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apostila [conceitos reichianos centrais]

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UNIESP-UNICAPITAL – CURSO DE PSICOLOGIA 
CONCEITOS CENTRAIS DA OBRA REICHIANA
(MATERIAL DIDÁTICO DA DISCIPLINA “ABORDAGEM EM PSICOLOGIA REICHIANA”)
AILTON BEDANI
ÍNDICE
1. WILHELM REICH: Aspectos biográficos
2. REICH: TEORIA DA VIDA E TEORIA DO CONHECIMENTO 
3. POLÍTICA E SEXUALIDADE NA TRAJETÓRIA DE REICH: VIENA (1927–1930)
4. Política e sexualidade na trajetória de Reich: Berlim (1930-1933)
5. AS PESQUISAS ENERGÉTICAS REICHIANAS 
6. COURAÇA CARACTERIAL E COURAÇA SOMÁTICA �
1. WILHELM REICH: Aspectos biográficos
Ailton Bedani
“Dediquei-me ao campo da psiquiatria como cientista natural. Esse interesse foi ditado, em primeiro lugar, pela questão da energia. Já era assim em 1919” 
(W. Reich, 26/08/1950). 
Wilhelm Reich nasceu em 24 de março de 1897 em Dobrzynica, um povoado da Galícia que pertencia ao então Império Austro-Húngaro (o povoado está situado, na atual configuração geopolítica, entre o sudeste da Polônia e o oeste da Ucrânia). Logo após seu nascimento a família se mudou para uma ampla fazenda em Jujinetz, na região da Bukovina, outra província sob domínio austro-húngaro (a Bukovina faz parte, agora, da Ucrânia). Três anos depois nasceu seu irmão, Robert.
Seu pai, Leon, agrônomo por formação, era judeu assimilado e tinha grande apreço pela cultura alemã. Proibiu Wilhelm e Robert de falarem em iídiche, fez questão de se comunicar em alemão com a família e não procurou introduzir os filhos na religião judaica. 
Em um diário que escreveu dos 22 aos 25 anos de idade ― intitulado, pelos editores de sua obra, de “Passion of youth” (Paixão da juventude) ― , Reich caracterizou o pai como um indivíduo bem humorado, amável e inteligente que, contudo, podia facilmente se comportar de forma autoritária, explosiva e exigente; ele também teria sido um livre pensador e “uma pessoa moderna”. De sua mãe, Cecilie, guardou a lembrança de uma criatura doce, bondosa, modesta e bela; além de se sentir profundamente apegado a ela, acreditava ser seu filho preferido (REICH, 1988).
Apesar das atitudes violentas do pai, Reich comenta que, entre seus 5 e 10 anos de idade, o ambiente familiar era aprazível, excetuando-se incidentes corriqueiros. Além disso, o casal Reich alcançara reconhecimento social: o marido era estimado em certos círculos na cidade e a doçura da esposa tocava a todos.
Dos 6 aos 10 anos de idade, Reich recebeu, em sua própria casa, aulas particulares que equivaliam à educação escolar; nessa fase ele apenas comparecia à escola para se submeter aos exames regulares. Quando finalizou a educação elementar, aos 10 anos, começou a se preparar para o exame de admissão do Gymnasium. Três preceptores, um após o outro, foram contratados com o objetivo de habilitá-lo para as provas e instruí-lo em todas as disciplinas exigidas em um ginásio de orientação germânica. Assim, entre 1907 e 1915, dos seus 10 aos 18 anos, frequentou uma escola alemã em Czernowitz, a capital da Bukovina. Nas férias escolares, retornava a Jujinetz para ajudar o pai nas atividades da fazenda. 
Reich mostrou-se atraído, desde a infância, por biologia e ciências naturais. Em um texto autobiográfico que redigiu aos 55 anos de idade, ele mencionou que a vida na fazenda permitiu-lhe, dos 8 aos 12 anos de idade, colecionar borboletas, insetos e plantas em um laboratório caseiro. Tais atividades podem ter determinado, como suspeitou o próprio autor, seu futuro interesse por Ciências Naturais (Orgone Institute Press, 1953). 
Cecilie e um dos preceptores contratados tiveram um caso amoroso. Leon descobriu o affaire e, alternando crises de violência e tentativas de reconciliação, tornou extremamente difícil a existência da esposa, que acabou se suicidando em 1910. Leon morreu quatro anos depois.
Logo após a morte do pai, Reich, entre 1915 e 1918, combateu na Primeira Guerra Mundial. Em 1916, quando seu regimento parou em um vilarejo, ele teve um intenso envolvimento amoroso com uma moça, envolvimento esse que marcou sua vida e obra. Em 1952, trinta e seis anos após ter sentido, em plena guerra, o “verdadeiro significado do amor” (REICH, 1990f, p. 88), ele resolveu escrever sobre o episódio (esse relato autobiográfico apenas veio a público, porém, após a morte do autor). Contando então com 55 anos de idade, decidiu que havia chegado o momento de registrar no papel as intensas sensações vivenciadas naquele affaire, explicando, contudo, que designações como “doce” e “flutuando no espaço” apenas traduziam aproximadamente o rápido caso amoroso. Falando de si mesmo na terceira pessoa, relatou que “Ele não era apenas um homem unido a uma mulher. Ele estava perdido na experiência. Não havia qualquer linha divisória entre ele e a moça. Não havia a menor distinção experiencial entre os dois organismos. Eram um organismo, como que unidos ou fundidos um ao outro. Nessa unidade tudo fluía ou flutuava”. De acordo com Reich, todas as suas principais descobertas científicas tiveram como base aquela experiência amorosa.
Retornando da guerra, Reich ingressou, em 1918, no curso de Medicina da Universidade de Viena, graduando-se quatro anos depois. Na época em que frequentava a universidade conheceu pessoalmente Sigmund Freud (1856-1939) e se encantou com a teoria psicanalítica. Foi admitido na Sociedade Psicanalítica de Viena em 1920 e logo começou a trabalhar como psicanalista. 
Reich casou-se com Annie Pink (1902-1971) em 1922 (ela também se tornou psicanalista). Dois anos depois nasceu a primeira filha do casal, Eva (1924-2008), e em 1928 a segunda, Lore. 
Cursou especialização em medicina interna e, no período 1922-1924, deu continuidade à pós-graduação estudando neuropsiquiatria. Nessa época, Reich estagiou na Clínica Universitária de Psiquiatria e Neurologia, sob a coordenação de Julius Wagner-Jauregg (1857-1940) (célebre neurologista que recebeu, em 1927, o Prêmio Nobel de Medicina) e trabalhou, também, com pacientes psiquiátricos crônicos, tendo sido supervisionado, durante um ano, por Paul Schilder (1886-1940), outro neurologista que também viria a se tornar bastante reconhecido. 
De 1922 a 1928, ocupou o cargo de Primeiro Assistente Clínico no Ambulatório Psicanalítico de Viena (a instituição oferecia atendimento psicanalítico gratuito à população economicamente desfavorecida) e, de 1928 a 1930, a função de Vice-Diretor. No período 1924-1930, foi Diretor do Seminário de Técnica Psicanalítica (o grupo era composto basicamente por jovens analistas interessados em lidar com diversos problemas técnicos que se apresentavam na prática clínica). 
No período 1919-1926, Reich desenvolveu suas primeiras teorias originais. 
Entre 1919 e 1923, realizou estudos sobre o ritmo bioenergético do “impulso” (Trieb) sexual, procurando agregar, ao conhecimento psicanalítico, postulações provenientes de outras áreas (Filosofia, Biologia, Sexologia, Fisiologia, Fenomenologia). Essas pesquisas abriram caminho para que ele formulasse, de 1923 a 1926, a “teoria do orgasmo”, que se tornou o núcleo não apenas de sua primeira produção, mas também de toda a sua obra. 
Seguindo um raciocínio energeticista e amparando-se na obra freudiana, Reich buscou compreender e identificar a fonte de energia que alimentaria continuamente as perturbações psíquicas. Esses estudos, realizados inicialmente no período 1922-1926, resultaram na teoria da potência orgástica. 
Sempre se pautando pela experiência clínica, Reich defendeu em 1923 a tese de que o núcleo da neurose reside em uma insatisfatória descarga genital da excitação sexual; as tendências pré-genitais, constatou, são determinantes nas patologias neuróticas. A recuperação da “função genital”, por sua vez, propiciaria o desaparecimento ou uma significativa diminuição dos sintomas neuróticos, como procurou demonstrar em um artigo publicado em 1925 (“Weitere Bemerkungen ueber die therapeutische Bedeutung der Genitallibido” - Observações complementares sobre o significado terapêutico da libido genital). Foi nesse trabalho que ele lançou a ideia de “potência orgástica”,considerando-a “crucial para a resolução do problema das perturbações neuróticas da libido”, e ousando ainda afirmar que “nenhuma análise pode ser considerada como terminada enquanto a potência orgástica genital não estiver assegurada” (REICH, 1925/1975a, p. 210). 
Em 1925 publicou, também, seu primeiro livro (Der triebhafte Charakter - “O caráter impulsivo”) (REICH, 1975b). Tomando como referência os critérios diagnósticos formulados pelos grandes alienistas da época e a literatura psicanalítica, Reich atendeu, por três anos, pacientes que apresentavam acentuado comportamento antissocial, mas que, rigorosamente falando-se, não se “encaixavam” facilmente nas categorias psicopatológicas bem estabelecidas. Nesses “caráteres impulsivos” ele identificou atitudes intensamente “regressivas”, indicativas de certas fases primitivas do desenvolvimento mental, fases essas que não eram facilmente observáveis, in loco, em neuróticos típicos. Procedendo a uma análise comparativa entre as “típicas neuroses com inibição de impulsos” (histeria e neurose obsessiva) e os “caráteres impulsivos”, Reich trabalhou no sentido de ampliar a compreensão da gênese, desenvolvimento e funcionamento do ego, pois acreditava que “a dinâmica do ego é mais difícil de ser compreendida do que a dinâmica do desenvolvimento sexual” (REICH, 1925/1975b, p. 237). Em sua opinião, a Psicanálise precisava aprimorar seu conhecimento a respeito das etapas de evolução do ego, como fizera inicialmente em relação aos estágios do desenvolvimento sexual.
Após ter adquirido uma razoável experiência clínica, Reich fundamentou ainda mais suas ideias sobre a “potência orgástica” em obra escrita em 1926 e publicada no ano seguinte (Die Funktion des Orgasmus - “A função do orgasmo”). A potência orgástica foi então definida “fenomenologicamente” como a “aptidão de a personalidade e os afetos estarem completamente absorvidos pela experiência genital, apesar de eventuais conflitos pessoais” (REICH, 1927/1980b, p.15). Em sua autobiografia científica de 1942 — “The function of the orgasm” — ele relembrou que um importante aspecto da potência orgástica dizia respeito à possibilidade de o indivíduo, na experiência sexual, “entregar-se ao fluxo da energia biológica sem quaisquer inibições.” (REICH, 1942/1989, p. 102).
Nos quatorze anos (1920-1934) em que participou do movimento psicanalítico, Reich procurou extrair não apenas consequências teórico-clínicas e pedagógicas, mas também implicações políticas da teoria freudiana da libido. 
Prova disso foram os projetos de “sexologia política” — conhecidos como Sexpol — que ele desenvolveu no período 1927-1934. Associando-se aos movimentos políticos de esquerda (inicialmente em Viena e depois em Berlim), ele empreendeu, junto à população proletária, um inovador “trabalho social” de esclarecimento sobre questões relativas à sexualidade, engajando-se simultaneamente nas lutas pela liberalização do divórcio e do aborto, não criminalização da homossexualidade e implantação de programas de controle de natalidade. Nessa época ele se dedicou, também, a uma vanguardística reflexão teórico-epistemológica, estabelecendo conexões entre as obras de Marx e Freud e investigando a aplicabilidade da dialética materialista ao campo psíquico. Em sua autobiografia política — People in trouble —, Reich relembrou que o movimento Sexpol, com seus grupos comunitários de discussão sobre sexualidade e política, ganhou grande proporção e alcançou milhares de pessoas (REICH, 1976b).
Dando-se conta que seu trabalho começara a se diferenciar fortemente da Psicanálise, Reich fundou em 1928 a Economia Sexual, área de pesquisa que tinha como objeto de estudo a modelação político-social das forças libidinais. Nessa época começou, também, a estruturar uma nova abordagem clínica, a Análise do Caráter, como resposta às limitações que afligiam a prática psicanalítica (limitações essas amplamente discutidas no Seminário de Técnica que estava sob sua coordenação) e como rota terapêutica de acesso à potência orgástica (fenômeno que ele vinha adotando, há certo tempo, como referencial de cura no processo terapêutico).
Em 1930 mudou-se com a família para Berlim, em busca de um ambiente mais propício para desenvolver suas proposições teórico-clínicas e atividades políticas. Robert, seu único irmão, havia falecido em 1926. 
Acusado de desviar, com suas discussões sexo-políticas, a atenção das massas, Reich foi expulso em 1933 do Partido Comunista. No ano seguinte a cúpula da Sociedade Psicanalítica o desligou de seus quadros, por conta de divergências de cunho político e teórico que vinham se arrastando desde o final da década de 1920.
Com a ascensão de Hitler ao poder, Reich fugiu para a Dinamarca, depois para a Suécia e, por fim, Noruega, onde se instalou em 1934. Annie Pink e Reich divorciam-se; em 1932 ele havia conhecido Elsa Lindenberg, que se tornou sua segunda esposa (esse casamento perdurou até 1939).
Nesse “período norueguês” (1934-1939), Reich ensinou no Instituto de Psicologia da Universidade de Oslo e estabeleceu as bases de sua segunda técnica terapêutica, a Vegetoterapia Caractero-analítica, uma abordagem que contemplava as inter-relações entre as defesas psíquicas e as cristalizações ou couraças defensivas somáticas, decorrentes dos processos repressivos autoritários (implementados pela família, escola, entre outras instâncias) próprios às sociedades capitalistas-patriarcais. 
Dando continuidade, em Oslo, aos seus estudos de teor energético, ele formulou e coordenou, também, dois projetos laboratoriais: os “experimentos biolétricos sobre a sexualidade e angústia” (um estudo a respeito das variações da eletricidade periférica corporal, em relação ao estado emocional do indivíduo) e os “experimentos bions” (uma investigação microbiológica acerca de vesículas que, na visão reichiana, expressariam estágios intermediários entre o inorgânico e o orgânico; esses experimentos deram importante fundamento para as subsequentes pesquisas reichianas sobre o “orgone” e o câncer).
Um pouco antes da irrupção da Segunda Guerra, Reich se mudou para os EUA, país em que viveu de 1939 até sua morte. Foi também em 1939 que julgou ter detectado a existência de uma energia biológica específica; aproximadamente um ano depois, chegou à conclusão, por meio de uma série de experimentos, que aquela energia também se faria presente na atmosfera e no cosmos. Nomeou essa “força primordial” de “energia orgone cósmica” e criou a Orgonomia, campo de estudo voltado à pesquisa de uma ampla gama de fenômenos orgonóticos que, no entendimento reichiano, manifestar-se-íam no micro e macro cosmos, nos domínios do vivo e do inanimado. 
Em 1942 fundou o Orgone Institute; no mesmo ano adquiriu uma ampla propriedade no estado do Maine, batizando-a de Orgonon, “a casa da orgonomia”. Nos EUA casou-se com Ilse Ollendorf (1909-2008) e, em 1944, nasceu Peter, seu terceiro filho. Em 1949, Reich e colaboradores estabeleceram a The Wilhelm Reich Foundation “para preservar os arquivos de WR”. Esse local sedia atualmente o Wilhelm Reich Museum. 
Convicto de ter descoberto em 1939/40 — como consequência de um amplo trajeto científico que, desde a década de 1920, vinha priorizando a questão “energética” — uma “força” natural primária que se manifestaria simultaneamente nos domínios do vivo e não vivo, Reich, ao longo dos dezoito anos em que viveu nos EUA, investigou sistematicamente as manifestações do que julgava ser a energia orgone. Trabalhando incansavelmente, procurou apontar a dinâmica e características (essencialmente não redutíveis às leis da mecânica) do “orgone” e esforçou-se em descrever a perspectiva metodológica (por ele denominada de Funcionalismo Orgonômico) mais adequada para acessar e mapear seu objeto de estudo (o núcleo desse Funcionalismo Orgonômico ou Energético era a tese de que determinados pares de funções orgonóticas estabeleceriam, em um nível superficial, inter-relações dinâmicas entre si e, ao mesmo tempo, seriam idênticas em um patamarmais profundo; tratar-se-ia de uma “simultaneidade de identidade e variações”). 
Em solo norte-americano, Reich também elaborou uma terceira abordagem terapêutica (a Orgonoterapia) e coordenou o projeto multidisciplinar “Crianças do futuro”, voltado à prevenção do encouraçamento em recém nascidos e crianças em seus primeiros anos de vida.
Sistematicamente espionado pelo FBI desde que chegou aos EUA (e, durante certo tempo, por outro órgão governamental, a Food and Drug Administration), caluniado na imprensa (especialmente a partir de 1947) e por algumas entidades médicas, envolto em complexas batalhas judiciais e sofrendo os efeitos de sua própria inocência e teimosia, Reich acabou sendo preso em 1956. Nesse ano e, novamente, em 1960, grande parte de seus escritos e alguns aparatos laboratoriais foram queimados por ordem judicial (mas, apesar dessa atitude fascista, nenhuma produção foi perdida definitivamente). 
Em 3 de novembro de 1957, Reich foi encontrado morto, vítima de ataque cardíaco, em sua cela em uma penitenciária da Pensilvânia.
(Ailton Bedani)
2. REICH: TEORIA DA VIDA E TEORIA DO CONHECIMENTO�
Ailton Bedani 
Ao longo de sua obra, Wilhelm Reich (1897-1957) estabeleceu interfaces com várias áreas do conhecimento: Sexologia, Psicanálise, Epistemologia, Pedagogia, Sociologia, Biologia, Física, Meteorologia. Mais do que um adepto do ecletismo, ele se dedicou especialmente a investigar, em diversos campos, as manifestações de um singular processo energético. Na maturidade de seu trabalho, o autor costumava se definir a si próprio como “um cientista natural, não um psicólogo e, claro, não um psicanalista. Devotei-me ao campo da Psiquiatria como um cientista natural. Esse interesse foi ditado, em primeiro lugar, pela questão da energia. Já era assim em 1919”.� 
Em 1919, quando ainda cursava medicina na Universidade de Viena, Reich deu início às suas pesquisas. A “energética” e os fundamentos epistemológicos da produção científica são os temas que inauguraram sua obra e acabaram norteando toda sua produção. O jovem universitário suspeitava “que a energia funciona ANTES de qualquer massa; que não é a matéria, mas sim a energia que é primária; que a massa precisa ser derivada, de alguma forma, da energia”.� Apaixonado, também, por Biologia, ele colocava a si mesmo, todo o tempo, a intrigante questão “o que é a vida?”. No decorrer de seus diversificados estudos extracurriculares, identificou-se com concepções filosóficas que se recusavam a assemelhar o funcionamento do vivo ao das máquinas e simpatizou com teorias que especulavam sobre uma energia biológica específica; acreditava, no entanto, que tais formulações precisavam alcançar status científico-natural. Convicto que a elaboração científica é indissociável da crítica epistemológica, ele adotou, desde o início de suas investigações, uma diretriz professada pelo filósofo Henri Bergson: teoria da vida e teoria do conhecimento são “inseparáveis uma da outra”.�
Formalmente aceito, em 1920, como membro da Sociedade Psicanalítica, Reich, por quatorze anos, procurou extrair consequências teóricas, clínicas, pedagógicas e políticas da teoria freudiana da libido. Empreendendo, no âmbito do movimento psicanalítico, uma série de pesquisas originais, ele elaborou, no período 1922-1926, a teoria da “potência orgástica”, teoria essa que se tornou o eixo de sua obra: “potência orgástica é a capacidade de se entregar ao fluxo da energia biológica, sem quaisquer inibições; a capacidade de descarregar completamente, por meio de convulsões involuntárias e prazerosas do corpo, a excitação sexual acumulada”.�
Entre 1925 e 1933, Reich desenvolveu uma nova metodologia terapêutica (a Análise do Caráter), procurando dar respostas a uma série de limitações que encontrara na técnica psicanalítica. Quase que simultaneamente esforçou-se em estabelecer, no período 1927-1933, conexões entre Psicanálise e Marxismo. Apoiando-se na concepção freudiana de sexualidade, na noção de potência orgástica e, também, no materialismo histórico e dialético de Marx e Engels, o autor agregou esse arsenal teórico-epistemológico a um convívio direto e intenso com a população economicamente desfavorecida. Atuando inicialmente em Viena (1927-1930) e depois em Berlim (1930-1933), ele se esforçou em demonstrar, por meio de publicações e de um amplo trabalho social, que política e sexualidade são domínios mutuamente dependentes. 
Expulso, em 1933, do Partido Comunista e excluído, no ano seguinte, da Sociedade Psicanalítica, Reich, ameaçado pelo nazismo, procurou guarida em vários locais e acabou se exilando, em 1934, na Noruega. Nesse país ele ampliou sua metodologia terapêutica, desenvolvendo, a partir de 1935, a Vegetoterapia Caractero-Analítica, uma técnica que, além de contemplar os enrijecimentos caracteriais, levava em conta uma série de defesas somáticas, decorrentes de profundas alterações no funcionamento bioenergético autônomo. Em seu “período norueguês” o autor passou a se dedicar, também, a experimentos laboratoriais. Ingressando no campo da Biofísica, Reich investigou o “comportamento” de correntes bio-elétricas que se movem coligadas aos estados emocionais do indivíduo; realizando experimentos na área da Biogênese, ele identificou vesículas que expressam estágios intermediários entre o inorgânico e o orgânico. Essas pesquisas permitiram que o cientista aprimorasse seu entendimento sobre a lógica que rege o funcionamento do vivo e conduziram-no à detecção, em 1939, de um “novo” tipo de energia que atua em estratos biológicos profundos. Logo em seguida, seus experimentos levaram-no a crer que aquela singular energia, inicialmente observada em seres vivos, fazia-se presente, também, na atmosfera. Nomeou, então, essa força básica de “energia orgone cósmica” e fundou um novo ramo de pesquisas, a Orgonomia.
Vivendo nos EUA desde 1939, Reich dedicou-se, por quase duas décadas, a realizar criteriosos experimentos e a descrever, em vasta literatura técnica, as manifestações da energia orgone nos domínios do vivo e do não-vivo, no micro e macrocosmos; preocupou-se, igualmente, em mapear a específica dinâmica dos fenômenos orgonóticos e em integrar Orgonomia e Matemática. Suas pesquisas conduziram-no, em seu período norte-americano, a áreas tão distintas como a Oncologia e a Meteorologia, posto que certas disfunções da energia orgone podem ser observadas, no entendimento do autor, tanto no câncer quanto nos processos de desertificação do planeta. Estabelecendo, agora, sua terceira abordagem terapêutica, a Orgonoterapia, Reich, além de valer-se da experiência advinda da Análise do Caráter e da Vegetoterapia, esforçou-se em integrar a investigação laboratorial orgonômica, a elaboração metodológica e a prática clínica. Abrindo diversos campos de estudos (Física-Orgone, Biofísica-Orgone, Pedagogia Orgonômica, Orgonometria), o pesquisador continuou, no entanto, denunciando os sistemas ideológicos que negam a vida e anestesiam, desde a infância, as capacidades críticas e as forças emocionais-sexuais. 
Sistematicamente monitorado pelo Federal Bureau of Investigation e, desde o final da década de 1940, vítima de calúnias publicadas na imprensa e em revistas científicas, Reich passou a ser investigado, também, por outro órgão governamental, a Food and Drug Administration. Nos anos 50 o cientista acompanhou de perto a paranóica era macartista, além de se ver envolvido em um intrincado processo judicial, que resultou em sua prisão em 1957. Nesse mesmo ano ele faleceu, vítima de ataque cardíaco, em um presídio norte-americano.
Meio século se passou desde a morte de Reich. Ainda são poucos, porém, os estudos que procederam a uma reavaliação criteriosa de sua obra. Esse fato chama atenção, pois a pesquisa reichiana oferece, a nosso ver, ferramentas ímpares para refletirmos sobre nossa explosiva crise social e seus concomitantes problemas éticos e ecológicos.
�
3. POLÍTICA E SEXUALIDADE NA TRAJETÓRIA DE REICH: 
VIENA (1927–1930)�
[POLITICS AND SEXUALITYIN THE TRAJECTORY OF REICH: VIENNA (1927–1930)]   
Ailton Bedani; Paulo Albertini
Resumo: Este estudo aborda o trabalho de cunho sexo-político que Wilhelm Reich empreendeu em Viena, entre 1927 e 1930, quando ainda pertencia à Associação Psicanalítica Internacional. Procurou-se, mais especificamente, focalizar: a) a construção do engajamento social de Reich e as formulações teóricas em que ele se apoiou; b) as propostas de intervenção social que estiveram sob sua coordenação e sua filiação à perspectiva preventiva; c) o confronto que o autor estabeleceu com a teoria cultural freudiana. Quatro fontes de dados foram consultadas no material reichiano: os textos publicados no período 1927-1930; os escritos que ele publicou anteriormente, contendo noções utilizadas em sua produção sexo-política; trabalhos editados posteriormente, nos quais o autor reavalia a etapa aqui considerada; e uma entrevista concedida por Reich, em 1952, aos representantes dos Arquivos Sigmund Freud. Ao final, as principais características da sexologia-política reichiana, do período aqui estudado, são arroladas e discutidas. 
Palavras-chave: pensamento reichiano; sexualidade; política, psicanálise.
Abstract: This study concentrates on the sex-political works undertook by Wilhelm Reich in Vienna, between 1927 and 1930, when he was still a member of the International Psychoanalytical Association. More specifically, we aim at examining: a) the construction of Reich’s social engagement and the theoretical apparatus he based himself upon; b) the proposals for social intervention under his management, and his affiliation to the preventive perspective; c) the confront promoted by the author with Freudian cultural theory. Four sources of data were referred to among Reich’s works: the texts published in the period between 1927-1930; the writings he had published earlier, containing concepts used in his sex-political production; works edited afterwards, in which the author reexamines the period we focused on; and an interview given by Reich, in 1952, to the spokespersons of the Sigmund Freud Archives. At the end, the main characteristics of Reich’s Sexology Political, from the period we analyzed, will be listed and discussed.
Keywords: Reichian thought; sexuality; politics, psychoanalysis. 
�
A sexologia política de Reich, dada sua originalidade e potencialidade, tem sido alvo de vários estudos. Alguns autores dedicaram-se estritamente à intervenção sexo-política reichiana [Palmier (1970), Buin (1972), Ollman (1972, 1979), Simonelli (2001), Ramalho (2001), Albertini e Watrin (2003)], enquanto outros fizeram referências ao tema ao investigarem diferentes aspectos da obra de Reich [Albertini (1994), Wagner (1995), Matthiesen (2003), Albertini, Siqueira, Tomé, Machado (no prelo)]. O presente estudo agrega-se, de alguma forma, a esse conjunto de trabalhos.
Em sua fase sexo-política, Reich buscou conjugar a intervenção de cunho social e a reflexão teórica, esforçando-se em demonstrar que política e sexualidade são domínios fortemente interligados e mutuamente dependentes. Dois momentos destacam-se nesse percurso: a produção que o autor empreendeu em Viena (1927-1930) e a que levou a cabo em Berlim (1930-1933). Iremos nos deter, aqui, exclusivamente na etapa vienense, avaliando os eventos e idéias que marcaram a primeira etapa da sexologia política reichiana. Procuraremos, mais especificamente, abordar os fatores que motivaram Reich a participar, de 1927 à 1930, do movimento político-social em Viena, assim como as propostas de intervenção por ele formuladas e suas críticas à abordagem freudiana. 
Quatro levantamentos foram realizados, aqui. Investigou-se as idéias apresentadas por Reich em seus textos freudo-marxistas do período 1927-1930; os conceitos que ele formulou antes de 1927 e que foram integrados à sua sexologia política; as reavaliações a que procedeu em etapas posteriores de sua obra; e o depoimento que o autor concedeu, em 1952, aos representantes dos Arquivos Sigmund Freud. 
O relato deste estudo foi organizado em quatro tópicos: no primeiro, o leitor encontrará uma exposição sobre os eventos históricos que precipitaram o envolvimento de Reich com a cena social vienense e as formulações teóricas que nortearam esse engajamento; no segundo, as propostas de intervenção por ele efetuadas e a adoção da perspectiva preventiva; no terceiro, o confronto com a teoria cultural freudiana; no quarto, algumas considerações finais.
REICH: UM PSICANALISTA EM DIREÇÃO À CENA SOCIAL 
Em outubro de 1920, quando ainda estudava medicina, Reich foi formalmente aceito como membro da Associação Psicanalítica Internacional. Em 1922, ano de sua formatura, passou a trabalhar na Policlínica Psicanalítica de Viena, uma instituição que objetivava oferecer tratamento terapêutico às pessoas que não dispunham de recursos financeiros para bancar o atendimento convencional. Nessa clínica psicanalítica popular ele ocupou, de 1922 a 1928, o cargo de Primeiro Assistente e, de 1928 a 1930, o de Vice-Diretor (Reich, 1942/1989). Dessa forma, como psicanalista iniciante e médico recém-formado, Reich entrou em contato com a difícil condição existencial de indivíduos que sofriam, simultaneamente, com sérios problemas psicológicos e com a pobreza material.
Ao relembrar essa experiência em uma autobiografia científica publicada em 1942, The function of the orgasm (“A função do orgasmo”), Reich observa que, naquela espécie de clínica social, os horários de atendimento estavam sempre superlotados. Um grande contingente composto por industriários, funcionários de escritório, estudantes e camponeses acorria à Policlínica, mas os psicanalistas, que trabalhavam gratuitamente na instituição, não conseguiam dar conta da demanda. Diante dessa realidade concluiu que “a Psicanálise não é uma terapia de aplicação em grande escala. A noção de prevenção das neuroses não existia ― e ninguém sabia o que dizer a respeito” (Reich, 1942/1989, p.74-75, tradução nossa). 
Sensibilizado com a realidade da Policlínica, Reich, no entanto, comenta que seu trabalho sexo-político foi precipitado por um trágico acontecimento que transcorreu fora do âmbito do consultório. Esse evento — que foi um verdadeiro marco em sua trajetória — acha-se minuciosamente descrito na obra People in trouble (“Pessoas em dificuldades”) (o manuscrito que deu origem ao livro foi inicialmente intitulado como Menschen im staat; esse material sofreu revisões em 1944-45 e 1952, e veio a público pela primeira vez nos EUA em 1953). Nesse texto autobiográfico, dedicado, sobretudo, ao seu envolvimento político-social, o autor recorda com vivacidade os acontecimentos que se sucederam, nas ruas de Viena, em 15 de julho de 1927. Nesse dia, pela manhã, um paciente que viera para o atendimento informou-lhe que uma ampla greve havia eclodido e ele resolveu, então, cancelar o atendimento e ir olhar o protesto.
As ruas de Viena, de acordo com os relatos de Reich, estavam tomadas por dezenas de milhares de pessoas; na multidão ele identificou trabalhadores, crianças, médicos e espectadores. Em dado momento presenciou, a poucos metros de distância, uma cena marcante: policiais baleando friamente manifestantes pacíficos e desarmados; como se fossem autômatos, os agentes da lei atiravam em seres humanos que, aliás, pertenciam à sua própria classe social. Por que, perguntou-se Reich, alguns indivíduos perdem o senso crítico e passam a agir como máquinas de destruição rígidas e insensíveis? 
O comportamento da multidão em relação aos atiradores também chamou sua atenção. Reich observou que os policiais, montados a cavalo, avançavam devagar e ao se aproximarem dos manifestantes, simplesmente abriam fogo. Porém, não notou nos grevistas, numericamente muito superiores, qualquer revolta declarada ou atitude que evitasse a matança (em dois dias, cerca de oitenta pessoas foram mortas). Por que, indagou, as pessoas não reagiam? 
Ao buscar respostas, Reich recorreu, inicialmente, a duas proposiçõesfreudianas: a necessidade de o indivíduo renunciar a uma certa gama de impulsos e o conceito de sublimação. Mas não se sentiu satisfeito com as respostas que encontrou. Pois, se a civilizada e “inofensiva multidão” estava sublimando seus ímpetos agressivos, cabia então ingadar: “Onde estava a sublimação dos impulsos ‘nos policiais’?” (Reich, 1953/1976, p.29, tradução nossa). 
Reflexões desse gênero, motivadas pelo “curso prático de Sociologia” do dia 15 de julho de 1927, fizeram com que Reich questionasse a leitura social de cunho psicanalítico; ao mesmo tempo, saiu em busca de teorias que pudessem ampliar sua compreensão das engrenagens sociais. Nessa empreitada, entrou em contato com a obra de Karl Marx, sentindo-se fortemente impactado pelo pensamento do filósofo alemão. Após ler as cem primeiras páginas de O Capital, no verão de 1927, chegou a conclusão que “Marx representava para a Economia o que Freud havia significado para a Psiquiatria” (Reich, 1953/1976, p.53, tradução nossa). 
Em Freud, julgava ter encontrado uma teoria que “demonstrava que as forças inconscientes que controlam a ação e o pensamento humanos são, em última análise, forças instintuais biológicas” (Reich, 1953/1976, p.67, tradução nossa). Cabe pontuar que Reich considerava a si próprio um cientista natural e que, ao longo de toda a sua trajetória, referenciou-se por uma perspectiva energética (daí a ênfase às “forças inconscientes” ou “forças instintuais biológicas”). Em sua opinião a Psicanálise, por levar em conta a dimensão energética dos fenômenos mentais, aproximava-se da Ciência Natural. 
Nas obras de Marx, por sua vez, o autor deparou-se com uma análise dos “processos e condições sócio-econômicos objetivos, independentes da vontade humana consciente, determinantes de nossos pensamentos e existência” (Reich, 1953/1976, p.67, tradução nossa). Fiel a sua orientação energética, interessou-se especialmente, ao estudar a teoria marxista, pelo conceito de “força de trabalho viva”. Marx, ao analisar a dinâmica da produção de trabalho, explicitou da seguinte forma essa noção:
Uma máquina que não serve ao processo de trabalho é inútil. [...] O fio que não se emprega na produção de tecido ou de malha, é algodão que se perde. O trabalho vivo tem de apoderar-se dessas coisas, de arrancá-las de sua inércia, de transformá-las de valores-de-uso possíveis em valores-de-uso reais e efetivos. O trabalho, com sua chama, delas se apropria, como se fossem partes do seu organismo, e de acordo com a finalidade que o move lhes empresta vi​da para cumprirem suas funções (Marx, 1867/1974).
Reich ponderou que a “força de trabalho” (e também a sexualidade, como veremos adiante) é abastecida continuamente por uma energia biológica. Vale mencionar que, no decorrer de sua obra, o autor procurou investigar a específica natureza dessa energia e sua coligação com os estratos profundos do funcionamento biológico. De seu ponto de vista, mesmo Marx “em seus escritos filosóficos constantemente sublinhou que o homem, com sua organização biológica, representa a derradeira precondição de toda a história” (Reich, 1953/1976, p.71, tradução nossa).
A apreensão reichiana da teoria marxista não se restringiu, porém, ao conceito de “força de trabalho vivo”. Em seus escritos e em seu trabalho prático, Reich incorporou outras noções, inclusive de ordem epistemológica. 
A teoria freudiana e a teoria marxista, observou o autor, são abordagens cientificamente fundamentadas que representam significativos avanços nos campos da Psicologia e da Sociologia. Haveria, perguntou-se, pontos de contato entre a Psicanálise e as idéias de Marx e Engels? Seria possível identificar conexões entre esses sistemas de pensamento sem incorrer em vulgarizações e distorções epistemológicas? 
Suas respostas a essas questões apareceram em 1929 em Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse (“Materialismo dialético e psicanálise”), obra fundamental, tanto no campo do freudo-marxismo quanto no conjunto da produção epistemológica reichiana (utilizamos, aqui, uma tradução dessa obra para a língua inglesa). 
Ao sintetizar os princípios básicos do materialismo dialético de Marx e Engels, o autor relembra que “a dialética não é apenas uma forma de pensamento; também ocorre na matéria, independentemente do pensamento” (Reich, 1929/1972, p.27, tradução nossa). Na perspectiva dialético-materialista nenhuma “realidade” é estática ou perene; tudo traz em si o germe de sua desaparição. O desenvolvimento ─ dos fenômenos naturais, da sociedade e do psiquismo ─ resulta de contradições. Quando um conflito não pode ser resolvido ou encaminhado a partir dos recursos de que dispõe um dado sistema, as contradições “destroem o atual modo de existência e criam um novo, no qual novas contradições podem eventualmente ocorrer e assim sucessivamente” (Reich, 1929/1972, p.28, tradução nossa). As contradições nunca são absolutas, mas interpenetram-se mutuamente; e o desenvolvimento dialético, ainda que evolua de forma gradual, pode progredir em certos momentos por saltos. Tal processo de desenvolvimento é expressão e conseqüência de uma dupla negação, a negação da negação ou síntese dos opostos.
 Reich exemplifica esse último aspecto da dialética fazendo referência às sociedades primitivas. No entendimento do autor, essas organizações sociais apresentavam, originariamente, uma visão a favor da sexualidade que foi negada à medida que se estabelecia a economia privada, transformando-se então em concepção anti-sexual. Tal concepção, contudo, deveria ser novamente negada em “um estágio mais avançado” (o socialismo), convertendo-se em “afirmação social e estrutural da sexualidade” (Reich, 1929/1972, p.29, tradução nossa). Esse novo movimento afirmativo expressaria a síntese, em um outro patamar, daquilo que foi inicialmente negado. 
Analisando a “dialética do psiquismo” de um ponto de vista freudiano, Reich retomou a idéia de que a criança vem ao mundo com um conjunto de necessidades e correspondentes impulsos. Enquanto ser cultural, a criança passa a fazer parte não só da sociedade próxima que é a família, mas também, indiretamente, da sociedade em geral; uma relação recíproca se estabelece, então, entre a organização econômico-social e “os instintos, ou ego, do recém-nascido” (Reich, 1929/1972, p.37, tradução nossa). Mas, provavelmente, esse contexto dará origem a um antagonismo entre as necessidades instintuais e a ordem social capitalista (representada inicialmente pela família e, depois, pela escola): “Esta contradição produz um conflito que leva a uma mudança, e como o indivíduo é o adversário mais fraco, a mudança ocorre no interior de sua estrutura psicológica” (Reich, 1929/1972, p.38, tradução nossa). 
No decorrer de suas tentativas de, por um lado, aplicar a “crítica sociológica à psicologia de Freud” e, por outro, preencher a “lacuna na economia marxista” com o conceito de estrutura caracterial (o caráter como instância psíquica depositária da ideologia dominante), Reich fundou, em 1928, um novo ramo de pesquisas: a Economia Sexual.
As bases da abordagem econômico-sexual remontam a investigações que o autor empreendeu antes de se envolver diretamente com o movimento político. Priorizando o prisma energético e fundamentando-se na obra freudiana, Reich, desde o início de seu trabalho, buscou compreender e identificar a fonte de energia que alimentaria continuamente as perturbações psíquicas. Amparando-se em sua experiência clínica, defendeu a tese de que o núcleo da neurose reside em uma insatisfatória descarga genital da excitação sexual. As tendências pré-genitais, constatou, são determinantes nas patologias neuróticas.
A recuperação da função genital propiciaria o desaparecimento ou uma significativa diminuição dos sintomas neuróticos, como Reich procurou demonstrar em 1925 no artigo Weitere Bemerkungen ueber die therapeutische Bedeutung der Genitallibido (“Observações complementares sobre o significado terapêutico da libido genital”; recorremos, aqui, a uma tradução doartigo para a língua inglesa). Nesse trabalho o autor lançou a idéia de “potência orgástica”, considerando-a “crucial para a resolução do problema das perturbações neuróticas da libido” (Reich, 1925/1975, p.210, tradução nossa), ousando ainda afirmar que “nenhuma análise pode ser considerada como terminada enquanto a potência orgástica genital não estiver assegurada” (Reich, 1925/1975, p.214, tradução nossa). 
Após ter atendido a um expressivo número de pacientes, fundamentou ainda mais suas idéias em obra escrita em 1926 e publicada no ano seguinte ─ Die Funktion des Orgasmus (“A função do orgasmo”; esse livro de 1927 não deve ser confundido com a autobiografia científica de título semelhante, a que já nos referimos, publicada nos EUA em 1942). A potência orgástica foi então definida “fenomenologicamente” como a “aptidão de a personalidade e os afetos estarem completamente absorvidos pela experiência genital, apesar de eventuais conflitos pessoais” (Reich, 1927/1980, p.15, tradução nossa; consultamos, aqui, uma tradução do livro para a língua inglesa).
Reich enfatizou que o ponto de vista sexo-econômico não representava uma soma mecânica de suas próprias teorias com as de Freud e Marx. A originalidade da Economia Sexual reside no fato de essa orientação ter adotado a energética como referencial de base, posto que a “função do prazer” e a “força de trabalho viva”, duas fundamentais manifestações humanas, “têm origem na mesma energia biológica” (Reich, 1946/s.d., p.275). 
Não se limitando, porém, aos âmbitos psicológico e bioenergético, a Economia Sexual procurou contemplar, também, a esfera sociológica. Tendo como núcleo a noção de potência orgástica, a perspectiva econômico-sexual deu especial atenção, sem dúvida, às vicissitudes da energia bio-sexual ─ de que forma e em que quantidade essa energia é represada (ou descarregada). Mas levou em consideração, igualmente, o fato de que as sociedades autoritárias promovem e “lucram” com a contenção energética crônica, base a partir da qual se desenvolvem, no entendimento do autor, as patologias neuróticas e a submissão à ordem política dominante.
PROPOSTAS DE INTERVENÇÃO E ADOÇÃO DA PERSPECTIVA PREVENTIVA 
O projeto de “suplementar, com a psicologia de massas, a visão puramente economicista da sociedade contida na teoria socialista” (Reich, 1953/1976, p.10, tradução nossa) e o desejo de entender “o papel desempenhado pelo fenômeno biofísico no desenvolvimento da sociedade” (Reich, 1953/1976, p.37, tradução nossa), foram dois dos fatores que aproximaram o autor, a partir de 1927, das organizações médicas e culturais socialistas. 
No próprio 15 de julho de 1927, o dia em que ocorreu o massacre dos grevistas em Viena, Reich ingressou na esfera médica da Assistência aos Trabalhadores (uma das organizações do Partido Comunista Austríaco) e, desde então, começou a participar não só de atividades políticas, mas também de eventos esportivos, literários e filosóficos organizados pelo movimento operário. Convencido de que apenas a experiência concreta poderia abrir-lhe as portas do universo político-social, passou a desenvolver, junto às organizações de orientação socialista, uma série de atividades que, em seu entendimento, pertenciam ao campo da “higiene mental preventiva”. Se, como acreditava, muitas das patologias psíquicas decorrem da ordem social vigente, era preciso, então, combater enfaticamente o capitalismo e desvelar suas engrenagens. 
Para esse embate, Reich dispunha de uma poderosa arma: as carismáticas palestras que proferia em locais tão diversos quanto universidades e fábricas. Já em sua primeira conferência, dirigida a um grupo de estudantes socialistas, tentou integrar Sociologia e Sexualidade discorrendo sobre “a miséria sexual das massas no capitalismo”. Mas, ainda que estivesse filiado ao movimento psicanalítico, na época de sua militância sexo-política, o autor chegou à conclusão que não fazia sentido discutir, em suas apresentações públicas, conceitos de índole freudiana. Em entrevista concedida em 1952 aos representantes dos Arquivos Sigmund Freud, ele relembrou que “não se podia chegar ao problema da higiene mental com idéias como a do complexo de Édipo. [...] Não faz sentido. O que fazia sentido era a frustração, a frustração genital da população” (Higgins & Raphael, 1967/1972, p.79, tradução nossa). Essa constatação levou-o a priorizar, em suas palestras, temas mais “concretos”, tais como as dificuldades cotidianas relacionadas à sexualidade e os problemas que os pais encontravam ao educarem seus filhos. 
Na entrevista acima mencionada, Reich também comenta que não fundou o “movimento de higiene mental”. O movimento de profilaxia das doenças psíquicas já existiria a um bom tempo, mas o então psicanalista admite ter sido pioneiro ao denunciar o “problema da prevenção das neuroses de massa”, “a neurose como um problema social” (Higgins & Raphael, 1967/1972, p.76, tradução nossa). 
Analisando o possível envolvimento do autor com o movimento de higiene mental, Albertini et al. (no prelo) afirmam que, se por um lado, o médico Reich, “imbuído de preocupações sanitárias na área da saúde mental, procurou higienizar a cultura de seus males, principalmente no campo da sexualidade”, por outro, dificilmente pode ser associado à orientação ideológica, presente no higienismo, de perpetuar a ordem social dominante, posto que “buscou alcançar sua meta preventiva atribuindo responsabilidade a essa ordem social e atuou no sentido de promover profundas alterações na mesma”. 
O desejo de realizar um trabalho prático na área da saúde mental motivou Reich, quatro outros psicanalistas, três médicos obstetras e um advogado a fundarem em Viena, em 1928, a Sociedade Socialista para o Aconselhamento e a Investigação Sexual. Os coordenadores do projeto partiram do princípio “de que a miséria sexual era essencialmente causada por condições enraizadas na ordem social burguesa, miséria essa que não podia ser eliminada completamente, mas podia ao menos ser atenuada mediante a ajuda individual” (Reich, 1953/1976, p.107-108, tradução nossa). Tendo Reich como diretor científico do projeto, a organização, que se associou ao Partido Comunista Austríaco, cresceu rapidamente e seis centros de aconselhamentos foram criados em Viena, cada um deles coordenado por um médico. Por meio de panfletos a população ficava sabendo que especialistas em Sexologia se dispunham a dar aconselhamentos gratuitos sobre problemas conjugais e sexuais, controle de natalidade, educação de crianças e “higiene mental em geral”.
Reich relata que se dedicou intensamente a esse trabalho, investindo uma considerável parcela de seus rendimentos e sacrificando, inclusive, a “posição burguesa” e a fama que vinha adquirindo como médico e psicanalista em Viena. Porém, quando observava a participação popular, que aumentava assustadoramente, sentia-se muito empolgado, como afirmou em 1952 ao recapitular essa etapa de sua vida: “nunca esquecerei os rostos vivos, corados, os olhos cintilantes, a tensão, o contato” (Higgins & Raphael, 1967/1972, p.80, tradução nossa). 
De acordo com os registros do autor, em um ano e meio cerca de setecentas pessoas foram atendidas nos centros de aconselhamento. Milhares freqüentaram as conferências, discutindo problemas emocionais/sexuais e procurando respostas para as mais variadas dúvidas, tais como: Qual deve ser a freqüência das relações sexuais? Como uma mulher deve proceder quando o homem quer ter relações sexuais e ela, não? A liberdade sexual não conduzirá à completa destruição da família? Pessoas com pouca potência sexual podem se casar? É errado ter relações sexuais com mais de uma pessoa? (Reich, 1942/1989).
O tipo de trabalho realizado nas clínicas, comenta Reich, era inédito, pois permitia lidar, simultaneamente, com problemas relativos às neuroses, aos distúrbios sexuais e aos conflitos cotidianos. Em seus escritos, palestras e consultas nas clínicas de aconselhamento o autor procurava demonstrar, em linguagem clara, que asamarras emocionais/sexuais e a perversa estruturação econômico-social capitalista se retro-alimentavam.
Durante esse intenso trabalho social em Viena, Reich deu-se conta que os problemas concernentes à sexualidade eram numerosos e acometiam a maior parte da população. Na condição de psicanalista envolvido com questões sociais, ele vinha tentando, das mais variadas formas, ajudar a população carente; análises estatísticas, entretanto, revelavam os limites dos centros de aconselhamento. Constatou-se, na época, que trinta por cento das pessoas respondiam bem aos conselhos e informações; o contingente restante, porém, demandava tratamento terapêutico profundo, o que, por natureza, exige muito tempo e dinheiro. 
Gradualmente o autor percebeu que medidas circunstanciais, embora necessárias, não bastavam para lidar com o amplo problema da “miséria econômico-sexual”. Essa percepção levou-o, então, a refletir sobre a complexa questão da profilaxia. Como implantar um trabalho social de prevenção à neurose? Por onde começar?
Na autobiografia científica The function of the orgasm (“A função do orgasmo”), Reich, focalizando a perspectiva preventiva adotada ainda no final dos anos 20 em Viena, citou três fontes para o “flagelo neurótico”: a) a formação autoritária de crianças assentada em uma rígida moral e em métodos que visam inibir a espontaneidade e a sexualidade na infância; b) as tentativas sociais de anestesiar as capacidades críticas e as necessidades sexuais dos adolescentes; c) a infelicidade conjugal matizada pelo casamento fundado na monogamia obrigatória e vitalícia. (Reich, 1942/1989)
No entendimento do autor a supressão da sexualidade das crianças e adolescentes tem a função, em última instância, “de facilitar, para os pais, a imposição de que seus filhos os obedeçam cegamente” (Reich, 1942/1989, p.224, tradução nossa). Ao incorporar, por conta da intensa repressão paterna, a atitude de submissão, o jovem acabaria desenvolvendo uma sujeição acrítica aos modelos sociais autoritários. 
Além das práticas educacionais autoritárias, objeto de quatro trabalhos redigidos entre 1926 e 1928 (ver Matthiesen, 2003), Reich abordou, em 1930, os problemas vinculados ao casamento no texto Geschlechtsreife, Enthaltsamkeit, Ehemoral (“Maturidade sexual, abstinência, moralidade conjugal”, escrito que foi inserido, em 1936, em um livro mais amplo, Die Sexualität im Kulturkampf, o qual, por sua vez, foi revisado e republicado em 1945, nos EUA, como The sexual revolution; tomaremos como referência, aqui, essa última edição). No âmbito de uma crítica enfática aos valores morais burgueses, Reich propôs a distinção entre “relação sexual duradoura” e “casamento compulsório”. 
Em seu entendimento, a relação sexual duradoura não significa um envolvimento necessariamente longo: “não importa se ela dura semanas, meses, dois ou dez anos” (Reich, 1986, p. 125, tradução nossa). O que caracteriza esse tipo de relação é uma ligação afetiva que se origina de experiências prazerosas em comum e um gradual aprendizado das mútuas necessidades sexuais. É essa a base psico-sexual, de acordo com o autor, que dá sustentação aos projetos do casal, tais como ter filhos e adquirir bens. Contudo, tal estilo de relação também pode estar sujeito a turbulências. A diminuição do desejo sexual (às vezes, apenas por parte de um parceiro) e o interesse por outras pessoas são fatores que podem interferir na vida a dois, originando delicadas situações que demandam uma saída “racional”, sexo-afirmativa, apesar das dificuldades (Reich, 1986).
Muito diferente da relação sexual duradoura, o casamento compulsório é regulado, basicamente, pelo moralismo e por questões de ordem econômica; nesse “matrimônio monogâmico obrigatório” o casal não mostra qualquer preocupação com a qualidade de suas relações afetivas e sexuais, mesmo que essa atitude conduza a uma renúncia ao prazer de viver.
Até o momento, neste tópico, focalizamos o trabalho de intervenção social efetuado por Reich, com a criação da Sociedade Socialista para Aconselhamento e Investigação Sexual, em 1928, e registramos algumas idéias centrais que permearam a sua construção teórica. Numa observação panorâmica, nota-se o progressivo movimento de um autor que buscou, cada vez mais, identificar e combater fatores sócio-culturais capazes de potencializar as dificuldades humanas. Esse caminho, que apostava na perspectiva preventiva e em profundas transformações sociais, acabou colidindo com a visão freudiana presente no final dos anos 20. Vejamos, a seguir, esse embate.
O CONFRONTO COM A TEORIA CULTURAL FREUDIANA
Qual a posição freudiana frente à progressiva orientação preventiva adotada por Reich, nos últimos anos da década de 20? Segundo a visão apresentada por Reich na entrevista de 1952, Freud inicialmente acenou de forma positiva, mas depois se opôs frontalmente. 
Referindo-se, naquela entrevista, ao dia em que presenciou o massacre dos manifestantes vienenses, à sua conseqüente decisão de participar ativamente da cena social e ao apoio que, inicialmente, Freud lhe concedeu, Reich cita uma série de valiosos dados históricos:
Foi isso [o massacre de 15 de julho de 1927] que me deu o empurrão. Freud estava em Semmering, perto de Viena, na época, e tenho uma carta em que ele pergunta se o mundo continuaria girando depois daquilo. Pouco tempo depois, procurei-o e disse a ele que queria começar a trabalhar em uma base social. Eu queria me afastar das clínicas, do tratamento individual, e entrar na cena social. Freud foi muito favorável. Ele via toda a questão social. É completamente absurdo quando, atualmente, as escolas de psiquiatria de Washington e Horney dizem que Freud recusou-se a considerar a sociologia (Higgins & Raphael, 1967/1972, p. 78). 
Em um outro ponto, ainda discorrendo sobre o apoio freudiano, Reich recorda: “Discuti os detalhes com Freud e ele foi entusiástico. Ele disse, ‘Siga em frente, apenas siga em frente’”. (Higgins & Raphael, 1967/1972, p. 79). Pela seqüência da entrevista, é difícil saber quais eram os “detalhes” que Reich discutia com Freud, e em que nível de profundidade eles conversavam. De qualquer modo, a mensagem é clara: Freud tinha alguma consciência a respeito dos rumos que o trabalho reichiano estava assumindo e, em um primeiro momento, aprovou tal trabalho.
Contudo, os ventos freudianos favoráveis à nau social reichiana não sopraram por muito tempo e uma profunda cisão ocorreu em 1929, mais especificamente no dia 12 de dezembro, na casa de Freud, durante uma reunião do círculo íntimo psicanalítico. Nessa ocasião, Reich, apoiando-se em mais de dois anos de trabalhos junto à população carente de Viena, apresentou uma série de reflexões sobre a dimensão sociológica das neuroses e a premente necessidade de medidas profiláticas. Segundo os dados apresentados em The function of the orgasm (“A função do orgasmo”), essas reflexões envolveram as seguintes questões básicas: Quais desdobramentos poderiam ser esperados da teoria e da terapia de orientação freudiana? A intervenção psicanalítica deveria continuar se limitando ao consultório particular? Que papel deveria assumir o movimento psicanalítico no contexto social? Por que a sociedade produz neuroses em massa? (Reich, 1942/1989).
O autor recorda que, ao terminar sua exposição, a “atmosfera era fria”. Freud, dessa feita, não teria se mostrado receptivo, incomodando-se, especialmente, com o enfoque político dado aos problemas da neurose, à repressão sexual e à questão da infelicidade das massas. Ao fundador da psicanálise não agradou, em absoluto, a idéia de extrair conseqüências sociais da teoria da libido; após ouvir as explanações de seu discípulo sobre a profilaxia das neuroses, ele teria enfaticamente afirmado que “a cultura vem em primeiro lugar” (Higgins & Raphael, 1967/1972, p.45, tradução nossa). 
Como entender essa aparente oscilação da posição freudiana? Uma hipótese a ser levantada é a de que o apoio inicial ancorou-se nos aspectos clínicos/médicos do projeto reichiano;em linhas gerais, tal apoio daria continuidade aignificaria uma esp.do nadade da orientaçva ocorrava assumindo e ��������������������������������������������������������������aaaao atendimento prestado à população de baixa renda, nos moldes da Policlínica Psicanalítica de Viena. Já a discordância de Freud, em relação às transformações sociais defendidas por Reich, são mais fáceis de compreender. Afinal, a orientação freudiana, sobretudo em escritos do período, vislumbram o conflito ─ intra-psíquico ou na relação do sujeito com a cultura ─ como algo inevitável. De acordo com essa perspectiva, a vida civilizada implica, necessariamente, em uma certa restrição da felicidade. Em O mal-estar na cultura, obra que Reich considerava como uma resposta à sua conferência de dezembro de 1929, Freud afirma:
Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não se acha incluída no plano da “Criação”. [...] Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens (Freud, 1930/1974, p. 94/95).
Assim, enquanto Freud argumentava, em trabalhos como O mal-estar na cultura, que a própria existência da civilização estava condicionada à presença da repressão e da neurose, seu discípulo, por sua vez, seguia o caminho contrário. Para Reich, a neurose e a infelicidade humana estavam, em ampla medida, diretamente relacionadas à certos pilares da sociedade ocidental, tais como a família autoritária, as práticas pedagógicas que impedem a expressividade sexual e emocional das crianças, o estrangulamento da função genital na infância e adolescência e o matrimônio compulsório.
Na biografia que escreveu sobre Sigmund Freud, Ernest Jones retrata ─ ainda que em termos globais, não necessariamente em relação aos eventos focalizados neste estudo ─ a atitude freudiana de aceno positivo, em um primeiro momento, e depois, de discordância em relação às inclinações socialistas de Reich: “Freud o tinha em alta conta no começo de sua carreira, mas o fanatismo político de Reich conduziu tanto ao rompimento pessoal quanto ao científico” (Jones, 1979, p.736).
Já Reich, ao comentar, na entrevista de 1952, o confronto teórico com Freud, afirmou que:
 
a grande pergunta era: ‘De onde vem essa miséria?’ E aqui começaram as dificuldades. Enquanto Freud elaborou a sua teoria da pulsão de morte, que dizia ‘a miséria vem de dentro’, eu fui ao encontro das pessoas onde elas estavam. (Higgins & Raphael, 1967/1972, p.42, tradução nossa).
Em síntese, Reich não duvidava que a cultura contemporânea fundamentava-se na repressão sexual, mas indagou se tal supressão ocorria em toda e qualquer sociedade e se ela era realmente inevitável. Sem deixar de supor que a luta da humanidade por uma vida melhor seria árdua, ele depositava esperanças, porém, na ação conjunta de dois recursos: a pesquisa científica (que permitiria compreender racionalmente os empecilhos individuais e sociais a uma atitude afirmativa em relação à vida e à sexualidade) e o trabalho sócio-político (que conduziria, de maneira prática, às transformações sócio-culturais necessárias).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em linhas gerais focalizamos, nesta investigação, o progressivo engajamento social reichiano, verificado em Viena, de 1927 a 1930. Neste período o autor, na condição de membro da Associação Psicanalítica Internacional, procurou articular psicanálise e marxismo, formulou propostas práticas de intervenção social e acabou por entrar em sério, e definitivo, conflito com Freud. Alguns pontos, contudo, ainda merecem ponderações.
Quanto ao campo conceitual, se atentarmos para a maneira específica pela qual Reich, em sua Economia Sexual, buscou aproximar as idéias de Freud e de Marx, veremos que ele privilegiou aspectos energéticos presentes na psicanálise e no marxismo. Como já foi destacado, o autor adotou, como um importante referencial em suas pesquisas, o conceito de “forças inconscientes” (para a esfera psíquica) e o conceito de “força de trabalho viva” (para o universo da produção). Essa orientação está afinada com a postura de cientista natural, por ele assumida desde os seus escritos iniciais (Bedani, 2004). 
Dada essa profunda identificação do autor com as ciências naturais, é possível ainda supor que ele concebeu todo o seu envolvimento sócio-político como uma forma de trabalho científico. Desde o momento em que ingressou na Psicanálise, ele acreditava estar praticando ciência; ao atuar na esfera social, não seria diferente. Dessa perspectiva Reich não teria “deixado a psicanálise” para adentrar a militância política, mas sim, teria dado continuidade, com sua atuação social, a um fazer científico tão rigoroso e ético quanto o que vinha desenvolvendo no campo clínico. 
Mas ao articular psicanálise e marxismo e, simultaneamente, implantar suas propostas de reforma sexual no campo político, o autor acabou perdendo a aprovação de Freud. Ao apresentar ao círculo psicanalítico, em dezembro de 1929, suas idéias sobre a profilaxia das neuroses, Reich apartou-se definitivamente de seu mestre, fato esse que, certamente, não favorecia suas atividades sócio-políticas em Viena. 
Em 1930, Reich mudou-se para Berlim, em busca de uma maior ressonância para suas idéias sexo-políticas e clínico-terapêuticas. A Alemanha vivia, então, momentos dramáticos, com as forças de esquerda lutando acirradamente contra a ameaça nazista. Na efervescente Berlim, Reich ingressou no Partido Comunista Alemão, deu continuidade ao seu trabalho sexo-político e envolveu-se visceralmente na luta contra o fascismo. Deixemos, contudo, esse assunto para uma próxima oportunidade.
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4. Política e sexualidade na trajetória de Reich: Berlim (1930-1933)�
[Politics and sexuality in the trajectory of Reich: 
Berlim (1930-1933)]
Ailton Bedani; Paulo Albertini
RESUMO
Este artigo aborda o trabalho de cunho sexo-político que Wilhelm Reich empreendeu em Berlim, entre 1930 e 1933. Procurou-se destacar, aqui, quatro aspectos: a) o projeto reichiano de agregar em uma única organização, conhecida como SEXPOL, diferentes grupos alemães que debatiam questões relativas à sexualidade; b) as publicações de conotação sexo-política nas quais o autor e seus colaboradores focalizaram temas relacionados à infância e à adolescência; c) as análises reichianas a respeito da função social da repressão sexual; d) os estudos que Reich elaborou, do ponto de vista da Sexologia Política, a respeito do nazifascismo. Três fontes de dados foram consultadas: as principais publicações de orientação sexo-política que Reich trouxe a lume no período 1930-1933; relatos autobiográficos e uma entrevista em que o autor, na maturidade de sua obra, reavaliou sua participação política na Europa; os trabalhos de alguns comentadores que analisaram a produção freudo-marxista reichiana.
Palavras-chave: Pensamento reichiano; Sexualidade; Política; freudo-marxismo; Psicanálise.
ABSTRACT
This study focuses on the sex-political work undertaken by Wilhelm Reich in Berlin, between 1930 and 1933. Four aspects have been chosen to be exposed here: a) the Reichian project of joining together in a single organization, known as SEXPOL, diverse German groups that discussed issues relating to sexuality; b) the publications of sex-political connotation in which the author and his collaborators focused on themes related to childhood and adolescence; c) Reichian analysis dealing with the social function of sexual repression; d) the studies elaborated by Reich, by the light of Political Sexology, focused on Nazi-Fascism. Three sources of data were consulted: the main sex-political works by Reich published during the period 1930-1933; autobiographical reports and an interview in which the author, in the mature days of his work, reassessed his political participation in Europe; the works by some of the commentators who examined Reich's Freudo-Marxian production. 
Keywords: Reichian theory; Sexuality; Politics; Freudo-Marxism; Psychoanalysis.
No período 1927-1933, o médico e então psicanalista Wilhelm Reich (1897-1957) envolveu-se visceralmente com o movimento político de esquerda. Atuando inicialmente em Viena (1927-1930) e, depois, em Berlim (1930-1933), o autor desenvolveu uma ampla teorização de conotação freudo-marxista e coordenou diversos trabalhos de intervenção social, apoiando-se na visão de que política e sexualidade são domínios interligados e indissociáveis.
Esta pesquisa focaliza as atividades de intervenção social empreendidas por Reich entre 1930 e 1933, período em que residiu na cidade de Berlim. Procuramos avaliar aqui, mais especificamente: a) o projeto, elaborado por Reich, de formar uma ampla organização que congregasse grupos interessados em problematizar politicamente a questão da sexualidade; b) o trabalho sexo-político dirigido às crianças e aos adolescentes; c) os estudos que o autor empreendeu a respeito da função social da repressão sexual; d) a tentativa reichiana de compreender o irracionalismo fascista.
Consultamos, nesta investigação, três fontes de dados: as principais publicações em que Reich abordou, no período 1930-1933, temas relacionados à sexologia política; relatos autobiográficos e uma entrevista em que o autor reavaliou sua participação política na Europa; os trabalhos de alguns comentadores que analisaram a produção reichiana de conotação sexo-política.
Este estudo está dividido em seis seções. Inicialmente, a título de introdução, sintetizamos os dados acerca do primeiro estágio da produção freudo-marxista reichiana (o período 1927-1930). Passando a nos dedicar especificamente ao nosso objeto de estudo (a produção sexo-política reichiana em Berlim, entre 1930 e 1933), focalizamos, em um segundo momento, um projeto formulado por Reich, conhecido como SEXPOL, que objetivava reunir em uma única organização diversos grupos alemães que discutiam a temática da sexualidade. Na terceira parte deste trabalho, resgatamos algumas produções em que o autor e seus colaboradores abordaram, do ponto de vista da Sexologia Política, temas concernentes à infância e à adolescência. Na quarta seção do artigo, apresentamos sucintamente as análises reichianas a respeito da função social da repressão sexual, indicando certas interfaces que Reich estabeleceu com os trabalhos de Malinowski. Na quinta parte, recuperamos algumas análises e críticas que Reich endereçou ao irracionalismo fascista, e os conflitos que o autor vivenciou com o Partido Comunista Alemão e com a Associação Psicanalítica Internacional. Na última seção, apresentamos algumas reavaliações de Reich a respeito de suas atividades sexo-políticas e procedemos a uma breve discussão acerca da atualidade das ideias freudo-marxistas reichianas.
SÍNTESE DA PRIMEIRA ETAPA DA SEXOLOGIA POLÍTICA REICHIANA 
Antes de nos determos no trabalho sexo-político empreendido por Reich na Alemanha, entre 1930 e 1933, cabe mencionar, a título de introdução, alguns dados que, a nosso ver, permitirão que o leitor se situe melhor em relação aos temas centrais do presente artigo. Tendo em vista essa breve contextualização, indicaremos, logo abaixo, um dos eixos teóricos da obra de Reich (a teoria da potência orgástica) e resumiremos as ideias e projetos que marcaram, na Viena do período1927-1930, a fase inicial da produção freudo-marxista reichiana.
Reich foi admitido como membro da Associação Psicanalítica de Viena em 1920, antes mesmo de se graduar em Medicina (a formatura ocorreu em 1922). A partir de 1923, ele passou a defender a tese de que o núcleo das neuroses reside em uma insatisfatória descarga genital da excitação sexual. Um processo terapêutico bem-sucedido deveria restabelecer, a seu ver, a ''potência orgástica''. Esse conceito foi amplamente desenvolvido por Reich em um livro publicado em 1927, Die Funktion des Orgasmus (A função do orgasmo) e sinteticamente definido, na maturidade da obra do autor, da seguinte forma: 
[...] potência orgástica é a capacidade de se entregar ao fluxo da energia biológica, sem quaisquer inibições; a capacidade de descarregar completamente, por meio de convulsões involuntárias e prazerosas do corpo, a excitação sexual acumulada (REICH, 1942-1989, p. 102, tradução nossa). 
Além de atuar em consultório privado, Reich também trabalhou, de 1922 a 1930, na Policlínica Psicanalítica de Viena, uma instituição que oferecia tratamento terapêutico às pessoas que não dispunham de recursos financeiros para bancar o atendimento convencional. Nessa clínica psicanalítica popular ele pôde observar, de forma vívida, a difícil condição existencial de indivíduos que sofriam simultaneamente com sérios problemas psicológicos e com a pobreza material (REICH, 1942-1989).
Em 1927, Reich ingressou no movimento de esquerda, motivado, especialmente, pela profunda indignação que sentira, em 15 de julho daquele ano, ao presenciar o assassinato, pelas forças policiais, de grevistas vienenses que protestavam pacificamente.
Buscando, inicialmente, respostas para a barbárie que observara nas ruas de Viena e procurando, depois, uma compreensão científica da dinâmica social, Reich avaliou que a teoria psicanalítica, elucidativa no que tange à vida inconsciente, deixava a desejar quando se voltava para a análise dos fenômenos sociais. Nas obras de Marx, porém, ele acreditou ter encontrado uma apreensão mais efetiva dos ''processos e condições socioeconômicos objetivos, independentes da vontade humana consciente, determinantes de nossos pensamentos e existência'' (REICH, 1953-1976, p. 67, tradução nossa). Interessado em contemplar a interface indivíduo-sociedade, o autor publicou, em 1929, um estudo fundamental no campo da literatura freudo-marxista, Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse (Materialismo dialético e Psicanálise), texto em que buscava estabelecer articulações e identificar aspectos conflitantes entre as ideias de Freud e Marx.
Pautando-se pela teoria da potência orgástica, inspirando-se em alguns referenciais energetistas que encontrara nas obras de Freud e Marx e valendo-se do materialismo histórico e dialético, Reich fundou, por volta de 1928, um novo ramo de investigações, a Economia Sexual (REICH, 1942-1989).
Investindo na tese de que ''a miséria sexual era essencialmente causada por condições enraizadas na ordem social burguesa'' (REICH, 1953-1976, p. 107-108, tradução nossa) e almejando ir além da pesquisa teórica, o autor e alguns colegas fundaram, em 1928, a Sociedade Socialista para Aconselhamento e Investigação Sexual, uma organização que se propunha a oferecer informações gratuitas sobre problemas conjugais e sexuais, controle de natalidade, educação de crianças e ''higiene mental em geral''. Trabalhando a partir de uma perspectiva higienista que apostava na prevenção das doenças psíquicas (CÂMARA, 1999; RAMALHO, 2001; ALBERTINI et al, 2007), o projeto cresceu rapidamente e seis centros de aconselhamento foram criados em Viena. De acordo com o relato reichiano, no período de um ano e meio os centros prestaram atendimento a aproximadamente setecentas pessoas, e milhares participaram de palestras que abordavam problemas emocionais/sexuais (REICH, 1942-1989).
Gradualmente o autor se deu conta, entretanto, que a intervenção pontual, apesar de seus aspectos benéficos, não era suficiente para lidar com a ampla ''miséria econômico-sexual''. Em busca de um programa profilático, Reich identificou, no final da década de 1920, três fatores que determinavam, a seu ver, o ''flagelo neurótico'': a) a rígida moral autoritária a que recorriam os educadores, para coibir a espontaneidade e inibir a sexualidade na infância; b) os mecanismos sociais que visavam amortecer as capacidades críticas e as necessidades sexuais dos adolescentes; c) a monogamia obrigatória e vitalícia que, muitas vezes, resultava em uma devastadora infelicidade conjugal (REICH, 1942-1989).
A partir de um contato direto e quotidiano com o proletariado vienense (inclusive com a juventude), o autor acabou chegando à conclusão geral que a supressão da sexualidade das crianças e adolescentes tinha a função, em última instância, ''de facilitar, para os pais, a imposição de que seus filhos os obedecessem cegamente'' (REICH, 1942-1989, p. 224, tradução nossa).
Reich (1986) estabeleceu, também, diferenciações entre ''relação sexual duradoura'' (um envolvimento que não é refém de um prazo preestabelecido, encontrando sustentação no carinho que nasce das experiências prazerosas em comum e no aprendizado das mútuas necessidades sexuais) e ''casamento compulsório'' (um envolvimento vitalício, regulado basicamente pelo moralismo e por questões de ordem econômica, sem qualquer preocupação do casal com a qualidade de suas relações afetivas e sexuais).
De acordo com o relato reichiano, Freud viu com bons olhos, em um primeiro momento, o trabalho realizado nas clínicas de aconselhamento (HIGGINS; RAPHAEL, 1967-1972). Reich comenta, porém, que não tardou para que ocorresse uma profunda ruptura entre ele e o fundador da Psicanálise. A cisão efetivou-se durante uma reunião na casa de Freud, em 12 de dezembro de 1929, quando Reich, apoiando-se em mais de dois anos de atividades com a população carente de Viena, apresentou uma série de reflexões sobre a dimensão político-sociológica das neuroses e a urgente necessidade de se adotar medidas profiláticas. Convicto de que a sociedade estava produzindo neuroses em massa, o autor acreditava que a intervenção psicanalítica deveria ultrapassar os limites do consultório particular e assumir, claramente, um papel transformador no contexto social (REICH, 1942-1989).
Freud teria ficado, naquela reunião de dezembro de 1929, profundamente incomodado com a perspectiva política com a qual Reich estava abordando o tema da neurose, o problema da repressão sexual e a questão da infelicidade das massas. Após ouvir as explanações de seu discípulo sobre as consequências sociais da teoria da libido e a premente necessidade de uma profilaxia das neuroses, Freud afirmou enfaticamente, de acordo com as reminiscências do Reich maduro, que ''a cultura vem em primeiro lugar'' (HIGGINS; RAPHAEL, 1967-1972, p. 45, tradução nossa).
Experienciando, em Viena, um conflito direto com Freud e alimentando, provavelmente, a expectativa de que encontraria, em Berlim, psicanalistas mais receptivos às suas teorias clínicas e sexo-políticas, Reich mudou-se, em setembro de 1930, para a Alemanha. Porém, antes de deixar a cidade em que vivera por mais de uma década, ele se reuniu com Freud (foi a última vez que se encontraram), insistindo na diferenciação entre ''família natural'' e ''família compulsória'' e reafirmando a importância da profilaxia das neuroses. Freud teria então dito a Reich, em tom irritado, que suas teorias nada tinham a ver com a orientação básica da Psicanálise (HIGGINS, RAPHAEL, 1967-1972).
BERLIM: SEXPOL E ASCENSÃO DO NAZISMO
Interessado na realização prática de suas ideias, Reich deu continuidade, na Alemanha, ao trabalho sexo-político. Residindo em Berlim entre 1930 e 1933 e filiado ao Partido Comunista Alemão, o autor participou ativamente de manifestações contra o nazismo e continuou se envolvendo em projetos de cunho social (além de se dedicar à clínica em consultório privado e à produção teórica no campo da técnica terapêutica).

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