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O Liberalismo Europeu Leitura obrigatória: LASKI, Harold. O Liberalismo Europeu. Editora Mestre Jou: São Paulo, 1ª edição, 1973, pp. 09-21 (13 páginas) e pp.103-116 (14 páginas). (Total de 27 páginas). MOISÉS, José Álvaro - Cidadania, confiança e instituições democráticas, in Lua Nova, São Paulo, no. 65:71-94, 2005. Disponível na internet: http://www.usp.br/nupps/artigos/moises_artigo1.pdf. CARVALHO, José Murilo de – Cidadania Tipos e Percursos. Estudos históricos, Rio de Janeiro, no. 18, 1996. Disponível na internet: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/199.pdf Entre a Reforma da Revolução Francesa uma nova classe ascende ao poder e reclama para si os direitos à participação do Estado. Nesse contexto ocorrem diversas mudanças significativas: 1. Os privilégios resultantes do status e convertem-se em benefícios aos proprietários de terras; 2. O novo alicerce da sociedade passa a ser o contrato; 3. Ganha espaço a pluralidade de crenças e até o ceticismo. As novas Igrejas não mais reconhecem a supremacia de Roma; 4. A soberania nacional adquire poder concreto e irresistível; 5. O controle político passa a ser compartilhado com os proprietários de bens móveis; 6. As profissões liberais conquistam seu espaço; 7. A cidade e a mudança substituem o campo e a estabilidade; 8. O pensamento dos homens passa a ser modelado pela ciência, não mais pela religião; 9. O progresso e a razão são os ideais que movem a sociedade; 10.O indivíduo substitui o coletivo; 11.Surge o mercado mundial e tem início a busca desenfreada pela acumulação de lucros; 12.Grande aumento demográfico; 13.Descoberta da imprensa com decorrente alfabetização e irradiação cultural; 14. Imenso esforço colonizador de Portugal e da Espanha, depois o da França e da Inglaterra. Toda essa reviravolta na sociedade tem um nome: LIBERALISMO. Para a doutrina liberal, nomes como Maquiavel, Calvino, Lutero, Copérnico, Henrique VIII, Tomas More, Richelieu, Luis XIV, Hobbes, Pascal foram fundamentais. Também o contexto dos descobrimentos, as invenções tecnológicas e as novas formas de vida econômica. Mesmo assim essa doutrina teve solavancos em seu aperfeiçoamento. Resistiu a revoluções e a guerras, bem como aos tradicionalismos perpetuados por meio milhar de anos e aos homens que, com base nestes, defendiam a manutenção de seus privilégios. Apesar desse aparente aspecto sólido, o liberalismo foi barrado por algumas características impregnadas naquele período. Por exemplo, a tentativa de expandir o comércio globalmente, o que não foi possível devido às implicações políticas do nacionalismo, que acompanhou de perto o nascimento e a evolução da doutrina liberal. Também no campo da propriedade o liberalismo foi barrado: tentava afastar toda e qualquer restrição ao direito de acumular propriedade, entretanto foi boicotado pelo proletariado. Sem sobra de dúvidas o liberalismo é regido pela liberdade. Ele surgiu justamente com o propósito de ir contra os privilégios provenientes da classe a que o indivíduo pertencesse ou ao do credo que adotasse. No entanto, essa liberdade não era universal – restringia-se aos homens proprietários(usar no trabalho de Dir. do Trabalho). Era pautado numa liberdade negativa, cerceando a autoridade política e defendendo um rol de direitos fundamentais que o Estado não pudesse violar. Mais uma vez, defendendo a propriedade e importando-se secundariamente com os trabalhadores. Buscou defender as atitudes tomadas no âmbito da legalidade, tendo em vista um alcance não tão abrangente da aplicação da lei. O liberalismo considerava as religiões como qualquer outro tipo de associação. Foi favorável ao governo representativo, mesmo quando esse modelo implicou a adoção do sufrágio universal. Até certo ponto foi tolerante com as reivindicações da minoria e defendeu arduamente a liberdade de pensar e de agir. Em relação à ação social, na maioria das vezes o liberalismo tomou uma atitude negativa. Encarou a uniformidade e a tradição como uma afronta ao direito do livre arbítrio. Tinha um quê de romântico, tendendo para o subjetivismo e para a anarquia. Defensor da liberdade, muitas vezes negava a igualdade pelo fato de ela conduzir à restrição da personalidade individual. Querendo estender-se a toda a sociedade, as condições históricas o limitaram e foi justamente essas limitações que explicam seu legado e seus tropeços. O fator motriz do liberalismo foi o surgimento de uma nova sociedade econômica, no final da Idade Média. E essa classe só ascendeu a uma posição de domínio político em virtude do embasamento liberal. O grande insight do liberalismo foi a criação de um Estado Contratual, limitando a intervenção política na medida em que fosse possível manter a ordem pública. A limitação do pensamento liberal provém justamente do contrato – a liberdade contratual jamais é absolutamente livre; ainda mais quando as partes têm poderes tão díspares. Nessa sociedade tinha mais poder aqueles que detinham propriedade e são esses os contemplados pelas vantagens do modelo liberal. Sendo os objetivos liberais guiados pelos donos da propriedade, sempre houve um vácuo entre as propostas e a prática. A mentalidade de acumulação de capital da época era inspirada no capitalismo. Enquanto na Idade Média o homem rico era uma espécie de curador, agindo em nome de toda a sociedade, com o advento do espírito capitalista, o conceito social de riqueza cedeu lugar ao individual. A produção voltada única e exclusivamente à subsistência foi rechaçada pela idéia da produção sem limites, só possível numa sociedade dinâmica e anti-tradicional. O autoritarismo era por sua vez repelido à medida que dava margem ao conservadorismo e ao regramento, algo impossível numa sociedade que tinha em vista inovações que permitissem mais e mais o lucro. O trunfo do capitalismo decorre da inadequação do velho sistema produtivo à realidade agora em voga, ao progresso e à explosão demográfica. Os novos métodos demonstravam que era possível criar uma riqueza nunca antes imaginada com base nos antigos parâmetros. Mesmo assim foi necessário vencer o descrédito da sociedade e defender a interferência mínima do Estado na economia, cujo auge se dá com a filosofia do laissez faire. O homem capitalista acolhe satisfeito o nacionalismo e as suas maiores garantias de paz interna. Beneficia-se com o ataque à Igreja, pois isso significa lutar contra o pecado da usura e as demais imposições obsoletas que partiam do clero. Argumenta ser o bem-estar social mais facilmente assegurado pela concessão ao individuo da maior iniciativa de ação possível. A essência da Revolução Liberal é, portanto, a emancipação do indivíduo. E justificando-se através de amplas satisfações que trouxe para a sociedade, foi gradualmente derrubando as barreiras que se erguiam em seu caminho. O Mercantilismo era uma ‘economia política considerada como ramo da ciência de um estadista ou legislador’, não um estudo ‘da natureza e das causas da riqueza das nações’. O intervencionismo era resultado da herança de uma mentalidade medieval onde tudo se regulava. O ideal da auto-suficiência, da intensidade das rivalidades nacionais. As oscilações de foco, de uma constante competição para garantir uma regulamentação favorável a cada um dos ramos comerciais. O Estado seiscentista é o momento em que se faz necessário impor ordem ao caos do século XVI. A solução encontrada é estabilizar tudo aquilo que trás incertezas à tona: a moeda, as condições de emprego, o fluxo do comércio e de imigração, o socorro à pobreza, o suprimento de metais preciosos, as leis de navegação, etc... O pequeno impacto do liberalismo na economia, logo de início, é obvio. Primeiro a burguesia adaptou a religião, depois a cultura e somente na última etapa pode se ocupar do Estado. Somente depois de consolidar uma nova ordem de coisas e tornar coerente a interferência na ordem econômica éque a burguesia deferiu o assalto final. A regulamentação econômica é um resultado direto de algo que é claro para os mercantilistas – a incongruência entre o interesse nacional e o bem-estar do comerciante. O Estado controla porque teme que a gana por lucros do comerciante possa prejudicar a sociedade. O liberalismo econômico, nesse panorama, era um redemoinho em meio a maré que fluía contra ele. Isso porque existia a pequena nobreza contra a classe mercantil, o empregado contra seu patrão, o produtor nacional contra o concorrente estrangeiro, o monopolista contra o proponente do livre comércio. Com o passar do tempo foi-se percebendo que o bem-comum consistia numa liberdade para todos, emancipada de qualquer intervenção. Várias circunstâncias colaboraram para tal: a ineficácia da administração pública, a impotência do governo para fazer frente ao contrabando, a incapacidade para controlar os salários e a situação de trabalho em geral. Ademais, os self-made men não estavam dispostos a serem governados por leis que inibissem, ameaçassem seu avanço. A visão em relação ao dinheiro era outra; admitia-se que o risco tinha direito a recompensa e, sendo assim, nada mais justo que cobrar juros nos empréstimos. Em resumo, concebeu-se que a liberdade econômica estava na própria natureza das coisas e que as regulamentações são insensatas se requerem uma supervisão para que se revistam de autoridade. Resultado dessa nova filosofia – em que o ideal básico é a segurança – foi a criação de um Estado em que a propriedade era um título efetivo de cidadania, um Estado que era nada mais que uma congregação de homens prósperos. Isto é demonstrado, por exemplo, pelo colapso de todo o sistema de assistência pública. Admite-se o bem comum; desde que o homem já tenha provado o seu valor. Mas prova é a obtenção de um status social que, pela natureza do sistema, é negado à maioria dos homens que buscam alcançá-lo. Os cercados, os muros, as divisas separam o camponês da terra; as normas de propriedade comercial deixam os trabalhadores sem outra coisa para vender senão seu próprio trabalho. Enquanto isso, os homens de propriedade ganhavam um poder absoluto para dispor de tudo o que possuem como melhor lhes aprouver. Para isso, apoderaram-se da máquina do Estado. Dessa forma nasce a idéia de que os homens de propriedade são os governantes naturais da sociedade, já que o poder supremo não pode tirar de homem algum parte de sua propriedade sem o seu consentimento. O liberalismo clássico nasceu da desconfiança diante das estruturas tradicionais de poder. Limitou a soberania dos cidadãos na medida em que instituiu um sistema de representação baseado na idéia de quem escolhe um representante delega a ele o seu poder de decidir. Hoje o conceito de cidadania está intimamente ligado à confiabilidade das instituições democráticas, as quais devem se fazer obedecer não só pelo poder burocrático que detém, mas porque são movidas à base da ética e de normas postas, e também porque realizam bem suas funções. Na reconstrução da democracia brasileira o tema dos direitos de cidadania foi posto em pauta para que se processasse a reforma das instituições políticas realizada pela Constituição Cidadã de 1988. Isso porque a cidadania é capaz de articular as demandas por emancipação e por inclusão social que emergem no contexto do conflito de interesses divergentes que caracterizam as sociedades complexas, desiguais e diferenciadas. Entretanto, a reconquista da liberdade e a ampliação dos direitos sociais e da participação política não foram suficientes para frear o desencanto político e a baixa confiança dos cidadãos diante das instituições democráticas. Uma das formas de ensinar o cidadão ativo do papel da participação política são os mecanismos semi-diretos da democracia como o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular de lei, mas mesmo eles não são suficientes para atingir um grau satisfatório de confiança nas instituições democráticas. A mudança na atitude dos cidadãos diante das instituições públicas, originando ou aprofundando a desconfiança política, se deu em várias partes do mundo e em diferentes momentos. Nas democracias consolidadas em meados do século XX, como Itália e Japão, ela se deu a partir das experiências continuadas de corrupção, engessamentos do sistema de partidos políticos e outros déficits de desempenho institucional. A variação mais dramática ocorreu nas democracias mais antigas – Estados Unidos, Inglaterra, França, Suécia e Canadá – onde apenas 25% mostram-se satisfeitos e confiantes com os governos, reagindo às crises, escândalos e à deterioração do padrão de funcionamento das instituições. Nesses casos caíram as taxas de identificação partidária, a mobilização dos eleitores por partidos, o comparecimento em eleições e o interesse por política. A situação é ainda mais preocupante nos regimes políticos nascidos com a “terceira onda” de democratização. Em boa parte dos países latino-americanos, de tradição democrática frágil e descontínua, apenas 20% do público tem alguma confiança em parlamentos e partidos políticos, polícia ou judiciário. São sentimentos de apatia ou de impotência política que levam os cidadãos a desconfiarem das instituições democráticas. Embora nos exemplos supracitados não haja preferência pelo regime antidemocrático, não é razoável supor que a democracia pode conviver com o descrédito em suas normas, procedimentos e instituições, os quais, por definição se prestam a mediar os interesses dos cidadãos e promover a convivência nas sociedades complexas. É necessário discutir o conceito de cidadania e contrapor a visão liberal clássica, em que ele é um status jurídico e administrativo, com a comunitarista, que pretende resgatar a noção cívico- republicana do tema. A Questão da Cidadania – a noção de igualdade já se fazia presente nos textos religiosos da Antiguidade, onde era propagado que os homens eram iguais diante de Deus. No entanto, foi na Grécia que o conceito de igualdade e liberdade ganhou contexto dentro da polis, comunidade voltada para o bem público. As bases filosóficas do conceito foram desenvolvidas no contratualismo de Locke e Rousseau, sendo que ele foi adotado na prática pelo liberalismo e pelas revoluções inglesa, americana e francesa. As noções de liberdade, igualdade, fraternidade e Estado-nação passaram a ser relacionadas através de um vínculo jurídico-legal, as quais conferiram à cidadania o significado de pertencimento à comunidade política nacional e, ao mesmo tempo, a participação na escolha de governos e de representantes. O enfoque no cidadão tinha um viés protetor, garantindo de seus direitos e afastando-o da opressão. Era uma liberdade negativa que institucionalizava a ausência de coerção para evitar que o indivíduo fosse impedido de realizar seus interesses. Nessa mesma linha, a democracia minimalista restringe-se a uma estrutura jurídico-legal que assegura a separação de poderes, o funcionamento do sistema de representação e a obediência às leis. O que ela não concebe é que as diferenças de posses materiais, o poder ou o status social eliminam a igualdade diante da lei, fundamento da igualdade de direitos que é pressuposto para proteger o indivíduo de injustiças. No entanto, mesmo os autores que se preocupam com as exigências de justiça no sistema de cidadania reconhecem que os cidadãos usam os seus direitos essencialmente para alcançar os seus interesses próprios. Apesar de essa busca por realização pessoal dever se dar no contexto dos limites impostos pela exigência do direito dos outros, o indivíduo tem o direito de definir e buscar seus interesses privados e sua concepção particular de bem. Esse ponto é criticado pelos comunitaristas, os quais entendem que a tradição liberal relegou as preocupações normativas da política ao campo da moralidade privada. A política teria sido destituídado seu componente ético para assumir uma concepção essencialmente instrumental, voltada para a realização de interesses privados definidos independentemente da discussão pública. Os interesses seriam previamente constituídos, sem vínculo ou raiz social, minimizando a importância da esfera pública para o desenvolvimento das virtudes cívicas necessárias ao funcionamento do bom governo. Isso teria esvaziado a noção de cidadania baseada na propensão natural dos cidadãos de juntar-se com os seus iguais para definir a ação coletiva necessária à realização do bem almejado pela comunidade política, o que teria culminado em um descomprometimento político. A solução, na visão comunitarista, seria retornar ao conceito cívico-republicano do bem público, buscando o bem comum como uma dimensão que se sobrepõe aos interesses privados. Porém, essa realidade só seria alcançada com a participação direta e ativa dos cidadãos no processo de tomada de decisões coletivas, num modelo de cidadania mais ativo. Essa prática é inconcebível dada a complexidade da sociedade atual, pois pressupõe que as divergências de interesses não afetam nas decisões de governo. Além disso, sufocaria conquistas da revolução democrática como as liberdades individuais e a noção de sociedade civil como expressão da diversidade de interesses que dá origem a objetivos políticos divergentes. Em face dos limites tanto do modelo liberal como da concepção comunitarista, alguns autores argumentam que uma concepção de cidadania adequada às exigências das sociedades complexas contemporâneas – desiguais, diferenciadas e reestruturadas por novos processos de produção e comunicação derivados da globalização – tem de articular as conquistas da revolução democrática dos três últimos séculos com aspectos da tradição cívico-republicana. A dimensão pública nesse sistema corresponde ao processo de construção da ação política como resposta a dilemas coletivos reconhecidos como tal pela comunidade política em que os cidadãos compartilham não a presunção de um consenso prévio, mas o compromisso derivado da decisão de reconhecer como legitimas as suas diferenças e de associar-se em função de sua decisão de agir em comum para alcançar objetivos públicos. Essa prática cívica, designada como República, estabelece as regras e as práticas que os cidadãos aceitam subscrever para agir em comum. A ação coletiva em tais condições envolve a divisão e o antagonismo da sociedade e inclui um complexo de normas, procedimentos e instituições cujo objetivo é regular o modo dos cidadãos reconhecerem e resolverem suas diferenças. Diferente da concepção usual, de que o império da lei é suficiente para legitimar a associação política necessária à garantia da liberdade e da igualdade, importa agora o conteúdo normativo de regras e instituições adotadas e isso, em última análise, está no centro da relação entre cidadãos e a esfera pública. A Questão da Confiança – a crescente complexificação da vida que caracteriza o mundo globalizado, interdependente e crescentemente condicionado por avanços tecnológicos implica em conhecimento limitado sobre os processos de tomada de decisões coletivas e as ações de governos que afetam a vida das pessoas. A velha demanda por coordenação social que está na origem do Estado Moderno se re-atualizou. Entretanto, para deixarem-se coordenar as pessoas precisam ter capacidade de previsão sobre o comportamento dos outros e sobre o funcionamento das regras, normas e instituições que condicionam esse comportamento – cujos efeitos afetam a sua vida. A resposta para essa situação seria a confiança, podendo ela ser interpessoal ou política. A primeira abrangeria as situações em que interesses mútuos, que geram benefícios comuns e eliminam os danos derivados de abuso de confiança, podem ser mobilizados. Para autores como Tocqueville a confiança interpessoal origina-se com base numa experiência social e em valores compartilhados, a qual favorece a disposição das pessoas para agir em comum, o que, por sua vez, levaria à acumulação de capital político favorável ao funcionamento do regime democrático. Tal ponto de vista tem que enfrentar a contradição de que a democracia nasceu justamente da desconfiança de que quem tem poder não é confiável, e de que os procedimentos usados para mantê- lo precisam ser controlados para se evitar seu abuso. Ou seja, a democracia implica em supervisão e monitoramento do exercício do poder pelos cidadãos. Nesse caso, como falar em confiança política? Outra idéia parte da premissa de algo como uma confiança negativa. Na impossibilidade de garantia absoluta de que o conflito de interesses divergentes possa ser resolvido pacificamente, a democracia moderna institucionaliza regras, normas e instituições que asseguram um padrão civilizado de competição política. Até mesmo porque para funcionar a democracia requer um grau razoável de confiança, por exemplo, na aceitação do pluralismo ou sobre o funcionamento dos procedimentos democráticos. As instituições não são neutras, mas mecanismos de mediação política informados por valores derivados das escolhas que a sociedade faz para enfrentar seus desafios políticos. Confiar em instituições não é a mesma coisa que confiar em pessoas, de quem se espera reciprocidade, indiferença ou hostilidade; é reconhecer a sua função permanentemente atribuída pela sociedade. Assim, a confiança política dos cidadãos depende de uma estrutura institucional que possibilite que eles conheçam, recorram ou interpelem os fins últimos das instituições – fins aceitos e desejados pela sociedade. Por fim, as experiências dos cidadãos que influem sobre a confiança política estão associadas com a vivência de regras, normas e procedimentos que decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. Quando prevalece a ineficiência ou a indiferença institucional diante de demandas para fazer valer direitos assegurados por lei ou generalizam-se as práticas de corrupção, de fraude ou de desrespeito ao interesse público, instala-se uma atmosfera de suspeição, de descrédito e de desesperança, comprometendo a aquiescência dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social; floresce, então, a desconfiança e o distanciamento dos cidadãos da política e das instituições democráticas. As diferentes tradições de cidadania podem ser estudadas de acordo com dois eixos analíticos. O primeiro indica a direção do movimento que produz a cidadania: de baixo para cima ou de cima para baixo. Exemplos de cidadania construída de baixo para cima são as experiências históricas marcadas pela luta por direitos civis e políticos, afinal conquistados ao Estado absolutista. Exemplos de movimento na direção oposta são os países em que o Estado manteve a iniciativa da mudança e foi incorporando aos poucos os cidadãos na medida em que ia abrindo o guarda-chuva de direitos. O outro eixo tem a ver com a dicotomia público-privado. A cidadania pode ser adquirida dentro do espaço público, mediante a conquista do Estado, ou dentro do espaço privado, mediante a afirmação dos direitos individuais, em parte sustentados por organizações voluntárias que constituem barreiras à ação do Estado. Os dois eixos dão lugar a quatro tipos de cidadania. O primeiro é a cidadania conquistada de baixo para cima dentro do espaço público, representado pela trajetória francesa. A cidadania seria aí fruto da ação revolucionária e se efetivaria mediante a transformação do Estado em nação. No segundo, a cidadania seria também obtida de baixo para cima, mas dentro do espaço privado, como no caso norte-americano. O terceiro tipo refere-se a casos de cidadania conquistada mediante a universalização de direitos individuais (espaço público), mas com base em concepção do cidadão como súdito. Corresponderia ao caso inglês após o acordo que restaurou a monarquia. Finalmente, uma cidadania construída de cimapara baixo dentro de espaço privado poderia ser encontrada na Alemanha. Neste último caso, ser cidadão seria quase sinônimo de ser leal ao Estado. O cidadão alemão teria sido criado pelo Estado e não teria a energia associativa do cidadão norte-americano. Quanto à cultura política também há quatro tipos: a paroquial (ou localista), a súdita, a participativa e a cultura cívica, seria a combinação dos três anteriores. A cultura paroquial é definida como completa alienação em relação ao sistema político, como redução das pessoas ao mundo privado da família ou da tribo. A cultura súdita seria aquela em que existe um sistema político diferenciado com o qual as pessoas se relacionam, no entanto, o relacionamento limita-se a uma percepção dos produtos de decisões político-administrativas. A cultura participativa acrescentaria uma percepção do processo decisório em si e uma visão do indivíduo como membro ativo do sistema. Na França, o surto revolucionário possibilitou aos cidadãos apoderarem-se do Estado e definir a cidadania de maneira universal, além dos limites do próprio Estado-nação. No caso brasileiro, a centralidade do Estado não indica seu caráter público e universalista. Isto porque, de um lado, o Estado coopta seletivamente os cidadãos e, de outro, os cidadãos buscam o Estado para o atendimento de interesses privados. Parece, portanto, que nosso lugar dentro da tipologia seria melhor definido ao lado da Alemanha. Mas a solução ainda é insatisfatória de vez que subsistem diferenças importantes entre as cidadanias alemã e brasileira. A forte identidade nacional alemã, concebida em termos étnicos de germanidade, e a tradição de obediência rígida ao poder e às leis, segundo alguns de origem luterana, estão ausentes de nossa cultura, muito mais fragmentada e quase cínica em relação ao poder e às leis. Entre nós a grande dependência em relação ao Estado e o extremado legalismo se contrapõem à atitude freqüentemente desrespeitosa e anarquizante diante do poder e das leis. O privatismo brasileiro no século XIX estaria, então, mais próximo do paroquialismo do que o privatismo alemão, podendo este último enquadrar-se numa cultura súdita. Diante disso basta que a cidadania brasileira foi construída de cima para baixo. Tipo e percurso brasileiro – nossa tradição oitocentista está mais próxima de um estilo de cidadania construída de cima para baixo, em que predominaria a cultura política súdita, quando não a paroquial. O tema da centralidade do Estado aparece reiteradamente, o que aponta para a importância do esforço de construção do Estado nacional no período pós-independência, assim como a consciência da tradição estatista que herdamos. Os publicistas de 1800 tinham uma visão mais ampla da cidadania do que aquela que temos hoje. Pimenta Bueno via na cidadania ativa bem mais do que o direito de votar e ser votado. Segundo ele, cidadão político, ou ativo, era aquele que podia participar do exercício dos três poderes, que podia exercer a imprensa política, formar organizações políticas, dirigir reclamações e petições ao governo e resistir à ação ilegal das autoridades. Entre os direitos de participar do exercício dos três poderes, deve-se salientar o de ser jurado, participando de modo direto do exercício do poder judicial, participação mais freqüente e mais intensa, para os sorteados, do que aquela representada pelo exercício do voto. Pimenta Bueno acrescenta ainda, como direito político importante, a participação direta no poder judicial possibilitada pelo exercício da função eletiva de juiz de paz. A Constituição de 1824 previa a existência de um juiz de paz, eleito pelo voto direto, em cada distrito do território nacional. O elenco de temas relevantes para a formação da cidadania política pode ser expandido para além do exercício de direitos. Se a cidadania é concebida como a maneira pela qual as pessoas se relacionam com o Estado, não há por que excluir de seu estudo o cumprimento de deveres cívicos como o serviço militar no Exército, na Armada e na Guarda Nacional. O cumprimento desses deveres requer contatos estreitos com instituições e autoridades do Estado e certamente contribui para a internalização de valores, positivos ou negativos, referentes ao poder público. Os estudos sobre o Exército e a Guarda Nacional, limitam-se a discutir o papel político dessas organizações, sem examinar seu possível impacto sobre o comportamento político de seus membros. Apesar disso, é conhecida a relação histórica entre o estado-nação moderno e a introdução do serviço militar universal e obrigatório. Nem mesmo um fenômeno marcante como as guerras têm merecido a devida atenção sob o ponto de vista aqui discutido. Não se pode pensar em nada mais dramático, e traumático, para o cidadão do que arriscar a vida para defender a pátria, do que ser submetido ao que foi corretamente chamado de imposto do sangue. A aceitação de uma entidade abstrata como a pátria como objeto de lealdade suprema, acima da família e de outros grupos primários, só pode constituir fator poderoso de criação de uma identidade nacional. Identidade nacional que tem sido reconhecida como ingrediente indispensável da cidadania. Outras intervenções estatais típicas do século XIX, sobretudo aquelas que visavam a aumentar o controle sobre a vida dos cidadãos, como o registro civil de nascimento, casamento e óbito e o recenseamento, constituem também momentos ricos para a análise da natureza da cidadania. Tais controles não têm caráter apenas negativo. O registro civil, por exemplo, é base legal para a reivindicação de vários direitos e para a celebração de contratos. Além da capacidade política de votar e ser votado, os principais pontos de contato entre o cidadão e o Estado no Brasil do século XIX foram a Guarda Nacional, o serviço militar, o serviço do júri, o recenseamento e o registro civil. Poderia ser acrescentada a incidência de impostos, sobretudo as tentativas de taxação direta da renda e da propriedade. Votantes – A legislação brasileira sobre eleições, na parte que se refere à amplitude do sufrágio, era das mais liberais da época se comparada à dos países europeus. A Constituição francesa de 1814 exigia para os votantes o pagamento de contribuição direta de 300 francos e idade mínima de 30 anos. A Constituição de 1824, que significou um pequeno retrocesso em relação à legislação que regeu as eleições para a Constituinte do ano anterior, exigia pequena renda de 100 mil-réis, proveniente de propriedade ou emprego, para se ter direito ao voto nas eleições primárias. A idade mínima era de 25 anos, exceto para os casados, oficiais militares, bacharéis e clérigos, para os quais o limite caía para 21 anos. Não havia restrições quanto ao grau de instrução, isto é, os analfabetos podiam votar, assim como os libertos. O voto era obrigatório. A conseqüência do liberalismo da Constituição foi que nas eleições primárias votava grande número de pessoas. Em 1872, os votantes chegavam a um milhão, o que correspondia a 13% da população livre. A participação era alta para a época, de vez que envolvia no exercício do voto metade da população adulta masculina. Acrescente-se que, a partir de 1875, os votantes recebiam um título de qualificação eleitoral, o primeiro documento de identidade civil introduzido no país. Esta situação promissora da cidadania política sofreu grande golpe em 1881, quando foi introduzida a eleição direta. Os analfabetos foram excluídos do direito de voto, a renda mínima passou para 200 mil-réis. Os mais de um milhão de votantes de 1872 foram reduzidos a pouco mais de 100 mil. Naturalmente, a prática eleitoral e o sentido do ato de votar estavam muito distantes da idéia de participação embutida na legislação. Críticos da época não se cansavam de denunciar as falsificações de atas, a violência contra adversários, a aberta interferência do governo, a compra de votos,a motivação puramente pessoal e material dos votantes. “O votante [...] de política só sabe do seu voto, que ou pertence ao Sr. fulano de tal por dever de dependência (algumas vezes também por gratidão), ou a quem lho paga melhor preço”. Mas críticas semelhantes eram feitas em muitos outros países, inclusive na Inglaterra onde, até a década de 60 do século XIX, além de ser reduzida, a participação eleitoral era também viciada pela tradição dos “burgos podres”. O cidadão político não nasceu adulto em lugar nenhum, exigiu período de aprendizado, mais longo ou mais curto dependendo do país. Jurados –Esse tipo de participação, feito mediante o serviço do júri, foi importação de práticas da tradição anglo saxônica, incluída na Constituição de 1824 e regulamentada no Código de Processo Criminal de 1832. Para ser jurado, as exigências eram idênticas às dos votantes do segundo grau (renda de 200 mil-réis, 400 mil-réis nas cidades maiores). Requeria-se, no entanto, a capacidade de ler e escrever, o que reduzia drasticamente o número de cidadãos aptos para a função, de vez que apenas 16% da população era alfabetizada. Na opinião do conservador Pimenta Bueno, o júri era o baluarte da liberdade política, uma barreira contra os abusos do poder, uma garantia da independência judiciária, um tesouro que era preciso preservar e aperfeiçoar. A prática esteve longe desse ideal. Os relatórios dos ministros da Justiça, sobretudo dos que eram ou tinham sido juízes, como Euzébio de Queiroz e Nabuco de Araújo, estão cheios de queixas relativas ao funcionamento do sistema. Em pequenos povoados, por exemplo, todos eram conhecidos — “todos são parentes, amigos ou inimigos, influentes ou dependentes” —, o que dificultava o anonimato e acarretava um alto número de absolvições, seja para proteger amigos e parentes, seja por receio de represálias dos inimigos. Ou, então, o júri podia funcionar como instrumento de vingança. Em causas que envolviam pessoas poderosas, os jurados simplesmente não compareciam aos julgamentos. Muitas das críticas não se aplicavam apenas aos jurados. Os juízes municipais, de nomeação do governo, e os juízes de direito, funcionários de carreira, eram objeto de censura parecida. Muitos se ausentavam de seus termos e comarcas, pediam licenças injustificadas, ou declaravam-se suspeitos para evitar participar de julgamentos politicamente perigosos. Faltava a muitos “coragem civil” para enfrentar os poderosos locais. Muitos magistrados eram antes “clientes do que juízes dos homens ricos e poderosos das localidades do interior que lhes prestam casa gratuita, meios de condução e outros auxílios”. Liberais e conservadores concordavam que a causa do mal provinha dos costumes e hábitos vigentes no país, da pouca ilustração, da falta de diversidade de interesses. Pimenta Bueno defendia o júri dizendo que os ataques que se lhe faziam eram dirigidos antes ao “estado moral da nação”. Cumpria atuar sobre os costumes, sobre a moral nacional, e não abandonar a instituição. Guardas nacionais e soldados – A Guarda Nacional teve como modelo a Garde Nationale francesa, criada em 1789, às vésperas da tomada da Bastilha. O objetivo da Garde era colocar a defesa do país nas mãos dos proprietários, dos cidadãos ativos como definidos logo depois pela Constituição de 1791. No Brasil, de início, os fins eram semelhantes. Criada em 1831, em meio a grandes agitações políticas, a Guarda deveria servir de proteção contra a anarquia que tomava conta do Exército e contra as revoltas populares que pipocavam em várias capitais. As exigências para ser membro da instituição eram bastante flexíveis, na realidade quase idênticas às estabelecidas para os votantes: l00 mil-réis de renda (200 mil-réis nas quatro maiores cidades) e idade entre 21 e 60 anos. A partir de 1850, a renda exigida foi uniformizada em 200 mil-réis e a idade mínima baixou para 18 anos. Os liberais saudaram a Guarda como a milícia cidadã, como a democratização do Exército, assim como os juízes de paz e o júri seriam a democratização da Justiça e as eleições a democratização do Poder Executivo. Votantes, jurados e guardas nacionais seriam os cidadãos ativos do novo país. A Guarda tinha inicialmente outra característica que lhe aumentava o caráter democrático: os oficiais eram eleitos pelos guardas. Esta característica era quase revolucionária para o Brasil da época e tornava a organização independente do governo. Em 1850, todos os postos de oficiais passaram a ser de nomeação do governo, que com isto adquiriu moeda fortíssima para negociar a lealdade dos senhores de terra. Daí em diante, a hierarquia da Guarda refletiu fielmente a hierarquia social. O sentido político mais profundo da Guarda Nacional estava sem dúvida na cooptação dos proprietários pelo governo central. Ela, ou melhor, seu oficialato, foi o principal instrumento da construção da nação política, a nação limitada aos setores que tinham efetiva voz política. A socialização política misturava-se com a experiência de um reforço da autoridade dos “coronéis”, era uma socialização contaminada pelo privatismo. Muito distinta era a situação dos soldados do Exército. Embora os exércitos nacionais também tenham sido fruto da Revolução Francesa, no Brasil nunca se deu a ligação entre cidadania e serviço militar. Havia geral repugnância, se não pavor, ao serviço militar. Um decreto de 1835 ordenava que em caso de não haver Voluntários, seria feito recrutamento forçado, o recruta seria conduzido preso e mantido em segurança até se conformar com a situação. O serviço militar contribuiu pouco, ou nada, para a educação cívica por causa da maneira como era feito e pelo reduzido número de pessoas envolvidas. O efetivo legal do Exército, em época de paz, durante a segunda metade do século não ultrapassava 15 mil homens. Estes homens não eram cidadãos ativos: a lei proibia que praças de pré votassem. Neste sentido, os soldados diferiam radicalmente de votantes, jurados e guardas nacionais: eram cidadãos inativos. A persistência do castigo físico, mesmo depois de abolido pela lei, indicava que aos soldados se negavam até mesmo direitos civis básicos como o da integridade física. Nisto, os soldados se aproximavam dos escravos e não foi por acaso que os marinheiros que se rebelaram em 1910 contra o uso da chibata falaram em eliminar restos de escravidão. Diferente situação foi a do contexto da Guerra do Paraguai, importantíssima para a formação de uma identidade nacional entre brasileiros, desde os habitantes da Corte até os das mais longínquas povoações. O surgimento de um inimigo comum despertou um sentimento de patriotismo nunca antes verificado. O hino nacional e a bandeira foram valorizados, o Imperador apareceu como chefe da nação, surgiram os primeiros heróis militares. Na música e na poesia popular o patriotismo foi exaltado, a pátria passou a disputar com a família a lealdade dos jovens, o Brasil passou a ser uma realidade concreta. Foi particularmente importante a participação dos negros livres e libertos, assim como dos libertados com o fim de serem recrutados. A situação dos libertados era irônica. Pedia-se a não-cidadãos, não só no sentido político como civil, que fossem lutar pela pátria que os escravizava. No entanto, eles foram em bom número. Os negros, livres ou libertos, formavam a maioria das tropas. Para os ex-combatentes negros, a guerra tinha representado a experiência de luta lado a lado com outros brasileiros, em defesa de uma pátria a que agora tinham conquistado e direito de pertencer. É de supor que tenha sido forte a marca sobre o sentimento cívico dessas pessoas. Acrescente-se, ainda, a visibilidade alcançada por algumas mulheres, este outro setor da população totalmente excluído da cidadania ativa. Além de enfermeiras que se destacaram, houve o caso de Jovita Feitosa que, fazendo-se passar por homem, alistou-se como sargento para participarda luta como combatente. Segundo dizia, pretendia vingar-se das injúrias cometidas pelos paraguaios contra as brasileiras. Descoberta sua identidade, teve assim mesmo o alistamento aceito pelas autoridades provinciais. Recebeu inúmeras homenagens, tornou-se heroína nacional. Enfim, a guerra fez com que ex-escravos, mulheres e soldados, quase a soma dos cidadãos inativos, tivessem pela primeira vez um lugar ao sol no mundo real e simbólico da política. Cidadãos em negativo – O avanço do Estado oitocentista na direção de cooptar e regular a sociedade provocava também reações negativas. Três iniciativas despertaram de modo especial a ira da população: o alistamento militar, o registro civil e a introdução do sistema métrico. A reação contra o alistamento propriamente dito deu-se a partir da aprovação da lei de setembro de 1874, regulamentada em fevereiro de 1875. Seriam incluídos no alistamento os homens de 19 a 30 anos que não se beneficiassem de alguma isenção. Já no ano de 1875 houve revoltas em oito províncias. Grupos de 50 a 400 pessoas invadiam as igrejas durante as reuniões das juntas e rasgavam listas, livros e exemplares da lei, resultando não raro mortes de ambos os lados. Em alguns casos, a ira popular não poupou nem mesmo as imagens dos santos nas igrejas. Os grupos eram formados de homens e mulheres. A reação foi mais forte em Minas Gerais, a província mais populosa, onde se deram revoltas em muitas freguesias. Os revoltosos foram descritos como sendo na maioria analfabetos. Os distúrbios repetiram-se em 1878, 1882, 1885, 1887. A reação ao registro civil foi menos intensa, mas merece referência. Em 1850, o governo fez aprovar uma lei que mandava fazer o primeiro censo demográfico do país e introduzia o registro civil de nascimentos e óbitos. Os registros deviam ser feitos pelos escrivães dos juízes de paz. O batismo religioso era mantido, mas deveria ser realizado após o registro civil. A lei foi regulamentada em 1851 e deveria ser executada a partir de janeiro de 1852. Desde o final de 1851, começaram reações violentas. A população, incluindo homens e mulheres, ameaçava e expulsava juízes de paz e seus escrivães, invadia igrejas para impedir a leitura do regulamento, desarmava a força policial. A reação forçou o governo a paralisar o trabalho de registro já em 1852, assim como a suspender o censo. Este último só foi feito em 1872, e novo decreto regulando o registro civil, agora incluindo o registro de casamentos, foi aprovado em 1874. A introdução do novo sistema de pesos e medidas provocou revolta mais séria. O sistema métrico foi adotado por lei em 1862, com prazo de dez anos para vigência. Em 1871 houve uma primeira reação no Rio de Janeiro, quando pesos e medidas foram quebrados e destruídos pela população, dando origem à expressão “quebra-quilos”. A reação rural veio em 1874 nas províncias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Multidões de até 800 pessoas invadiram feiras para destruir os novos padrões, atacaram câmaras municipais, coletorias e cartórios, para destruir documentos públicos, assaltaram cadeias para soltar presos. Em todos esses movimentos, e em outros ainda maiores que se deram após a queda do Império, como a guerra de Canudos de 1897 e a revolta da Vacina de 1904, não se pode dizer que houve arbítrio da parte do governo, pelo menos até que a revolta se estabelecesse. Tratava-se de iniciativas que todos os Estados iam tomando à medida que burocratizavam e secularizavam os serviços públicos retirando-os das mãos da Igreja e dos grandes proprietários. Algumas dessas iniciativas, como a do registro civil, eram condição para a garantia judicial de vários direitos civis e mesmo de direitos políticos. Mas eram ao mesmo tempo mudanças que interferiam no cotidiano dos cidadãos, alteravam comportamentos tradicionais, aumentavam o controle do governo e despertavam insegurança. Elas estendiam as malhas do governo e tiravam as pessoas de seu mundo privado, colocando-as dentro do campo da cidadania civil. Representavam a criação de cidadania de cima para baixo. As reações a elas não podem, no entanto, ser consideradas simplesmente como recusa de cidadania. Elas eram sem dúvida recusa de uma regulação vinda de cima, sem consulta e sem respeito por costumes e valores tradicionais. Dizendo não, os rebeldes estavam de alguma maneira afirmando direitos, estavam fazendo política para garantir direitos tradicionais. Não deixava de ser um tipo de cidadania, embora em negativo. Que cidadão? – Da exploração preliminar aqui feita pode-se, no entanto, inferir que uma vasta transformação aconteceu no campo da cidadania durante o século. Grande número de brasileiros que durante a colônia se mantinha totalmente afastados da vida pública, presos a seu mundo privado, saíram de seu paroquialismo e passaram a se relacionar com o Estado. Eles o fizeram, sem dúvida, nas eleições, posto que desordenadamente e tumultuadamente. Mas o fizeram também ao servir na Guarda Nacional, no júri, no Exército e na Armada, e ao lutar na defesa do país; eles o fizeram ainda ao serem contados no censo e ao terem que procurar agentes do governo para registrar os principais acontecimentos de suas vidas. No mínimo, pode-se dizer que muitos se tornaram conscientes da presença do Estado; em alguns foi despertada a consciência da nação como comunidade de pertencimento. Na terminologia que venho usando, pode-se dizer que passaram do paroquialismo para a condição de súditos. Não é difícil apontar razões sociológicas para explicar a diferença na cidadania brasileira. Entre elas, a escravidão, que negava a cidadania, mesmo civil, a boa parte da população; o patriarcalismo, que a negava às mulheres; o latifúndio que fazia o mesmo com seus dependentes. Como vimos, os membros mais esclarecidos da elite política e da burocracia queixavam-se constantemente dos obstáculos à operação das instituições importadas. Referiam-se aos costumes, ao estado moral do país, à falta de luzes e ilustração, ao baixo nível de educação e civilização, à influência dos potentados locais, à ausência de uma opinião pública. Referiam-se, enfim, a uma sociedade que mal começava a engatinhar na vida civil e política. No episódio da guerra é possível mesmo que o Estado, ou pelo menos os símbolos nacionais que ele administrava, tenham exercido alguma atração. Mas, pelo resto, a cara do Estado que a população viu era pouco atraente, como no serviço da Guarda, na exigência de registro civil, no recenseamento. Em alguns casos ela era repulsiva. As leis reformadoras e os novos deveres cívicos introduziam na vida cotidiana mudanças cujo sentido não era compreendido. Nesse sentido é que foi usada a expressão de cidadãos em negativo. Havia um potencial de participação que não encontrava canais de expressão dentro do arcabouço institucional e que, também, não tinha condições de articular arcabouço alternativo. O brasileiro foi forçado a tomar conhecimento do Estado e das decisões políticas, mas de maneira a não desenvolver lealdade em relação às instituições. A Geração De 1790 E A Idéia Do Império Luso-Brasileiro Autor: MAXWELL, Kenneth. Chocolate, Piratas e Outros Malandros. Ensaios Tropicais. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1ª edição, 1999, pp. 157-207. As mudanças ocorridas entre 1796 a 1808 nas atitudes dos brasileiros e portugueses iriam repercutir profundamente no desenvolvimento subseqüente da América portuguesa. Durante a visita de Thomas Jefferson, em 1786, à França, recebeu uma carta da Universidade Montpellier assinada apenas com o pseudônimo Vandek. Depois de conseguir um canal seguro de comunicação, Vandek revelou ser brasileiro pedindo auxílio aos EUA para quebrar o julgo português no Brasil. Vandek, José Joaquim Maia e Barbalho marcou encontro secreto com Thomas Jefferson próximo a Nêmes; Era do Rio de Janeiro e estudava Medicina em Montpellier e fazia parte deum grupo de estudantes que durante os primeiros anos da década de 1780 uniram-se em Coimbra jurando trabalhar pela independência de sua Pátria. O relato da resposta encorajadora chegou ao Brasil traduzido por Domingos Vidal Barbosa. Assim como Maia e Vidal Barbosa, outros estudantes das Universidades de Coimbra e Montpellier, nascidos no Brasil eram influenciados pelos escritos do abade Raynal que exerceu influência dominante sobre o pensamento de muitos brasileiros educados na década de 1780. Sua Historie philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans le deux Indes, continha um extenso relato sobre o Brasil e descrevia Portugal em tom de desprezo condenando a influência política e econômica britânica sobre Portugal, recomendando que os portos brasileiros fossem abertos ao comércio das nações. Mesmo nos confins mais longínquos da América portuguesa divulgava-se as idéias e as opiniões subversivas para o sistema colonial português. Minas Gerais era tida como líder potencial da futura colônia emancipada havendo se tornado centro cultural. Entre os brasileiros natos de cor branca havia uma elite altamente letrada e desses uma maioria eram mineiros; Assim como Cláudio Manuel da Costa, um advogado de posses de Vila Rica que havia sido nomeado secretário do governo de Minas, cargo que ocupou duas vezes. A casa do poeta Cláudio Manuel da Costa era um local de reuniões para os intelectuais da capitania tais como: Tomás Antônio Gonzaga, um legalista ambicioso ouvidor de Vila Rica,Ignácio José de Alvarenga Peixoto, ouvidor de São João del Rei e Luis Vieira, cônego da catedral de Mariana, sede episcopal de Minas Gerais. O círculo de Vila Rica não era o único grupo de homens inteligentes e de idéias semelhantes que se reuniam informalmente para discutir poesia, filosofia e os acontecimentos na Europa. Em São João del Rei e em outras partes da Capitania também se reuniam advogados e escritores. Letrada e de mente aberta a elite intelectual de Minas Gerais mostrou-se criativa e original: Cláudio Manuel da Costa, no poema épico Vila Rica; Alvarenga Peixoto em seu canto gentílico. Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e o cônego Luis Vieira envolveram-se numa conspiração para fomentar um levante armado contra a Coroa portuguesa em fins de 1788 e início de 1789. A Revolução Americana foi considerada pertinente porque os conspiradores viram nela semelhanças notáveis com os grandes tributos exigidos pelo governo português e a derrama sobre a população mineira. A intenção era criar um estado republicano e constitucional em Minas com Parlamentos, Universidade e revogação de todas as leis e códigos do papado. Não está claro até que ponto as instituições copiavam as da América do Norte. Gonzaga imortalizou nas suas “Cartas Chilenas” a polêmica entre ele e o governo mineiro de Luis da Cunha Menezes sobre os perigos de um poder arbitrário. A conspiração mineira foi traída, mas se projetou num contexto mais amplo. Nenhuma conspiração anterior tivera motivações tão conscientemente nacionalistas e anti-colonialistas, vindas de um grupo social no qual o governo confiava, inspirados no exemplo da América do Norte e na teoria política da época, ousaram questionar o inquestionável. A conspiração mineira ocorreu num momento especial, o plano foi tramado antes da Revolução Francesa. A relação cronológica da conspiração mineira é importante. Os oligarcas de Minas acreditavam que podiam manipular a vontade popular tomando como exemplo a Revolução americana sem levar em consideração as repercussões espetaculares da Revolução Francesa nas Américas. A independência de São Domingos (Haiti),representou um terrível despertar para os senhores de escravos que haviam falado de república e revolta sem perceberem as conseqüências sociais e raciais. A revolta dos artesãos mulatos da Bahia no decorrer de 1798 teve impacto social, pois demonstrou o que alguns brancos já haviam percebido: as idéias de igualdade social propagadas numa sociedade onde apenas um terço da população era branca, seriam interpretadas em termos raciais. João de Deus e seus compatriotas foram inspirados nos sans-culottes. Ao contrário, a liberdade que os fazendeiros desejavam era a liberdade sobre o preço do açúcar “a liberdade de ganhar o maior lucro com seu trabalho”. A liberdade para iniciativa capitalista, não era a liberdade de João de Deus. Como Dom Fernando percebeu, os principais opositores das reivindicações dos mulatos da Bahia, seriam os grandes fazendeiros baianos, que lucravam com os altos preços alcançados pelo açúcar, fazendo-os explorar todas as terras disponíveis no cultivo da cana-de-açúcar, em detrimento das lavouras de subsistência. O professor Luis dos Santos Vilhena condenava os produtores de açúcar por deixarem de plantar mandioca em quantidade suficiente e advertia que isso poderia trazer o risco de grandes fomes. Afirmava também que haviam ”idéias européias” como o controle dos preços da carne e da mandioca era responsáveis pela carestia e que tais idéias não deveriam ser aplicadas no Brasil e que deveria ser dada maior atenção aos fatores locais. As tais “idéias européias” eram de Adam Smith e J.B Say. Ambos os economistas foram usados por João Rodrigues de Brito e Manuel Ferreira da Câmara para documentar e justificar sua rejeição a interferência do Estado na regulamentação da produção e no controle dos preços. Para eles a ingerência do Estado deveria limitar-se a três pontos: liberdade, facilidades (serviços públicos) e instrução (ensino). O ponto de vista dos grandes agricultores não estava em desacordo com interesses de Portugal. Enquanto o alferes Joaquim da Silva Xavier afirmava que uma vez liberto e tornado uma república como a América Inglesa, o Brasil poderia tornar-se ainda maior por causa dos seus recursos naturais melhores. Também havia brasileiros menos estreitamente ligados aos interesses dos plantadores de açúcar que chegaram à conclusão de que a questão básica era a escravatura em si. A sugestão de emancipação dos escravos era anátema para os grandes plantadores de açúcar. O que aconteceria com a agricultura do Brasil e conseqüentemente com o comércio e a prosperidade de Portugal se a escravidão fosse abolida? Para Azeredo Coutinho a necessidade não tem lei e a necessidade exigia a continuidade da escravidão. Ninguém estava propondo a abolição imediata, mas um pequeno grupo de homens estava começando a ver a escravatura como fonte das mazelas sociais do Brasil e pensando em termos de um modelo alternativo para o desenvolvimento brasileiro, no qual a imigração européia e os trabalhadores livres substituiriam os escravos. A questão da escravatura era tomada não com objetivos humanitários, mas porque desejavam ver os negros eliminados, já que o acontecido em São Domingos consolidou os preconceitos de José da Silva Lisboa que os expressou publicamente:”... O progresso de São Paulo, Rio Grande do Sul era devido à raça branca...deveria evitar-se que o Brasil se tornasse uma negrolândia”. Novaes de Almeida e Vilhena viam a população negra como inimigos dentro de casa e José da Silva Lisboa acreditava que o Brasil não ia se desenvolver sem a criação de uma forma de trabalho livre e sem a europeização ou embranquecimento da população. Depois do fracasso do republicanismo no aborto da revolta mineira e pelas associações sociais e raciais os brasileiros discordavam sobre questões fundamentais, abrindo espaço para uma solução de compromisso com a metrópole. Em termos psicológicos a situação era propicia à acomodação, o que produziu impacto no futuro desenvolvimento do Brasil. Em 1788, Luis Pinto de Sousa Coutinho tornou-se ministro das relações exteriores de Portugal, de volta a Lisboa entrou em contato com intelectuais brasileiros, enviando Luis Pinto, dois jovens brasileiros e um colega português a tour de instrução pela Europa (Manuel Ferreirada Câmara e José Bonifácio de Andrada e Silva). Manuel Ferreira tinha vínculos com os acontecimentos de Minas Gerais, mas isso não foi impedimento já que Luis Pinto tinha visão política. Nas observações de Manuel Ferreira da Câmara recomendava que as empresas de mineração fossem incentivadas e que não deveria ser monopólios, mas empresas, organizações capazes de mobilizar capital. Os trabalhos tanto de Dom Rodrigo, quanto de Manuel Ferreira sugeriam que as imposições fiscais sobre Minas Gerais haviam sido um erro e que necessitavam de reformas e moderna tecnologia. Com a Revolução Francesa as conseqüências geopolíticas para Portugal ameaçavam ser uma escolha para as grandes potências. Dom Rodrigo percebeu mais agudamente a oportunidade oferecida pelas circunstâncias e a necessidade de reformas esclarecidas, ele aconselhou a coroa a conservar seus domínios na América sem os quais Portugal se veria reduzido a si só, sendo reduzido a uma província de Espanha. Em 1780, Dom Rodrigo implementou as reformas que tanto anelava: foi abolido o monopólio do sal e permitida a manufatura do ferro e nesse ínterim a guerra na Europa forçou Portugal a escolher, o que Dom Rodrigo havia previsto. Em 1807, teve início o confronto entre Grã-Bretanha e França em relação a Portugal. Dom Rodrigo foi chamado de volta ao governo e o fato de Dom João ter chegado ao Brasil tão bem preparado foi de grande importância para o sucesso do estabelecimento da monarquia na América portuguesa. A colaboração entre os intelectuais brasileiros e os ministros esclarecidos, produziu uma idéia imperial de inspiração luso-brasileira que foi além do nacionalismo em direção a uma solução mais ampla de caráter imperial tentando desarmar as tensões Metrópole-Colônia. Se o Brasil de fato foi feliz em sua solução monárquica, sendo poupado das agonias porque passou a América espanhola durante o século XIX parte da causa para tal, deve ser buscada não na falta de imaginação, instrução ou esclarecimento dos brasileiros,nem vagos atributos do caráter nacional, mas na perspicácia da geração de 1790, que emprestou racionalidade à análise dos problemas coloniais e com fé otimista projetou um grandioso conceito de império luso-brasileiro. A Interiorização Da Metrópole (1808-1853) A separação política do Brasil com a metrópole (1822) não coincidiu com a consolidação da unidade nacional (1840-1850), nem foi marcada por um movimento nacionalista ou revolucionário. Assim, será desvinculado o estudo do processo de formação da nacionalidade brasileira no correr das primeiras décadas do século XIX da imagem tradicional da colônia em luta contra a metrópole. Sérgio B. de Hollanda refere-se á independência como uma guerra civil entre portugueses desencadeada aqui pela Revolução do Porto. 1.822 não teria tanta importância na evolução da colônia para o império. Já era fato consumado desde 1.808 com a vinda da Corte e a abertura dos portos e por motivos alheios à vontade da colônia ou da metrópole. A preocupação de nossos historiadores em integrar o processo de emancipação política com as pressões do cenário internacional (pressões inglesas, invasões napoleônicas), contribui para o apego á imagem da colônia em luta contra a metrópole, deixando em esquecimento o processo interno de ajustamento às mesmas pressões que é o de enraizamento de interesses portugueses e, sobretudo o processo de interiorização da metrópole no centro-Sul da colônia. O fato é que a consumação formal da separação política foi provocada pelas dissidencias internas de Portugal. A vinda da Corte, por si só, já havia causado uma ruptura. Os sacrifícios da época da invasão francesa fizeram criar ciúmes e tensões entre portugueses. As tensões internas e inerentes ao processo de reconstrução e modernização de Portugal viriam exacerbar e definir cada vez mais as divergências de interesses com os portugueses no Brasil. A nova Corte, dedicada à consolidação de um novo império no Brasil, que deveria servir de baluarte do absolutismo, não conseguiria levar a bom termo as reformas moderadas de liberalização e reconstrução que se propôs executar no reino, aumentando as tensões que vão culminar na revolução do Porto. Consumada a separação política, que aceitaram mas não quiseram, os políticos da geração da independência eram bem conscientes da insegurança, das tensões internas, sociais, raciais, da fragmentação, dos regionalismos, da falta de unidade que não dera margem ao aparecimento de uma consciência nacional que desse força a um movimento revolucionário capaz de reconstruir a sociedade. Essa consciência nacional viria através da integração das diversas províncias e seria uma imposição da nova Corte no Rio (1.840-1850) conseguida a duras penas através da luta pela centralização do poder e da “vontade de ser brasileiros” que foi talvez umas das principais forças políticas modeladoras do império; a vontade de se constituir e de sobreviver como nação civilizada européia nos trópicos, apesar da sociedade escravocrata e mestiça da colônia, manifestada pelos portugueses enraizados no centro-sul e que tomaram a si a missão de reorganizar um novo império português. A dispersão e fragmentação do poder, somada à fraqueza e instabilidade das classes dominantes, requeriam a imagem de um estado forte que a nova corte parecia oferecer. As diretrizes fundamentais da historiografia brasileira já estão bem definidas, mas as peculiaridades da sociedade colonial precisam ser melhor elaboradas por estudos que nos permitam uma compreensão mais completa deste processo de interiorização da metrópole, que parece a chave para o estudo da formação da nacionalidade brasileira. A semente da integração nacional seria pois lançada pela nova corte como um prolongamento da administração e da estrutura colonial, um ato de vontade de portugueses adventícios, cimentada pela dependência e colaboração dos nativos e forjada pela pressão dos ingleses que queriam desfrutar do comércio sem ter que administrar. A insegurança social cimentaria a união das classes dominantes nativas com a “vontade de ser brasileiros” dos portugueses imigrados que vieram fundar um novo império nos trópicos. Aluta entre facções levaria fatalmente à procura de um apoio mais sólido no poder central. Os conflitos inerentes à sociedade não se identificam com a ruptura política com a mãe pátria, e continuam como antes sendo relegados para a postridade. As tradições da colonização portuguesa e o afã de integração e conquista dos recursos naturais delineavam a imagem do governo central forte, necessário para neutralizar os conflitos da sociedade e as forças de desagregação internas. Esta “tarefa” de reforma e construção absorveu os esforços dos ilustrados brasileiros a serviço da corte portuguesa e nela se moldaria a geração da independência. Não se deve subestimar as conseqüências advindas desse engajamento numa política de estado portuguesa; marcaria profundamente a elite política do primeiro reinado e teria influencia decisiva sobre todo o processo de consolidação do império, principalmente no sentido de arregimentação de forças políticas,pois proviria em grande parte daquela experiência a imagem do estado nacional que viria a se sobrepor aos interesses localistas. Algumas décadas após a independência (1.830-1.870) chegariam os ilustrados brasileiros a definir seu nacionalismo didático, integrador e progressista e uma consciência social eminentemente elitista e utilitária. Os Pródromos Da Independência 1. A vida rural do começo do século XIX: a autarquia agrícola. Este item apresenta a situação do país no início do século XIX. Com a decadência das exportações, as unidades agrícolas tendem para um isolamento e auto-suficiência. Nesse contexto, as unidades agrícolas alteram seu modo de produção, que era baseado na exportação de sua produção monocultura e na importação dos demais gêneros. Passama produzir os gêneros antes importados, obrigados pela queda de receita advinda da exportação. Apesar de a sociedade continuar girando em torno do proprietário rural, há uma alteração em sua formação. Antes esta era formada basicamente pelo proprietário rural, sua família e agregados de um lado e escravos de outro. Agora, com a mudança na dinâmica produtiva, surgem camadas intermediárias, como os arrendatários. Nesse período, apesar do fortalecimento da influência local do proprietário rural, há uma diminuição de sua influência fora de sua região. O prestígio outrora haurido das implícitas delegações de autoridade se transmuta no de senhor de um pequeno reino, que produz quase tudo. Isolamento, menor dependência do exterior, confinamento às localidades do campo, esse o caráter rural do começo do século XIX. O comércio, fortemente vinculado ao estamento governamental, perde a supremacia absoluta nas fazendas. Ele se articula em antagonismo ao latifúndio, gravitando em torno da metrópole. Perde, de outro lado a hegemonia, com o crescimento dos comerciantes ingleses a partir de 1.808. 2. A transmigração e a frustrada reorganização política e administrativa. Em decorrência das invasões napoleônicas, a corte portuguesa se transfere para o Brasil, sustentáculo do reino, com ajuda inglesa. A resistência secular ao domínio inglês, esboroa-se, paradoxalmente, pelas armas de Napoleão. Instalada no Rio de janeiro, organizou-se aqui um sistema político e administrativo idêntico ao que havia em Portugal, deixando de lado as necessidades do Brasil. Assim, desde logo, montou-se um sistema burocrático baseado no favoritivismo, com órgãos decorativos e dispendiosos. Com as tarifas privilegiadas aos ingleses em 1.810, o controle da economia deixa de ser possível, reduzindo o governo a mero cobrador de impostos. Desse modo, são tomadas medidas buscando esse controle, como a criação do Banco do Brasil, a fundação da siderurgia nacional, a liberdade industrial, a instituição do ensino superior. A monarquia portuguesa, rebelde à absorção estrangeira, voltou-se para a ex-colônia, numa obra quase nacionalista capaz de converte-la numa nação independente. Diante do forçado retraimento da classe mercantil, uma outra classe emerge: proprietários rurais de São Paulo, Rio e Minas. Atraídos pelo brilho da Corte passam a freqüenta-la. Entretanto a lua-de-mel durou pouco. A vacuidade das honrarias logo apareceram e com elas o irremediável confronto entre as duas nacionalidades. O obstáculo à fusão vem da ordem política e administrativa tradicional, incapaz de absorver os nativos. Os fazendeiros desenvolvem a consciência de que eles são a nação e, com isso, logo haveria confronto. 3. O dissídio e a transação. Ocorre conflito entre proprietários e a cúpula burocrática, vinculada ao comércio urbano e internacional (de raízes portuguesas). A aliança entre propriedade agrária e liberalismo, visível nos demagogos letrados, ensaia seus primeiros passos. A revolução de 1.820 em Portugal aproxima a corte dos interesses brasileiros como imperativo de sobrevivência monárquica mas o elo era fraco, pois Portugal precisava do Brasil pra reanimar sua economia. Com a fraqueza da burocracia civil e anemia do comércio luso, prenuncia-se uma nova aliança: D. Pedro, a agricultura e o comércio estrangeiro (inglês). Em Portugal, as cortes manifestavam a intenção de recolonizar o país. A promessa aos representantes brasileiros (constituintes) de não tocar na organização do Brasil, não estava mais de pé. A iminência da volta de D. Pedro a Portugal abriria espaço para a república. Com isso, os fragmentos das diversas tendências e camadas – comércio nacionalizado, realistas, burocratas – se unem momentaneamente sob a liderança de D. Pedro, ressentido com a conduta da tropa portuguesa, sempre fiel às medidas das cortes. Sob a influência de José Bonifácio, paulista de família influente, mas desvinculada de interesses agrários, com mentalidade formada na burocracia portuguesa, D. Pedro aceita o título de Defensor perpétuo do Brasil. Em um ano, os dilemas – separação/reino unido, monarquia/república – perdem a sua agressividade explosiva. Uma transação ocupa o lugar das soluções extremas. Sobre quatro colunas – SP, RJ, MG, RS – o centro de poder volta às mãos do príncipe. O fim do consulado de Bonifácio (1822-23) indicará o retorno das normas estamentais de organização política mediante o mecanismo tutelador de uma constituição outorgada. Texto 4 -Visconde De Cairu Introdução. O autor procura engrandecer a pessoa do Imperador, ressaltando que é uma pessoa de qualidades e que deve ser engrandecida pelos seus, mas que deve também assegurar a prosperidade da nação. É em auxilio a essa ultima tarefa que Visconde de Cairu tentará aconselhá-lo e dar-lhe uma diretriz. Prólogo. Buscando defender o que considera “mais útil para o Reino”, Visconde considera necessário discutir a importância da Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que decretou a abertura dos portos do Brasil. Sendo considerada por Visconde como meio para elevar o Estado a um maior grau de independência e riqueza. Segunda Parte. (Nessa parte o autor busca engrandecer a Inglaterra, destacando as qualidades de seu comercio e dos métodos de produção adotados por esse país, faz isso para demonstrar que ela é um modelo a ser seguido. Além disso, procura justificar porque considera a Grã-Bretanha melhor que a França) A franqueza do comércio com todas as nações é útil ao Brasil e imprescindível que façamos comercio com os ingleses, por necessidade, interesse, política e gratidão. O comércio com a Inglaterra é essencial, pois se não for permitido como franco e leal, instaurar-se-á um comércio clandestino e ilegítimo que privaria o Estado de muitas rendas, já que a costa brasileira é imensa e assim de fácil acesso para a prática de comercio clandestino. Não se deve ser hostil aos ingleses, pois a pratica mercantil mostra que é mais vantajoso comerciar com os indivíduos de países ricos e industriosos que com indivíduos e países inertes e pobres. Quanto mais uma nação pode oferecer em quantidade e variedade dos produtos e frutos de sua terra maior a facilidade de com ela efetuar-se trocas, isso impulsiona os demais países a prosseguir no respectivo trabalho e tráfico com intuito de acumular riquezas para posteriores trocas. A superioridade da nação inglesa é atestada pelo fato de contar com negociantes de grosso capital, notório crédito, pontualidade nos ajustes, franqueza em dar abonos, fazer avanços, além de comprar muito, e com a possibilidade de emprestar e fiar a longos prazos. A Inglaterra era a nação mais industrializada e rica da Europa, e isso provinha da “sua sabedoria e regularidade do seu anual trabalho produtivo”. Para a sua indústria a Grã-Bretanha aproveita “todas as idades, capacidade, e estações, empregando em seu serviço os entes animados e inanimados”, ate mesmo a força da natureza, estando sempre presente o espírito de invenção e perfeccionismo. E isso torna suas mercadorias mais baratas e competitivas o que, junto com a sua riqueza para honrar seus compromissos, torna-a a melhor indústria. Os ingleses procuram fabricar mercadorias em abundancia, de boa qualidade e baratas, de forma a lucrar mais com a facilitação do acesso ao consumo a grande parcela da população. O seu governo tem tudo subordinado aos interesses do comercio e da navegação que mantém e amplifica os demais ramos do geral trabalho da nação. A Inglaterra tornou-se o centro do comércio mundial por aproveitar todos os meios disponíveis para alcançar todos os pontos da Terra de forma a estabelecer com eles comercio. A análise dessas características inglesas é feita com o intuito de o Brasil buscar seguir os mesmo cominhos, pois, atesta o autor, que temos meios para isso se contarmos com uma “legislação iluminada e uma administração firme que consagrecomo máxima do Estado o crescimento franco e legal”. Outro objetivo é o de que a continuidade do comercio com os ingleses deve propiciar-nos uma maior habilidade na pratica mercantil, além de ser possível conseguir deles capital para expandir nossas indústrias e o comércio. A contínua relação com os ingleses tende a produzir três efeitos: • Dar saída aos nossos gêneros; • Estender a nossa indústria; • Inspirar-nos a imitação da sua língua e imitação de seu espírito público. 1. Os mercadores que vierem comerciar com o Brasil não hão de voltar com os navios vazios de modo a não perderem o frete do retorno, por isso é provável que importem os produtos de exportação do país. 2. É princípio econômico que a satisfação das necessidades não induz ao crescimento econômico e sim a busca pelo prazer e o gozo, pelo enriquecimento e independência, que levam, por conseqüência, a extensão e o aperfeiçoamento da indústria. 3. A literatura inglesa é grandiosa nos temas morais, econômicos, históricos, políticos, etc. Na coleção de memórias do Instituto Nacional de Paris, na classe de economia política encontra- se um documento que explica o porque de os americanos terem preferido comerciar com os ingleses e não com os franceses, já que a opção mais provável seria os franceses uma vez que estes o ajudaram na libertação e aqueles o oprimiram, com eles guerrearam e tentaram reduzi- los a uma forma de escravidão. A justificação para essa escolha é que os EUA ambicionavam crescer rapidamente e a Inglaterra poderia fornecer todos os artigos manufaturados para suprir suas necessidades básicas e para serem empregados na produção para a exportação. As causas desse monopólio( comércio EUA-Inglaterra) podem ser assinaladas como:1-a imensidade das obras que saem das oficinas inglesas;2-a divisão do trabalho nas manufaturas inglesas que barateia o custo dos artigos de uso comum;3-adiantamento de capitais e concessão de créditos a longo prazo, isso é possível devido ao estabelecimento de relações comerciais continuas entre os dois países que acabam por cobrir os débitos passados e permitem a concessão de novos créditos. Os EUA em um curto período de tempo, e após ser devastado pela guerra de independência atingiu um considerável crescimento econômico, isso se deve ao fato de, alem de sua extensão e fertilidade, ter admitido francamente a importação de bens e mercadorias dos estrangeiros e também a de suas pessoas e indústrias úteis (por serem os braços e engenhos dos homens habilidosos e morais uns dos mais produtivos capitais das nações). Essa análise é importante na medida em que o Brasil, estando em situação favorável para a correspondência mercantil em todas as partes do globo, tendo boas terras e excelentes portos, compreendendo variedades de climas, cheio de produções e podendo naturalizar outras e possuindo riquezas naturais, também pode gozar desse crescimento populacional, de riquezas, de indústrias e potencia se adotar, com firmeza, política igual à americana. Além dessas vantagens, o Brasil ainda goza da posição geográfica em frente à África o que pode, no futuro, constituir um importante entreposto comercial; também o sul da América está submetido às nossas especulações comerciais; outro fator a ser considerado é o de os portugueses terem mais estabelecimentos e vasto comercio no continente asiático o que aumentaria a possibilidade de ganhos; o Brasil também poderia representar um posto de escala para os estrangeiros que tivessem retornando da África ou da Ásia. O estabelecimento de regulares companhias de seguro e bancos de desconto, franquias, casas de depósitos, com módicos direitos de baldeação e importação levarão ao crescimento da renda do Estado e do emprego do povo. É necessária e útil a franqueza do comercio com os ingleses, pois desse modo participaremos da vantagem de seu comercio, e partilharemos da sua segurança, independência e força, além da honra e gloria. Sem uma aliança com a Inglaterra seria impensável a abertura dos portos brasileiros. As relações comerciais são importantes, pois “quanto mais de uma ou outra parte crescer a população, riqueza e potência tanto haverá, na mesma proporção, maior progresso de fundos, forças e facilidades para o mútuo comércio, auxilio recíproco e perene complacência”. Outra vantagem da aproximação com os ingleses é a proteção marítima que poderíamos lograr da “rainha dos mares”. Visconde de Cairu não acredita que a França seja um modelo a ser seguido, crê, antes, que esse país não terá tanta prosperidade quanta o Inglaterra por buscar a subjugação dos países vizinhos e não sua amizade, por sua população ser “subversora” da ordem e não buscar a prosperidade de suas indústrias, não prezar pelas relações comerciais transparentes, por desacreditar na importância de uma esquadra marinha (que é imprescindível para o comercio com todo o globo), e ainda não prezar a boa-fé das relações, excitar guerras, corromper os gabinetes, buscar obter ganhos com contrabando e lucrar com a miséria e calamidade, pretendendo monopolizar o comércio do mundo subjugando as nações à força, o que levaria, não a seu crescimento, mas à miséria dessas nações, e ainda buscar, pela difamação e ameaça, denegrir a imagem da Inglaterra, não respeitar as leis, os usos, os climas e as opiniões dos homens das outras nações. A aliança entre portugueses e a ingleses tem razoáveis motivos, e o governo britânico sempre deu sinais de seu respeito à independência da coroa portuguesa não intentando interferir nas instituições civis e religiosas, nem turbar a administração do Reino, não obstou ao estabelecimento de fábricas protegidas por tantas leis protecionistas. As vantagens que os ingleses tinham em virtude dos tratados não nos eram prejudiciais, pois incentivavam os ramos da indústria rural e mercantil, sendo eles os maiores compradores e pagadores dos nossos gêneros. Além disso, toda nação que celebra tratado busca, de alguma forma obter vantagens, por isso não se deve repugnar os ingleses por suas praticas, pois estavam apenas seguindo a lógica do mercado. Mas também é de se esperar que com essa nação tão esclarecida e liberal possam ser os tratados de comércio ajustados de acordo com as circunstancias sobre as bases da reciprocidade e observância dos direitos humanos das duas nações, portuguesa e inglesa. Os ingleses, em momentos de aperto nosso, sempre nos socorreram com armas, naus e dinheiro. Não têm fundamento as acusações de que os ingleses têm enriquecido às nossas custas, pois suas riquezas provêm de diversas partes do globo, além disso, o ouro que antes foi nosso e que agora pertencem aos ingleses foram trocados por mercadorias que nos eram necessárias, não havendo motivo para reter o ouro em nossas terras e privar-nos de gêneros essenciais além de atrair o interesse das outras nações para as nossas riquezas podendo desencadear uma guerra. A Inglaterra não visa empobrecer as nações nem destruir vidas com guerras, quer somente que sua gente se ocupe de trabalho produtivo (comércio), e a guerra ocupa grande parte dos braços e capitais que deixam, assim, de produzir. Só utiliza da guerra contra a França cuja ambição de seu governo desequilibrou a Europa, obstando melhoramentos, encadeando o comércio e constituindo o império francês um poder colossal em que só predomina violência e simulação. O interesse dos ingleses é que as nações prosperem para melhor pagarem os produtos de suas terras e indústrias. Nem mesmo a França consegue passar sem o comercio inglês. Onde entram as embarcações inglesas se vê a venda de produtos, trocando-os principalmente por materiais de manufatura, artigos de subsistência ou outras produções dos países com que tratam, não ofendendo nem repelindo os competidores nacionais ou estrangeiros (se excluem algum concorrente no mercado geral fazem-no pela relativa barateza e superioridade de suas fazendas; acresce
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