 2, 4b-3, 24): O senhor se aflige em seu coração e arrepende-se de ter criado o homem (6, 6s); fecha a porta da arca depois que Noé nela entrou (7, 16); após o dilúvio, sendo o suave odor do sacrifício e resolve não repetir o castigo (8, 20-22). Em todos esses textos, Deus é chamado Javé como em Gn 2, 4b-3, 24.
Atendendo a estas particularidades, dizemos que em Gn 6-9 foram fundidos os documentos P e J, sem que o autor sagrado tivesse a preocupação de harmonizá-los entre si ou de eliminar as aparentes contradições dos mesmos.
O fato de que o compilador� das duas tradições não cuidou de harmonizá-las entre si, é altamente significativo: quer dizer que não dava importância aos pormenores geográficos e cronísticos do episódio; mas atribuía a este um sentido mais profundo do que o sentido cronístico. Com outros termos: entendia a história do dilúvio, como quer que ela fosse relatada, como um ensinamento de história religiosa, portador de profunda mensagem teológica. Impõe-se agora outra questão:
A origem de Gn 6-9
Eis a resposta: 
Existem, nas tradições dos povos antigos, várias narrações de dilúvio ou de catástrofes ocorrida em tempos imemoráveis. Há estudiosos que contam 268 histórias antigas de dilúvio! Todas essas narrações tem uma trama em comum: dá-se uma grande catástrofe devasta a terra e mata os seres vivos; o elemento destruidor pode ser água, fogo, neve, granizo, seca, epidemias, terremotos... Na Babilônia existem quatro versões do dilúvio, muito semelhantes entre si, são, dentre os relatos não bíblicos, os que mais afinidade tem com o texto de Gn 6-9.
Essa multiplicidade de narrações de dilúvio nos povos de diversos continentes não quer dizer que tenha havido uma só grande catástrofe que haja afetado a terra inteira (veremos que isto é despropositado, aos olhos da ciência). Mas significa que muitos povos guardaram a lembrança de uma grande desgraça ocorrida em seu território em numa época muito recuada; com muito carinho transmitiram aos pósteros a noticia desse fato, porque atribuíram a este um valor didático e religioso.
Ora na Babilônia deve ter ocorrido, em época muito distante, uma tremenda inundação; o povo daqueles tempos entendeu que era uma intervenção dos deuses, que puniam as prevaricações dos homens. Em consequência, a tradição foi pondo em relevo o significado religioso daquele episódio, sem fazer muito caso dos pormenores históricos e geográficos do mesmo. Em consequência, formularam-se aos poucos na Babilônia quatro relatos do dilúvio, muito semelhantes, mas não iguais, entre si. Ora Abraão era originário da mesopotâmia; ao emigrar de lá para a terra de Canaã, que Deus lhe mostrava, deve ter levado consigo as tradições babilônicas do dilúvio; estas foram sendo transmitidas aos descendentes do patriarca, depuradas, porem, do seu teor politeísta e grosseiro, para poder servir de ensinamento religioso ao povo de Abraão, que tinha fé monoteísta. Em consequência, formaram-se dois relatos do dilúvio na tradição de Israel: o Javista, mais antigo e antropomórfico (sec. X a. C), e o sacerdotal (sec. V a. C). Quanto os escribas de Israel deram as mãos definitiva à tora às suas tradições no séc. V (sob Esdras), os dois relatos foram entrelaçados de maneira a se tornar um só; neste, os traços históricos e geográficos não tem importância capital; o que realmente pesa, é o ensinamento religioso e moral que se depreende do episódio.
De quando foi dito, percebe-se que o dilúvio bíblico não pode ser confundido com os dilúvios ou os degelos que a geologia aponta em épocas pré-históricas; estas foram catástrofes universais, ao passo que o dilúvio bíblico não foi universal, nem do ponto de vista geográfico (não recobriu a terra inteira), nem do ponto de vista antropológico (não atingiu a espécie humana toda).
Com efeito, para recobrir toda a terra, as águas deveriam atingir o pico mais alto, o Everest, com 8.839 m de altitude. Ora uma camada de quase 9.000m em torno da terra implicaria um volume de águas de 4.600.000.000 m³, volume que toda a massa de águas hoje conhecida não chegaria a produzir. E, mesmo que o produzisse, o frio seria tal que mataria todos os seres vivos, inclusive os da arca. A universalidade antropológica também é excluída, visto que a narrativa bíblica supõe o grau de civilização do período neolítico, em que os homens já estavam espalhados por varias partes da terra. O próprio livro do Gênesis alias, a partir de 4, 1, só narra os feitos das setitas e cainitas; embora refira que adão gerou filhos e filhas (5, 4), o autor sagrado não descreve a descendência e a história desses outros seres humanos, é pois, no quadro da história dos cainitas e setitas que o autor coloca o dilúvio, sem tencionar envolver os demais homens da catástrofe. Por conseguinte, quando o texto bíblico fala de “terra inteira” e de “todos os homens” em Gn 6-9, não tem em vista o sentido geográfico e antropológico destas expressões, mas o sentido religioso: dado que queria escrever não simplesmente história, mas história religiosa, o gênero humano, para o autor sagrado, se reduzia aos indivíduos portadores dos valores religiosos da humanidade. De resto, os semitas usavam frequentemente as locuções “todos os homens” e “a terra inteira” em sentido hiperbólico; cf. Gn 41, 54; Dt 2, 25; 1Rs 10, 23; 2Cr 20, 29; A 2, 5.
A mensagem de Gn 6-9
Após quanto foi dito aqui, compreende-se que o episódio do dilúvio nos transmite uma mensagem de ordem catequética, cujos termos são os seguintes:
 Deus é santo e puro.
Deus é justo; não pode deixar subsistir indefinidamente a iniquidade, e fomenta a santidade dos homens.
Deus é clemente. Antes de exercer a sua justiça; incita os homens a penitencia, dando-lhes a oportunidade de converter-se na ultima hora (cf. Gn 6, 3). O texto de 1Pd 3, 18-20 insinua que muitos pecadores se converteram durante a catástrofe, na hora da morte.
O dilúvio é o desfecho de um período da historia religiosa da humanidade e o inicio de nova era. Com efeito, o autor sagrado apresenta-o como segunda criação do mundo, fazendo ressoar em Gn 6-9 alguns traços característicos da historia da criação (Gn 1-3). Notemos também que dez são as gerações que Gn 5 refere desde adão ate Noé, numero que significa uma lista completa ou, no caso, um período da história terminado. Sobre esse fundo, Noé aparece como novo pai do gênero humano, à semelhança de adão; com Noé salvo das águas Deus faz uma aliança, como fez com o primeiro homem. (cf. 9, 8-17; 2, 15-17).
Noé é um tipo de cristo, que é o 2º Adão simplesmente dito (cf. Rm 5, 14; 1Cor 15, 45), tão universal quanto o primeiro. Noé salvou a linhagem humana mediante o lenho da arca; Cristo a salvaria pelo madeiro da cruz (cf. Sb 10, 4).
A arca, fora da qual ninguém sobreviveu, é tipo da Igreja. Todos os homens que se salvam, salvam-se por Cristo e pela Igreja, mesmo que não o saibam ou mesmo que não pertença visivelmente à Igreja de Cristo.
As agias do dilúvio, através das quais se salvaram os justos e em que pereceram os ímpios, são figuras do batismo, que pela água dá a vida aos fiéis e apaga os pecados. Cf. 1Pd 3, 20s.
O dilúvio como nova criação, prenuncia, conforme 2Pd 3, 5-7.10, os céus novos e a terra nova que nos fim da história se constituirão.
Deixando de lado as indagações de ordem
cientifica e adotando estes ensinamentos de valor religioso, o estudioso perceberá o sentido muito rico da história, aparentemente fabulosa, do dilúvio.
OS SETENTA POVOS – BABEL:
Os setenta povos
Após o dilúvio o texto bíblico apresenta em Gn 10 uma tabela de 70 povos, e, em 11, 1-9, o episódio da torre de babel. Examinemos cada trecho separadamente.
Quem lê Gn 10. Talvez se sinta enfastiado por aí só encontrar listas de nomes, que representam os descendentes de Noé e de seus filhos Sem, Cam e Jafé. Todavia, analisando melhor o conteúdo de tal capítulo, o leitor descobre aí também uma profunda mensagem religiosa. Queria ler Gn 10, 1-32.
Tentamos identificar os nomes apresentados... Verificamos então que:
Os filhos de Jafé correspondem aos povos da Ásia menor e das ilhas do mediterrâneo estendendo-se até o litoral da Espanha;
Os filhos de Cam ocupam as regiões do sul: Egito, Etiópia, Arábia, Canaã;
Os filhos de Sem habitam a Mesopotâmia e a Arábia.
A Lista dos 70 nomes deve compreender todos os povos que o autor sagrado julgava descender de Noé (70 é o numero da plenitude, na simbologia antiga); Algumas populações, como a dos amalecitas e a dos moabitas, não estão aí incluídas porque o autor as julgava de origem mais recente. Mais precisamente, podemos dizer que a tabela de Gn 10 exprime os conhecimentos que, a respeito do mundo habitado, podia ter um israelita da época de Salomão (séc. X a. C) ou dos séc. VIII/VII a. C. Tal documento não pretende indicar a origem das raças, como se estas tivessem começado após o dilúvio a partir dos filhos de Noé: Jafé seria o pai da raça branca, Cam o da raça negra, e Sem, o da raça amarela. Na verdade, as circunstancias de clima, trabalho, alimentação... como tambpem por ação do fenômeno chamado “mutacionismo”. A Bíblia nada afirma a respeito das origem das mesmas; cf. Módulo 2 da 4ª etapa deste curso.
E qual seria a mensagem-religiosa de Gn 10?
Distingamos dois pontos:
Unidade de origem de todos os povos. A ordem de crescer e multiplicar-se, dada pelo senhor a Noé logo após o dilúvio (cf. 9,1.7), se cumprira; isto era a condição para que o homem exercesse o seu domínio sobre a terra (Gn 1, 28), à imagem e semelhança do domínio de Deus (Gn 1, 26). Todavia – quer notar o autor – essa dispersão dos homens não acarretou desunião ou antagonismo para a humanidade; todos os homens provem do mesmo tronco e formam uma imensa família, como, aliás, nota também São Paulo em At 17, 26.
Sem dúvida, na época mesma em que o autor compilava os nomes da sua tabela, Israel experimentava e experimentava ameaças por parte de povos vizinhos: os filisteus, os hititas, os amorreus, os jebuseus, os cananeus (cf. 1 Sm; Nm 13, 28s); além destes os egípcios, os assírios e babilônicos constituíram permanente perigo para a subsistência de Israel. Ora nada disto transparece em Gn 10; aqui só se exprime a certeza de origem comum e da fraternidade de todos os homens. Na literatura de outros povos antigos não se encontra atitude semelhante: os estrangeiros costumam ser aí considerados bárbaros e objeto de desprezo. 
A afirmação de unidade de origem de todos os povos significa que todos são chamados à salvação. Verdade é que essa salvação há de vir através de Abraão e da sua linhagem; é o que indica a tabela de Gn 11, 10-26, que continua a listagem dos descendentes de Sem, de modo a chegar a Abraão (cf. Gn 10, 22; 11, 11); não são as suas armas nem a sua habilidade política que o fazem grande, mas unicamente o beneplácito e a escolha de Deus; Abraão foi chamado gratuitamente, sem ter merecido a sua vocação (cf. Gl 3, 6-9; Rm 4, 1-12).
Eis o significado religioso da tabela de Gn 10.
Gn 11, 1-9 – exame do texto
Este episódio não tenciona explicar a origem das línguas, mas é portador de profunda doutrina teológica.
 Examinemos primeiramente, o que diz o texto sagrado. Ler Gn 11, 1-9
“A terra inteira” em Gn 11, 1, por certo, não designa todo o globo, mas apena a porção de terra que interessava à história da salvação.
“uma só língua”, segundo os orientais, designava a unidade de cultura, religião, costumes – e também de idioma – existente em determinada região. Os antigos reis assírios e babilônicos afirmavam “ter reduzido tal país a uma só língua ou ter reduzido os homens a uma só boca”; queriam significar, com isto, que havia imposto a este ou aquele povo conquistado a cultura, a religião, a mentalidade (principalmente) – e também a linguagem – do povo vencedor, extinguindo particularidades nacionais.
Em consequência, devemos dizer que Gn 11, 1 nos coloca diante de uma população que professava a mesma mentalidade e a mesma cultura (sendo a unidade de idioma um aspecto apenas dessa uniformidade).
Tais homens conceberam o projeto de construir uma torre cujo cume chegasse ao céu; queriam também tornar seu nome conhecido e famoso; cf. 11, 3s.
Essa torre muito alta há de ser entendida à semelhança das torres babilônicas (ziggurats), que as escavações tem posto a descoberto; tinha a forma de uma pirâmide a patamares (três, quatros, cinco ou sete degraus ou patamares) à imitação de uma montanha. Eram monumentos religiosos ou templos pagãos. Os antigos babilônicos oriundos de regiões montanhosas concebiam a terra como uma grande montanha e, em consequência, julgavam que os deuses habitavam no cume dos montes; por isso colocavam no último andar das suas pirâmides a habitação da Divindade ou o santuário dedicado ao Deus da cidade. A mais famosa dessas torres, na cidade mesma da Babilônia, era chamada “E-temem-na-ki” (= casa do fundamento do céu e da terra), dedicada ao deus Marduque, que não era senão o poder político da Babilônia divinizado. – Assim se entende que o empreendimento dos homens de Gn 11, 1-9 era predominantemente religioso pagão.
Mais: tais homens queriam também criar para si um nome famoso, que os mantivesse unidos. Isto significa, em outros termos, que queriam formar um poderoso centro político e cultural, todo impregnado do culto de um ídolo; queriam constituir, longe do verdadeiro Deus, um reduto político e religioso que tivesse domínio universal; o símbolo desse período seria a torre muito alta ou o templo pagão.
O texto a seguir, narra o desdobramento de tal iniciativa. “O senhor resolveu confundir a linguagem daqueles homens soberbos, de modo que não entendessem mais a língua uns dos outros” (11, 7) – isto não quer dizer que o Senhor tenha realizado o milagre de multiplicar línguas instantaneamente, mas, à luz de quanto foi dito atrás, significa que o Senhor permitiu que a soberba daqueles homens afastados de Deus se voltasse contra eles mesmos: começaram a se desentender; os interesses pessoais foram prevalecendo sobre os interesses comunitários, de tal modo que não conseguiram continuar a sua obra e tiveram que se dispersar; esta dispersão acarretou, sem dúvida, a multiplicação dos idiomas como consequência remota da desintegração interior daquele grupo de homens apóstatas. A unidade inicial, carecendo de fundamento em Deus, foi ilusória: cedeu logo ao esfacelamento do grupo em parcelas alheias umas às outras.
Por fim, o autor nota que à cidade inacabada se deu o nome de Babel ou Babilônia. “pois foi lá que o senhor confundiu a linguagem da terra inteira” (v. 9). Não é necessário que, na base dessa indicação, identifiquemos a cidade de Gn 11 com a famosa capital da Babilônia. O autor sagrado muito provavelmente quis atribuir à cidade de Gn 11, que era símbolo do orgulho, o nome de Babilônia, pois esta, na história sagrada, se tornou o tipo do poderio deste mundo que se faz grande e insolente contra Deus (cf. Jr 51, 20-58, Ap 18, 21-19,5).
Procuremos agora o significado do episódio analisado.
A mensagem de Gn 11, 1-9
Pode-se crer que o episodio da torre de Babel constitui um bloco literário redigido independentemente de sua moldura atual e nesta inserido pelo autor sagrado. De fato, ele interrompe as genealogias (cf. 10, 1-32 e 11, 10, 10-32), intercalando-se entre a

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