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1 TEORIA GERAL DO DIREITO PENAL I DPM0111 Teoria Geral do Direito Penal I Prof. Doutor Pierpaolo Cruz Bottini 1º Semestre de 2013 – Sala 22 – Turma 186 Anotações: Isac Silveira da Costa (isac.costa@gmail.com) Versão: 2.0 (10/6/2013) Conteúdo 1. Introdução e Metodologia Dogmática. ........................................................................................................................................... 3 1.1. Perspectivas do Direito Penal .................................................................................................................................................. 3 1.2. Código Penal .................................................................................................................................................................................... 3 1.3. Antecedentes Históricos ............................................................................................................................................................ 3 1.4. Precursores da Escola Clássica ................................................................................................................................................ 4 2. Escolas do Direito Penal....................................................................................................................................................................... 5 2.1. A Escola Clássica: Contratualistas .......................................................................................................................................... 5 2.2. A Escola Clássica: Racionalismo Categórico ....................................................................................................................... 6 2.3. Crítica ao Direito Penal Categórico ........................................................................................................................................ 7 2.4. A Sociedade no Início do Século XX e o Positivismo Naturalista ............................................................................... 7 2.5. Crítica ao Positivismo Naturalista (Prevenção Especial) ............................................................................................. 8 2.6. Sistema Liszt‐Beling ..................................................................................................................................................................... 9 2.7. Neokantismo ................................................................................................................................................................................... 9 2.7.1. Teoria psicológico‐normativa da culpabilidade .................................................................................................. 10 2.8. Finalismo ....................................................................................................................................................................................... 10 2.9. Crítica ao Sistema Finalista .................................................................................................................................................... 12 2.10. Direito Penal Contemporâneo ......................................................................................................................................... 12 2.10.1. Sociedade de Risco ........................................................................................................................................................... 12 2.10.2. Politização do Judiciário ................................................................................................................................................ 13 2.10.3. Características do Direito Penal Contemporâneo ............................................................................................... 14 2.10.4. Escola de Frankfurt (Garantismo) ............................................................................................................................. 14 2.10.5. Abolicionismo .................................................................................................................................................................... 14 2.10.6. Funcionalismo ................................................................................................................................................................... 15 3. Teoria do Bem Jurídico Penal. ........................................................................................................................................................ 17 4. Limites do Direito Penal. .................................................................................................................................................................. 18 4.1. Critérios para definir a tolerância a ataques a bens jurídicos. ................................................................................ 18 4.1.1. Ofensividade ....................................................................................................................................................................... 18 4.1.2. Fragmentariedade ............................................................................................................................................................ 18 4.1.3. Culpabilidade ..................................................................................................................................................................... 18 4.1.4. Utilidade ............................................................................................................................................................................... 18 4.1.5. Subsidiariedade ................................................................................................................................................................. 19 4.2. Formas de proteção: proporcionalidade e legalidade. ............................................................................................... 19 2 4.2.1. Proporcionalidade ........................................................................................................................................................... 19 4.2.2. Legalidade ........................................................................................................................................................................... 20 5. Legalidade ............................................................................................................................................................................................... 20 5.1 Taxatividade ............................................................................................................................................................................ 20 5.2. Irretroatividade e lei penal no tempo ........................................................................................................................... 21 5.3. Territorialidade e lei penal no espaço .......................................................................................................................... 23 5.4. Interpretação da Lei Penal ..................................................................................................................................................... 24 6. Teoria do Delito: Tipicidade ............................................................................................................................................................ 25 6.1. Comportamento .......................................................................................................................................................................... 25 6.2. Resultado ....................................................................................................................................................................................... 26 6.3. Nexode Imputação .................................................................................................................................................................... 27 6.4. Pensamento clássico: teoria da equivalência de condições ...................................................................................... 27 6.5. Neokantismo: causalidade adequada. ............................................................................................................................... 28 6.6. Finalismo: Dolo ou Culpa ........................................................................................................................................................ 29 6.7. Funcionalismo: a Teoria da Imputação Objetiva ........................................................................................................... 29 6.7.1. Criação de risco de resultado ...................................................................................................................................... 30 6.7.2. Risco não permitido ........................................................................................................................................................ 30 6.7.3. Reflexão do risco não permitido criado no resultado ....................................................................................... 31 6.7.4. Inclusão do Resultado no Âmbito de Abrangência da Norma de Cuidado ............................................... 31 6.8. Adequação típica ........................................................................................................................................................................ 31 6.9. Elementos subjetivos da tipicidade: dolo e culpa ......................................................................................................... 33 6.9.1. Dolo ........................................................................................................................................................................................ 33 6.9.2. Culpa ...................................................................................................................................................................................... 34 3 1. Introdução e Metodologia Dogmática. Definições: crime e pena. Perspectivas do Direito Penal: legislação, dogmática, criminologia e política criminal. Código Penal: estrutura. Evolução histórica do pensamento dogmático. Faz‐se mister no estudo do direito a percepção dos interesses, da ideologia e da estrutura social que geram a regra jurídica. Os institutos jurídicos são um produto da evolução (ou involução) histórica. Alguns livros são fundamentais para o auxílio do desenvolvimento da própria ideologia, que será relevante no estudo dos diversos ramos do direito e na aplicação da lei: Raízes do Brasil e Casa Grande e Senzala, de Sérgio Buarque de Holanda. Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro. Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Afinal, o que é o direito penal? Trata‐se do direito do crime e da pena. Para a melhor compreensão destes conceitos (crime e pena), recorremos ao sociólogo alemão Niklas Luhmann, para o qual as expectativas sobre o comportamento dos demais indivíduos em uma sociedade é imprescindível para o seu adequado funcionamento. Estas expectativas precisam ser preservadas – diante de sua frustração diante da demonstração de anormalidade, deve haver reação. Neste sentido, o crime é todo comportamento considerado intolerável, segundo um critério estabelecido pela sociedade. A reação à frustração das expectativas é a pena, a qual deve ser proporcional à relevância da expectativa. Assim, a definição de crimes e penas depende dos valores da sociedade, que possuam relevância para a manutenção das expectativas e assegurem seu funcionamento. 1.1. Perspectivas do Direito Penal Conforme o objeto em foco, podemos ter as seguintes perspectivas no estudo do direito penal: Legislação: o foco é a lei. Dogmática: o foco é a interpretação da lei; por dogmática entende‐se a sistematização de conceitos, princípios, ideologias. Objetiva preencher lacunas e determinar conceitos, consiste em um estudo do direito positivo. Nesta perspectiva, temos diversas correntes de pensamento: causalista, finalista e da imputação objetiva. Criminologia: o foco é a realidade empírica; realiza‐se a observação empírica do impacto do crime e do criminoso da sociedade, com, por exemplo, coleta de dados sobre a incidência de determinados crimes após a vigência de determinada lei que criminalizou dada conduta ou tornou‐a mais gravosa. Política Criminal: o foco é obter uma proposta de aprimoramento do sistema, trata‐se de uma perspectiva propositiva. Ocupa‐se de valorar a legislação a partir dos fins a que ela se pretende, propondo leis alternativas. 1.2. Código Penal O Código Penal é o Decreto 2.848/1940, constituído de uma Parte Geral (arts. 1 a 120) e de uma Parte Especial. Além disso, há a Legislação Penal Especial, com leis esparsas tratando de matéria penal, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) e a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998). No site do Planalto, é possível visualizar a legislação de matéria criminal através do link: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao‐por‐assunto/crimes‐e‐seguranca‐publica‐teste#content 1.3. Antecedentes Históricos Arbitrariedade e desproporcionalidade das penas. Aspectos históricos. Legitimação teórica para a aplicação de penas. Contrato social versus direito natural. 4 Na pré‐história do direito penal, antes da Idade Média (até o século V), não havia uma abordagem sistematizada ou uma preocupação com uma legitimação teórica para a aplicação de penas, que eram arbitrárias e desproporcionais, com caráter de vingança e não como instrumento de manutenção da sociedade. Houve lapsos de racionalidade, como o Código de Hamurabi (século XIX a.C.) com a lei de talião (olho por olho, dente por dente), através da qual se estabelecia um limite para a punição aplicável ao indivíduo. Por mais bárbara que tal lei possa parecer, representou a primeira manifestação do princípio da proporcionalidade. Um dos aspectos que caracteriza a evolução de um povo é a separação entre os poderes político, jurídico e religioso. Com a evolução dos povos, temos novos desenvolvimentos em momentos históricos subsequentes. Na Idade Média ocorreu a fragmentação das fontes jurídicas pela pulverização do poder, o que deixaria de ser a regra apenas com a ascensão da burguesia na época moderna, com sua busca por uniformidade jurídica para viabilizar a concretização de seus negócios. No período medieval também tivemos lapsos de racionalidade como o Corpus Iuris Civilis (século VI) e o Código Visigodo (Século VII). Com o Absolutismo, ainda não havia grande legitimação teórica. Com a unificação do poder, há o início de uma sistematização legal, ainda incipiente, dentre as quais podemos citar as Ordenações Afonsinas (século XV), as Ordenações Manuelinas (século XVI) e as Ordenações Filipinas durante o domínio espanhol sobre Portugal. Nestas legislações, a pena ainda era demasiadamente desproporcional à conduta criminosa. No final do século XVIII, surgem teorias políticas sobre a legitimidade do exercício do poder, agora em bases distintas do direito divino da época absolutista. Neste sentido, destaca‐se a teoria do contrato social de Rousseau. Os homens se reúnem, cansados da guerra de todos contra todos. O Poder Legislativo passa a ter prevalência sobre os demais, dedicando‐se a um detalhamento preciso das regras jurídicas, dada a desconfiança dainterpretação pelos juízes (“o juiz é a boca da lei”). Por exemplo, a Lei da Boa Razão de 1769 proíbe o juiz de interpretar a lei em Portugal. Os crescentes interesses econômicos da burguesia demandavam maior estabilidade e segurança jurídica. Um cenário de instabilidade jurídico‐política poderia representar um controle arbitrário pela maioria. Em contraponto ao contrato social, surgem as teorias do direito natural, preconizando a existência de direitos assegurados a todo ser humano, independentes de vontade de poder, transcendendo a vontade humana. Tais direitos não poderiam ser objeto de limitação pela maioria. Neste sentido, o principal direito defendido era o de propriedade, o que representava a essência dos interesses burgueses. Surge a divergência entre os contratualistas e os naturalistas. 1.4. Precursores da Escola Clássica Surgimento de leis penais mais humanas. Busca pela legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas. A contribuição de Beccaria. No tocante ao direito penal, há rechaço às práticas absolutistas através de um movimento político por leis penais mais humanas. Em 1786 é abolida a pena de morte na Toscana. Surgem códigos penais mais racionais, como o Código da Baviera (1813) e o Código Criminal do Império no Brasil (1830). Para os contratualistas, a legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas estava no contrato social (fala‐se pela primeira vez na legitimidade do direito penal). A obra Dos Delitos e Das Penas (1764), de Cesare Beccaria, representa não uma doutrina do direito penal, mas um manifesto político que, de forma pioneira, enuncia o princípio da legalidade: “não há crime sem lei anterior que o defina”. Ainda, o princípio da proporcionalidade torna‐se essencial, uma vez que um sistema penal só seria eficaz se as penas fossem proporcionais aos crimes. O contrato social precisa ser racional. Na mesma linha de pensamento, há a obra de Mello Freire, Instituições do Direito Criminal Português (1794). É a manifestação do Iluminismo no direito penal. Até aquele momento, a legislação penal tinha raízes no pensamento medieval e respondia a uma concepção teocrática de poder. A crise política do século XVIII ocasionara um notável endurecimento da justiça penal, o que representava uma contradição com respeito às ideias filosóficas vigentes, que defendiam uma sociedade cujo ponto de partida era o indivíduo e sua liberdade. A obra de Beccaria é um livro crítico, que hoje seria incluído no contexto da Política Criminal. Seu ponto de partida é o contrato social. Suas críticas têm como base 5 o controle da arbitrariedade (pelo princípio da legalidade), a desvinculação entre delito e pecado e a consagração da humanização das penas. Estes princípios inspiraram o direito penal liberal: penas humanas, abolição da tortura, igualdade perante a lei e proporcionalidade entre delito e pena. 2. Escolas do Direito Penal. No século XIX há um embate filosófico. Para os contratualistas, o direito tem legitimidade no contrato social. Os categóricos têm receio de que tudo seja decidido pela maioria, há valores que são imanentes ao ser humano, a despeito da vontade da maioria: os direitos naturais. Este embate filosófico ocorre também no âmbito do direito penal. Recordando a teoria da prevenção geral negativa: “todos somos potenciais delinquentes, por isso vamos estabelecer penas que nos inibam no que diz respeito a cometer crimes”. 2.1. A Escola Clássica: Contratualistas Feuerbach: pena como coação psicológica. Prevenção geral negativa. Como vimos anteriormente, para os contratualistas, a legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas estava no contrato social. Aquele que rompe com o contrato social dá ao soberano a possibilidade de puni‐lo da forma como bem entender. O pensamento de Beccaria inspirou a Escola Clássica, essencialmente vinculada a Carmignani, Rossi e Carrara na Itália. Outros de seus expoentes foram Feuerbach e Bentham na Alemanha e Inglaterra, respectivamente. Na Escola Clássica encontramos contratualistas e jusnaturalistas. O método empregado pelos autores clássicos foi racionalista, abstrato e dedutivo. Buscam critérios válidos para qualquer tempo e qualquer lugar. Carrara considerava que o delito era a infração da lei do Estado, que deveria se pautar pela lei natural. Assim, não se trata de um direito positivo, mas de um direito ideal que deve ser elaborado com a ajuda da razão, do qual as leis estatais devem extrair seu conteúdo. As construções da Escola Clássica estão vinculadas à legalidade e a humanização da sanção penal, esta última consequência da valorização do homem perante o poder estatal, postulado fundamental do pensamento liberal. Havia divergência entre os clássicos quanto à finalidade da pena: Rossi defendia a pena como retribuição, enquanto Carmignani aspira a um fim claramente preventivo. Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach foi o autor do Código da Baviera de 1813 e desenvolveu a teoria da pena, estabelecendo uma fundamentação, uma justificativa para as ações do estado. Conforme a teoria da prevenção geral negativa, as penas servem para fazer com que as pessoas não cometam crimes – são uma ameaça, uma intimidação ao indivíduo. A pena, desta forma, tem função social e motivação política. É prevenção geral porque é endereçada à sociedade e não ao indivíduo (prevenção especial). Justapondo‐se à prevenção geral negativa (intimidação, coação psicológica), há a prevenção geral positiva, afirmando os valores da sociedade, tranquilizando seus membros no sentido de que há meios de prevenir o crime. Resumo do pensamento de Feuerbach: O fundamento da sociedade civil para garantir a todos a liberdade recíproca é a união da vontade e da energia dos indivíduos. O Estado é organizado por uma vontade conjunta e visa criar uma “condição jurídica”, isto é, a existência conjunta dos homens conforme a lei e o direito. Toda forma de lesão jurídica contradiz o objetivo do Estado, que possui o direito e o dever de criar institutos que possam impedir as lesões jurídicas. O Estado pode ter institutos de coação física com anterioridade ou posterioridade a uma lesão jurídica. Porém, a coação física é insuficiente para proteger direitos irreparáveis. Assim, deve existir outra forma de coação, que não pressuponha o pré‐conhecimento da lesão. Esta coação deve ser psicológica. As contravenções têm sua causa psicológica na sensualidade. O impulso sensual pode ser cancelado se o indivíduo souber que receberá um mal maior que a frustração de não satisfazer seu impulso. Para obter este efeito, deve haver uma lei que estabeleça a consequência para a conduta e a demonstração da sua relação com a realidade (aplicação efetiva da lei). 6 A razão pela qual existe a norma penal é a preservação da liberdade recíproca de todos mediante o cancelamento do impulso sensual dirigido às lesões jurídicas. O objetivo da cominação da pena é a intimidação de todos, enquanto potenciais protagonistas de lesões jurídicas. Objetivo de sua aplicação é dar fundamento efetivo à cominação legal. O fundamento jurídico da cominação da pena é sua conformidade com a liberdade jurídica do condenado. A razão que permite ao Estado cominar penalmente é a necessidade de assegurar o direito de todos. O fundamento jurídico da aplicação da pena é a prévia cominação legal. O mal, como consequência jurídica necessária, se vinculará a uma lesão jurídica determinada mediante uma lei. Kant viria a criticar o uso da pena como formade coação psicológica, apresenta o problema ético do utilitarismo penal. Sua visão foi ratificada pela história, em situações em que a ameaça de atrocidades cometidas pela maioria se concretizou e gerou situações de totalitarismo pela atuação do legislativo. 2.2. A Escola Clássica: Racionalismo Categórico Pena: intimidação ou retribuição? Contexto histórico: necessidade de segurança pela burguesia e desconfiança do Judiciário. O problema ético da função social da pena. A proposta de um cálculo racional para a retribuição justa pela prática de um crime. A busca racional do imperativo categórico e a elitização da produção jurídica. O racionalista categórico não vê segurança no contrato social. O direito penal pode virar injusto e desproporcional. É preciso encontrar outro fundamento para a idéia de crime e de pena. A sistemática do direito penal é desenvolvida através da filosofia kantiana. Kant desenvolve a noção de imperativo categórico: existem princípios e valores que têm eficácia e validade independente de sua utilidade concreta. Estes valores decorrem da ideia de justiça, os quais podem ou não ter alguma repercussão social. Em algum lugar fora do mundo físico, há o mundo metafísico. Neste mundo ideal, são inscritos todos os valores absolutos: os imperativos categóricos, tudo o que é bom, tudo o que é ruim, tudo o que é certo, tudo o que é errado. O conceito de justiça está inscrito neste plano ideal, onde também estão inscritas as consequências para quem pratica o mal. Estas noções sempre existiram e sempre existirão. Para Kant, o que vemos é mera sombra do conceito de justiça inscrito no mundo metafísico. Por isso, devemos sempre evoluir para nos aproximarmos cada vez mais destes valores absolutos. A legislação perfeita pode atravessar séculos e ser aplicada em todas as sociedades sem necessitar de mudanças. Como conhecer o que é justo? Através do método lógico‐racional. Como calcular a pena? Conforme um cálculo racional para a retribuição justa pela prática do crime. Esta determinação da pena não guarda relação com a vontade da maioria, apenas com uma discussão jurídica. O processo lógico‐racional é suficiente para se aproximar da legislação perfeita, buscando uma racionalidade cada vez maior que independe da sociedade e do momento histórico. Carrara, Rossi e Joaquim Augusto de Camargo foram defensores desta idéia. É a busca racional do imperativo categórico. No início do século XIX, havia dificuldade na definição das instituições, bem como traumas decorrentes do Terror. Formava‐se o império napoleônico. Estas circunstâncias, aliadas à oferta ideológica de estabilidade, estavam alinhadas com os interesses da burguesia, a maior interessada na estabilidade política e jurídica. Enquanto para os contratualistas a pena tinha caráter de intimidação, para os categóricos a pena era vista como uma retribuição. O uso do corpo e da liberdade da pessoa para uma função social não era ético. Uma pena ética seria apenas uma retribuição exata, justa, proporcional. A pena, assim, não teria finalidade alguma, não serve de ameaça ou de ressocialização. Era um mero castigo proporcional ao mal praticado – uma retribuição justa. Para que existe a pena? Porque não é possível abrir mão do direito penal, a um mal se aplica outro mal, mantendo o racionalismo categórico. A não retribuição a uma prática de injustiça é injusta. Para Kant, enfim, o direito penal não se presta a nenhum fim político. Esta noção oferece um direito penal estável, seguro. A alegoria da ilha: se todos os habitantes de uma ilha tomassem conhecimento de que viria uma onda dentro de alguns dias capaz de matar a todos ali viventes, ainda assim deveriam ser executados aqueles que tivessem 7 sido condenados à morte. Mesmo que todos fossem morrer dali a alguns dias, a execução da pena de morte dos condenados seria justa e necessária. A realização desta ideia resulta em uma aristocratização (quem define o que é justo?), uma elitização da produção jurídica. Os estudos acadêmicos acabam por ser responsáveis pela elaboração das leis penas, que virão a ser ratificadas pelo parlamento. Foge‐se, assim, da decisão da maioria. A recepção das ideias kantianas pode ser explicada fundamentalmente pelo momento histórico em que foram desenvolvidas: a necessidade de segurança pela burguesia e a desconfiança do Judiciário. O castigo só é aplicável a alguém que teve a opção de fazer o bem ou o mal, e escolheu livremente fazer o mal. A teoria da pena como retribuição tem que necessariamente pressupor a existência do livre arbítrio. Os imperativos categóricos pautaram o direito penal em todo o século XIX, superando o contratualismo. 2.3. Crítica ao Direito Penal Categórico O cálculo racional como instrumento da elite. Impossibilidade de demonstrar a existência dos valores absolutos. A questão do livre arbítrio. Em 1830, no meio deste embate jusfilosófico, o Brasil passa a ter o primeiro diploma penal, o Código Criminal do Império, escrito por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Trata‐se de um código penal humano, abrandando a legislação penal, praticamente abolindo a pena de morte e reduzindo as punições corporais. Ainda, é um código bastante categórico e racionalista, apresentando uma peculiaridade no que diz respeito à fixação das penas: para cada crime são cominadas três penas (uma mínima, uma média e uma máxima) – a possibilidade de o juiz fazer política com a pena é reduzida. O racionalismo categórico pode servir de instrumento pela elite – única habilitada a definir o que é justo – que pode utilizar o cálculo racional para definir como bom aquilo que lhe seja favorável e como mau o que seja desfavorável. Ainda, os valores absolutos podem não existir, podem ser artificialmente criados conforme os interesses de quem está apto a produzir o direito. É o problema da impossibilidade de demonstrar a existência dos valores absolutos. No começo do século XX, o caráter absoluto de vários valores passa a ser questionado. O desenvolvimento da ciência sugere que o método empírico pode ser mais eficaz que a mera presunção da existência de um valor absoluto e imutável. As crises sociais desafiam a capacidade de organização decorrente da pretensa segurança dos imperativos categóricos. É possível demonstrar que o ser humano efetivamente possui livre arbítrio? Sua presunção é fundamental para as ideias de Kant. É pouco provável que exista um mundo pré‐determinado com base em elementos estruturais de caráter totalmente aleatório: a Física Quântica pode algum dia demonstrar a existência do livre arbítrio. Porém, a ideia da pena como retribuição deixa de ter utilidade em função da incapacidade de demonstração do livre arbítrio. 2.4. A Sociedade no Início do Século XX e o Positivismo Naturalista Elementos das sociedades no início do século XX: urbanização, aumento da criminalidade, intensificação das reivindicações sociais, desenvolvimento científico (em especial as ciências naturais). É a crise do Estado liberal, incapaz de tratar de problemas concretos. Na filosofia, surge o positivismo naturalista. August Comte aponta a ineficácia dos imperativos categóricos para resolver problemas, louva o método empírico (com observações da realidade e catalogação sistemática dos fatos, nos brindando com uma ciência muito mais útil e eficaz) e sugere a adoção da abordagem das ciências naturais para a construção das ciências sociais. Leis permanentes, seguras e estáveis não seriam encontradas na metafísica, mas sim na realidade, observada, medida, catalogada. Os pensadores do direito penal começam a abandonar o racionalismo categórico e passam a adotar o positivismo naturalista penal. Lombroso, Ferri e Garofalo percebem que o contratosocial não pode fundamentar o direito penal porque suas bases são muito inseguras e constatam que os valores absolutos não existem. Se a função do direito penal é combater a criminalidade, muda‐se o foco de estudo: Quem é o 8 criminoso? Como ele se comporta? Qual a razão da prática do crime? A que classe social pertence? Tais questões serviram de base para a coleta de informações que viabilizariam a criação de um direito penal que seja eficaz. É com o positivismo naturalista, principalmente o italiano, que surge a ciência da Criminologia. Lombroso é o primeiro a falar sobre as condições da prisão e a possibilidade de reabilitação, que para ele reside num tratamento médico, já que o problema é biológico e a criminalidade, uma patologia. A abordagem da criminologia clássica, porém, permitia generalizações racistas ou voltadas para fins políticos distorcidos. Teve duração efêmera, sendo substituída logo após a Primeira Guerra Mundial. A conclusão é a de que o criminoso é um doente e a pena tem que ter um sentido de cura, de ressocialização. Cria‐se uma nova teoria da pena. Os criminosos são levados a cometer o crime por uma série de fatores biológicos e sociais que podem ser avaliados até antes de os crimes serem cometidos. A noção de crime e castigo pressupunha livre arbítrio. Diante da observação empírica, existe, na verdade, um determinismo: ninguém escolhe cometer um crime. O criminoso é um produto das circunstâncias, por isso a pena não pode ser um castigo, uma retribuição, deve ser um tratamento, uma medida de segurança. Temos a teoria da prevenção especial negativa (se irrecuperável, o indivíduo é retirado da sociedade) e a teoria da prevenção especial positiva (se recuperável, o indivíduo recebe tratamento) [NOTA: VERIFICAR AS ANOTAÇÕES SOBRE ESTAS TEORIAS NA BIBLIOGRAFIA]. A condenação é análoga à prescrição de um remédio. A dimensão da pena é dada pela ciência. O irrecuperável deve ser excluído da sociedade. Ainda, é possível ter uma medida pré‐delitiva com atuação preventiva em grupos que possuem propensão ao delito. Na Itália, desenvolveu‐se o Positivismo Criminológico, voltado ao estudo do delito e do delinquente como realidades naturais, caracterizado essencialmente pelo uso de um método experimental. Na Alemanha tivemos o Positivismo Jurídico, cujo centro de suas análises foi a norma jurídica, subdividindo‐se em Jurídico‐Penal, Jurídico‐Normativista e Jurídico‐Sociológico (Von Liszt). 2.5. Crítica ao Positivismo Naturalista (Prevenção Especial) A medida da pena. Determinação da ressocialização pela ciência. Problema ético: exigência de comportamento versus imposição de valores. Contradição: ressocialização através do isolamento. Reincidência. A ideia da pena como tratamento tem influência na nossa legislação até hoje. A noção de progressão de regime, embora muito criticada, é que o preso, após ser retirado da sociedade, possa ser reintegrado socialmente. A pena vista como possibilidade de ressocialização foi um legado direto do positivismo naturalista. Se a única função da pena é ressocializar, quais problemas isto pode representar? A segurança decorrente do racionalismo pode ser perdida quando a medida da pena deixa de ser a proporcionalidade, de ser calcada na gravidade da conduta e passa a ser determinada pela ciência como o tempo necessário para a ressocialização. Haveria capacidade científica, liberdade de ingerência e imparcialidade no estabelecimento da medida destas penas? A decisão de retorno à sociedade é jurídica, se a pena foi a merecida e não se houve cura ou não (resposta que a ciência não tem, inclusive reconhecendo sua incapacidade). Também há um problema na impossibilidade de demonstrar o determinismo positivista. Neste caso seria possível uma pena perpétua para um cleptomaníaco. Outro problema é o de crimes políticos. Uma vez passado o contexto político no qual os atos de criminosos políticos, tiranos e torturadores, a pena não pode ser aplicada a eles, pois senão teria a função de intimidar os demais, para que não voltassem a cometer o crime. Neste caso, teríamos não a prevenção especial, mas sim a prevenção geral (pena como ameaça). Há também um problema ético na prevenção especial. Consideremos um anarquista, dissociado, desagregado dos valores sociais, que não acredita na propriedade privada ou no Estado. Após ser preso, quando poderá ser ressocializado? Se, ao final da pena, ele ainda não crê na propriedade privada, não estaria curado, não teria introjetado os valores, não há como saber se ele manifestará sua crença a não ser se ele for reintegrado à sociedade. Não é possível impor o pensamento da sociedade a uma pessoa. É possível apenas exigir um comportamento. Observando‐se o índice de reincidência, constata‐se que a pena como tratamento é ineficaz. Há uma contradição em termos ao procurarmos ressocializar alguém isolando‐o da sociedade. A questão principal é a privação da liberdade. 9 2.6. Sistema Liszt‐Beling Limites à ciência pelo juiz e pelo legislador. Lei como garantia do criminoso. Teoria do delito: tipicidade, antijuridicidade (causa de justificação na lei) e culpabilidade (dolo, culpa, imputabilidade). O Código de 1890 de Batista Pereira foi duramente criticado, pois seu ideário não era positivista naturalista. Entre o final do século XIX e início do século XX, von Liszt desenvolve uma forma de pensar bastante original e importante para o sistema penal. Tratava‐se de um crítico do sistema penal racionalista, que se fundamentava em valores absolutos. Identificou que faltava alguma coisa no positivismo. Não era possível abrir mão da ciência penal em prol dos cientistas. O estabelecimento do limite da atuação das ciências naturais deveria ser estabelecido pelo juiz e pelo legislador. A criminologia e a realidade social são fundamentais para a análise da criminalidade e a prescrição de remédios. Tudo o que a ciência tem a dizer sobre o combate à criminalidade deve ser colocado na lei, que pode ser aplicada e interpretada sobre o réu, o criminoso, o doente. O juiz e o legislador podem evitar o abuso da ciência sobre a integridade física do criminoso. A lei é o limite infranqueável entre a política criminal e o réu. O código penal é a Carta Magna do Delinquente, sua garantia. Beling e Liszt formulam a teoria do delito. Até aquele momento o foco do estudo dos penalistas era a pena: diante de um delito temos uma consequência jurídica. Para eles, a função da pena é a ressocialização, mas procura responder uma pergunta anterior – o que é o delito? Procuram um conceito de crime aplicável a qualquer país, qualquer legislação. Quais as características de um comportamento que permitem chamá‐lo de crime? Tipicidade. O primeiro critério de análise é determinar se o comportamento está necessariamente descrito na lei, a despeito da motivação do legislador para incluí‐lo na lei. Para von Liszt, a tipicidade é algo neutro, isento de valoração (certo/errado, justo/injusto). Antijuridicidade. O segundo critério é se o ato pode ser considerado justo ou injusto (antijurídico), se existe ou não uma causa de justificação para aquele comportamento típico. Qual o critério de valoração do que é justo ou injusto? A causa de justificação deve ser encontrada na lei, tornando este critério eminentemente formal. Culpabilidade. O foco passa para o agente que praticou o ato jurídico e temos a teoria psicológica da culpabilidade – só há uma hipótese de escusar o sujeito da culpa: não haver dolo (intenção) e culpa (imprudência, negligência, imperícia). Não há nenhuma relação psicológicacom aquele resultado. Resta avaliar as consequências para o inimputável (criança, louco) – para o sistema não há culpabilidade, pois não têm desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não possuem capacidade de agir com dolo ou com culpa. A imputabilidade é um pressuposto do dolo ou da culpa. 2.7. Neokantismo Limitações da ciência. Necessidade de valoração para a compreensão da sociedade. Valores culturais como parâmetro de valoração: normatização do sistema penal. Dogmática: orientação para o intérprete da lei. Contribuições do neokantismo para a teoria do delito. Tipicidade como indício de antijuridicidade. Ausência de ofensividade social e o conceito de antijuridicidade material. O deslumbramento com a ciência que antecedeu a Primeira Guerra Mundial é substituído pelo ceticismo. Nota‐ se que o método científico é incapaz de fundamentar o que é bom ou ruim. A aparente neutralidade da ciência e de suas constatações não passa de uma análise ideologizada disfarçada. A ciência sem um sistema de valoração é incapaz de modelar a sociedade. [Recomendação de leitura: Zvevo – A Incosnciência de Zeno] Toda ciência tem uma carga de subjetividade. O cientista (o ser que estuda) coloca sua carga de valor, de ideias no objeto que estuda. Ocorre um resgate da autonomia das ciências humanas em termos de direito penal. Autores como Mezger sugerem que a fundamentação de um sistema penal provém de um sistema metafísico de imperativos categóricos ou de uma análise científica da realidade. Até então, a única forma de caracterização de algo como bom ou ruim era o sistema de Kant, no qual os valores provinham da metafísica (que vimos ser indemonstrável). O legislador utilizará os valores culturais de uma 10 sociedade para efetuar a valoração: normatização do sistema penal. A lei não é perfeita, tem lacunas. Portanto, é necessário criar uma ciência que orientará o intérprete da lei – a dogmática. Os valores mais intoleráveis de uma sociedade são trazidos para a lei e identificados como crime. A solução de dúvidas que venham a surgir na interpretação da lei residirá nos mesmos valores utilizados na criação da lei. Esta abordagem ajuda a enriquecer a teoria do delito, embora sua aplicação sem nenhum tipo de filtro tenha justificado as atrocidades cometidas pelo nazismo. Na tipicidade, há um indício de antijuricidade. A tipicidade é a ratio cognoscendi. Esta distinção tem implicações no processo penal: o ônus da prova é do réu para provar que o ato que cometeu tem justificação, uma vez que a tipicidade traz em si o indício de antijuridicidade. No sistema Liszt‐Beling o réu é absolvido mesmo se não comprovar a causa de justificação, mas no sistema neokantista não. A presunção de inocência existe para a caracterização da tipicidade, mas na caracterização da antijuridicidade, há presunção de culpa. Antijuridicidade: ausência de causa de justificação. A ausência de ofensividade social (ofensa aos valores sociais vigentes) também pode ser uma causa de justificação – esta pode ser supralegal. Temos a antijuridicidade formal (previsão legal da causa de jusitifcação, já prevista por von Liszt e Beling) e a antijuridicidade material (contribuição do neokantismo). Cada juiz entenderá da sua forma os valores sociais vigentes. 2.7.1. Teoria psicológico‐normativa da culpabilidade Imputabilidade, dolo normativo e inexigibilidade de conduta diversa. Por fim, analisemos a contribuição do neokantismo à discussão da culpabilidade (ponto de partida é a teoria psicológica da culpabilidade). Recordamos que o inimputável não tinha capacidade de ter dolo ou culpa. A interpretação pelo neokantismo modifica o conceito, indicando que há culpa ou dolo, mas não há capacidade de compreender a norma ou capacidade de ter autocontrole – não há desenvolvimento mental completo. Assim, o primeiro elemento da culpabilidade é a imputabilidade. Distinta é a situação do sujeito que não tem culpa e não tem dolo. O segundo elemento é o dolo normativo: só posso ter intenção se eu tiver ciência de que aquela conduta é ilícita – consciência e vontade da ilicitude. Aqui se inicia a discussão sobre o conhecimento ou não do direito (erro de direito). Exemplo: argentino que vende lança perfume, caçador que mata acidentalmente um amigo durante caçada à noite. A terceira hipótese de exclusão da culpabilidade para os neokantistas é a inexigibilidade de conduta diversa. Não haveria causa de justificação com base no estado de necessidade, pois, quando o perigo é uma agressão humana, a reação deve ser contra o agressor não contra um terceiro. Em suma, os neokantistas transformam culpabilidade em reprovação do comportamento. Trata‐se de um conceito normativo, que só pode ser concretizado como conhecimento dos valores culturais da sociedade. A agregação de valores normatiza a teoria do delito. A principal dificuldade do neokantismo é a constatação de quais são os valores culturais vigentes. O problema é agravado em sociedades pouco homogêneas e surge o risco de fundamentação com lógica inabalável que viabiliza sistemas de totalitarismo. A História comprovou que o neokantismo serviu oportunamente para fundamentar o nazismo. Com a indemonstrabilidade dos imperativos categóricos de Kant e a impossibilidade de constatação dos valores culturais no neokantismo, vê‐se que ambos os sistemas têm como falhas fundamentais o caráter etéreo das suas bases de valoração. 2.8. Finalismo Contexto histórico. Pensamento estruturalista. O papel do constitucionalismo e dos tratados universais de direitos humanos. A perspectiva ontológica de Welzel. Após a Segunda Guerra Mundial, surge a próxima escola penal, que perduraria até meados dos anos 60. Naquele momento, aumenta a desconfiança no Poder Legislativo, que perde legitimidade pela conivência com os horrores da guerra. O direito constitucional ganha enorme força, estabelecendo matérias que não são passíveis de legislação pelo Legislativo: regras que são hierarquicamente superiores às leis. Concretiza‐se a hierarquia das normas, com a Constituição em posição suprema e também surgem as cláusulas pétreas. Ainda, 11 os Estados se esforçam para assinar tratados internacionais, universais sobre direitos humanos. É o resgate de direitos imutáveis, transcendentais e universais, assemelhando‐se com os imperativos categóricos de Kant quando refutou o contrato social. As bases são as mesmas: a busca por segurança e estabilidade, agora com base no constitucionalismo e nos tratados universais de direitos humanos. Ganha força na filosofia o pensamento estruturalista. A base do raciocínio humano é a mesma em todo e qualquer povo. O mesmo aplica‐se à base das relações sociais e à base das linguagens. Lacan também oferece uma base psicológica de todo o ser humano que é a mesma. Há um esforço coletivo na tentativa de descoberta de elementos comuns em todas as sociedades. Estes elementos seriam, efetivamente, imperativos categóricos ancorados na realidade, na natureza das coisas e não na metafísica. O estruturalismo contribuiu para o surgimento da escola penal do finalismo, cujo principal expoente foi Welzel. No que consiste o finalismo? É preciso ancorar o direito penal em algo estável. Os imperativos categóricos não existem. Os valores culturais são muito instáveis. Welzel decidiu ancorar o direito penal na natureza das coisas, procurando achar o que há em comum em todos os seres humanos. Sua construção é a partir de uma perspectiva ontológica, na visão do homem como ele é e não em um homem idealizado. É o foco nas estruturas lógico‐objetivas do homem, de todas as épocas, de todos os povos. Esta natureza deveservir de parâmetro e referência para o legislador. É a estrutura comum a todos os ordenamentos jurídicos. Este pensamento revoluciona a teoria do delito. A quem se dirige a norma penal? Ao ser humano em geral, pela voluntariedade do seu comportamento, capacidade de dirigir a sua ação. Conclui que a norma penal só pode se dirigir a comportamentos humanos voluntários e direcionados a uma finalidade (não pode se dirigir a comportamentos sem dolo e sem culpa). Assim como a norma não pode se dirigir a elementos da natureza, não pode determinar que não se pode causar a morte de alguém sem dolo ou sem culpa, pois seria igualmente inútil – o comportamento não pode ser direcionado, uma tragédia não é passível de proibição. O legislador só pode proibir ações finais, com finalidade de causar resultado danoso ou então fruto de imprudência. Impacto do pensamento de Welzel na Teoria do Delito. Inclusão de dolo e culpa na tipicidade: aspecto objetivo e subjetivo. Dolo natural. Tipicidade é comportamento descrito na lei como crime. Um homicídio sem dolo e sem culpa não é um comportamento descrito na lei como crime da mesma forma como se subentende que o “não matar” não se aplica a um leão. A não previsão legal explícita de dolo ou culpa não contradiz a natureza das coisas: não faria sentido existir esta previsão explícita, pois só é possível proibir o que é proibível. É necessário que seja uma ação final, intencional ou, ao menos, imprudente. O dolo e a culpa são retirados da culpabilidade e passam a fazer parte do tipo penal. A ação humana que não é dolosa nem culposa não é proibível pela norma. Assim a tipicidade tem dois aspectos: objetivo e subjetivo. O observador externo faz a análise objetiva, verificando a norma penal. Na análise subjetiva, busca‐se determinar se o sujeito teve dolo ou culpa. Se não há dolo ou culpa, não há crime. O dolo é a vontade do resultado, é a intenção de praticar aquele fato, a despeito do conhecimento do indivíduo acerca da licitude ou não da conduta. Para o finalismo, o dolo é diverso do dolo normativo do neokantismo (vontade e consciência da ilicitude), consistindo apenas na vontade – é o dolo natural. Culpabilidade. Quais as hipóteses pelas quais alguém que praticou um injusto penal (ato típico e antijurídico) é desculpado? A imputabillidade permanece, assim como no neokantismo. Dolo e culpa não são mais causas de desculpa, passando a excluir a tipicidade. Resta a potencial consciência do ilícito. A potencial consciência difere do conhecimento da lei – desconhecer a lei não exonera o sujeito da responsabilidade – pois, além de não conhecer a lei, o sujeito não possui nenhum motivo para suspeitar de que está praticando algo errado, por mais diligente que seja. Tais hipóteses são raras, mas existem. Por exemplo, no Direito Empresarial, uma empresa que contrata um parecer de um departamento jurídico que acaba por aprovar uma atividade ilícita. Neste caso, exclui‐se a culpabilidade (erro de proibição1). 1 CP – Erro sobre a ilicitude do fato: Art. 21 ‐ O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí‐la de um sexto a um terço. 12 Por fim, a terceira e última hipótese de exclusão da culpabilidade é a inexigibilidade de conduta diversa. Há aqui uma pequena diferença, mas fundamental. No juízo neokantista, buscavam‐se os valores culturais para decidir. Welzel não se baseia nos valores culturais e propõe que a decisão sobre se havia inexigibilidade ou não deve ser fundado em algo estável em todas as culturas e em todos os tempos – define‐se como critério o poder de atuar de outro modo. Diante do caso concreto, pondera‐se sobre se o indivíduo poderia, de fato, se comportar de maneira diversa. É preciso presumir uma liberdade de opção de ação, com uma alternativa que não violaria a norma. Tornamos ao problema de provar a existência do livre arbítrio. É possível encontrar uma justificativa determinística e causal para qualquer comportamento. A parte geral do Código Penal, que trata da teoria do delito e que reformada em 1984, é essencialmente finalista. 2.9. Crítica ao Sistema Finalista A fundamentação da culpabilidade em um livre arbítrio indemonstrável é uma falha significativa. Ainda, todo o pensamento de Welzel baseia‐se no fato de que a norma penal só pode proibir comportamentos humanos finais. Há um tipo de imprudência que não é comportamento final, mas é criminalizada pela norma penal finalista. Exemplo: alguém que acelera um carro sem perceber que excedeu o limite de velocidade e atropela alguém – pela norma brasileira é um homicídio culposo, mas não houve intenção de ser imprudente. Outro exemplo é o de alguém que dirige um carro emprestado e desconhece se há algum problema no freio, e, por conta disso, acaba por ser responsável por um acidente. Nestes casos não há uma ação final na acepção de Welzel, e é necessário recorrer a um pensamento diferente a fim de justificar a imprudência inconsciente. 2.10. Direito Penal Contemporâneo 2.10.1. Sociedade de Risco Teoria da Sociedade de Risco. Características dos riscos contemporâneos. Procedência humana. Potencial lesivo, ação preventiva e crimes de perigo. Democratização do risco. Sensação da proximidade do risco. Paradoxo do risco. Legislador como gestor de riscos. Politização do Judiciário. A compreensão da sociedade contemporânea recorre à Sociologia. A Teoria da Sociedade de Risco, de Ulrich Beck e Giddens, oferece as bases que nos permitem entender as transformações pelas quais passa o Direito Penal. A sociedade em que vivemos hoje é caracterizada como uma sociedade de risco (cf. Balman). Temos uma sociedade com alto avanço tecnológico e um sistema econômico de livre concorrência – os agentes, para se manterem no mercado, precisam inovar incessantemente produzindo produtos mais baratos com menor custo e maior qualidade, utilizando‐se para isto de uma extrema evolução da ciência. Paradoxalmente, a mesma ciência não é capaz de desenvolver instrumentos que permitam medir a periculosidade destes novos produtos. Vivemos uma sensação de proximidade de risco muito grande. Por conta da heterogeneidade do desenvolvimento científico, oferecendo produtos sem oferecer uma métrica de periculosidade, há a sensação de que vivemos um risco muito maior ao qual estamos efetivamente submetidos. Este é o pano de fundo para o desenvolvimento do direito penal contemporâneo. Quais as características dos riscos contemporâneos? Os principais riscos aos quais nossos avós estavam submetidos e que difere dos riscos atuais eram, por exemplo, as doenças (menor expectativa de vida) e guerras. Atualmente, um dos maiores riscos que corremos é o de sermos atropelados. Hodiernamente, a fonte do risco é o próprio ser humano, produzido na própria sociedade. A procedência humana é a primeira grande característica dos riscos contemporâneos: agressão, acidentes de trânsito, dano ambiental, etc. O direito penal não era capaz de gerenciar um risco do passado. Porém, pela procedência humana dos riscos contemporâneos, é possível produzir normas penais que possam mitigá‐los. O direito penal, assim, passa a ser visto como um instrumento de gestão de risco, sendo expandido para âmbitos nos quais não era considerado anteriormente. Surge a tendência de ampliação do direito penal. Parágrafo único ‐ Considera‐se evitável o erro se o agenteatua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. 13 Há outra característica dos riscos de procedência humana contemporâneos que diferem dos riscos de igual natureza em épocas remotas – furto, roubo, agressão, homicídio, entre outros –, todos com poder de destruição muito pequenos quando comparados aos riscos de hoje como, por exemplo, a possibilidade de destruição de regiões inteiras por acidentes nucleares ou outras formas de dano ambiental. Assim, esta segunda característica é a magnitude do potencial lesivo. A partir do momento em que o resultado lesivo passa a ser altamente destrutivo, insuportável, intolerável, o direito penal passa a tentar agir preventivamente. Busca‐se a antecipação da punição do comportamento, sem esperar o resultado. Surgem os crimes de perigo. Simples comportamentos, independentemente de terem gerado resultados, passam a ser criminalizados. O direito penal não se limita mais aos crimes de resultado. Porte ilegal de arma, condução de veículo estando embriagado... crimes de resultado passam a ser substituídos por crimes de perigo, pois a sociedade está cada vez menos tolerantes a resultados lesivos. A terceira característica dos riscos contemporâneos tem nautreza política: os novos riscos são democráticos em relação aos riscos anteriores. Por exemplo, num cenário de risco ambiental, quem produzia e se beneficia do risco conseguia se distanciar deste no caso de instalação de uma indústria altamente poluidora. Atualmente, ocorreu uma democratização relativa destes riscos, impossibilitando este distanciamento – é efeito bumerangue de Beck. A classe econômica dominante, produtora de um discurso político mais forte, se sente incomodada com os novos riscos, passando a desenvolver um discurso pela redução destes riscos. Democratiza‐se com o risco, o discurso pela sua redução. O efeito imediato deste discurso é o reforço do direito penal, com sua expansão. Surgem as leis de crimes ambientais. O Poder Legislativo é atingido de forma muito mais forte, passando a responder de forma mais rápida a esta demanda. A quarta característica mais importante é o efeito de intensificação do risco produzida pelos meios de comunicação de massa (midiáticos). Passa a ser possível vivenciar o risco sem estar fisicamente próximo dele. Surge, ainda, o paradoxo do risco: ao mesmo tempo em que a sociedade clama pela redução do risco, não é capaz de abrir mão do conforto produzido por este mesmo risco. O conforto provém de uma atividade cujos resultados representam um risco obscuro. Vivemos uma espécie de esquizofrenia social, não sabendo o que fazer com os novos riscos. Há uma brutal dificuldade em limitar a tolerância ao risco e o grau de descarte do conforto que possuímos. O paradoxo do risco traz uma série de consequências para a organização política e jurídica da sociedade. Alguém deve estabelecer a linha entre o risco permitido e o não permitido: o gestor de riscos. Há vários gestores de riscos, públicos e privados, na sociedade, sendo que o gestor primário de riscos no modelo político é o legislador, através da criação da lei. 2.10.2. Politização do Judiciário Em uma sociedade plural e heterogênea, há grande dificuldade em se chegar a um consenso. A dificuldade de obtenção de quorum para a aprovação de um texto legal requer concessões, resultando em um texto cada vez mais abrangente e de ampla interpretação. Assim, passa a ser mais comum a existência de textos legais mais imprecisos e abrangentes. Um exemplo não ligado ao direito penal: discussão do descanso semanal remunerado do trabalhador – partidos de esquerda queriam o descanso aos domingos, partidos mais ligados aos sindicatos patronais queriam que o dia fosse deliberação de assembleias coletivas. O consenso obtido foi “o descanso será preferencialmente aos domingos”. Assim, o texto comporta as duas interpretações. Este resultado (possibilidade de múltiplas interpretações) tem um efeito colateral importante: o ônus político de uma decisão final é transferido ao Judiciário, que passa a ficar cada vez mais politizado. Outro exemplo: o legislativo abriu mão de definir o que é gerir de forma temerária uma instituição financeira. A edição de normas em branco, carentes de conteúdo, transfere ao Executivo o encargo de definir o sentido destas normas. A função política de preencher o conteúdo da norma, assim, é transferida do Legislativo para o Executivo e o Judiciário. Em particular, este último passa a estar mais envolvido nas decisões políticas fundamentais da sociedade, que deveriam estar sendo tratadas pelo Legislativo. O problema central da politização do Judiciário é a sua falta de legitimidade, pois seus membros não são eleitos. [Recomendação de Leitura: Luís Moreira – A Politização do Judiciário] 14 O Judiciário tenta suprir este déficit de legitimidade pelo que Haberle chama de sociedade aberta dos intérpretes da constituição – as decisões políticas se disfarçam como interpretações da constituição. A Corte Constitucional convoca a sociedade civil para a discussão. Isto é feito, por exemplo, através de audiências públicas. Outro instituto, talvez ainda mais usado, é o amicus curiae – entidades da sociedade civil com capacidade intelectual, conteúdo para contribuir com a discussão em pauta. 2.10.3. Características do Direito Penal Contemporâneo Neste contexto, o Legislador começa a produzir uma legislação penal diferente da que existia até então. Os tipos penais definidos a partir dos anos 80 são peculiares, sendo caracterizados por aspectos como: Prevenção: a maior parte dos crimes passa a ser crimes de perigo. Os crimes de resultado lesivo perdem espaço. Imprecisão: as normas penais deixam de ser taxativas, passam a ser mais imprecisas – em termos técnicos, isto significa a produção cada vez maior de tipos penais abertos ou normas penais em branco, usando expressões como probidade, honra – delegam a outras pessoas a definição do crime. Proteção de bens jurídicos coletivos em detrimento dos individuais: os novos tipos penais passam a proteger o meio ambiente, o trânsito, a ordem econômica, a livre concorrência – cada vez menos há uma vítima identificável. Direito penal expansivo: a partir do momento em que se constata que os principais riscos são produzidos pelo homem, o direito penal passa a ser gestor de riscos, embora, em alguns momentos, o legislador tenha uma postura de despenalização. Diante deste novo direito penal, o que irá fazer a ciência jurídica – as escolas penais? No estudo das escolas penais, a partir do modelo de sociedade, procuramos entender como a escola penal tenta se adequar aquela sociedade. Quais as propostas de construção de um sistema penal para a sociedade de risco? O direito penal deve ou não deve se tornar um gestor de riscos da sociedade? Está é a questão que as escolas penais a partir dos anos 70 procura responder. 2.10.4. Escola de Frankfurt (Garantismo) É um apanhado de vários professores alemães, não se confunde com a escola filosófica de Frankfurt (desdobramento do marxismo). Estes professores não se reconhecem enquanto Escola de Frankfurt, alegando diferenças no seu pensamento, mas, para fins didáticos, são agrupados sob um mesmo rótulo. Destacam‐se: Hassemer e Naucke. O direito penal não é um instrumento idôneo para gerir os riscos da sociedade. Só se destina a resolver coisas muito claras: roubo, estupro, homicídio. Não adianta tipificar crimes de perigo, normas imprecisas, proteger direitos coletivos. São se trata de inadmissibilidade deste caráter, mas sim de inadequaçãoda expansão do direito penal para fazer frente a todos os riscos da sociedade. A função ideal do direito penal é o seu “núcleo duro” – os crimes de resultado descritos com precisão. O direito penal deve ser mínimo. É necessário um novo ramo do direito – direito de intervenção –, capaz de fixar, de uma maneira mais fluida, mais imprecisa e dinâmica deve tratar os riscos. Reparação de dano, multa, impedimentos. É uma espécie de direito administrativo, pois não tem pena de prisão – a agressividade do direito penal se restringe aos crimes tradicionais. A principal crítica a esta abordagem está relacionada ao seu corte social, pois, partindo do pressuposto de que os crimes tradicionais são realizados por sujeitos de classes sociais mais baixas, afasta‐se a agressividade inerente ao direito penal das pessoas de classes mais altas, mais propensas a cometerem crimes de perigo. Gracia Martin (Prolegômenos Para a Luta da Modernização do Direito Penal) enfatiza este corte social, criticando o pensamento da Escola de Frankfurt. 2.10.5. Abolicionismo 15 Sua proposta é abolir o direito penal. Seus maiores representantes são Hulsman e Nils Christie. A discussão do direito penal é reducionista (não consegue conhecer o que é crime), porque não traduz as condições sociais que resultaram naquela situação. É extremamente maniqueísta e superficial, não resolve a raiz do conflito. A função do direito penal é proteger um bem jurídico, por isso, é inútil e contraproducente, pois contribui para lesionar outros bens jurídicos na sua aplicação. Os efeitos colaterais podem ser mais graves que o benefício trazido pelo remédio. Por último, o direito penal não cumpre nenhuma das funcionalidades da pena – ameaçar (não é possível provar que ameaça), ressocializar (é possível provar que não ressocializa). Este instrumento reducionista e contraproducente só existe para estigmatizar uma parte da população e deixá‐ la à margem da sociedade com alguma justificativa. Até que ponto não é o direito penal que produz o criminoso? O crime é algo ontológico, pertence ao mundo do dever‐ser e não do ser. O problema do abolicionismo é propositivo: não apresenta uma solução. Ainda, o direito penal tem uma função de satisfação da ira popular – institucionaliza o sentimento de vingança. Abolir o direito penal seria eliminar uma garantia do criminoso. 2.10.6. Funcionalismo É uma tentativa original de construção de um sistema penal. Todas as escolas penais tentam construir um sistema, definir as fontes do legislador e do intérprete. Fontes vistas até aqui: Direito clássico: valores absolutos e metafísicos. Neokantismo: valores culturais. Finalismo: natureza das coisas – identificação da estrutura igual em todos os direitos penais de todo o mundo – ações finais do ser humano. O funcionalismo parte de uma negação: os valores absolutos (direito penal clássico, metafísico) e o finalismo não funcionam. Nada que é absoluto e imutável é humano – não existem valores absolutos nem no reino da metafísica nem na natureza das coisas. Ainda, crimes culposos não são crimes finais. Pessoas jurídicas, desprovidas de intenção, passam a ser punidas. O finalismo é falacioso. O fundamento para a construção do sistema penal é a sociedade – valores relativos, como os culturais. Assim, a base do funcionalismo é o neokantismo. Os valores sociais são de difícil apreensão, são intangíveis – por isso a fundamentação do sistema deve ser os valores funcionais – tudo aquilo que é importante para a sociedade continuar funcionando. Hoje, a constituição é o ponto de partida para examinar como a sociedade funciona. O direito penal não muda a sociedade, ele a acompanha – o que a muda é a política. Tem a função única de manter o status quo. Usualmente, os fatores de mudança de uma sociedade são crimes, são valores desfuncionais. Uma vez transformada a sociedade, são descriminalizados. Valores como liberdade de expressão, pluralismo, proibição do racismo, são valores necessários para o funcionamento da sociedade. Os valores sociais são o ponto de partida para a elaboração da lei e sua interpretação. São a base da dogmática penal. Há dois tipos de funcionalismo: o radical (Jakobs) e o moderado (ou teleológico, Roxin). Funcionalismo radical (Jakobs). Os principais pontos de funcionamento da sociedade devem ser identificados, para que possa ser construída a legislação e a dogmática. Recorre ao pensamento do sociólogo Niklas Luhmann, onde a sociedade é conhecida pelas expectativas de comportamento dos agentes sociais. Há expectativas que, se forem reiteradamente frustradas, trazem uma perturbação social, que pode comprometer o funcionamento da sociedade. Neste sentido, o direito penal tem função de proteger expectativas de comportamento cuja frustração gere uma disfuncionalidade. Apesar de sua frustração, as expectativas devem continuar válidas. A ideia não é ameaçar, mas reforçar a validade de expectativas. Crítica: os valores funcionais são tão imprecisos quanto os valores culturais. Não há garantia de que sejam democráticos, racionais, não impedem um regime totalitário. A perspectiva funcional não está dada a um modelo funcional determinado – falar que o direito penal é funcional não diz nada sobre seu conteúdo. Não há compromisso com uma sociedade adequada – esta é definida pela política. Qualquer tipo de direito penal pode 16 ser legitimado. Exemplo: direito penal do inimigo – poucas garantias para as pessoas que não querem pertencer à sociedade, que querem disfuncionalizá‐la – por conta da ameaça do terrorismo. Funcionalismo teleológico. Roxin vai além do pensamento de Jakobs, não se conforma com o direito penal para qualquer tipo de sociedade. Concretiza sua opção política pelo Estado Democrático de Direito. O único direito penal legítimo é o deste tipo de sociedade. Inicia‐se a busca pelos valores funcionais do Estado Democrático de Direito, caracterizado essencialmente pela proteção à dignidade da pessoa humana – liberdade de autodeterminação (o espaço de um indivíduo vai até onde começa o espaço do outro). Assim, a função do direito penal não é a proteção de expectativas, mas sim do espaço de dignidade. A função do direito penal é a proteção de todos os bens jurídicos relevantes para garantir a dignidade da pessoa humana. Exemplos: vida, propriedade, honra, liberdade de religião, liberdade de expressão, integridade física. Não se admite um direito penal simbólico, pois a necessidade de segurança pode ser imensa a ponto de entrar na esfera de dignidade dos indivíduos. Quando colocado em funcionamento, o direito penal é acompanhado do cerceamento da liberdade. Há um paradoxo: o principal instrumento para garantir a dignidade das pessoas é excludente de dignidade. Inicia‐se um processo dialético, uma contraposição/tensão/conflito constante, buscando a máxima proteção da dignidade humana e uma mínima restrição à dignidade humana (efeito colateral do direito penal). É o máximo de proteção com o mínimo de custo. É a política criminal, o pensamento constante do legislador e do intérprete para alcançar o equilíbrio na referida tensão dialética. Surge uma teoria da pena baseada nas anteriores – a aplicação da pena tem três fases (uma ideia fragmentada, com limitações internas): A previsão legal da pena pelo legislador (função de prevenção geral – ameaça e tranquilização), sendo que tem que ser proporcional à gravidade do crime (teoria da retribuição como limite da pena). A determinação da pena pelo juglador, aplicada ao criminoso no caso concreto é a retribuição. A execução da pena tem a prevalência da prevenção especial, com a tentativa de ressocialização dentro do tempo estipulado para a pena.A retribuição limita a prevenção especial. Matéria para a prova bimestral: Capítulos 1, 3, 4, 5, 12 e 13 do Tratado de Direito Penal do Cezar Roberto Bittencourt. 17 3. Teoria do Bem Jurídico Penal. Função do direito penal. A proteção de bens jurídicos que mantenham a sociedade em funcionamento (Jakobs) e que sejam relevantes para a autodeterminação das pessoas, excluindo comportamentos que não tenham impacto para a dignidade da pessoa humana. Bens jurídicos individuais e coletivos. Natureza jurídica dos bens coletivos: autonomia ou referencial antropológico? A questão da criminalização dos maus tratos aos animais e do incesto. Relevância da teoria do bem jurídico: referencial crítico, sistematização da legislação penal e análise de proporcionalidade. Distinção entre bem jurídico e objeto jurídico. Qual a função do direito penal? Esta é a primeira pergunta da dogmática penal. Partimos da premissa funcionalista: a função do direito penal é manter o funcionamento da sociedade (ideia de Jakobs)2. A sociedade brasileira é um Estado Democrático de Direito, que protege a dignidade humana (liberdade de autodeterminação das pessoas) e o pluralismo. É preciso proteger bens jurídicos fundamentais que mantenham esta sociedade funcionando e que sejam relevantes para a autodeterminação das pessoas. Um bem jurídico sempre terá um referente antropológico. A Constituição é o ponto de partida para informar valores importantes para a dignidade da pessoa humana. Porém é um rol exemplificativo destes valores. Será um conceito material de bem jurídico, mesmo estando fora da Constituição, seja, pelo ponto de vista do legislador, fundamental para a dignidade da pessoa humana, desde que esta relevância possa ser demonstrada. Embora abrangente, a noção de bem jurídico permite que sejam excluídos do direito penal (critério negativo) uma série de comportamentos que não tenham nenhum impacto para a dignidade da pessoa humana. Moral, religião e política não são passíveis de tutela pelo direito penal. A ética é intersubjetiva, compartilhada pelos indivíduos. A moral é individual, são valores que não precisam ser compartilhados para ter vigência. Qualquer comportamento do outro que esteja dentro de sua esfera de privacidade não afeta o direito penal. Existem dois tipos de bens jurídicos: individuais (um titular perfeitamente identificado) e coletivos (não têm um titular claramente identificado, pode ser um grupo ou comunidade ou a sociedade inteira). Há duas propostas sobre a natureza jurídica dos bens coletivos: há os que pregam a sua completa autonomia e os que defendem o bem jurídico com referente antropológico. Os primeiros afirmam que o bem jurídico coletivo existe por si, é protegido por ele mesmo, independentemente de outra consideração, não por sua importância para o ser humano. Não há necessidade de identificar qualquer interesse humano por trás, ainda que indiretamente. A outra corrente defende que o bem jurídico é protegido porque, mediata ou imediatamente, está relacionado a um interesse humano. Essa diferenciação, aparentemente de natureza acadêmica, é fundamental na prática. Se não é adotado um referencial antropológico, é possível ocorrer a espiritualização do bem jurídico (mais amplo, etéreo, vago). Caso contrário, a mensagem para o legislador é mais clara: é necessário justificar por que o bem jurídico é relevante para o ser humano para que seja protegido. A criminalização dos maus tratos aos animais: caso fosse adotado o referencial antropológico, seria necessário utilizar o direito penal para punir quem tem clandestinamente um casal de micos‐leões dourados e os maltrata? Tal conduta seria lesiva à dignidade da pessoa humana? Esta questão suscita a discussão quanto à crise que atravessamos hoje no que diz respeito ao conceito de bem jurídico. Em diversos países há discussão quanto à proteção de bens jurídicos que não afetam a dignidade da pessoa humana. Em especial, a criminalização de maus tratos aos animais e do incesto são pontos relevantes nesta discussão. Roxin tentou por muito tempo justificar o interesse humano na proteção dos animais: a punição parte da base de que o legislador criou uma espécie de solidariedade entre as criaturas, elevando os animais a outro patamar. Posteriormente, Roxin admitiu que existem crimes que não têm um bem jurídico com referente antropológico. A sua teoria, então, é colocada em xeque. Na Alemanha o incesto é considerado crime e, após longa discussão na corte constitucional alemã, teve o bem jurídico fundamentado no interesse de gerações vindouras (possibilidade de doença dos descendentes). A teoria do bem jurídico é relevante porque fornece um referencial crítico para a legislação. Ainda, é importante para realizar uma sistematização da legislação penal. A partir da ideia de bem jurídico, é possível fazer uma análise de proporcionalidade das penas (ex. o bem jurídico “vida” é, em princípio, mais relevante que o “patrimônio”, com respeito à dignidade da pessoa humana). 2 Para Welzel, a função do direito penal é introjetar valores nas pessoas, sendo, portanto, uma função pedagógica. 18 Questão terminológica: bem jurídico (geral) x objeto jurídico (concreto, materialização do bem jurídico). 4. Limites do Direito Penal. 4.1. Critérios para definir a tolerância a ataques a bens jurídicos. Tolerância a ataques a bens jurídicos. A tensão dialética entre o máximo de proteção e o mínimo de restrição à dignidade da pessoa humana. Ofensividade (sem prevenção excessiva). Fragmentariedade (proteção fragmentada e não absoluta, comportamentos humanos e dissensuais). Culpabilidade (dolo ou imprudência). Utilidade (eficácia na proteção do bem jurídico). Subsidiariedade (ultima ratio). Princípios como mensagem ao legislador sobre conteúdo a ser tratado pelo direito penal. Excessos no direito penal podem ser lesivos à dignidade da pessoa humana, exatamente aquilo que ele deveria proteger. Nesta linha dialética (máximo de proteção com o mínimo de restrição), é preciso estabelecer os limites do direito penal. A proteção de bens jurídicos fundamentais à dignidade da pessoa humana é o ponto de partida para a definição dos limites do direito penal. Um indivíduo que deixa de pagar uma dívida comete um crime? Há alguns ataques a bens jurídicos que são toleráveis, enquanto outros são intoleráveis. Assim, a questão passa a ser: quais são os ataques a bens jurídicos que chamam a atenção do direito penal? Em segundo lugar, quais as formas de proteção aplicáveis? Neste contexto, discutiremos os seguintes princípios: ofensividade, fragmentariedade, culpabilidade, utilidade e subsidiariedade. Com respeito às formas de proteção discutiremos os princípios da proporcionalidade e legalidade. Estes princípios são mensagens ao legislador com respeito a quais condutas deverão ser foco do direito penal. 4.1.1. Ofensividade Só são passíveis de criminalização condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico. A ideia é evitar um direito penal que faça futurologia, que adote medidas excessivamente preventivas, antecipando demais a punição. Quão próximo o comportamento está de lesionar um bem jurídico? É um critério de ponderação. 4.1.2. Fragmentariedade Será que todo comportamento que lesiona um bem jurídico é objeto do direito penal? O direito penal só deve ser utilizado para evitar comportamentos humanos e dissensuais (sem a vontade do titular do bem jurídico), isto é, intoleráveis. O bem jurídico não é protegido de maneira absoluta, mas sim de maneira fragmentada – apenas ataques intoleráveis. No caso do bem jurídico
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