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Robert Kurz - Paradoxos dos direitos humanos

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23/02/2015 Robert Kurz ­ Paradoxos dos direitos humanos
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz116.htm 1/3
Robert Kurz
OS PARADOXOS DOS DIREITOS HUMANOS
Inclusão e exclusão na modernidade
Desde  sempre  houve  ideais  em  cujo  nome  exércitos  foram  colocados  em  marcha,  seres  humanos  mortos,
países devastados e  cidades destruídas. A última potência mundial  e  seus  vassalos não constituem exceção
alguma: junto com os porta­aviões, os tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a
idéia de direitos humanos é novamente mobilizada para poder apresentar ao mundo um documento  legitimador.
Mas o  notável  é  que os  críticos  desse processo apelam aos mesmos  ideais. Os milhões  que protestaram no
mundo  todo  contra  os  planos  de  guerra  não  falam  uma  língua  ideológica  diferente  daquela  do  governo  norte­
americano. Quando se trata de princípios, Noam Chomsky diz o mesmo que George W. Bush. É em nome dos
direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em nome dos direitos humanos que as vítimas são assistidas
e consoladas.
Usualmente os críticos dizem que a realidade não concorda com os ideais. Se há um direito humano à vida e à
integridade  física, como se pode aceitar então, com anuência, que as  intervenções militares ocidentais matem
mais pessoas inocentes que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas? Os EUA, é o que se diz, utilizam os
direitos  humanos  apenas  como pretexto  para  os  interesses  totalmente  profanos  do  poder  e  da  economia;  não
lhes  interessa  a  situação  jurídica  da  população,  mas  apenas  o  petróleo.  E  por  isso,  assim  prossegue  o
argumento, há dois pesos e duas medidas: em toda parte onde os detentores do poder se destacam pelo bom
comportamento,  deixando  por  exemplo  que  os  bombardeiros  norte­americanos  estacionem  em  seus  territórios
(como  na  Turquia,  provavelmente,  ou  na Arábia  Saudita),  a  autonomeada  polícia mundial  ocidental  não  há  de
objetar  nada  contra  a  pilhagem,  a  perseguição  e  a  chacina  de  grupos  inteiros  da  população  ou  contra  as
condições ditatoriais.
Todos  esses  argumentos  não  são  de modo  algum  falsos,  no  que  concerne  aos  fatos.  O  problema  reside  na
interpretação desses fatos. Trata­se simplesmente de uma incoerência do poder imperial ocidental, que pisa em
seus próprios princípios? Nesse caso se poderia de certo modo reclamar esses princípios, pelo menos segundo
sua natureza, e o poder puro ficaria sem legitimação. Ou as coisas se passariam de maneira diversa, sendo que
na  realidade as  intervenções em nada humanitárias correspondem  inteiramente à  lógica dos direitos humanos?
Nesse caso o erro estaria ao lado dos críticos, que ignoram a essência desses princípios. À primeira vista, essa
última  idéia  parece  absurda.  O  conteúdo  dos  direitos  humanos  não  consiste  justamente  no  reconhecimento
universal de todos os indivíduos de modo igual, sem nenhuma diferença? Como pode então ser compatível com
os direitos humanos desrespeitar a vida de tantos indivíduos?
Quem argumenta desse modo esquece que o procedimento totalmente normal e cotidiano da socialização global
através  dos  mercados  implica  um  não­reconhecimento  permanente  de  inúmeras  vidas  humanas.  Quando  os
bombardeiros  high­tech  dos  EUA  jogam  sua  carga  fatal  sobre  justos  e  injustos,  eles  só  executam  ativa  e
violentamente a mesma  lógica que se efetua, numa extensão muito maior, passiva e silenciosamente, através
do processo econômico. Ano após ano morrem milhões de pessoas (inclusive crianças) de fome e enfermidades
pela simples razão de não serem solventes. É verdade que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento
irrestrito  de  todos  os  indivíduos,  em  igual  medida,  como  "seres  humanos  em  geral",  dotados  dos  célebres
"direitos  inalienáveis".  Mas,  ao  mesmo  tempo,  é  o  mercado  universal  que  forma  o  fundamento  de  todos  os
direitos,  incluindo  os  direitos  humanos  elementares.  A  guerra  pela  ordem  do  mundo,  que  mata  pessoas,  é
conduzida em prol da liberdade dos mercados, que igualmente mata pessoas e, com isso, também em prol dos
direitos  humanos,  visto  que  estes  não  são  imagináveis  sem  a  forma  do  mercado.  Temos  de  lidar  com  uma
relação  paradoxal:  reconhecimento  por  meio  do  não­reconhecimento,  ou,  inversamente,  não­reconhecimento
justamente por meio do reconhecimento.
A aparente contradição se dissolve se perguntamos pela definição de ser humano que subjaz a esse paradoxo.
A primeira  fórmula dessa definição  reza:  "O ser humano" é em princípio um ser  solvente. O que naturalmente
significa, por consequência, que um indivíduo inteiramente insolvente não pode ser em princípio um ser humano.
Um ser é  tanto mais  semelhante ao homem quanto mais  solvente ele é,  e  tanto mais  inumano quanto menos
preenche esse critério.
Se  um milionário  excêntrico  lega  em  testamento  sua  fortuna  a  seu  cão,  segundo  essa  lógica  o  animal  assim
enriquecido é um ser humano em grau mais elevado que uma criança da  favela. Contudo a solvência constitui
nesse exemplo apenas uma característica externa contingente. Mas, se entendermos a definição de ser humano
como uma relação social, que naturalmente um cachorro não pode contrair, então a característica da solvência
indica que se trata de um sujeito do sistema produtor de mercadorias. Somente um ser que ganha dinheiro pode
ser um sujeito do direito. A  capacidade de entrar numa  relação  jurídica está  ligada, portanto,  à  capacidade de
23/02/2015 Robert Kurz ­ Paradoxos dos direitos humanos
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participar de alguma maneira no processo de valorização do capital. Conforme essa definição, o ser humano tem
de ser capaz de trabalhar, ele precisa vender a si mesmo ou alguma coisa (em caso de necessidade, os próprios
órgãos  do  corpo),  sua  existência  deve  satisfazer  o  critério  da  rentabilidade.  Esse  é  o  pressuposto  tácito  do
direito moderno em geral, ou seja, também dos direitos humanos.
No início, esse direito foi designado "direito natural". Em particular os filósofos do Iluminismo ocidental viam os
indivíduos como se tivessem saído do corpo materno diretamente para o mundo na forma "natural" de um sujeito
de direito. Porém essa forma é puramente social, ela é  tão pouco "natural" quanto um contrato de aluguel ou o
projeto  de  um  míssil  intercontinental.  Havia  apenas  uma  razão  ideológica  para  falar  aqui  de  "natureza":  as
formas sociais do moderno sistema produtor de mercadorias, do "trabalho" abstrato, da racionalidade empresarial
e do mercado total eram consideradas as formas "naturais" do convívio humano. O ser humano, assim se afirma
até hoje, socializa­se através de mercadorias, dinheiro e mercado segundo  "leis naturais", exatamente como o
castor constrói diques e a abelha recolhe néctar para a colméia. E, visto que o mercado total pressupõe que os
seres humanos fechem contratos jurídicos para todos seus processos vitais, a suposta naturalidade do capital e
do  mercado  precisava  incluir  também  uma  suposta  naturalidade  do  ser  humano  como  sujeito  de  direito.  Os
direitos humanos deveriam ser apenas a garantia elementar dessa forma social: o reconhecimento universal do
"homem" segundo essa definição somente.
Porém, uma vez que o ser humano real, o indivíduo vivo, não nasce de modo algum conforme um automatismo
biológico na qualidade de sujeito da valorização e do direito, abre­se uma lacuna sistemática entre a existência
real  dos  indivíduos  e  essa  forma  social. De  certo modo,  essa  lacuna não é  apenas uma  lacuna  "ontogênica",
atinente  aos  homens  individuais, mas  também  "filogênica",  ligada  ao  desenvolvimento  histórico  da  sociedade.
Pois  a  constituição  do  capitalismo  e  da  forma  jurídica  universal  correspondente  foi  tãopouco  natural  que
somente  na  modernidade  esse  sistema  surgiu  e  se  impôs  contra  as  vigorosas  resistências  do  ser  humano.
Originariamente o  "trabalho"  abstrato  não  foi  um  "direito"  pelo  qual  todos  teriam ansiado, mas uma  relação de
coerção,  imposta com violência de cima para baixo, a  fim de  transformar os seres humanos em "máquinas de
fazer dinheiro".
Pode­se observar aí um duplo entrelaçamento paradoxal de "reconhecimento" e "não­reconhecimento" na forma
do direito moderna. O direito  implica,  segundo sua essência, uma  relação de  inclusão e exclusão. Universal é
somente  a  pretensão  ao  domínio  absoluto  dessa  forma.  Como  já  foi  mostrado  na  característica  externa  da
solvência,  trata­se do domínio de uma abstração social, encarnada na forma do dinheiro e, por conseguinte, do
direito. Mas essa forma abstrai justamente a existência física, as carências corporais, sociais e culturais do ser
humano,  reduzindo­o  a  um  mero  ser­aí,  na  qualidade  de  unidade  do  dispêndio  de  energia  para  o  fim  em  si
mesmo  da  valorização  do  dinheiro.  O  "ser  humano  em  geral"  visado  pelos  direitos  humanos  é  o  ser  humano
meramente abstrato,  isto  é,  o  ser  humano enquanto portador  e  ao mesmo  tempo escravo da abstração  social
dominante. E somente como este ser humano abstrato ele é universalmente reconhecido.
No  entanto  isso  significa  que  esse  reconhecimento  inclui  simultaneamente  um  não­reconhecimento:  as
carências  materiais,  sociais  e  culturais  são  excluídas  justamente  do  reconhecimento  fundamental.  O  homem
dos direitos humanos é reconhecido apenas como um ser reduzido à abstração social; portanto ele é reduzido,
como  expressou  recentemente  o  filósofo  italiano  do  direito  Giorgio  Agamben,  a  uma  "vida  nua",  definida
puramente por um fim exterior a ele. O famoso "reconhecimento" é na realidade uma pretensão totalitária à vida
dos  indivíduos,  que  são  forçados  a  sacrificar  abertamente  sua  vida  para  o  fim,  tão  banal  quanto  realmente
metafísico,  da  valorização  sem  fim  do  dinheiro  através  do  "trabalho".  Só  secundariamente,  para  um  resto  da
vida, que serve na verdade apenas à regeneração em prol do fim totalitário, lhes é permitido qualificar sua própria
vida real. A satisfação de suas necessidades é somente um produto residual daquele automovimento metafísico
do dinheiro a que eles estão acorrentados justamente por meio de seu reconhecimento como sujeitos abstratos
do direito.
Esse reconhecimento paradoxal (do ser humano abstrato) através do não­reconhecimento (do ser humano vivo e
social)  obtém  sua  notável  força  de  convencimento  pelo  fato  de  que  poderia  vir  a  ser  ainda  pior.  Pois  o  não­
reconhecimento  relativo  contido nesse  reconhecimento meramente abstrato pode  tornar­se a qualquer hora um
não­reconhecimento absoluto, a saber: quando os seres humanos se despregam do movimento totalitário do fim
em  si  mesmo  capitalista,  isto  é,  quando  não  podem  mais  ser  sujeitos  nesse  sentido.  Nesse  caso  eles  até
mesmo  perdem a  "capacidade  de  ser  reconhecidos"  como  seres  humanos meramente  abstratos,  deixando  de
ser,  conforme  aquela  definição,  seres  humanos  em  geral;  nesse  aspecto,  eles  valem  "objetivamente"  apenas
como um  fragmento de matéria,  como meros objetos naturais,  tal  qual  seixos, equissetos ou escaravelhos de
batateira. O Marquês de Sade foi o primeiro a anunciar, já no século 18, essa consequência, com toda a argúcia
cínica.
Sob uma tal ameaça, o azar de ser reconhecido meramente como ser humano abstrato, reduzido, transforma­se
na  sorte  duvidosa  de  pelo menos  possuir,  nessa  forma  negativa  e  fantasmática,  vigência  social  e  uma  certa
semelhança com o homem. Embora o reconhecimento seja meramente negativo e pressuponha uma submissão,
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tampouco os "caídos" escapam à pretensão totalitária do sistema. A submissão dos homens à forma abstrata é
enobrecida em "direito humano" porque essa submissão é considerada uma vantagem em relação àqueles que
nem sequer são mais submetidos, mas sim inteiramente afastados do ser homem.
Uma vez que se abre aquela  lacuna sistemática entre a pura existência dos seres humanos e o  "direito de se
submeter", os indivíduos não são por natureza "homens" nesse sentido, eles só podem se transformar em seres
humanos assim definidos e em sujeitos de direito mediante um seletivo  "procedimento de  reconhecimento". O
procedimento de seleção pode ser "objetivo" (segundo as  leis da valorização e da situação do mercado) ou ser
efetuado  "subjetivamente"  (segundo  as  definições  ideológicas  ou  políticas  de  "amigo"  e  "inimigo").  De  acordo
com esse procedimento, a existência real dos  indivíduos pode ser reprovada tanto quanto uma mercadoria não
reconhecida pelo mercado,  considerada  "supérflua". E,  caso necessário,  os mísseis  ou,  como ultima ratio,  as
bombas atômicas  terminarão definitivamente o "procedimento de reconhecimento", a  fim de  levar os  indivíduos
não mais capazes de reconhecimento ao status de matéria física.
Por  esse  motivo,  a  promessa  dos  direitos  humanos  é  desde  sempre  uma  ameaça:  se  não  podem  ser
preenchidas  as  condições  tácitas  que  definem  na  modernidade  "o  ser  humano",  então  deve  faltar  o
reconhecimento. No entanto, para a maioria das pessoas, essas condições  tácitas não são mais preenchíveis
atualmente, mesmo que se esforcem até chegar à auto­renúncia, que consiste em acatar a submissão à forma
abstrata do dinheiro  e do direito. O  término de  sua existência,  na qualidade de  "danos  colaterais"  do mercado
mundial  ou  das  intervenções  da  polícia mundial,  é  previsível.  Essa  constatação  amarga  não  depõe  contra  os
motivos de muitos indivíduos e organizações que defendem as vítimas em nome dos direitos humanos e muitas
vezes demonstram coragem contra as  forças dominantes. Mas esses esforços assemelham­se ao  trabalho de
Sísifo,  se não  se  consegue  superar  a  forma paradoxal  e  negativa da  sociedade mundial,  que possui  poder  de
definição acerca de quem é de modo geral um "ser humano" e que, por conseguinte, define os direitos humanos.
Original  DIE  PARADOXIEN  DER  MENSCHENRECHTE  in  www.exit­online.org.  Publicado  na  Folha  de  São
Paulo  de  16.03.2003  com  o  título  Paradoxos  dos  direitos  humanos  e  tradução  de  Luis  Repa.  Publicado  em
ARCHIPEL, FORUM CIVIQUE EUROPÉEN, Junho 2003
http://www.exit­online.org/
http://obeco.planetaclix.pt/

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