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Copyright 2010 Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro Coordenação editorial Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa Elaine Lopez Feijoo Maria Bernadete Medeiros Fernandes Lessa Myriam Moreira Protasio Conselho Editorial * Élida Sigelmann Uui11ersidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ Moniquc Augras U11iversidade Po11tiftcia Carólica-PUC/RJ Roberto Novaes de Sá Universidude Federnl Fluminense- UFF Thclma Donzclli Universidade do Estado do Rio de Janeira-UERJ Ued Ma luf U11iversidade Federal do Rio de Ja11eiro-UFRJ Projeto gráfico e diagramação Papel & Tinta / Sergio Laks Jhrstraç,io da capa (linoleogravura) Va leria Brancafortc Revisão e padronização de texto Arnaldo Marques F328e 2.cd. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ, Feijoa, Ana Maria Lopez Calvo de, 1952- A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológico-existencial/ Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa· 2.ed. · Rio de Janeiro : IFEN, 2010. Inclui bibliografia ISBN 978-85-63850-00-3 1. Psicoterapia existencial. 2. Existencialismo. 3. Fenomenologia existenc ial 3. Psicologia clínica. 4. Psicoterapeuta e paciente 1. Titulo. 10-4 193. 23.08.1 O 25.08.1 O Índices pnrn coJO/ogo sislemótico: 1. Clicnte-psicolera.peuta : Relação clínica: Psicologia 150. t95 2. Psico1ern.peu1a.cl ientc : Relação clínica : Ps ico!ogin 150. 195 • Membros da Banca Examinndora do doutoramento da 011/ora. CDD: 616.8914 CDU: 615.851 021042 CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia feno m en o 1 ógi co-existencia 1 A proposta aqui desenvolvida consiste em pensar a psicote- rapia em termos do próprio existir. Não se trata aqui de pensar o homem a partir de fonnu lações teóricas, que postulam o existente em um sistema explicativo e determinista ou como uma filosofia idealista ou realista. Neste percurso, substituíram-se os sistemas científicos e a teorias que consideram o homem a partir de uma construção em si mesmo pelos fundamentos da hermenêutica fe- nomenológica e pela filosofia da existência. O homem passa, então, a ser tomado não mais a partir de substancialidade do eu e de sua dicotomi zação. Assume-se a questão pela via dos modos de ser do homem, retornando assim à ligação originária do homem com o mundo, prescindindo de um aparato psíquico . Parece necessário abrir um espaço de re- flexão, para que possamos propor uma psicologia com bases fe- nomenológico-existenciais, em que se pensa uma psicologia para um ente dotado de caráter de poder-ser, ou seja, para um ente desprovido de algo assim como o psiquismo. Trata-se de um eu na concepção de Kierkegaard (s/d), que se constitui como movimento, um eterno vir-a-ser, constituindo-se na 101 CAP(TULO 3 Uma proposta de psicoterapia f enomenológico-existencia l relação que a própria relação estabelece consigo mesma e com o mundo. Esse existir, implica-se com o real e com o imaginário, com os limites, mas também com as possibilidades; vive no imediato do presente, como no remoto do passado e no vir-a-ser do futuro. Implica-se, enfim, consigo próprio e com o outro, co1:n a razão e com a paixão e, ainda, com o desespero da própria ambiguidade frente ao fato de existir. Pode assumir posições psicológicas de li- berdade e de não-liberdade, considerando ainda aspectos como in- terioridade, ilusão e transparência do eu (KIERKEGAARD, 1968). Fundamentar-se em Kierkegaard é uma tarefa para a qual ele mesmo abriu caminho, ao definir duas de. suas obras como des- tinadas à psicologia : O conceito de angústia e O desespero hu- mano. Neste livro são desenvolvidas, além de uma proposta de constituição do eu, considerações sobre a perda do eu. Naquele, considera a liberdade como um aspecto psicológico , em que a não-liberdade constitui-se como estado de queda. Fundamentar uma proposta psico terapêutica na fe nomenolo- gia hermenêutica de Heidegger abre uma série de discussões acerca da possibi lidade cujo caminho o próprio Heidegger apon- tou nos Seminários de Zollikon, ao afirmar que o distúrbio, no homem, se caracteriza pela sua dificuldade de flexibilização e da liberdade. À psicoterapia cabe acompanhar aquele que esqueceu do seu caráter de poder-ser e, no desvelamento de sua situação, poder resgatar a possibilidade de sua liberdade. Articula-se uma psicoterapia, considerando o pensamento de H eidegger acerca da técnica, do método fenomenológico, da her- menêutica e da estrutura do ser-aí juntamente com as reflexões de Kierkegaard sobre o modo de acolhimento quando se queres- tabelecer uma relação que, pretendendo levar o homem q reco- nhecer-se a si próprio, desfaz a ilusão de quem acredi ta ser aquilo que em ato não é. 102 Ana Maria Lopez Ca lvo de Feijoa Trata-se, então, de estruturar uma prática clínica, fundamen- tada em uma ontologia do sentido, na abertura do ser-do-ente e nas reflexões de Kierkegaard , ao sustentar uma relação singular de "ajuda", em um sentido particular: psicoterapeuta e cliente em uma situação concreta. O percurso psicoterapêutico, aqui desenvolvido, pauta-se no processo de escuta e fala articul ados na psicoterapia em um a abordagem fenomenológico-existencial, em que escuta e fala não se dão na relação dicotômica sujeito-objeto. Ocorre pela herme- nêutica, desvelando sentidos pela compreensão explicitada, ainda que ao modo do encobrimento, no discurso. Assim sendo, pode- se atuar de forma a não cair em uma perspectiva sem fu ndamen- tos, parecendo, muitas vezes, uma psico logia do senso comum. Mas, ao mesmo tempo, não se cai em um excesso de proteção da naturalidade das relações, refugiando-se em normas rígidas acerca de como se deve dar a relação psicoterap êu tica, pare- cendo, muitas vezes, tratar-se mais de um jogo de forças do que de uma relação compreensiva. Trata-se, portanto, de fundamentar uma proposta psicoterapêutica flexível, com princípios filosófi- cos orientadores - e não limitadores de uma ação . 3.1 - As refl exões de l(i erkegaard e a psicoterapia A propos ta de uma psicoterap ia em uma perspectiva fenome- nol ógico-ex istencial vai procurar, nas reflexões de Kierkegaard, a possibilidade de se estabelecer uma relação ps icoterapêuti ca na busca da transparência do eu, a qual se constitui como reto- mada do movimento do existir. A proposta deste pensador torna viável uma psicoterapia que consiste em ajudar o outro a reco- nhecer-se em suas escolhas . Vale ressaltar uma discussão de Kierkegaard (1 846) de grande relevância para a psicologia, seja 103 CAPÍTULO ·i Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial no âmbito do social, seja do particular. Aliás, a questão do indi- víduo e da multidão em Kierkegaard já aponta para uma tentativa de <li ssolução desta dicotomiai. 3 . .l.1. O indivíduo e a mult idão Kierkegaard em A época presente (2001 ), texto datado de 1846, mostrou sua preocupação com o despontar da sociedade de massa e a dissolução da tradição europeia. Atualmente, pode-se assistir à sedimentação da sociedade de massa. Testemunha-se, hoje, o início da sociedade globalizada e a dissolução de qualquer ., tradição, seja europeia, asiática.ou americana. Tem-se, agora, uma sociedade de massa hegemônica. Observa-se, pacificamente, o total desaparecimento da tradição: dos valores, da ética, das cren- ças. As essências se perdem e aparece a extrema valorização da aparência, tomada como realidade e que consiste nos critérios a serem seguidos. As modificações na cultura engendram mudanças exteriores que, pouco a pouco, vão transformando a interioridade do homem: o pensar sobre as coisas, os sentimentos, as atitudes. Kierkegaard (Op. cil.), a todo o momento, declarava a sua fé no homem, no sentido de resgatar sua individualidade, por dois moti- vos. Primeiro, já que a multidão é formada por indivíduos, há o poder em cada homem de chegar a ser o que é: oindivíduo singular, exceto se esse homem não desejar assim e preferir escolher excluir- se a si mesmo, e continuar mantendo-se como multidão. Segundo, por acreditar que a interioridade é possibilidade para todo homem . O homem, como indivíduo fiel à singularidade, não precisa se encaixar em nenhum enquadramento ou reduto . Não precisa, para tanto, atacar nem criticar um determinado grupo, e sim proceder a uma análise sincera e poder assumir que não se identifica. A sub- jetividade se constihii incorporando existencialmente as verdades 104 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa objetivas na singularidade. Manter-se no singular implica não se perder no geral, porém sem abandoná-lo. A singularidade se for- talece no geral, mantendo a verdade objetiva e assumindo as ne- cessidades. É preciso, no entanto, não confundir a necessidade com a moda ou com o universal. No entanto, quanto mais enfra- quecida a consciência, mais fácil é perder-se na multidão. Na atua- lidade, através da forte expressão da publicidade, a multidão se articula de modo que o indivíduo tenda a cauterizar a consciência, fortalecendo o impulso inconsciente. E o homem sem consciência torna-se presa fácil da multidão1 Só na singularidade o indivíduo torna-se responsável por sua ação, compromete-se com a sua obra, assina a sua autoria. Para este, os meios não justificam nenhum fim. O indivíduo massa é a multidão, em que a verdade toma-se uma abstração, portanto ninguém é responsável, ninguém àssume a autoria e, ainda, os meios justificam o fim. A exemplo da Ilíada e da Odisséia, tem-se, no político, o homem da massa, com a valorização da astúcia, da sofística na qual importa a palavra, e não a ação. Não precisa haver comprometi- mento, faz-se necessário o convencimento. Frente à astúcia do po- lítico, o indivíduo singular tem que estar muito preparado para posicionar-se frente aos argumentos do outro, deve poder contra- argumentar sem recon-er à in-itação ou a uma resposta inflamada. No senso comum, costuma-se afirmar que o que diz a multi- dão é a verdade. Para Kierkegaard, a multidão é a mentira, pois considera o numérico como critério que decide o que é verdade. A multidão atua como instância decisiva segundo os asp eétos temporal, terrestre e mundano. "Do ponto de vista ético e/ou ético-religioso, a multidão é mentira, se dela se pretende fazer a instância que julga acerca do que é a verdade." (Id., p. 97). A multidão é a verdade em relação ao finito e ao sensível. Em re- lação ao eterno, um único atinge a meta. 105 CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico-existencial Com relação ao eterno, tem-se uma discussão do filósofo di- namarquês em O desespero humano. Neste manuscrito, Kierke- gaard refere-se ao desespero como doença do eterno, descoberta pelo cristianismo ao inserir o eterno na existência. O desespero é a doença do eterno pela impossibilidade do homem de justifi- cação da existência no temporal. Doença muito peculiar, pois afeta o temporal e acontece quando o homem não encontra mais sentido no temporal. Então, o que constitui o homem? É o pró- prio desesperar, já que este se constitui no jogo do eterno e do temporal. Trata-se de uma energia viva, autodeterminante, que em abertura ambígua e indeterminada, em total ausência de sín- teses, no ato de existir, constrói a verdade de sua existência. Cabe, então, ao psicólogo acompanhar aquele que o procura no sentido de saber do que ele desespera. Seria a enfermidade psí- quica a doença que o cristianismo anuncia? 3.1.2 - A constituição do eu: movimento e queda Kierkegaard refere-se ao eu como se constituindo em movi- mento, movimento do existir. A escassez deste movimento con- siste na perda do eu, que seria o homem em estado de queda. O eu se perde quando se paralisa em uma tentativa de resolver o inevitável, ou seja, a situação paradoxal da existência humana. O movimento dialético do existir humano, o "ir e vir", é o que constitui o eu. O eu é, portanto, atividade, eterno movimento. A proposta de psicoterapia consistirá em mobilizar os para- doxos da existência, uma vez que aquele que está em desespero - no sentido de lutar para resolver as ambiguidades da existência - encontra-se paralisado. Debate-se contra si mesmo. Cabe, então, ao psicoterapeuta reconhecer a estagnação do cliente e, através do desvelamento, facilitar o reconhecimento da ausência 106 i 1 1 ! 1 1 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo de movimento do eu. O cliente deverá vir a reconhecer que a sua existência se estabelece na dialética do finito e infinito, do eterno e do temporal, do necessário e dos possíveis, e mais: da razão e da paixão, do singular e do universal, do acaso e do autodeter- minado. E que nem ele, nem nenhum homem se constituem como um eu fechado: existir sempre implica abertura, fechar-se implica deixar de exis tir - nas palavras de Kierkegaard, em perda do eu. Na dialética do finito e infinito, a estagnação ocorre quando o eu se perde no finito, e sua ação se torna uma eterna repetição das realizações do impessoal. O eu se perde no infinito e atua no ima- ginário, que não realiza. Restabelecer o movimento consistiria na fluidez finito e infinito que se constitui como realização, no mo- vimento em que o imaginado se faz real e, então, o eu realiza. No mqvimento das necessidades e possibilidades, o homem atua em liberdade. Quando preso ao necessário, este homem não se assume livre e costuma dizer: "A Deus tudo é possível" ou, então, justifica o não-fazer no mundo, nos pais, enfim, na ameaça do externo. Por outro lado, quando preso aos possíveis, acredita que para ele tudo é possibilidade, esquece-se dos seus limites, pensando que nada no mundo o detém. Reconhecer seus limites e arriscar nos possíveis constitui-se no eu em liberdade . Na fluidez do eterno e do temporal, a existência se dá em uma síntese entre passado, presente e futuro, em que o imediato se constitui como eterno e temporal. O eu qu e se perde no eterno acredita-se imortal, portanto, é especial : o que ocorre ao outro, por certo não lhe ocorrerá. Aquele que se perde no temporal teme o tempo, se previne de todas as formas possíveis, por acreditar que, através de uma atitude de proteção extremada, poderá evitar ou adiar a sua morte. Em movimento, o eu se constitui, justifi- cando no eterno o existir no temporal. Só assim a existência torna-se totalmente justificável. 107 À psicoterapia caberia, então, buscar o que afinal justifica aquela existência em termos de eterno e necessário . O apelo para a justificação no temporal revela a ausência de necessidade - o que também é desespero, doença mortal. Em Migalhas filosófi- cas (1991), Kierkegaard diz que a transformação se dá no ins- tante - logo, no âmbito do eterno da existência temporal e do necessário da existência frente aos possíveis . '3.1.'3 - A angústia e as posições psicológicas de liberdade A angústia revela o caráter de indeterminação da existência que abre ao homem o pecado. Daí o homem, saindo do estado de ignorância, poder reconhecer-se corno pecador - ou seja, na pos- sibilidade para as possibilidades. Aí se encontra no seu poderes- colher-se: Kierkegaard vai descrever as posições psicológicas da liberdade, dentre elas a da não-liberdade. Na não-liberdade, o homem não se reconhece como pecador, aquele que se escolhe. Revela-se, então, corno determinado por condições alheias a si mesmo, de vários modos. Seja pelas queixas psicossomáticas, pelas expressões de culpa e de isolamento. Justifica-se no acaso, no destino e, ainda, deixa que o tempo dê conta daquilo que tem de decidir. A presente proposta psicoterapêutica consiste também na apropriação da condição de pecador, ou seja, da liberdade ine- rente ao homem. A fala e a ação do cliente serão não só a fonte reveladora do movimento do seu existir como também.!_expres- sãodomodoque ele lida ~ sua liberdade. A angústia, que de- flagra a condição de liberdade, não deve ser amenizada: experimentá-la e nela emergir é o possível d iberdade. O homem se constitui como liberdade, daí a angústia frente ao real e ao futuro, i m que se apresenta o mundo como possibilidades. 108 Hlld 1·1ana Lopez Laivo oe re1ioo Muitas vezes, no entanto, o homem quer obscurecer a sua situação de indete1minação, sua liberdade. Para tanto, dissimula a angústia que lhe é constitutiva, assumindo-se, no mundo, como não-liberdade. Desta fonna, justifica-se nas determinações do somático, do divino, do mundo, do acaso. Há, nestes casos, uma falta de interioridade, ou seja, de obscurecimento da situação que lhe cabe. ~ psicoterapia e]Q.S;.'t ~enFOl.~ -~-~-~~~!J~ritm:..que aquel~~ se justi~ as t dete1111inações exteriores possam ganhar interioridade. Para que - - --aquele que se diz não-livre possa assumir-se em sua liberdade. 3.1.4 - A psicoterapia e os princípios de uma "relação de ajuda" Tanto Kierkegaard quanto o psicoterapeuta existencial pre- tendem facilitar ao homem o encarar sem temor o seu ser em abertura e aceitar a condição paradoxal da existência humana. O psicólogo pode se valer dos princípios da relação de ajuda, a fim de que o homem reconheça a si mesmo, assumindo a responsa- bilidade de suas escolhas e daquilo que continua a escolher ser, em cada momento de sua vida, sabendo-se, ao mesmo tempo, lançado às contingências do mundo. Kierkegaard (1988) denomina "ajudante" aquele que pretende ajudar ao outro a se desembaraçar dos laços da ilusão, a alertar o ho1pem do perigo de se perder nas determinações do impessoal, de modo a esquecer-se do caminho de retomo a si mesmo. Afirma que aquele que quer ajudar deve, antes de tudo, reconhecer que tem um diferencial em relação ao outro - o que, no mínimo, im- plica reconhecer o risco de se perder nas orientações demarcadas pela multidão . E reconhecendo o perigo, pode tentar identificar o que ameaça o outro. Aquele que ajuda deve saber dialogar através da comunicação indireta, que consiste em uma forma de se fazer 109 CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial chegar ao outro, sem que este perceba que há aí uma intenção de confrontá-lo, de questioná-lo ou interceptá-lo em suas ações. A fim de organizar a sua estratégia de comunicação indireta, Kierkegaard utiliza-se de pseudônimos para assinar o conteúdo de suas obras, elaboradas de acordo com critérios estéticos, éticos e religiosos da existência humana. Estabelece tais critérios de acordo com os referenciais pelos quais o homem estabelece suas escolhas. Daí, ele organiza suas obras, para poder atingir a todos os leitores. Com base nos escritos de Kierkegaard em Mi punto de vista, onde ele descreve de que forma se deve conduzir aquele que pre- tende levar o homem a reconhecer-se, propõe-se uma descrição de como deve proceder o psicoterapeuta existencial ao estabele- cer uma relação libertadora com o seu cliente. Aponta para as di- ficuldades de destruir uma ilusão por via direta, devendo, então, fazê-lo por meios indiretos, mas como? 110 {J Organizando dialética e indiretamente aquilo que pre- tende dizer ao cliente para, em seguida, retirar-se; 2°) E, assim, não testemunha o autorreconhecimento. Desta forma, aquele que ajuda não assume para si o reco- nhecimento que o homem faz de si mesmo, por ter vivido uma ilusão; 3°) Mantendo-se próximo, permanecendo na situação de acompanhar aquele que obscurece a sua condição de liber- dade para as suas ilusões. Quando se pretende ajudar o outro, deve-se promover a aproximação, acompanhando ~ uele que está sob a ilusão, mas jamais escolhendo por ele; (J Sendo cuidadoso e paciente para chegar onde o cliente se encontra e começar por aí. A fim de desfazer a ilusão, deve-se chegar até ele, para, então, poderem caminhar jun- tos; mas, no momento da decisão, QJ?.!icoterapeuta dá um Qasso atrás; ----... Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa ® Entendendo o que o cliente entende e a forma como entende. Se assim não for, a ajuda de nada lhe valerá. Tudo começa quando se pode entender o que o outro entende, e a forma como entende; 6º) Assumindo uma atitude de humildade e colocando-se, deste modo , na relação. Se, orgulhoso do conhecimento, -ª.lltes de ajudar o outro, o ql!_e se deseja é ser admirado. O autêntico esforço para ajudar começa com uma atitude hu- milde. Aquele que ajuda deve colocar-se como desconhe- cendo mais do que aquele a quem ajuda; 7º) Assumindo a responsabilidade pela atuação; 8º) Utilizando metáforas, quando estas se fizerem neces- sárias. Interpretações poéticas, muitas vezes, ajudam aquele que fala do seu sofrimento; 9º) Deve-se ser um ouvinte que senta e escuta o que o outro encontra mais prazer cm contar, sem assombro; 10º) Apresentando-se com o tipo de paixão do outro homem: alegre para os alegres, em tom menor para os melancólicos; 11 º) Não temendo fazer tudo isto , mesmo que na verdade não se possa fazer sem medo e temor. Acredita-se que, pelo processo psicoterapêutico, possa o homem chegar a se reconhecer. Chegar à interioridade, através da reflexão, significa desembaraçar-se dos laços da própria ilu- são, o que também é uma modificação reflexiva. Estabelecida a relação compreensiva, o psicoterapeuta já pode arriscar mais no processo de comprometimento com sua própria existência. É o momento de não tentar obscurecer a inquietação própria da condição de reconhecimento de sua indeterminação existencial: a angústia. E, assim, tentar manter uma atmosfera para que o outro possa reconhecer o seu caráter de pecador - logo, aberto para possibilidades. É o momento de mobilizar o 111 CAPITULO 1 Umil propoSlil cre ps1co1erap1a 1enomeno1og1co-ex1srenc1a1 desfazer da ilusão de que se é determinado quando se é liberdade; de que as justificativas da existência se encontram no temporal esquecendo-se da justificação no eterno; de que, no mundo, tudo é possibilidade obscurecendo o necessário; de que a verdade se encontra naqui lo que se diz e que, na ação, não se faz . E tudo isto vai se dar no discurso psicoterapeuta-cliente. '3.2 - O pensamento de Heidegger e a psicotera pia Uma proposta psicoterapêutica em uma perspectiva fenome- nológico-existenci ai articulou-se aqui, tomando em Heidegger os seus fundamentos, como bem esclarece Sá (1995, p . 47): "Um diálogo cri terioso com a obra de Heidegger muito tem a contri- buir para que a clínica alcance uma compreensão mais profunda de seus próprios fundamentos." Urna Analítica do Dasein tal como designada por Heidegger abre, por sua vez, a possibilidade de uma clínica psicológica que trabalhe com as bases ontológico-existenciais a partir da proposta de t~ia sem psiquismo e da tese fundamenta!_pres~te _ n · omenolog1a heideggeriana de que os problemas psíquicos não são problemas da inte1~orwacfs ~ ão orgân~ _se- mântica interna - enfim, não são problemas do eu. São problemas --,...t:..----- - d~eto existencial, da relação ser-aí e mundo. A própria da-____ _:_ __ _:_ ____ - seinsanálise, tal como assumida por Boss, consiste em uma ten- ta tiva de pensar todos os problemas ditos psíquicos como problemas da articulação ser-aí/mundo. 3.2.l - O desve lamento das possibilidades do ser-aí e a psicoterapia Uma questão muito presente no âmbito da psicologia versa sobre a real possibilidade de se arti cular uma clínica psicológica a partir da fenomeno logia hermenêutica de Heidegger. A dúvida 112 1-\llcJ l"ldl ld LU~t:"L \...dlVU UC' 1 C' IJUV acerca de tal possibilidade ocorre uma vez que este filósofo nega totalmente a existência de um psiquismo. Ele questiona, também, a pretensão de uma atuação modificadora do comportamento hu- mano a partir de um posicionamento que toma o homem como algo da ordem do natural, logo passível de uma modificação pelaação direta. É o próprio filósofo da daseinsanálise, contudo, que aponta para a possibilidade de uma clínica psicológica com bases na fenomenologia hermenêutica; e isso em seus Seminários de Zollikon (1987/200 1). Heidegger, em Ser e tempo (1927; 1989), refere-se à analítica do Dasein como a análise ontológica das es- truturas da existência humana. Os psiquiatras Ludwig Binswan- ger e Medard Boss , inspirados no filósofo , vão denominar de daseinsanálise o exercício desta analítica em uma perspectiva ôn- tica - ou seja, na relação com problemas materiais. 3.2.1. 1 - O método fenomenológico Husserl apresenta a atitude antinatural, própria à fenomenologia, como possibilidade de uma visada não comprometida com a postura ingênua que se deixa levar pela opinião já marcada por um modo de ver presente no senso comum. Nessa atitude antinatural, ao invés de se imergir em atos superpostos uns aos outros e de pressupor os objetos como dotados em si mesmos de sentidos e dete1minações essenciais acessíveis na pesquisa, o importante seria retomar ao ponto de gênese dos atos e ao caráter intencional de sua realização. A atitude antinatural tal como assumida pela fenomenologia com seu lema fun damental - "rumo às coisas mesmas" - pode dar a impressão de que o que está em questão é o empírico, ou seja, é deixar-se tomar pelas coisas da maneira como elas apare- cem. No entanto, a questão aí implica a superação de todas as tendências metafísicas que criam teorias acerca dos entes, esque- cendo-se do sentido originário do ser. A orientação fenomenoló- 113 CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico·existencia l gica exige que se saia do campo empírico, que posiciona os ob- jetos no espaço e no tempo, o que envolve a necessidade de se deixar o campo emergir num gesto não-teorizante. Para tanto, é preciso que, uma vez diante do fenômeno, se dê um passo atrás e se retorne ao seu correlato cooriginário. Husserl propõe o abandono da atitude natural por uma atitude antinatural: temos aqui a noção de epoché - a suspensão desta atitude natural. O que ele nos ensina é que precisamos deixar de tomar a verdade com referenciais e categorias hipostasiantes, como se as coisas fossem estruturadas naturalmente, dando a idéia falsa de que se conhece a verdade. Heidegger, inspirado por Husserl, adota o método fenomeno- lógico como atitude de investigação do fenômeno. "Método", aqui, é entendido no sentido grego, como a busca daquilo que vem depois do caminho. Na ciência moderna, entende-se como representação; na fenomenologia é o sentido./). i~ão fe-, nomenológica em Heideggg_p!QPÕe-se a buscar' o fenômeno nos __.. -- - S2!§ m01lõs-de-e:~1~licitação - s.9~aparên_cja, na manifesta~ão ~Fltr errh:rlham-eat-0,,__ Este método também vai consistir no modo de investigação que se dará na própria relação psicoterapêutica. Parte-se do prin- cípio de que não é o método com seus parâmetros que conduz: aquele que se investiga é que traça o caminho da investigação. O psicoterapeuta, pautado na proposta da fenomenologia, vai esti ação do homem em relação deixando ue o_ que se mostra, fa a-o a seu modo próprio, e a p,ar.tü: ... de si mes~ Este método, em psicoterapia, vai seguir os seguintes aspectos, propostos por Husserl e adotados por Heidegger: 114 - "Às coisas em si mesmas": o psicoterapeuta vai se dire- cionar àquilo que se mostra em si mesmo, que se deixa ver, a própria revelação do ser. As coisas que se deixam ver. Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoo - Evidência, tal como tomada na acepção de Heidegger nos Seminários de Zollikon : Evidente ( 0/fenbar) significa, se tomarmos seu signifi cado mais claro e o desdobrar- mos, algo como notório, evidente, que vem de evideri, deixar-se ver, em grego eva- pyns, iluminar brilhantemente, mostrar-se a si mesmo. (HEIDEGGER, 1987, p. 12) ~ ~ nômeno: o psicoterapeuta vai buscar o que se mos- tra, sem nenhuma perspectiva de demonstração. \ ~ As estruturas da experiência: explicitam-se e são com- ~ eendidas, portanto não se explicam, nem se comprovam. ~ A transparência: o psicoterapeuta facilitando que o ser transpareça e não o deduzindo segundo uma perspectiva teórica, vai deixar que o sentido se mostre. -A compreensão da existência : a existência, enquanto fe- nômeno, é captada indiretamente, mas não por um mundo interno desconhecido, porém pelo seu modo próprio de mostrar-se. O "ser em si" não se esconde atrás de aparên- cias , o fenômeno é apreendido através de perspectivas, na medida em que se desvela. Heidegger, atento ao modo de investigação, não pretende ca- racterizar o objeto, mas buscar o seu modo de expressão. Pre- tende, ainda, apreender o sentido via interrogação e, então, desvelar o ser-do-ente, que permaneceria oculto, quanto mais a preocupação consistisse em aprisioná-lo para conhecê-lo. A clínica psicológica, nesta proposta, recorre à investigação do modo de ser do homem, ser-aí o considerando não como uma unidade fechada, com algumas características que a definam. A busca se dará na forma do se mostrar do ente, podendo até mos- trar-se como não é : aparência . Pode mostrar-se, ainda, através de 11 5 ,...,..., ,,v1...v .1 v1 , ,u IJIVIJVJIV -.,,.__ p., , ,._..,,.,.,.,..,..,,...., ,.,. , , .., , ,..,..,.,, .... b, ....... .... , .. .,., .... , ... ,~. indicações de coisas que, em si mesmas, não se mostram, apenas se anunciam: manifestação. Pode, ainda, mostrar-se e ao mesmo tempo esconder-se - o que Heidegger denomina "entulhamento". Heidegger propõe que, na investigação do ser, se parta da- quilo que é evidente rumo à fundamentação. Assim procede o psicoterapeuta, quando tenta elucidar o dito do cliente. Este, em sua fala, traz evidências do seu sentido e, somente quando tais evidências são aceitas por ele próprio, o psicoterapeuta pode pro- ceder às suposições. Pode-se, porém, levantar a seguinte questão : como explicitar o sentido, para que ele possa ser aceito como evidente? Heidegger propõe que se deixe h·ansparecer o sentido do ser através de seus momentos constitutivos: o questionado, o perguntado e o interrogado. Em psicoterapia, busca-se o sentido daquele que se apresenta em estado de queda, tomando-se como algo que é determinado apenas pelo impessoal: o interrogado. Quanto ao questionado, ou seja, este homem que se perde de si mesmo, aí se dá a procura. O analista desta orientação deve busca!.,9-lnedo própi:io cle ace-sso ~ --- ªº ser questionado, pela forma tal qual ele se mostra j;jndi_ca_o caminho. Cabe ao analista reconhecer que ele e o analisando _ estão inseridos no hori zonte histórico em que se encontram. Logo, partem de visões e posturas prévias, naquilo que consiste . os seus modos de ser. Interroga-se o próprio ente em seu ser; aqui se dá a estrutura escuta e fala, assegurando-se um modo propício de acesso ao sentido articulado pelo analisando. Este modo de investigação jamais passa por um processo dedutivo, porém des- critivo. Ao partir da dedução, considera-se o não-evidente e o ser será conhecido por características escondidas. Ao se mostrar, será conhecido apenas o que se mostra, sem nada existir por tF_ás. 116 3.2 .1.2 - A hermenêutica e o círculo hermenêutico A hermenêutica, em uma perspectiva metateórica, tomada como processo de compreensão, constitui-se no círculo herme- nêutico tal como proposto por Heidegger, em que o próprio su- jeito da compreensão está inserido no círculo, por sua condição originária de pré-compreensão. Heidegger (1990) concorda que a hermenêutica, convenien- temente ampliada, pode designar a teoria e metodologia de qual- quer gênero de interpretação. Afirma, ainda, que emprega o termo hermenêutica em Ser e tempo numa tentativa de determi- nar a sua interpretação a partir do que é hermenêutico. Continua: [ ... ] a denominação 'hermenêutica' é empre- gada em Ser e tempo em um sentido mais amplo;porém, mais amplo não significa pura e simplesmente ampliação do mesmo significado a um âmbito de validade ainda maior. 'Mais amplo' significa: procedente daquela amplitude que brota da essência ori- ginária. (HEIDEGGER, 1990, p. 89) No que se refere à hennenêutica , colocar-se-á em cena a noção de círculo hermenêutico tal corno discutido de forma radical por Heidegger. Essa noção é aqui introduzida como princípio funda- mental de uma clínica psicológica. O círculo hermenêutico é a ideia ---------de g~ nunca há _: possibilid~ nterpretativa~ a existência q~ nã~ seja a partir de um horizonte fático sedimentado, no qual sempfe -- - - _,_) há uma visão prévia, uma conce ~,ãO_Jlrévia e uma posição prévy . Na análise existencial, o que está em discussão é o como romper círculo hermenêutico que aprisiona o ser-aí em comportamentos sedimentados no impessoal. Rompimento que consiste na possibi- lidade de, diante de uma experiência-limite, suspender o poder prescritivo do horizonte hennenêutico em que estamos inseridos. 11 7 CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial Desta forma, pode, então, a hermenêutica ser utilizada em psi- coterapia, substituindo a interpretação psicodinâmica da psica- nálise e a explicação behaviorista. Nas palavras de Sá: No caso da clínica, apesar de muitos prin- cípios da hermenêutica terem aplicação di- reta, isto não significa que ela deva constituir-se em uma nova teoria clínica ao lado de outras. Seu papel deve ser, antes de tudo, fornecer um apoio metateórico para que o psicoterapeuta tenha uma relação mais livre, isto é, mais crítica e transdisci- plinar com seu campo propriamente teó- rico. (SÁ, 1998, p. 31) Na própria afirmativa de Heidegger (1990, p. 113), "é a fala que dá voz à hermenêutica." E ainda: "A fala é o traço fundamental da relação hermenêutica do homem com a duplicidade do ser-aí e do que é presente." O processo de escuta e fala em psicoterapia vai tomar a hermenêutica como modalidade de compreensão. Compreensão como originariamente constitutiva da existência hu- mana e que precede qualquer interpretação. "Interpretar é elaborar e tematizar o previamente compreendido." (SÁ, 1998, p. 30) O psicoterapeuta, assim como Hermes na mitologia grega, atuará como mensageiro da palavra. Da mesma forma que Her- m es, o psicoterapeuta não vai ocupar a casa do outro, morada do ser, mas vai habitá-la para, então, poder entender o que o outro entende. Acompanhará aquilo que o cliente revela na sua fala, mesmo quando silenciar. Direcionar-se-á de acordo com aquilo que lhe é dado, agindo em um espaço de expressão livre. O psi- coterapeuta compreende o outro e isto consiste em captar a in- terpretação de mundo que o outro é. Abre, então, possibilidades para o próprio se questionar em seu ser mais próprio. O psicote- rapeuta, ao se permitir pensar sobre o "modo do diálogo", possi- 118 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo bilita o emergir do ser-do-ente, de forma que a fala se dê em li- berdade, como possibilidade do ente. 3.2 .1. 3 - A questão da técnica A psicoterapia, entendida em uma perspectiva prática, na qual as pessoas que buscam esta modalidade de tratamento acreditam dele extrair resultados , não poderia ser tomada como técnica, no sentido moderno? "Sim" e "não". "Sim", quando a psicoterapia se pauta em uma perspectiva positivista, humanista, subjetivista, que consiste em técnicas, cujos resultados visam à produtividade, à adequação com a exi- gência da "public-idade", do impessoal. "Sim", quando a psico- terapi a se pauta na extração dos recursos de que o homem dispõe para atingir o sucesso socialmente determinado com o tal. E "sim" com a psicoterapia estru turada como utilidade prática. "Não", quando se trata da técnica em uma perspectiva de apreensão daquilo que se produz a si mesmo , deixando que o ser- aí venha à presença tal como se constitui no seu modo de ser. Trata-se, aqui, da psicoterapia como um tornar manifesto o que é presente. Não importam, nesta perspectiva, os resultados, em- bora se pense em consequências, pelo modo de articular o mundo em liberdade, assumindo suas próprias escolhas, seu caráter de poder-ser. O psicoterapeuta vai atuar como um facil itador, cuja produção vai consistir em deixar aparecer o que se oculta, tal como um escultor - no mármore - deixa aparecer uma forma, constituindo a arte de desvelar o oculto . · A psicologia clínica em uma perspectiva fenomenológico- existencial possibilita um pensamento meditante, abrindo a pos- sibilidade àquele qu e, em angústia, clama pelo seu p oder-ser mais próprio, de reconhecer-se como ser-p ara-a-morte pois, ao 119 1 • ~,. ,_ .,,,.. l"',#'"''' "''VJ•' '-'' ICIIVlllt:IIVl\..,b,\,. V 1..Ãl~i\.:'JI\.IQI encontrar-se perdido no impróprio, obscurece a sua possibilidade mais própria . Neste querer-ter-consciência, pode descobrir-se em sua liberdade, tanto no que se refere à utilização das coisas, como no seu próprio fazer-se no mundo. Pode, ainda, descobrir sua se- renidade no "inútil", e não ansiar para se tornar um objeto de uti- lidade, para adequar-se às exigências do mundo do das Man Nesta perspectiva, a psicoterapia - como pensamento medi- tante e não-calculante - seria ela própria uma meditação, mesmo sendo apontada pela sociedade atual como um processo "inútil". O psicoterapeuta, no lugar de artesão, atuaria como tal na criação de um discurso libertador, no qual residiria sua criação, permitindo que aquele que deseje se reencontrar dê-se a conhecer. 3.2 .Z - A ontologia de Heidegger e os fundamentos de uma proposta em psicoterapia Trata-se de uma psicoterapia como um remeter-se a uma aná- lise do existir na dimensão da analítica da existência. A proposta consiste, então, em trazer a ontologia de Heidegger para uma re- lação dialogal. Em Zollikonner Seminaire, que resultou de semi- nários coordenados por Medard Boss, Heidegger permite pensar na possibilidade de trazer sua filosofia para a psicoterapia: Empregamos a psicologia, a sociologia e a psicoterapia para ajudar o homem a ganhar adaptação e liberdade em seu sentido mais amplo. Isso diz respeito à medicina e à so- ciologia, porque todo o distúrbio socioló- gico e patológico é um distúrbio da adaptação e da liberdade do homem singu- lar. (HEIDEGGER, 1987, p. 199) Em Ser e tempo, Heidegger refere-se ao ser-aí como uma tota- lidade estrutural que se mostra na cotidianidade mediana, imprópria 120 e impessoal, porém sempre como abe1iura para possibilidades de outras formas de expressão, quais sejam pessoais, próprias e sin- gulares. Ser-aí constitui-se em um ente aberto às possibilidades - Jogo, em liberdade em seu modo de ser. Constitui-se, então, no jogo do impróprio e do próprio. Na verdade, nada se estmtura como de- finitivo, pois é o próprio caráter de abertura, que abre sempre às possibilidades - tanto em direção à autenticidade como à inauten- ticidade. Ao modo da impessoalidade e da inautenticidade, o ser-aí tende ao fechamento. Os limites de sua abertura para o mundo res- tringem suas possibilidades. Em fechamento, o homem esquece-se do seu poder-ser e reconhece-se como presença à vista. Na duplicidade "ente e ser", ser-aí pode esquecer-se do ser e tomar-se como ente. Perdido no ente, escolhe o modo como o im- i/ pessoal determina que deva escolher. No mundo do das Man, perde-se no impessoal, no impróprio e no inautêntico. Esquece- se de sua liberdade de escolha das possibilidades e passa a viver no "É". ·"É" apenas as propriedades que o mundo lhe atribui. "É", apenas no conformismo da massa, mais uma "ovelha no rebanho." Ser-aí, no movimento do ser e ente, clama, tomado pela an- 1 gústia por ser si próprio, pessoal e autêntico, que implica, em úl- \ tima instância, reconhecer-se como um poder-ser que ruma \ sempre para a finitude. Tal clamor ocone, mesmo que na forma de estorvo e inquietude, mesmo quesilencioso ou disfarçado nos afazeres cotidianos. Incomoda, mas abre a possibilidade de uma escolha singular. Muitas vezes, ainda esquecido de sua liberdade, o homem justifica-se pelas situações exteriores: o governo, os pais, o inconsciente, enfim. Outras vezes, no entanto, o incômodo o mobiliza, e aí vai em busca de sua possibilidade mais própria\ seu poder-ser. Na busca de cuidado, pode-se procurar um médico, um feiti- ceiro ou um psicólogo. O médico, normalmente, confere o mal 121 CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial ao corpo, exime o que o procura da responsabilidade e dele se preocupa no modo substitutivo. O feiticeiro também vai se preo- cupar deste mesmo modo. O psicólogo, por sua vez, pode modi- ficar as contingências e o comportamento, ou ainda atrelar a questão trazida aos motivos inconscientes. Pode também, na an- gústia, buscar a questão que ali se encontra. Nas duas primeiras modalidades de atuação, ocorre sob a tutela do psicólogo, que substitui o cliente decidindo pór ele; na última, a relação se es- tabelece de modo que o psicólogo dê um passo atrás e devolva ao cliente o cuidado de si. 3.2 .2. l - O ser-em: a escuta e a fala em psicoterapia Nos Seminários de Zollikon, Heidegger refere-se à psicologia como uma proposta para ajudar o homem a ganhar sua liberdade. Diz, ainda, que é a angústia que lança o ser-aí frente a frente com sua liberdade e responsabilidade, tentando romper com o circulo hermenêutico em que este se encontra. Ao se tomar o eu como abertura, ausência dinâmica em jogo com o mundo, e ao se assumir a fenomenologia hermenêutica como atitude interpretativa frente ao fenômeno, passa-se a esta- belecer uma outra articulação para a psicologia a partir da feno- menologia e da hermenêutica. Inaugura-se, então, uma outra atuação clínica, ou seja, um novo comportamento clínico que, inspirado em Heidegger, recebe a denominação de daseinsaná- lise. Para se proceder a uma clínica fenomenológica, parte-se do pressuposto de que toda e qualquer teoria acerca da existência humana deve ser suspensa para que, assim, seja possível se apro- ximar do fenômeno - no caso, a questão trazida pelo paciente, atendo-se a todo o detalhamento de como se dá o acontecimento em questão. 122 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa Em uma postura hermenêutica, consideramos os horizontes hermenêuticos que estarão sempre presentes na situação clínica, e o que de fato se interpreta são os encontros de horizontes, que consistem precisamente no que se fala e ~e escuta. Este choque de horizontes é o horizonte mesmo de apreciação do que acon- tece no encontro clín ico, ou seja, da apari ção da coisa. A tarefa de uma clínica "daseinsanalítica" consiste, primeira- mente, no fato de que o anal isando precisa ser o mais preciso possível em suas descrições e o analista deve, incessantemente, atentar para as interpretações do paciente, tentando, assim, al- cançar uma compreensão daquilo que está em jogo na descrição do analisando. Em continuidade a esta tarefa, precisamos, tam- bém, quebrar ou destruir os comportamentos onto lógicos presen- tes nas descrições do analisando. Esta clínica consiste em abrir m espaço para que o outro se conquiste em sua alteridade. Abrir espaço, sem conduzir; traduzir, sem mapear um caminho que leve a algo como uma conscientização. Em uma visada hermenêutico-fenomenológica, o problema consiste no aprisionamento em nossas histórias, nos modos como vamos sufocando não o problema que temos, mas o problema que "nós" somos. A tarefa de uma clínica fenomenológica con- siste em quebrar o aglomerado de vivências que se dão na mis- tura de campos intencionais e que provocam a quebra do fluxo do tempo do eu. E, assim, possibilitar que o instante e lugar do acontecimento se deem. Levamos o analisando a aperceber-se das suas vivências próprias e a co locar-se diante do campo in- tencional em que o fenômeno se constituiu. O caminho da feno - menologia, como atitude de investigação dos modos de ser do homem, na hermenêutica de Heidegger, busca o modo como este homem articula sentidos, que se mostram em sua fala. A escuta do psicoterapeuta vai se dar no desvelar desses sentidos, atuando 123 CAPÍTULO J Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial de forma a captar a expressão do ser-em em seu falatório, curio- sidade e ambiguidade. A investigação de si por si mesmo pode ocorrer na relação psicoterapêutica, em que o psicoterapeuta vai assumir o lugar de mensageiro do discurso do cliente, em um processo mútuo de corresponder e "des-prender", tal como entendidos por Heideg- ger (1990) em sua perspectiva ontológica. No corresponder, a fala se desprende quando escuta. No des-prender, a escuta se dá simultaneamente com o responder. Compreende-se que é assim que se dá o processo de "escutas e falas" do psicoterapeuta e do cliente. Em uma psicoterapia na perspectiva. ora proposta, a articula- ção se dá na busca do sentido do homem que se mostra em sua fala. Na escuta do psicoterapeuta, vai se dar a investigação desse sentido, atuando de forma a captar a expressão do ser-em em seu falatório, curiosidade e ambiguidade. Ao modo da disposição, da compreensão e do discurso, ser-aí em sua impropriedade revela- se como ambiguidade, curiosidade e falatório. Através da articu- lação do processo psicoterapêutico, o psicoterapeuta poderá então, através de sua fala, facilitar o reconhecimento do poder- ser. O processo psicoterapêutico consiste no tecer das palavras (CANCELLO, 1991), segundo um corresponder, como entendido por Heidegger: um falar que se des-prende quando escuta, e em um des-prender - escuta, ao mesmo tempo em que responde (HEIDEGGER, 1990). Heidegger diz em Ser e tempo que a conexão do discurso com a compreensão e sua compreensibil idade torna-se clara a partir de uma possibilidade exis tencia l iminente ao próprio discurso, qual seja, a escuta. Discurso e escuta se fundem na compreensão e o homem se mostra como ente que é no discurso . 124 Ana Maria Lopez Laivo de re1Joo Convém lembrar que, na psicologia, a fala é considerada o instrumento fundamental na tarefa do psicólogo. Alguns teóricos desta área do saber enfatizam a importância daquilo que é ver- balizado. Monique Augras afirma ser a linguagem o instrumento de que o homem dispõe para explicitar sua situação. Diz, ainda: A fala, pelo seu caráter fís ico e abstrato, in- ' terpretativo e manipulador, concentra em si todas as modalidades de formulação e atuação do ser no mundo. Para atender ao objetivo inicialmente proposto, qual seja o de encontrar na situação existencial subsí- dios para estabelecer uma compreensão in- dividual, o questionamento da linguagem afirma-se como meio necessário à investi- gação. (AUGRAS, 1981, p. 146) 3.2.2.2 - Testemunho. débito. angústia e ser-para-a- rnorte Constitui-se como próprio do ser-aí o estar-em-débito. A de- cisão antecipadora reconhece o estar-em-débito como algo que a constitui, quando ser-aí se reconhece na transparência e na abertura do seu ser mais próprio. Ser-aí, na decisão antecipadora, responde ao clamor da cons- ciência do seu "poder estar-em-débito" como mais próprio e irre- missível. Na fuga desta situação, de si mesma, frente ao caráter ameaçador daquilo de que se foge, ser-aí cai no impessoal, no mundo das ocupações. Foge da estranheza de si mesmo que, no entanto, não se firma pois na estranheza, no modo de angústia, ser-aí singulariza-se, retirando-se da de-cadência, alerta para o impróprio e clama para o mais próprio . Ser-aí, no entanto, precisa do testemunho de um "poder-ser-si-mesma" que, enquanto pos- sibilidade, é sempre si mesma. A consciência pode tornar-se tes- temunho de si mesma, e assim se faz no seu clamor "voz da 125 CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-exisrencial consciência", abrindoa possibilidade de escuta. Tem-se o querer- ter-consciência, onde transparece a totalidade estrutural: cuidado. O querer-ter-consciência. como modo_de abertu_r.a, s~c_o~i na disposição, compreensão e disc~so. A psicoterapia deve, no mínimo, não atuar para dissipar esta tonalidade afetiva para que, uma vez o analisando se abrindo para sua estranheza, possa per- mitir o surgimento de uma escolha singular, retirando-se, nem que seja por um momento, da compreensão di tada pelo "impessoal" que, obscurecendo as possibilidades, ser-aí dá-se ao modo do es- paçamento, medianidade e nivelamento . Modos pelos quais ser- aí se encontra no início e na maioria das vezes. No espaçamento, o ser-com se constitui com os outros; na medianidade, o ser-com desconhece a s i e aos outros; no nivelamento, suas possibilidades nivelam-se com as de todos. Em uma narrativa fenomenológica, importa o modo como uma hermenêuti ca-fenomenológica vai se dando, em um horizonte fundido, abrindo espaço para que o ana- lisando apareça para si mesmo. Ao se abrir para o ser-para-a- rnorte, suas possibilidades mais próprias são assumidas. Desta forma, não encobre nem foge da morte, porém compreende sua própria possibilidade, como certeza de seu ser-para-o-fim. A compreensão existenciária, que projeta o ser-aí para as pos- sibilidades cada vez mais próprias do "poder-ser-no-mundo", constitui-se no humor da estranheza de sua singularidade. ~ querer-ter-consciência na dispos ição da angústia, que se abre - - -- -- para o discurso originário. O silêncio, retirando a palavra do fa- -- --latório, mostra o estar-em-débito, conduzindo o si-mesmo à com- preensão, afastando-o da curiosidade do impessoal. 3.2.2 .3 - O cuidado: a relação psicoterapêutica O cuidado constitui-se como a totalidade da unidade estrutu- ral do ser-aí, constitui-se no pôr-se para fora, movimento do exis- 126 Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoa tir. O cuidado como processo de constituição do ser-aí se dá no acontecer, isto é, no tempo. Cuidar constitui-se no exercício da pre-ocupação com o acontecer. Portanto, pode-se falar do ocu- par-se do acontecer no seu sentido mais próprio do "pre" - ou seja, do ser como cuidado. A psicoterapia aqui proposta se dá no sentido do acompanhar esse acontecer. T.!_ata-se de uma psicotcr11pia-cg;i_que_o-..115_ic.ote.ra- -peuta pa1ticipa do acontecer do cliente. O ser do ser-aí se constitui como um ser-com. Neste modo de ser, já está presente a condição de compreensão dos ouh·os. O modo originário de ser-com possibi- lita ao ser-aí o conhecimento e o reconhecimento do outro. E é este mundo compa1tilhado que abre espaço para a psicoterapia. Encon- h·a-se aí o círculo hermenêutico - consiste na idéia de que nunca há a possibilidade interpretativa da existência que não seja a partir de um horizonte fático sedimentado, no qual sempre há uma visão pré- via, uma concepção prévia e uma posição_Q!'évia. Na daseinsanáli~ !? que está em discussão é o como romper o círculo hennenêutico que aprisiona o ser-aí em cornp01tamentos sedimentados no impes- ~l. Rompimento que consiste na possibilidade <le, diante de uma experiência-limite, suspender o poder prescritivo do horizonte her- menêutico em que estamos inseridos. A questão que se impõe é: como se dá a relação psicoterapêutica na perspectiva fenomenoló- gico-existencial? Toda e qualquer relação é cuidado. E, à relação que o ser-aí estabelece com outros providos do mesmo caráter de abertura, Heidegger denomina preocupação. A pre-ocupação se apresenta também em duas possibilidades: pre-ocupação substitu- tiva e anteposição libertadora. Sá ( 1999) refere-se a essas duas for- mas de pre-ocupação como possíveis na atuação psicoterapêutica. Na pre-ocupação substitutiva ou substituição dominadora, a psi- coterapia se daria através do domínio do outro. As técnicas, neste caso; visariam a resultados, e o cliente seria dominado e submisso 127 CAPÍTULO '3 Uma proposta de psicoterapia ienomenológico-existencial à técnica, no sentido moderno de recursos a serem explorados. Neste modo de preocupação, o psicoterapeuta assume a tutela do outro, onera-se do cuidado do outro e lbe diz o que deve fazer. Na pre-ocu- pação ele anteposição ou antecipação libe1iadora, a relação psicote- rapêutica se funda na liberdade de escolha por parte daquele que clal11a pelo seu ser mais próprio) ou seja, pelo seu caráter de poder- ser. Segundo Heidegger (1986, p. l74), "ajuda o outro a tomar-se c1n sua cura, transparente em si mesmo e livre para ele." Aqui, are- lação se constitui como técnica, no sentido originário de desvela- mento, e o psicoterapeuta desonera-se do cuidado que sempre é do outro e dá um passo atrás, deixando o outro sob a sua própria tutela. O mundo próprio constitui-se com suas próprias possibilida- des e limites. A psicoterapia, nesta perspectiva, não pensa em ter- mos de realidade, mas de possibilidades. O psicoterapeuta prossegue no cuidado com o cliente na abertura de caminhos, restabelecendo o movimento como acontecer. A clínica "daseinsanalítica" se estabelece muito mais em uma negatividade do que propriamente de uma identidade positiva. O ser-aí que, marcado pela nadidade e pela fragilidade ontológica, busca a estabilidade do mundo - que se constitui em um apoio, suporte e tutela. Mas é exatamente esta busca que o coloca na ca- dência do mundo: esquecendo-se do seu próprio ritmo, acaba obs- curecendo o seu caráter de poder-ser. São as situações-limite que, ao entrarem na articulação do ser-aí e muudo, rompem com os sentidos sedimentados no círculo hermenêutico e o vazio aparece, e no nada padece. A augústia emerge como um mobilizador exis- tencial que, imediatamente, abre duas possibilidades: na tentativa de livrar-se da angústia) o ser-aí ou bem retorna a tutela do mundo e volta àquilo que lhe é familiar, ou bem concretiz_a-se no poder- ser, singulariza-se - o que consiste na perda, nem que seja por um instante, da tutela do mundo. 128 CAPÍTULO 4 Metodologia A investigação acerca da estrutura da escuta e fala em psico- terapia ocorreu em duas etapas. Na primeira, foi utilizada a fe- nomenologia como modalidade de investigação, em que a coleta e análise das iuformações obtidas deram-se de forma qualitativa. A partir do estudo atento de diferentes sessões psicoterapêuticas realizadas por quatro psicoterapeutas' que atuam com base nos pressupostos fenomenológico-existenciais, averiguaram-se as es- truturas fundamentais subjacentes na relação psicoterapêutica. A segunda etapa da investigação consistiu em urna investiga- ção fenomenológica de um diálogo clínico. Foram cuidadosa- mente estudadas cada "fala e escuta" do psicoterapeuta e do cliente. A partir de uma leitura detalhada, pôde-se acompanhar o modo como se dá uma psicoterapia pautada na fenomenologia hermenêutica corno modalidade de compreensão, esclarecendo as estruturas fundamentais obtidas na primeira etapa e articu- lando-as com a fundamentação filosófica. 4 Os psicoterapeutas colaboradores desta pesquisa foram: Myriam Protasio, Ber~ nadete Medeiros Lessa, Luciana Oliveira e Rita Luzia Nielsen. 129 CAPÍTULO 4 Metodologia 4.1 - O método fenomenológico Utilizou-se o método fenomenológico em um primeiro mo- mento, por considerá-lo um recurso apropriado para investigar o sentido da experiência - no caso, em psicologia clínica e) mais especifica1nente, no processo de escuta e fala que ocorre em psi- coterapia, importando chegar à identificação das estruturas sig- nificativas que compõem este processo. Como afirma Augras ( 1981, p. 23): "A investigação fenomenológica propõe-se a iden- tificar estruturas significativas, a partir da observação das ima- gens elaboradas pela vivência cotidiana." As sessões psicoterapêuticas investigadas foram gravadas e transcritas, diferindo quanto à essência da problemática levada à terapia. Os psicoterapeutasparticipantes deste estudo atuavam na perspectiva fenomenológico-existencial. Iniciou-se esta in- vestigação com quatro psicoterapeutas. No entanto, no decorrer da pesquisa, outros psicoterapeutas5 trouxeram suas sessões, que acabaram por contribuir para a análise realizada. Os dados referentes às sessões foram analisados através de uma proposta fenomenológica da análise com a apuração dos significados que estruturam o processo psicoterapêutico. Atra- vés das reduções fenomenológicas, puderam-se destacar as uni- dades de significados implicadas no processo psicoterapêutico, uma vez que a redução consiste na busca do sentido, partindo do significado. 5 Sanitella Cappola Defelippe, Elaine Lopez Feijoo, Thays Babo, Cristine Mon- teiro, Valéria Barbosa, Patrícia Rio, Elaine de Oliveira e Ana Margarida Chagas. 130 Ana 1'1aria Lopez Calvo de Feijoo 4.1.1 · A análise fenomenológica A pesquisa seguiu as etapas propostas por Brice (1991), que também as utilizou ao investigar a estrutura do luto materno, As fases) respectivamente, são: 1 ª) dedução de unidades significativas, através do sentido da totalidade e da complexidade que aparecem nos discur- sos psicoterapêuticos; 2ª) delineamento dos aspectos centrais expressos nas uni- dades de significado; 3') descrição das temáticas principais do processo psico- terapêutico; 4') descrição estrutural situada do processo de escuta e de fala, bem como dos elementos constitutivos deste pro- cesso; 5') caracterização estrutural geral. As falas constituem as unidades de significado, destacadas através das questões que aparecem em algumas relações psico- terapêuticas. Os seus aspectos centrais foram devidamente deli- neados e suas temáticas descritas no modo em que apareceram no proc~sso. O destaque foi dado às formas como aparecem tais questões e às possibilidades de atuar do psicoterapeuta até a ca- racterização geral de um processo de escuta e fala, que possibilita conhecer mais do ofício do psicólogo. 4.1.1.1 · A fala do cliente A investigação, em um primeiro momento, ateve-se à fala dos clientes. Delas foram extraídas algumas temáticas que ocorrem no contexto psicoterapêutico, a título de ilustração. Algumas pos- síveis senain: 131 CAPÍTULO •I Metodologia a) Culpa existencial - o cliente mostra no seu discurso a culpa existencial de várias maneiras. Aparece, por exemplo, corno lamentação das possibilidades que não foram escolhidas, da seguinte forma: Ah! Se eu tivesse ... _A queixa fica em torno da- ~ ilo do qual outrora se abriu 1:;!.o. A culpa existencial pode ser exemplificada pela fala de uma mulher de 44 anos que se queixava de depressão da seguinte forma: Quando, casei, meu marid,o me proibiu de estudar. Falou: ou estudo ou casamento. Eu casei e hoje fico muito triste porque não sou a advogada famosa que eu sempre quis ser. Ah! Que ar- rependimento. Ah! Se eu tivesse estudado, hoje não estaria aguentando marido efilhos. Na visão existencialista, a culpa existencial caracteriza-se pelº- aprisionamento do existente aos acontecimentos passados. Assim, não se lança para o futuro. A culpa, para Kierkegaard, se dá pelo fato de a liberdade não ter sido exercitada em suas possibilidades. Para Heidegger, trata-se do débito que, sob a forma de lamenta- ção, clama pelo devir como ser mais próprio. O psicoterapeuta traz à tona a expressão do cliente, mobilizando-o a assumir o ca- ráter de liberdade de escolha e, também, clarifica para este que, à medida que se lamenta, permanece na mesma escolha. Um exem- plo da fala do psicoterapeuta: Parece que, no ppssado, você optou ( pelo casamento e, hoje, você se lamenta pela escolha do passado. } b) Medo existencial - expresso pelo cliente através da par.a- ~ ão no Jlresente. Acreditando-se não escolhendo, crê que não corre risco, por imaginar que, desta forma, controla a imperma- nência da existência. Um relato de urna mulher de 54 anos, em dúvida entre .dois relacionamentos: Eu não vou me encontrar com ele, não sei o que pode acontecer. Tenho medo do que vou ouvir: Prefiro esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. En- quanto isto, fico sozinha, mesmo temendo a solidão. 132 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo c) Angústia existencial - sentimento de estranheza, da inquie- tude, onde se fala: "um não-sei-o -quê", que traz o querer-ter- consciência. Não querer ter consciência, trata-se de um engodo, fadado a vivenciar a angústia em plenitude, porque se sabe esco- lhendo, porém se justificando pelo medo, pelo pânico, pelo outro que impede. Sente como se sua liberdade não lhe pertencesse, em- bora sabendo de sua pertença. Relato de uma mulher de 30 anos: É um mal-estar, sinto que não eslf!U bem, mas não tenho do que reclamar, meu casamento, meus filhos, tudo está bem. Mas eu me sinto estranha como se as coisas não estivessem bem na minha vida. O psicoterapeuta existencial atua mantendo a angústia frente àquilo que sustenta a questão, não facilitando a fuga para o im- pessoal. Pode atuar da seguinte forma: Mesmo que tudo em torno de você esteja bem, em você mesma as coisas vão mal. d) Perda no impessoal - perde-se o próprio referencial, quer a tutela do mundo. ~ discurso compõe-se pela incapacidade de tomar decisões: pergunta sempre ao outro sobre como deve agir, inclusive ao psicoterapeuta. Sente-se pe1turbado pelas observações do outro a seu respeito. Como um barco à deriva, sente-se feliz frente ao elogio do outro e infeliz frente à crítica. Sua ação é mediada pela insegu- rança e suas possibilidades, desconhecidas. Afasta-se de seu ser mais próprio, na medida em que se perde no impróprio, no impessoal. Uma cliente queixando-se de suas filhas: Elas não cuidam bem dos seus filhos e eu sofro por isto, afinal, são meus netos. O que você me aconselha afazer? Eu li na revista que a experiência da avó deve se fazer valei'. Eu não sei, mas você, que é psicóloga, deve saber. A perda do próprio referencial é revelada pelo pleno desconhe- cimento do seu sentido, do seu projeto, desconhecendo, também, os próprios referenciais. O existente fica à mercê do que lhe dizem, das normas que lhe são impostas. Perde-se no mundo, não sabe o que é seu e o que é do outro. O psicoterapeuta, nestas situações, 133 CAPÍTULO 4 Metodologia pode atuar de fo1IDa a buscar - juntamente com o cliente - seus re- ferenciais. Deve cuidar para que as suas crenças não sejam jamais passadas ao cliente e também cuidar para que não indique qualquer caminho ao cliente, mesmo que este insista que direções lhe sejam indicadas. Nesta situação, uma das possibilidades- terapêuticas é clarificar a fo1IDa como abre mão de sua liberdade, deixando que o outro ~scolhayor el~: A revista te diz q~e o que vale~ a experiência / da avo. Agora, voce quer que eu te diga o que voce deve faze,~ E assim, você vai vivendo, perguntando aos outros o que deve fazer. e) Rigidez frente ao referencial próprio - Neste caso, o existente perde-se em si mesmo e desconsidera o mundo ao seu redor. 9 existente, na condição de compreens ibilidade, perce..b..e seus critérios corno sendo o refocen.ci al do_mundo. Vive tão au- tocentrado, que qualquer situação que esteja em oposição ao que acredita constitui-se em um grande erro, e mais: tem a intenção de atingi-lo. Esquece-se de gue o mundo do ser-aí é O-ID-unclo ( compartilhado, o ser-com. Relaciona-se com o outro de modo a -tutelá-lo e submetê-lo. As relações de convivência se dão na forma de desconfiança e indiferença. Liga-se apenas a si próprio. Fala uma cliente, referindo -se à sua mãe: Ela atrapalha meu ca- samento. Está sempre ali. Meu filho diz que não tem nada de- mais. Eu fico magoada com ele, ele não se coloca no meu lugar. Não sabe o que é isto, acho que ele quer é me ver mal. No discurso, coloca-se sempre no centro, uti liza-se demasia- damente do pronome "eu". Diz que todos estão errados - ou que sãocontra ele ou nutrem por ele uma grande inveja. Os fatos são relatados com tamanha lógica, que não deixa possibilidade de discordância, inclusive por parte do psicoterapeuta. Este modo de mostrar-se requer muito tato do psicoterapeuta, uma vez que este pode se tornar aos olhos do cliente um grande invejoso e, desta forma, romper-se a confiança. 134 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo A princípio, e até mesmo em todo o processo, a postura do te- rapeuta é de aceitação e centrada no próprio relato do cliente, tentando astutamente descentrar o referencial do cliente na sua própria ação. Por exemplo: quando o cl iente traz uma queixa de alguém (do chefe, de seu pai, enfim, de alguém que tenha alguma ascendência sobre ele, e o aborde de forma autocentrada), o psi- coterapeuta, a partir deste relato, pode mostrar-lhe, pouco a pouco, indiretamente, que o outro existe em uma relação . A at- mosfera, o astral é fre quentemente de raiva do outro, de vaidade e orgulho. As relações estabelecidas vêm carregadas de conflito. f) Projeto de aceitação e aprovaçã o por parte do outro - o discurso do cliente, na maioria das vezes, revela-se de forma re- ticente, pois ele espera conhecer um pouco mais do outro, p,ar,'L po~deunostrar-se de acordg ÇQID_a.1,.xp_ectativa daquele com guem. se relaci._ona, Nos primeiros contatos,._a ansiedade é sua marca re- gistrada, parecendo inseguro, frágil. Uma adolescente de 18 anos traz o seguinte re lato : Eu até sei que não devo ceder às vontades do meu namorado, nem da mãe dele. Mas também não quero parecer inconveniente, então pre- firo mostrar-me como uma moça muito fina como eles querem que eu seja, também não é tanto sacrifício . A existência presenteia o existente, no seu surgimento no mundp, pela falta de sentido e pela solidão. Na tentativa de es- capar à solidão, o outro pode se tornar u ma necessidade, impres- cindível para que sua vida tenha continuidade. Quando o outro se torna uma necessidade, o suj eito em questão abre mão de seus referenciais. Embora conhecendo os seus valores, enfim seu pro- jeto, seu sentido maior é escapar à solidão . O psicoterapeuta, nestes casos, deve atuar de forma atenta pois, se deixa transparecer suas expectativas, é segundo tais ex- pectativas que o cliente vai se revelar. Caminha passo a passo, a 135 CAPÍTULO 4 Metodologia fim de que o cliente entre em contato com a sua solidão e com seu medo. g) Dificuldade de assumir o sofrimento como possibilidade - a minimização cio sofrimento aparece no relato do cliente e ocorre muitas vezes de fomrn a não contar a realidade tal como ela o afeta. Foge da situação, evita-a ou distorce-a. Na linguagem vem: "não é bem assim", "ele não é tão ruim". Justifica "o não observar bem" pela fa lta de tempo, pelo medo de ser injusto, enfim, não há tempo nem espaço para ver o que realmente acontece: Eu digo ruim com ele, pior sem ele. Ele tem muitos ciúmes, chega a me empurrai; mas é bom para mim, faz isto porque gosta de mim. Muitas vezes minimizar a dor consiste em uma estratégia que pennite o alívio. No entanto, não falar deste sentimento, implica em não deixar que este se desfaça. O ps icoterapeuta existencial pode manter a angústia frente à estranheza do cliente de sua própria condição . Mesmo que o cliente insista em não falar de si próprio, o terapeuta insiste, su- tilmente, nos indícios, a fim de qu e o cliente tenh a a oportuni- dade de se confrontar com a sua s ituação. h) Maximização do sofrimento - Nes ta situação, o__ciie.n.te tenta convencer o outro o quanto é digno de piedade. O relato é rico em lamentação. Vê o mundo com uma desconfiança ex- trema, utiliza "os olhos da imaginação" para, assim, dar ampli- tude ao seu sofrimento. Relato do cliente, adulto jovem: Ninguém na minha casa me entende, ninguém liga para mim. Eu/aço tudo por eles, mas quando eu preciso, me abandonam, ninguém dei- xou de viajar porque eu estava sofi-endo, não consegui o emprego e eles até gostam, estavam felizes porque iam viajar. O psicote- rapeuta pontua o exagero, rompendo com "os olhos da imagina- ção", trazendo à tona as incoerênci as . i) Não-aceitação dos próprios limites - muitos clientes mos- tram-se insatisfei tos com suas condições, sejam financeiras, in- 136 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo lelectuais ou sociais. Queixam-se, até mesmo, da sua constituição física ou motivacional. Lutam desesperadamente a fim de torna- rem-se aquilo que em sua ação não se realiza. Em O desespero humano, afirma Kierkegaard: [ ... ) é certo que um eu tem sempre ângulos, mas daí apenas se conclui que é preciso dar- lhes resistência, e não limá-los e de modo algum significa que, por receio de outrem, ou eu deva renunciar a ser ele próprio ou não ousar sê-lo cm toda a sua originalidade, na qual somos plenamente nós para nós pró- prios. (KIERKEGAARD, s/d, p. 39) A não-aceitação do seu ser com suas possibilidades e limita- ções pode implicar uma tentativa de limar seus ângulos, ou então criar ângulos não-possíveis, uma vez que somos nós próprios e nenhum outro. Relato da cliente com quase 30 anos, que queixa-se da perda da juventude: Não quero envelhecer, 30 anos não dá, não queria sair dos 29 anos. O psicoterapeuta existencial, nestes casos, mui- tas vezes em primeiro lugar, amplia, dá voz à vivência desespe- rada, em que o existente se debate contra si mesmo, luta contra a maré. Depois, mostra-lhe como sua luta toma-se vazia; por fim, procede de forma que o cliente se esmere no polimento de seus ângu los e deixe de tentar limá-los, na medida em que se aceite em sua originalidade. Enfim facilita o acesso ao seu modo de ser que se faz em ato, na vida. j) Medo da solidão - ao perceber-se como lançado e esta con- dição como algo inevitável, este existente agarra-se ao outro como se agana à vida. Aceita qualquer imposição, mesmo que, para tal, tenha que abrir mão daquilo que, em si mesmo, lhe é mais próprio, seu cuidado. 137 CAPfrULO 4 Merodologia Uma cliente de 21 anos: Eu prefiro não terminar o namoro, pois não aguentaria ficar sozinha, mesmo ele sendo dependente químico e até correndo o risco de um dia acabar sendo presa com ele. Ainda é melhor do que morre,: Sem ele, eu morro. Esta cliente cuida de si ao modo do descuido. Cabe ao psicoterapeuta lembrar à cliente que o seu cuidado lhe pertence. k) Desconhecimento das próprias possibilidades - suas rea- lizações são ditadas pelas detenni_naç:.ões do impessoal, por descg;. nhecer aquilo que faz,_assuiae a posição que é mais beíll=,Yista. Neste caso, o modo de ser temeroso obscurece as suas possibili- dades. Uma arquiteta, muito valorizada pelos projetos realizados, posiciona-se da seguinte forma: Fico pensando que tenho que agradar meus clientes de todas as formas. Fazer tudo que eles exi- jam que eu faça. Ser bastante boazinha. Refazer os projetos todas as vezes que assim quiserem. Cobrar pouco. Penso que se deixar de fazer assim, vou ficar sem trabalho. O psicoterapeuta pode então questionar estas certezas. Desfazer este aglomerado, no qual percepção, lembrança e expectativas encontram-se emaranhados. 1) Projeto idealizado de si mesmo - não aceita cometer erros, equivocar-se. Está no mundo para realizar-se como perfeição, tendo de dar conta de todas as possibilidades. Acredita que assim não ficará em débito, embora, com relação ao passado, sinta-se sempre em débito. Muitas vezes, aquele que assim se encontra chega ao psicólogo com pretensões de curar-se, tomando-se perfeito, inatingível, infalível, não mais vulnerável às contingências do mundo. Idealiza uma situação de vida perfeita. Quer tornar-se um ente pronto e acabado. Segue-se um exemplo: Imaginei que, na minha vida, tudo daria certo: meu marido, meus filhos, minha vida profissional. No entanto, não fui bem-sucedida profissionalmente. Assim como eu gostaria. Dediquei-me demais aos meus filhos e,hoje, não sou a professora que gostaria de sei; sabe? Uma acadêmica, com doutorado, livros publicados. 138 A11a Maria Lopez Calvo ele Feijoo A psicoterapia vai acontecer de forma que o cliente, em tal situação, possa reconhecer a vulnerabilidade, a abertura, a morte e a imperfeição em que a existência sempre se encontra. 111) Falta de diálogo consigo próprio - perde-se nos fa lató- rios. Fala de tudo e de todos, mas não se implica naquilo que esta fa lando. Vive na curiosidade. A fala pode dar-se da seguinte forma: Isso é coisa de mulher fresca. Deve ser igual ao que o povo fala que tem enjoo na gravidez. Isso é mulher doente que fica enjoada. Menopausa é uma coisa tão boa que acaba a mens- truação. Ora diz uma coisa, logo fala tudo ao contrário . Não sabe dizer no que realmente acredita. O psicoterapeuta acompanha atentamente, ao mesmo tempo em que tenta trazer uma situação por ela experienciada, para assim perguntar-lhe, por exemplo: E, na sua gravidez, como foi? n) Não-liberdade - transfere toda a responsabilidade de sua vida ao outro, ao acaso, a Deus, à energia do mundo . Todos são responsáveis pelos rumos de sua v ida, não reconhece nenhuma de suas escolhas. Uma mulher de 40 anos que se queixa da pes- soa com quem se relaciona e que, ultimamente, '(em até pensando na separação: Ah! Se eu ganhasse na loteria, eu não vou te dizer que não teria problemas, mas esse problema não existiria, por- que obviamente eu gosto do cara, senão eu não estaria nessa ba- talha toda para ele mudar. O psicoterapeuta pode atuar, pouco a pouco, apontando su as escolhas, com muito cuidado, para que o cliente não oponha re- sistência. Como, por exemplo, poderia dizer- lhe: Então, parece que ganhar na loteria não seria suficiente pra a sua decisão? o) Espaçamento - neste modo, o ser mostra-se como que to- talmente determinado pelo impessoal, permanecendo sob a tutela dos outros . Seu valor está"na aprovação do outro. Ao modo da medianidade, desconhece-se a ; i próprio, define-se no mundo 139 como todo mundo. Fala o cliente: No meu campo de atuação, tenho que me mostrar confiante. Se pareço muito carente, elas não negociam comigo. Tenho que estar sempre bem-vestido, para parecer bem-sucedido. Tenho que ser admirado. O psicotera- peuta pode atuar pontuando, junto ao cliente, o seu modo de ser na aparência, da seguin te forma: Você tem que representar muito bem para que as pessoas te deem valo,~ não pelo que você faz, mas pelo que você aparenta fazer . 4. 1.l.2 - A fala do psicoterapeuta Em um segundo momento da investigação fenomenológica, serão descritas as unidades de significado referentes à fala da psicoterapeuta, que buscará mobilizar, no cliente, a possibilidade de sua liberdade, responsabilidade, ação e aceitação dos riscos. Algumas das falas possíveis para um psicoterapeuta serão aqui descritas, sem se pretender esgotar todo um infinito de possibi- lidades. A investigação destas falas pretende elucidar a forma com que o psicoterapeuta se conduz, com o exerce a hermenêu- tica, pouco a pouco buscando o sentido daquele que se mostra, mesmo que de forma velada. O processo p sicoterápico compõe-se de momentos em que se torna importante conhecer o dia a dia do cliente, sendo necessá- ri o, para tal , exp lorar seu cotidiano. O psicoterapeuta tenta, então, colher mais informações e organizar-se quanto ao con- teúdo relatado. Afinal, é preciso, para se estabelecer a compreen- são psicoterapêutica, ir até o lugar onde o outro se encontra. Para tanto, é necessário saber o que o outro sabe de si mesmo. Nas sessões psicoterapêuticas investigadas, encontraram-se nos psi- coterapeutas existenciais fa las do tipo: 140 M.110 1· 10110 L UfJt'l. l.dlVU ue retJOO - Exemplificadora - O terapeuta pede ao cliente que exemplifique como o que está relatando acontece em outras si- tuações ou, se for o caso, o próprio terapeuta exemplifica, através daquilo que já sabe de relatos anteriores. O cliente relata: Parecia que ela nem fava ali.foi uma coisa rá- pida, eu não sei o que me deu, que a gente tava conversando. E ela já tinha me escrito uma carta, dizendo do desejo dela. E eu tinha até respondido pra ela, olha não rola, eu amo muito a Ro- sana, e eu não me sinto bem, até imaginando isso. Aí, de repente ali na festa, ali eu nem sei o que me deu ... Acabado de chegar, fazendo planos de ficar lá, junto com ela, amando tanto ela .. . O que será que aconteceu? Eu não entendi, parece que brinco com as situações, brinco com os outi·os. Fala do psicoterapeuta: Você poderia me dar um exemplo em que você se percebe brincando com as situações, brincando com os outros? \ - Exploradora do cotidiano - O terapeuta, a partir da ex- ploração do cotidiano do cliente, busca que ele identifique fatos que desencadearam um determinado modo de sentir as coisas, como os fatos o afetam. Fala o cliente: Acabei ficando com uma menina, eu não sei o quê que deu, tava tendo uma festa, e eu fiquei com uma menina lá da clínica mesmo, eu não sei o que deu em mim, o que me deu. Psicoterapeuta: Relata pra mim o que aconteceu. l -Inquisitiva - Quando o terapeuta faz perguntas sobre o fato, as intenções ou os sentimentos implicados em um deter- minado relato. Cliente: Eu não sei. Quando ela contou, eu neguei. Psicoterapeuta : Negou o quê? 141 CAPÍTULO 4 Metodologia Em outros momentos psicoterápicos, torna-se fundamental fa- cilitar o aprofundamento nas questões trazidas pelo cliente, porém de forma compreensiva e de modo que o cliente não opo- nha resistência. Outras falas possíveis seriam: - Clarificadora da atmosfera afetiva - O cliente traz um relato e, junto ao relato, o afeto . O terapeuta clarifica para o cliente a emoção que percebe no seu relato. Desta forma, escla- rece o sentir e facilita o reconhecimento de seu sentimento frente à situação. Pode ser formulada como pergunta ou como afirma- tiva. Este tipo de fala foi amplamente utilizada por Rogers (1961 ), que a denominou de "clarificadora de vivência emocio- nal". Uma situação psicoterapêutica pode dar-se assim: Fala do cliente: Mais ou menos isso. Um exemplo, não é o meu \ caso. Vamos supor que eu quero ser canto,~ aí eu sonho com isso, e aí eu chego lá e não consigo, vou ficar muito decepcionado . Psicoterapeuta: E para 11ão se decepciona,; você prefere não querer. - Refletora de conteúdo verbal - O cliente traz um re- lato extenso e o terapeuta sintetiza-o,' apresentando-o novamente ao cliente. Reduz o conteúdo ao essencial. Ao sintetizar, o tera- peuta mostra que compreende o cliente, que está atento e o con- vida ao aprofundamento do conteúdo. Pode ser elaborada de forma inquisitiva ou afirmativa. Esta fala também foi elaborada por Rogers (1961), que a utilizava mais frequentemente sob a forma afirmativa. Virgínia Axline (1989) uti lizava-a predomi- nantemente sob forma interrogativa, como pode ser constatado em seu livro Dibs, em busca de si mesmo. Cliente: Não, eu não penso nada, para quê? O que vai acontecer é o que tiver de ser. Psicoterapeuta: Você acha que tudo já está decidido, que nós não podemos Jazer nada? 142 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Na impropriedade, o humor se dá de modo ambíguo. Muitas vezes, a fim de chegar mais próximo do astral que o envolve, faz-se necessário reconhecer tais ambiguidades. O psicoterapeuta pode clarificar tais situações, mostrando-as aos clientes quando elas aparecem, porém, nestes momentos faz-se necessária paciên- cia. Com impaciência, pode-se afastar o outro de uma possibili- dade mais própria. - Refletora de conteúdo não-verbal - Quando se mostra ( ao cliente sua postura fisionômica ou corporal, frente a uma de- terminada situação oposta ao que, por exemplo, é verbalizado por ele. Fala do cliente: O chefe me demitiu, vai ser péssimo. Como vou pagar minhas contas? (Ao mesmo tempo que relata, mostra-se
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