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www.arraeseditores.com.br Anúncio ARRAES2.indd 1 7/31/12 11:47 AM em revista www.arraeseditores.com.br - setembro 2012Arraes Editores DIREITO INTERNACIONAL em Expansão WAGNER MENEZES Ele revolucionou o estudo do Direito Internacional no Brasil ARTIGOS: André de Carvalho Ramos Augusto Jaeguer Cláudio Finkelstein George Galindo Jorge Fontoura Sidney Guerra Umberto Celli ENTREVISTA Celso Lafer Capa.indd 1 14/08/2012 09:57:37 Capa.indd 2 14/08/2012 09:57:46 2 Entrevista 8 Artigos 25 Matéria de Capa Celso Lafer 8 André Ramos O Mercosul democrático e a crise no Paraguai 10 Augusto Junior O Mercosul frente às mudanças terminológicas da União Europeia 12 Cláudio Finkelstein Decisão arbitral estrangeira e a exceção de ofensa à ordem pública 14 George Galindo Cidades Globais e Direito Internacional 17 Jorge Fontoura Os Dilemas da Diplomacia Climática 20 Sidney Guerra Onu, Meio Ambiente e o Desafio da Sustentabilidade 20 Umberto Celli Junior A OMC e os Acordos Preferenciais de Comércio: Da coexistência à coerência Wagner Menezes: Ele revolucionou o estudo do Direito Internacional no Brasil editorial Arraes Editores em Revista Expediente Diretor-Executivo: Renato Caram Diretor Administrativo-Financeiro: Thiago Ferrari Costa Editor: Plácido Arraes Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho Marketing: Joana Rodrigues de Souza Comunicação: Marilia Caram Projeto Gráfico e Diagramação: Usina de Ideia Revisão: Aline Zanin Lemes Arte da contra capa: Vladimir Oliveira Costa Tiragem: 10 mil exemplares Contato: Avenida Brasil, 1843/ loja 213 – Savassi, Belo Horizonte/MG Telefone: (31) 3031-2330 Email: arraes@arraeseditores.com.br; revista@arraeseditores.com.br A Arraes Editores em Revista é uma publica- ção da Arraes Editores Ltda. com distribuição gratuita e dirigida. Esta é uma edição espe- cial e exclusiva e as opiniões expressas nos artigos desta edição são de responsabilidade exclusiva de seus autores. Écom satisfação e alegria que oferecemos a comunidade acadêmica essa edição es- pecial da ARRAES EDITORES em REVISTA. O objetivo não podia ser outro senão o de marcar o posicionamento e comprometimento da Arraes Editores com eventos de qualidade e com publicações que atendam áreas estratégicas para os interesses do país como é o Direito Internacional. Nesta edição com tiragem especial e distribuição gratuita que será entregue em diversas instituições de ensino do país, a Arraes Editores faz uma homenagem especial ao tema Direito Internacional, tratando-o em diversos artigos em seus mais variados enfoques e, para isso con- vidou respeitados professores das mais variadas instituições do país para dar sua contribuição. A revista traz entrevista com o ilustre professor Celso Lafer, que fala de sua experiência ao longo de anos atuando no Direito Internacional, e também com o brilhante professor Wagner Menezes que tem sido apontado como responsável por uma verdadeira revolução no estudo do Direito Internacional no Brasil. Nas entrevistas, os respeitáveis professores falam de sua carreira, seus objetivos e seu comprometimento acadêmico. A Arraes Editores é uma editora jovem, que surgiu com o objetivo de editar e publicar obras de conteúdo técnico-científico, com especial destaque aos trabalhos acadêmicos de qualidade. O nosso Conselho Editorial é integrado por professores cujo trabalho tenha se destaca- do pela seriedade e contribuição na construção de um marco teórico consistente em sua area de pesquisa e atuação e também por editores com grande experiência no mercado editorial. A Arraes Editores tem como missão o estabelecimento de uma relação ética e transpa- rente com os autores, com o mercado editorial e, sobretudo, com os leitores, primando pela publicação de obras criteriosamente selecionadas, bem como pela excelência e qualidade na concepção dos projetos gráficos, com a aplicação da mais moderna técnica de diagramação e impressão, zelando pela mais ampla proteção e garantia dos direitos autorais de nossos parcei- ros e colaboradores. Desejamos uma boa leitura a todos !!! Renato Caram Arraes Editores em revista - setembro 20122 ENTREVISTA: CELSO LAFER entrevista considerações que provêm exclusiva- mente de um Direito Estatal no qual a soberania postula o poder de decla- rar, em última instância, a positivida- de da lei. Daí uma relação, dialética, como diria Miguel Reale, de mútua implicação e complementaridade entre Filosofia do Direito e Direito Inter- nacional Público. Não é por acaso, assim, que existe um terreno comum entre internacionalistas e jusfilósofos que vêm explorando de maneira con- vergente estes dois campos do conhe- cimento. Grócio e Kelsen, para citar dois nomes ilustres são, ao mesmo tempo, grandes pensadores da Teoria do Direito e do Direito Internacional Público. A obra de Martti Koskennie- mi e Mireille Delmas-Marty, dois dos mais instigantes internacionalistas contemporâneos, tem como carac- terísticas a presença da Filosofia do Direito na lida com um direito em movimento numa era como a nossa, assinalada pela dinâmica contradi- tória e complementar entre as forças centrífugas e as centrípetas que operam na sociedade internacional contem- porânea. Em síntese, na minha ava- liação e experiência, a Filosofia do Direito enriquece-se com o conhe- cimento do Direito Internacional Público e o campo teórico do Direito Internacional Público vê-se adensado pela reflexão jusfilosófica. Permito-me fazer um comen- tário adicional a propósito do Direi- to Internacional Privado. Um dos grandes temas da Teoria Geral do Direito diz respeito aos problemas que suscitam a reflexão sobre o ordena- mento jurídico a partir da consagrada O professor CELSO LAFER é o homenageado do “10º Congresso Brasileiro de Direito Internacional” professor titular da Universidade de São Paulo, ex-ministro das Relações Exteriores, teve toda a sua vida dedicada a pesquisa e formação de uma geração de juristas e por suas ideias é respeitado nas principais universidades estrangeiras, em entrevista para ARRAES Editores adota posições corajosas e de vanguarda que marcam a sua trajetória acadêmica. ARRAES: O senhor foi professor titular do departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Sobre essa matéria, qual é a importância do seu conhecimento para o estudo do Direito e das Relações Internacionais? CL - O Direito Internacional Público, mais do que qualquer ou- tra disciplina jurídica, caracteriza- -se por uma abertura em relação à Filosofia do Direito. Isto se explica porque dada a distribuição indivi- dual, porém desigual do poder entre os Estados no plano internacional, a relação entre as normas e a realidade é sempre mais problemática do que dogmática. Daí as tradicionais inda- gações, por exemplo, sobre a nature- za das normas do Direito Internacio- nal Público e as suas funções; sobre o fundamento do Direito Internacional Público; sobre a juridicidade do Di- reito internacional Público; sobre o papel e a relevância da argumentação e das posições baseadas no Direito no dia a dia das relações internacionais e da condução diplomática de um país; sobre as características da sociedade internacional que engendra o Direito Internacional Público. Bobbio, analisando um livro de Roberto Ago, apontava a relevância da contribuição dos internaciona- listas à Teoria do Direito, pois estu- dam um direito em movimento. Por isso, têm melhores condições para repensá-lo sem os hábitos mentais e os preconceitos provenientes das Arraes Editores em revista - setembro 2012 3 entrevista compreensão do Direito como uma kelseniana pirâmide escalonada das normas, subjacente à qual paira a pirâmidedo poder, cujo vértice é a soberania. O escalonamento da pi- râmide propicia a unidade do orde- namento e a função do controle da constitucionalidade é a de assegurar esta unidade. No mundo contemporâneo verifica-se, no plano jurídico, uma erosão do modelo hierárquico e a emergência da horizontalidade das redes jurídicas, para evocar uma re- flexão de Mario Losano. Neste con- texto, pirâmide e rede convivem e não é fácil para o jurista, nesta flui- dez, captar o direito na rede dos conceitos e de suas múltiplas fontes ou identificá-lo numa pirâmide nor- mativa em erosão, com dificuldades de assegurar a unidade do ordena- mento. Esta dificuldade é particular- mente complexa na lida com um dos problemas inerentes à teoria do orde- namento, que são os que provêm do inter-relacionamento entre distintos ordenamentos. Com efeito, a globali- zação propicia a internacionalização das relações jurídicas e, por via de consequência, uma intensificação do inter-relacionamento entre uma plu- ralidade de ordenamentos. Como é sabido, os procedimentos básicos na teoria do ordenamento para enfren- tar estes problemas são o reenvio e a recepção que requerem, no contexto contemporâneo, um aprofundamen- to adicional e uma atenção especial para com princípios mais gerais de disciplina como, por exemplo, ordem pública, boa-fé, fraude à lei, comitas gentium, etc. Em síntese, por obra do fato de uma generalizada inter- normatividade, a abordagem técnica não esgota a matéria e beneficia-se das contribuições que a Filosofia do Direito pode oferecer. Não é por aca- so, assim, que autores como Battifol e Werner Goldschmidt anteciparam esta convergência. Para concluir, não só existe uma aproximação crescente entre Direito Internacional Público e Privado - e a dinâmica da arbitragem internacional é, neste sentido, eluci- dativa - como também cabe apontar a relevância que tem, neste contex- to, a Filosofia do Direito concebida como um parar para pensar os pro- blemas jurídicos que não encontram solução no âmbito stricto sensu do Direito Positivo. ARRAES: Na sua opinião, quais os rumos do Direito Internacional Contemporâneo? Como o senhor analisa o debate entre a fragmentação e o pluralismo do Direito Internacional Contemporâneo? CL - Vou dar uma só e inte- grada resposta a estas duas perguntas que estão substantivamente correla- cionadas. Começo lembrando que Bobbio distingue as normas de con- duta, das de organização. As normas de conduta têm como função tornar possível a convivência de grupos ou indivíduos que buscam seus fins dos standards aceitáveis de conduta, indicando, deste modo, a provável conduta aos demais integrantes do sistema internacional. As normas de organização são as que têm como função promover a cooperação de grupos ou indivíduos dirigindo os seus fins específicos para uma finalidade comum. As normas de mútua colaboração do Direito Internacional Público, para as quais Wolfgang Friedmann chamou a aten- ção ao discutir as mudanças de es- trutura do Direito Internacional, são paradigmas deste tipo. Provêm das exigências de cooperação entre os Es- tados, os quais, por seu turno, consti- tuem uma consequência da distância entre o pressuposto da plenitude ir- restrita das soberanias jurídicas e as possibilidades mais circunscritas da “soberania operacional”. Originam-se das realidades da interdependência dos Estados num mundo unificado Daí uma relação, dialética, como diria Miguel Reale, de mútua implicação e complementaridade entre Filosofia do Direito e Direito Internacional Público. “ ”particulares. As normas de mútua abstenção do Direito Internacional Clássico são, por excelência, deste tipo. Resultam da lógica de Vestfália e da sua concepção do funcionamento do sistema internacional e almejam salvaguardar, através do recíproco reconhecimento no âmbito do siste- ma internacional, a plenitude jurí- dica das múltiplas soberanias. Têm como função evitar a instabilidade da fricção num sistema descentraliza- do e informar aos Estados a respeito pela técnica e pela economia, que levaram à diluição das fronteiras e amainaram as diferenças entre o “in- terno” dos Estados e o “externo” da dinâmica de funcionamento do siste- ma internacional. A travessia do Direito Inter- nacional de normas de mútua abs- tenção para as de mútua colaboração não é nem linear nem automática. O conceito de comunidade internacio- nal é uma ideia civilizadora, sujeita a marchas e contramarchas e não é Arraes Editores em revista - setembro 20124 simples a criação, pelos Estados, de modelos jurídicos baseados em nor- mas de mútua colaboração porque isto depende, num sistema interna- cional heterogêneo, da capacidade de identificar interesses comuns e com- partilháveis, de administrar as desi- gualdades do poder e de saber mediar a diversidade cultural e o conflito de valores. A isto cabe agregar que hoje se verifica, no plano internacional, uma disjunção entre ordem e poder. Com efeito, a crescente multipolari- dade econômica e política que subs- tituiu a “constituição material” do período da guerra fria, sob cuja égide foram se ampliando ratione materiae e ratione personae as normas do Di- rável relatório de 2006 da Comissão de Direito Internacional da ONU. Um dos pontos por ele sublinhado é o de não serem nítidas as relações inter se entre os mais diversos regi- mes jurídicos. Estes, inclusive criam uma cultura jurídica própria, que fre- quentemente tem dificuldade de dia- logar. Por exemplo, a cultura jurídica da OMC defende uma interpretação estrita de suas normas e a cultura ju- rídica do Direito Internacional dos Direitos Humanos advoga o ativismo judicial em matéria de interpretação jurídica de suas normas. As dificuldades de precisar ju- ridicamente as relações inter se entre esses diversos regimes jurídicos afe- cos especiais sem impor uma fusão, para construir uma ordem apta a dar uma resposta à complexidade jurídica do mundo; a encontrar uma harmonização que não seja fruto de imposição mas sim de hibridação; a tratar da relação entre o relativo e o universal pelo sábio uso do conceito da margem nacional de apreciação. Em síntese, na visão de Mireille Del- mas-Marty, no trato dos impasses da fragmentação, convém deixar de lado a utopia da unidade e a ilusão da au- tonomia a fim de explorar os cami- nhos de um processo de integração recíproca entre o uno e o múltiplo para engendrar um pluralismo or- denado. É neste desafiante contexto que se situam, no meu entender, os rumos do Direito Internacional. ARRAES: Adensamento de juridicidade e jurisdicionalização do Direito Internacional são temas que podem dialogar em uma análise do Direito Internacional Contemporâneo? CL - Agradeço a pergunta que me dá a oportunidade de retomar este tema, que considero de grande importância na análise do Direito In- ternacional Contemporâneo. Charles de Visscher, no seu grande livro Thé- ories et Realité en Droit International Public, faz uma distinção - uma di- cotomia ao modo de Bobbio - entre tensões e controvérsias. As tensões são difusas, têm objeto menos definido, exacerbam conflitos relacionados à distribuição de poder relativo dos Estados e, por isso mesmo, são menos redutíveis à razoabilidade da lógica diplomática e jurídica. Na morfologia das tensões, de Visscher faz referência às de hege- monia, que estão presentes na “alta política” do sistema internacional, e às de equilíbrio. Estas são afetadas pela tensão de hegemonia mas sua incidência usualmente ocorre no âm- bito regional, variando de grau à luz das especificidades políticas e das ri- validades próprias de cada região do mundo. entrevista ...é muito significativa a presença dolegado do Direito Internacional nas minhas duas gestões no Itamaraty... “ ”reito Internacional, não foi capaz, até agora, de gerar uma ordem interna-cional mais estável e dotada de visão de futuro. É por essa razão que o Di- reito Internacional, como um direito em movimento continua instaurando no plano mundial um “estado de di- reito” que é apenas provisório e tem dificuldades de consolidar-se. É nes- te horizonte que, no meu entender, coloca-se o debate em torno da frag- mentação e do pluralismo. O debate sobre a fragmentação resulta da emergência, intensificada pela globalização, de regimes jurídi- cos especiais, voltados para a coope- ração específica no campo do comér- cio, do meio ambiente, dos direitos humanos, das comunicações, da pre- venção da criminalidade transnacio- nal, da segurança, do mar, para dar alguns exemplos. Da fragmentação tratou Martti Koskenniemi em admi- tam o Direito Internacional Público Geral, pois uma normatividade de conteúdo variável leva, para voltar ao que disse na resposta à primeira pergunta, à horizontalidade da rede. Daí, para o jurista, os problemas de identificar no diálogo das fontes nor- mativas existentes qual é a unidade e coerência do Direito Internacional Público, pois não é inequívoca no seu âmbito, a hierarquia das normas. Parar para pensar os proble- mas de um direito flou é um tema recorrente da obra recente de Mi- reille Delmas-Marty que, com mui- ta imaginação jurídica e não menor precisão, vem se dedicando a explo- rar as possibilidades de ordenar o atual pluralismo jurídico do Direito Internacional Contemporâneo. São muito instigantes as reflexões por ela propostas, voltadas para resguardar a existência destes regimes jurídi- Arraes Editores em revista - setembro 2012 5 As controvérsias, em contras- te, são específicas e configuram um desacordo sobre um assunto suficien- temente circunscrito que, por isso mesmo, presta-se a reivindicações mais suscitáveis de encaminhamento por via diplomática e jurídica. As tensões são mais frequen- tes quando existem, entre os atores do sistema internacional, conflitos de concepção sobre como organizar e lidar com uma determinada área da agenda internacional ou regional. Na situação-limite das relações inter- nacionais e do Direito Internacional Público que é a da paz e da guerra, são escassas as probabilidades de ju- risdicionalização porque a questão tende a ter a complexidade de uma tensão que não se reduz à lógica de uma controvérsia. Em contraste, quando se ve- rifica maior homogeneidade de vi- são e perspectiva sobre os modos de estruturar a convivência numa deter- minada área da vida internacional, aumenta a possibilidade da redução do campo das tensões, abrindo espa- ço para a solução diplomática e jurí- dica de controvérsias. Contextos des- te tipo favorecem o adensamento da juridicidade e, por via de consequên- cia, a jurisdicionalização, ou seja, a solução jurídica de contenciosos por meio de um tertius supra partes. Foi no horizonte desta linha de reflexão que apontei as razões pe- las quais se verificou, na passagem do GATT para a OMC, um adensamento da juridicidade das normas de Direi- to Internacional Público do comércio internacional. Este adensamento de juridicidade resultou da diluição, no mundo pós-guerra fria, dos conflitos de concepção sobre como organizar a ordem comercial mundial. Foi isto que levou a um sistema multilateral de comércio efetivamente regido por normas (rules-based) no qual adqui- riu relevância própria o princípio da legalidade que transita pela segurança e previsibilidade das expectativas de todos os membros da OMC. Preser- var as normas do sistema multilateral de comércio, que são o ativo da OMC, exigiu, tanto coibir o unilateralismo de ação quanto ir além da jurisprudên- cia diplomática do GATT. Foi o obje- tivo comum de fortalecer institucio- nalmente um sistema multilateral de comércio regido por normas que en- sejou no âmbito da OMC um inédito sistema de solução de controvérsias tanto por meio da automaticidade de jurisdição (a regra do consenso inver- tido) que permite a criação de panels, quanto pelo controle dos reports de primeira instância por via do duplo grau de jurisdição representado pela criação do Órgão de Apelação. Isto só foi possível porque os membros da OMC aceitaram que os contencio- sos comerciais que surgem da living law de aplicação das suas normas são contenciosos de interesses, amol- dáveis à natureza de controvérsias e não tensões políticas provenientes de conflitos de concepção. Em síntese, na minha avalia- ção, processos de adensamento de juridicidade e de jurisdicionalização são convergentes, porém só se desen- volvem no plano internacional com a diluição, num determinado cam- po, de conflitos de concepção que ensejam tensões. As dificuldades de jurisdicionalizar o Direito Interna- cional do Meio-Ambiente, por exem- plo, estão vinculadas à existência não apenas de contenciosos ambientais, mas de tensões relacionadas ao como lidar, de maneira estruturada, com a construção de uma ordem interna- cional do meio ambiente. ARRAES: Política externa pragmática e Direito Internacional podem caminhar juntos? Na sua gestão à frente do Itamaraty qual foi o lugar do Direito Internacional? CL - A Constituição republi- cana de 1891 afirmou, no seu art. 88, a proibição da guerra de conquista e contemplou, no seu art. 34, o estímu- lo à arbitragem, estabelecendo assim uma moldura jurídica para a con- dução da política externa, aberta a princípios importantes do Direito In- ternacional. A visão da Constituição de 1891, nesta matéria, encontrou, subsequentemente, guarida no art. 4º da Constituição de 1934 e de 1946 e no art. 7 da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional nº 1 de 1969. A Constituição de 1988, a da redemocratização do Brasil, foi muito além destes dispositivos. Não apenas o seu preâmbulo, que é a expressão da ideia a realizar da Constituição de 1988, aponta o compromisso “na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias”, como também o art. 4 estabelece os princípios que regem as relações internacionais do Brasil. Estes princí- pios são representativos de uma aber- tura ao Direito Internacional, pois a sua positivação constitucional indica a irradiação de conceitos elaborados no âmbito do Direito das Gentes no plano do Direito Público Interno. Com efeito, os princípios do art. 4º estão próximos dos que basicamente regem, de acordo com o Direito In- ternacional Público, ex vi do artigo 2º da Carta das Nações Unidas, a co- munidade internacional e são muito semelhantes aos codificados na De- claração sobre as relações de amizade e cooperação entre os Estados apro- vada pela Assembleia Geral da ONU em 1970. É por isso que se pode dizer que, nos termos da Constituição de 1988, o respeito ao Direito Interna- cional é uma das dimensões do nos- so estado democrático de Direito. É por esse motivo, aliás, que tenho uma preocupação muito especial em relação ao posicionamento do Brasil em relação ao Paraguai no recente episódio da sua suspensão das atividades do Mercosul, que entendo não ter sido lastreada no respeito ao Direito Internacional, pelas razões articuladas abaixo na resposta à per- gunta sobre esta questão. O artigo 4º configura a mol- dura jurídica da ação diplomática brasileira. É por esse motivo que, no dia a dia da condução da política ex- terna, cabe ao Ministro das Relações Exteriores, como o principal cola- entrevista Arraes Editores em revista - setembro 20126 borador do Presidente da Repúbli- ca neste campo, estar atento a estes princípios ao formular juízos diplo- máticos sobre os modos de atuação do Brasilno mundo. Na formulação destes juízos diplomáticos tive, como Ministro das Relações Exteriores, a constante pre- ocupação de lastreá-los nestes princí- pios, tanto na minha primeira gestão em 1992 quanto na segunda em 2001- 2002. Tratei de como foram aplicados e interpretados na minha gestão do Itamaraty em 1992, no prefácio ao livro de 1994 de Pedro B. de Abreu Dallari, Constituição e Relações In- ternacionais. Discuti como foram aplicados e interpretados, na minha segunda gestão, em 2001-2002, no meu livro de 2005, A Internacionali- zação dos direitos humanos: constitui- ção, racismo e relações internacionais. Retomei e aprofundei a reflexão num ensaio de próxima publicação num dos volumes de estudos em homenagem ao prof. Jorge Miranda. Neste ensaio, que versa sobre a constitucionalização do Direito Interna- cional, examinei os desafios inerentes à tomada de posição da política externa, com base em princípios do Direito Internacional positivados pela Cons- tituição de 1988. Observo que Vital Moreira e Canotilho, tratando dos princípios do Direito Internacional positivados pela Constituição Por- tuguesa - que foi fonte inspiradora da nossa - apontam que devem ser interpretados levando em conta o espaço semântico de onde provêm. Por isso o conhecimento do Direi- to Internacional é muito relevante para o exercício do cargo de Minis- tro das Relações Exteriores. A isto agrego que o Direito Internacional participa da discussão da maior parte das facetas da condução da política externa e dos temas de governança global, assim como dos debates em torno destas questões. Por isso o do- mínio da substância e da linguagem do Direito Internacional, até mesmo para a visão “realista” das relações in- ternacionais - é de grande relevância para a condução da política externa. É o que apontam James Crawford, Martti Koskenniemi e Gerry Simp- son no recente Cambridge Compa- nion to International Law. Os princípios do art. 4º, assim como os princípios em geral num texto constitucional, tem uma função prospectiva. Proporcionam critérios para uma tomada de posição diante de situações concretas que, no entan- to, são indeterminadas, só adquirin- do significado operativo no momento de sua aplicação em casos concretos. Os princípios do art. 4º contêm um potencial de ambiguidades que pro- piciam antinomias. É o caso, por exemplo, do potencial do conflito numa dada conjuntura da condução da política externa entre o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4 - II) e o da não intervenção (art. 4 - IV), princípios que guardam sintonia com a Carta da ONU. Em outras circunstâncias, em função da dinâmica de funcionamento do siste- ma internacional, a realizabilidade de um princípio pode ser maior ou me- nor. Assim, por exemplo, o princípio de cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4, IX) que também está em sintonia com a Carta da ONU, depende de distintas constelações diplomáticas. Em 1992 o clima internacional pós-guerra fria abriu espaço para o trato multilateral dos temas globais, o que permitiu se- guir, com sucesso, a vis directiva do art. 8, IX na condução, pelo Brasil, da Rio 92. Já em 2001-2002, a aplicação deste princípio se viu limitada por uma realidade internacional de con- flito, fragmentação e unilateralismo. Daí as dificuldades de fazer avançar, por ocasião da Rio+10 em Johanes- burgo, em 2002, os temas do desen- volvimento sustentável. Isto não im- pediu, mas circunscreveu o alcance da realizabilidade do mandato de otimização do valor da cooperação consagrado no inciso IX do art. 4, na condução da política externa brasi- leira. Dos desafios inerentes que surgem para a formulação de dire- trizes da política externa com base nos princípios do artigo 4, concluí, no exercício da função de Chanceler, que cabe ao responsável pelo Itama- raty valer-se, por analogia, do método jurídico de ponderação no encami- nhamento do processo decisório. Em outras palavras, levar em conta, nas distintas conjunturas diplomáticas, a razoabilidade, a adequação e a neces- sidade para buscar, de boa-fé, o efeito razoável e útil dos valores positivados nos princípios do art. 4 que são repre- sentativos da abertura e do respeito ao Direito Internacional contemplados na Constituição de 1988. Estabelecer diretrizes da po- lítica externa com base no marco normativo do art. 4º requer um juí- zo diplomático dentro do escopo de standards jurídicos. Este juízo diplo- mático é um juízo reflexivo ao modo de Hannah Arendt. Trata-se de pen- sar em particular - que é o dado de uma situação concreta - para dela ex- trair o seu alcance geral, que está vin- culado ao respeito pelas normas do Direito Internacional. No exercício deste juízo diplomático cabe ao Po- der Executivo uma margem nacional de apreciação para levar apropriada- mente em conta tanto as caracterís- ticas próprias das conjunturas que suscitam uma tomada de posição, quanto a avaliação das transforma- ções, no plano internacional, dos conceitos do Direito Internacional Público, que é um direito em mo- vimento. Esta margem nacional de apreciação é indispensável, pois a po- lítica externa é, como tenho dito em várias ocasiões, uma política pública, voltada para traduzir necessidades internas em possibilidades externas à luz das especificidades nacionais, partindo de um ponto de vista, no caso do Brasil, sobre o funcionamen- to da “máquina do mundo”, tendo como horizonte as normas do Direito Internacional. Em síntese, é muito significa- tiva a presença do legado do Direito Internacional nas minhas duas ges- tões no Itamaraty e entendo que este legado coaduna-se com a condução de uma política externa compatível com os interesses nacionais e está em con- sonância com o que contemplam os valores e as normas da Constituição entrevista Arraes Editores em revista - setembro 2012 7 de 1988, como expus no correr desta longa resposta. ARRAES: A propósito do contexto do Brasil na América do Sul, qual a sua análise sobre episódios como o posicionamento no Paraguai recentemente? CL - Em artigo publicado na Folha de S.Paulo (4 de julho de 2012, p. A3), já tive a oportunidade de ma- nifestar-me sobre uma faceta jurídica deste posicionamento. Basicamente argumentei, no artigo, que a incorpo- ração da Venezuela ao Mercosul, pa- trocinada pelo Brasil, pela Argentina e pelo Uruguai, sem a aprovação do Pa- raguai, suspenso de participar das ati- vidades do Mercosul pela aplicação do Protocolo de Ushuaia é uma ilegalida- de. Fere frontalmente a explícita exi- gência desta aprovação contemplada no artigo 20 do Tratado de Assunção e o art. 23 do Protocolo de Ouro Preto sobre o processo decisório no Mer- cosul, desrespeitando, deste modo, o art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados em matéria dos critérios de observação dos Tratados em vigor e o art. 31 da mesma Con- venção, no que tange à regra geral de interpretação de Tratados. Vou, assim, explorar na respos- ta a esta pergunta uma outra faceta ju- rídica do problema que diz respeito aos procedimentos de aplicação do Proto- colo de Ushuaia que trata da cláusula democrática no Mercoul. Estabelece o art. 4º deste Protocolo que, “no caso de ruptura da ordem democrática em um Estado-parte do presente Protocolo, os demais Estados-parte promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado”. As consultas com o Paraguai não foram realizadas. A ausência des- tas consultas é um fato grave e confi- gura uma quebra do devido processo legal. Com efeito, no caso específico, o argumento da ruptura democrática no Paraguai tem como base a celeri- dade do processo de impeachment do Presidente Lugo que não teria tido temposuficiente para preparar a sua defesa neste processo conduzido pelo Legislativo paraguaio. Este processo, no entanto, foi considerado válido pelo Judiciário do Paraguai e em con- sonância com as normas constitu- cionais do Paraguai e sua legislação infraconstitucional relacionada a um juízo político sobre a destituição do cargo de Presidente por mau desem- penho de sua função. Neste contexto impunham-se substantivamente as consultas com o Paraguai como passo prévio para a aplicação de uma suspensão de sua participação no Mercosul. Explico- -me. A consulta é um mecanismo clássico do Direito Internacional e tem como objetivo a troca de opini- ões, no caso, ex vi do art. 4 do Pro- tocolo de Ushuaia, entre o Paraguai e a Argentina, o Brasil e o Uruguai sobre uma controvérsia em torno da existência de ruptura da ordem democrática. A função da consulta em geral, e neste caso específico, tem como objetivo embasar uma avalia- ção jurídica sobre a existência ou não de uma ruptura da ordem democrá- tica através da intelligence gathering na dupla acepção que a palavra in- telligence comporta: a da organização e seleção de informação pertinente e a da possibilidade de aprender o re- levante para compreender a situação que levou ao impeachment no âmbito do ordenamento jurídico paraguaio. Neste caso esta função da consulta era uma exigência indispensável, pois a avaliação da ruptura da ordem de- mocrática no Paraguai desconside- rou a avaliação feita pelo Legislativo e pelo Judiciário do país que não a considerou como tal. Neste contexto não foi inequívoca a ruptura da or- dem democrática e, por isso mesmo, a afirmação da sua ocorrência preci- saria ter sido bem fundamentada, o que não se verificou. É por isso que o Paraguai tem plenas condições de alegar que a sua suspensão do Mer- cosul não só não obedeceu ao iter do devido procedimento legal previsto pelo Protocolo de Ushuaia. Também a decisão da suspensão precisaria ser fundamentada, levando em conta, com base nas consultas que não se re- alizaram, as características de funcio- namento da divisão dos poderes e das normas constitucionais paraguaias tal como alegado pelo país. É por esta razão que o Paraguai pode arguir que a decisão, tal como foi tomada, fere o devido processo legal inerente aos Direitos Humanos no plano interna- cional e configura, deste modo, um desrespeito específico ao princípio de não intervenção. O princípio de não interven- ção é um princípio consagrado do Direito Internacional Público e foi constitucionalizado como um dos princípios que regem as relações in- ternacionais do Brasil (CF, art. 4 - IV). No caso do Protocolo de Ushuaia, o desrespeito a este princípio cria um precedente grave. Com efeito, a ava- liação das condições democráticas de um país é complexa e se não for bem elaborada e fundamentada pode dar margem ao arbítrio na aplicação de uma sanção, arbítrio que não se co- aduna com a importância que têm as normas num processo de integração da natureza do Mercosul. Em síntese, a decisão de sus- pender o Paraguai das atividades do Mercosul, que o Brasil respaldou, foi precipitada e poderá ter sérias conse- quências para o futuro do Mercosul. Foi, além do mais, uma decisão que, para o Brasil, é imprudente, dada a profundidade do nosso relaciona- mento com o Paraguai, de que são exemplos a binacional Itaipu e o tema dos brasiguaios. Para retomar o que disse em outra resposta, o posiciona- mento do Brasil tende a transformar em uma tensão de equilíbrio regional o que poderia ter sido encaminhado como uma controvérsia. entrevista Arraes Editores em revista - setembro 20128 por André de Carvalho Ramos mercosul e o paraguai O processo de impeachment e a destituição do Presidente Lugo, em aproximadamente 30 horas no Paraguai, em 22 de junho de 2012, é um epi- sódio que ficou marcado pela ausência do ‘devido processo legal’. A revela- ção de que o libelo acusatório sequer apresentou provas do que foi alegado para remover um Presidente da República (sob o argumento de que eram fatos notórios e não precisariam ser provados...), lançou a suspeita de que a decisão foi tomada arbitrariamente, sem que houvesse qualquer espaço para ampla defesa e contraditório. Se no Paraguai não há expectativa de revisão judicial dessa decisão, resta a defesa da democracia (e do necessário devido processo legal que deve ser seguido para se romper o mandato de um Presidente eleito), no plano internacional. Nesse sentido, cabe discutir o papel do Mercado Comum do Sul na promoção da democracia entre seus membros. A defesa da democra- cia acompanha o desenvolvimento dos esforços de integração do Mercado Comum do Sul (Mercosul), organização internacional composta por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, cuja construção iniciou-se em 1991 com o Tratado de Assunção. Já em 1992, foi adotada a Declaração Presidencial de Las Leñas, que explicitou a vontade política dos Estados a favor da plena vigência das instituições democráticas como condição indispensável para a existência e o desenvolvimento do Mercosul e, em 1996, foi elaborada a Declaração Presidencial sobre Compromisso Democrático no Mercosul, O MERCOSUL DEMOCRÁTICO E A CRISE NO PARAGUAI ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS Professor de Direito Interna- cional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Uni- versidade de São Paulo (Lar- go São Francisco). Procurador Regional da República. Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional. Autor, entre ou- tros, do livro Direitos Humanos na Integração Econômica. Rio de Janeiro: Renovar, 2008 e Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Inter- nacional, São Paulo: Saraiva, 2012. Arraes Editores em revista - setembro 2012 9 mercosul e o paraguai de 25 de junho de 1996, adotada na localidade de Potrero de Los Funes, Provincia de San Luis (Argentina). Nessa última Declaração, os Estados decidiram que o regime democrático era condição indispen- sável para a continuidade do proces- so integracionista. Natural, então, que dois anos depois, em 1998, te- nha sido celebrado o Protocolo de Ushuaia, que estabelece que a ma- nutenção da democracia é razão de continuidade da existência ou desen- volvimento do bloco. É difícil imaginar a conti- nuidade de um ambicioso processo de integração (que almeja, em úl- tima analise, a criação de um mer- cado comum) sem que houvesse a construção, em paralelo, de normas referentes ao Estado de Direito e De- mocracia. A confiança mútua que advém de compromissos políticos é passível de ser utilizada para apro- fundar a integração. Além desse “confidence building” entre os Esta- dos parceiros, o respeito ao Estado de Direito e à democracia incutem também nos agentes econômicos a confiabilidade necessária para que sejam feitas as transações e investi- mentos esperados. No caso de ruptura da ordem democrática em um Estado-parte do Protocolo de Ushuaia, os demais Estados-partes iniciarão consultas entre si e com o Estado em crise. Quando as consultas resultarem in- frutíferas, os demais Estados-partes do Protocolo, no âmbito específico dos acordos de Integração vigen- tes entre eles, devem decidir sobre a natureza e o alcance das medidas de coerção – visando o retorno ao regime democrático - a serem apli- cadas, levando em conta a gravidade da situação existente. O Protocolo, em seu artigo 5º, estabelece que as medidas compreenderão desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respec- tivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações re- sultantes destes processos. As medidas previstas no mencionado artigo 5º deverão ser adotadas por consenso pelos Estados-partes do presente Protocolo e comunicadas ao Esta- do afetado,que não participará do processo decisório pertinente. Tais medidas entrarão em vigor na data em que se faça a comunicação res- pectiva. De acordo com o artigo 7º do Protocolo as medidas cessarão com o pleno restabelecimento da ordem democrática. A falta de von- tade de explicitar o teor das medidas de coerção ao Estado-membro no qual ocorreu a ruptura democrática ficou evidente. Além disso, a regra do consenso (que impera no Merco- sul) foi também aqui adotada, o que pode dificultar a adoção de qualquer medida mais gravosa. Profeticamente, em dezem- bro de 2011, foi aprovada pelo Con- selho do Mercado Comum, a futura reforma do mecanismo democráti- co do Mercosul, por intermédio da adoção do Protocolo de Montevidéu Sobre Compromisso com a Demo- cracia no Mercosul (chamado pe- los próprios redatores de Protocolo “Ushuaia II”, para demonstrar suas origens). O novo Protocolo supre a lacuna do anterior e prevê, exempli- ficadamente, algumas medidas que podem ser adotadas para estimular o retorno à democracia, como: a) suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos da estrutura institucional do MERCOSUL; b) fechamento das fronteiras; c) sus- pensão ou limitação do comércio, o tráfego aéreo e marítimo, as co- municações e o fornecimento de energia, serviços e abastecimento; d) suspensão da Parte afetada do gozo dos direitos e benefícios emer- gentes do Mercosul; e) ações dos demais Estados para incentivar a suspensão do Estado infrator em outras organizações internacionais e também de direitos derivados de outros acordos de cooperação; e) ação dos Estados para apoiar os esforços regionais e internacionais (por exemplo, ONU) para o retorno à democracia e f) adoção de sanções políticas e diplomáticas adicionais. O novo Procotolo almeja evi- tar que o “inocente pague pelo cul- pado”: as medidas devem respeitar a proporcionalidade com a gravidade da situação existente e não deverão pôr em risco o bem-estar da popula- ção e o gozo efetivo dos Direitos Hu- manos e liberdades fundamentais no Estado afetado. O Protocolo Ushuaia II não entrou em vigor, mas pode servir como norte para a atuação dos Es- tados envolvidos, uma vez que algu- mas das medidas de coerção listadas acima podem ser adotadas pelos pa- íses do Mercosul, no interior do blo- co, ou ainda em suas próprias ações diplomáticas e em outras organiza- ções internacionais. Arraes Editores em revista - setembro 201210 O MERCOSUL FRENTE àS MUDANçAS TERMINOLóGICAS DA UNIãO EUROPEIA por Augusto Jaeger Junior mercosul e união europeia Já há muitos séculos a Europa transfere a outros continentes co- nhecimentos e experiências, em um constante processo de circulação de modelos. No âmbito do Direito, mais recentemente, tais modelos vêm sen- do observados com frequência pelo continente americano, sempre que ocorre um desenvolvimento no pro- cesso de integração atualmente cha- mado de União Europeia. Em 1957, foi criada a Comu- nidade Econômica Europeia, um bloco econômico que previu, naquele momento, como objetivo máximo, o alcance de um mercado comum, em um período de doze anos. Em função da criação de uma Comunidade, com vistas a um mercado comum, o Direi- to que surgiu para regulá-los foi cha- mado de Direito Comunitário. Com o tempo, ele assumiu características também supranacionais, e o bloco se expandiu qualitativa e quantitativa- mente. A parte supranacional desse Direito foi pelos juristas de lá chama- da de Direito Privado Comunitário, e por vezes, Direito Privado Comunitá- rio Europeu. Certo é que o desenvolvimen- to comunitário emprestou modelos jurídicos, e a atual União Europeia segue como exemplo para outras re- giões do mundo que pretendem al- cançar alguma forma de integração entre os seus países, e que, apesar de não seguirem um modelo idêntico, tomam alguns elementos substan- ciais para serem aplicados nos pro- cessos de integração desenvolvidos em seus territórios. Cedo, em 1960, a ideia de um mercado comum em um período de doze anos foi absor- vida também pela Associação Latino- -Americana de Livre Comércio (Tra- tado de Montevidéu, 1960-1980), por exemplo. O primeiro desses modelos é a fase de mercado comum e a própria expressão mercado comum. O pro- cesso de integração que se desenvolve na região do mundo conhecida como Cone Sul, desde 1991, tem o nome de Mercosul devido à importação do objetivo e da expressão mercado co- mum do processo europeu (que aqui foram acrescidos da partícula - do Sul: Mercado Comum do Sul). O ad- jetivo comum pode ter sido buscado, não unicamente na clássica expres- são da Economia, mas também no radical do substantivo comunidade. Com o Ato Único Europeu, de 1987, o termo mercado comum passou a ser afrontado por um novo termo, mercado interno, que passou a constar, em paralelo squele, dos tratados fundacionais da hoje União Europeia. A entrada em vigor do Tra- tado de Lisboa, em 2009, aboliu, em definitivo, o termo mercado comum dos textos normativos. Um segundo modelo interes- sante é o nome que foi dado para o ramo da Ciência Jurídica que regeria as Comunidades, Direito Comunitá- rio (Europeu). Ocorre que, também por força do Tratado de Lisboa, duas remanescentes Comunidades Euro- peias foram incorporadas à União Europeia, que as substituiu à luz do Direito Internacional Público. Elas não mais existindo, o Direito Comu- nitário, em ambas facetas, intergo- vernamental e supranacional, passou a ser referido criativamente de Di- reito da União (Europeia). Jornais e revistas europeus especializados tra- taram da questão da manutenção ou modificação do nome dado ao direi- to que rege o processo de integração europeu, e aviltou-se uma troca dos seus próprios nomes! Posto isto, cabe, então, discor- rer sobre como nós, integrantes do Mercosul, compreendemos o novo Direito da União, e como entende- mos que devem restar agora, depois dessas modificações terminológicas, Arraes Editores em revista - setembro 2012 11 mercosul e união europeia as menções ao Mercado Comum do Sul, à fase de integração econômica pretendida por esse bloco, a de mer- cado comum, e ao Direito que rege esse processo. Quase não prestamos atenção à distinção entre o Direito suprana- cional, privado, e o público, intergo- vernamental, da União. A distinção que mais nos interessa é aquela entre o Direito da Integração e o Direito Comunitário. Esse último deverá permanecer conhecido e utilizado entre nós, por força da sua popula- rização no meio acadêmico ou pelo fato de ainda ser almejado um mer- cado comum entre os Estados-partes do Mercosul. Contudo, em verdade, vemos diferenças entre esses ramos. O Direito da União refere-se ao mo- mento temporal após a desaparição das Comunidades Europeias. Já en- tre Direito da Integração e Direito Comunitário, há uma constante con- fusão. Temos que o Direito Comu- nitário é aquele que diz respeito aos tratados constitutivos e ao direito do bloco europeu, não importando se de caráter intergovernamental ou supra- nacional. O Direito Comunitário é um Direito de Integração evoluí- do, aperfeiçoado, hoje presente na União Europeia. Trata-se de uma disciplina autônoma que não está inserida no ramo do Direito Inter- nacional Público. Por outro lado, Direito da Inte- gração é aquele que se refere aos pro- cessos ainda conduzidos unicamente pela intergovernabilidade, como é o caso do Mercosul. Embora afins em alguns aspectos, essas não são disci- plinas idênticas, os termos não são sinônimos, versam sobre objetos di- versos, tratam de conceitos próprios e abordam normas distintas. Nos blo- cos econômicos em que a autonomia de seus integrantes é mais acentuada, e que, em contrapartida, a integraçãoé menor, estar-se á frente ao Direito de Integração, posto que fundados na intergovernabilidade. As normas desse último não possuem efeito di- reto, as comunitárias têm autonomia e estão hierarquicamente acima das nacionais. A diferença essencial entre o ordenamento comunitário e o inter- nacional consiste em que este não se impõe à ordem jurídica dos Estados, não existindo, como se sabe, uma ascendência jurídica do tribunal in- ternacional sobre as cortes nacionais, até porque não existe um órgão insti- tucionalizado com essa competência. Já em relação ao Direito Comunitá- rio ocorre, fruto de composição sui generis, uma subordinação das or- dens jurídicas internas ao Tribunal de Justiça da União Europeia. Nesse sentido, não há que se falar em Direito Comunitário do Mercosul, em Direito Comunitário da Integração, também não em Di- reito Comunitário Europeu, pois é somente o europeu que existe, e em Direito Europeu, também pelo fato de que a União Europeia não repre- senta toda a Europa. Ela é a única organização, na atualidade, que tem Direito Comunitário ou da União. Assim sendo, não é necessário referir- -se a ele como Direito Comunitário Europeu ou da União Europeu. O termo Di- reito da União é sim- pático, expressivo, e deverá ser aceito entre nós do Sul como refe- rente ao processo euro- AuGuSTO JAEGER JuNiOR Professor da Faculdade de Direi- to da UFRGS, Porto Alegre peu, público e privado, supranacio- nal e intergovernamental. Mas, seja pela popularização do termo entre nós quando referimos à União Eu- ropeia, ou porque nós seguimos na busca de um mercado comum, não de um mercado interno, para o Mer- cosul, vemos com apreço também a manutenção do termo Direito Co- munitário. Fo to : A ng el ika H ar ks en , M ax P lan ck In st itu te fo r C om pa ra tiv e an d In te rn at io na l P riv at e La w in H am bu rg por Cláudio Finkelstein arbitragem e ordem pública Em aulas de Direito Internacional Privado, discor- remos a nossos alunos sobre o procedimento de homologação de sentenças estrangeiras, e o processo inerente a sua incor- poração ao nosso sistema enquanto pressuposto de validade da própria decisão. Como regra, o procedimento de homolo- gação de laudos arbitrais estrangeiros segue o mesmo rito da homologação da sentença estrangeira empreendido pelo STJ. Iremos analisar brevemente a questão da legalidade do procedimento adotado em arbitragem internacional, e a consequente homologação do laudo quando houver, em tese, ofensa à ordem pública brasileira. DECISãO ARBITRAL ESTRANGEIRA E A EXCEçãO DE OFENSA à ORDEM PÚBLICA Pela eleição da lei aplicável, as partes indicam exata- mente qual ordenamento desejam para reger as obrigações contraídas. Essa faculdade atribuída às partes de escolher a lei que será aplicável ao contrato celebrado deriva do chamado princípio da autonomia da vontade1. Por ser, em tese, admiti- da na elaboração dos contratos internacionais, a autonomia da vontade é princípio de grande relevância no âmbito do comér- cio internacional. Diz-se em tese, pois a despeito de grande discussão doutrinária a respeito de sua validade, os tribunais brasileiros até o presente ainda não se pronunciaram quanto a sua validade, tendo no mais das vezes o afastado2. Algumas arbitragem e ordem pública Cláudio Finkelstein Mestre, Doutor e Livre-Do- cente em Direito. Professor e Coordenador de Subárea do Curso de Pós-Graduação da PUC/SP. Ex-Coordena- dor do Curso de Contratos Internacionais do COGEAE/ PUC e da FGV/SP. Árbitro. Advogado. recentes decisões indicam uma tendên- cia pró-autonomia nos procedimentos arbitrais3. Cumpre então aprofundar a conceituação do instituto da autono- mia da vontade4 aplicada ao campo dos contratos internacionais. Seria assim, a faculdade outorgada às partes de uma obrigação, para criar, nos estri- tos limites da lei aplicável, as regras oponíveis aos contratantes. Irineu Strenger parte da conceituação de vontade para formular sua definição de autonomia da vontade. Para ele, vontade é “uma forma de atividade pessoal que comporta, de manei- ra praticamente completa, a repre- sentação do ato a produzir, ou uma suspensão provisória da tendência a praticar esse ato, intervindo nesse processo o sentimento do valor das razões, que podem determinar ou não o seu cumprimento”.5 A partir daí, Strenger define a autonomia da vontade como um “poder insupri- mível no homem de criar, por ato de vontade, uma situação jurídica, desde que esse ato tenha objeto lícito”. A autonomia da vontade no Direito Internacional Privado im- plica em autorização para criar para as partes do contrato novas formas e modelos contratuais, cláusulas e NOTAS 1 Para alguns, a questão confunde-se com a autonomia contratual. “Dal punto di vista dell’ordinamento giuriudico, questo significa in generale che l’ordinamento stesso rinuncia, entro certi limiti, ad intromettersi in alcune relazioni interindiuvi- duali com regole proprie e che rende giuridicamente vincolante e tutela i regolamenti di interessi posti in essere dalle parti secondo le modalità previste dalla legge.” Di Nella, Lucca. Mercato e autonomia contrattuale nell’ordinamento comunitário. Edizioni Scientifiche Italiane. Napoli. 2003. Ainda que autorizado pelo trabalho legislativo na construção de nosso arcabou- ço jurídico (autonomia privada) e previsto na lei de arbitragem (portanto disponível às partes em virtude de sua autonomia de vontade) a eleição de lei estrangeira encontra óbices intransponíveis na imperatividade da nossa lei, ou na reserva legal outorgada ao nosso ordenamento para reger determinadas operações. 2 Recurso Extraordinário nº 93.131-MG, 1981. 3 TJSP AI n 0037936-45(19/06/2012); Relator Roberto Mac Cracken “ao árbitro também cabe verificar os pressupostos de exis- tência, validade e eficácia do direito disponível que será objeto da arbitragem, afastando, assim, via de regra, a competência do Estado-juiz em promover tal apreciação.” 4 Cabe pontificar que autonomia da vontade não se confunde com autonomia privada. Esse último é o poder que os particula- res recebem, pelo ordenamento jurídico, para criar dispositivos negociais vinculantes. Já a autonomia da vontade, conforme a lição de Heleno Tôrres, só é exercida em um segundo momento, quando o particular, valendo-se da autonomia privada, seleciona os sujeitos, as condições, os procedimentos que irá adotar no negócio jurídico pretendido. (TÔRRES, Heleno, Direito Tributário e Direito Privado, São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2003 p. 116). 5 STRENGER, Irineu, Da Autonomia da Vontade, p. 24. modalidades de cumprimento, paga- mentos e garantia, assim como a pos- sibilidade da escolha da lei aplicável a tais contratos, e a escolha do órgão jurisdicional competente para diri- mir eventuais litígios decorrentes do mesmo, assim como o procedimento para seu curso. No entanto, essa liberdade de ação conferida às partes contratantes não é ilimitada, vez que não pode afastar a aplicabilidade das chamadas normas de ordem pública vigentes nos países com os quais o contrato internacional esteja relacionado, ou seja, aquelas jurisdições nas quais re- ferido contrato internacional produ- zirá seus efeitos. Importante notar, no entanto, que pelo atual e arrojado entendi- mento do STJ, a lei aplicável à forma do ato “é a lei a que as partes se sub- meteram ou, na falta dela, à do país onde a sentença arbitral foi proferi- da.” (SEC 3.709/US; DJe: 29/06/2012). Assim, como no caso acima, a ausência de assinatura da parte bra- sileira em contrato contendo cláusula compromissória não seria um óbice à ordem pública, vez que ao participar da arbitrageminternacional, ainda que de acordo com as regras proces- suais alienígenas, a parte brasileira participou do Compromisso Arbitral para reconvir em arbitragem, sendo ofensivo ao Princípio da Boa-Fé ne- gar a validade do procedimento ho- mologatório. Arraes Editores em revista - setembro 201214 por George Rodrigo Bandeira Galindo direito internacional CIDADES GLOBAIS E DIREITO INTERNACIONAL Durante a recente Conferên- cia das Nações Unidas sobre Desen- volvimento Sustentável - Rio +20, um dado chamou a atenção de alguns observadores e de grande parte da imprensa. Paralelamente ao evento, o grupo C40 (em inglês, C40 Cities Climate Leadership Group) reuniu- -se na chamada Cúpula dos Prefeitos para discutir e comprometer dirigen- tes municipais de diversas partes do mundo a reduzir a emissão de gases do efeito estufa em um bilhão de to- neladas até o ano de 2030. Mais atenção que o dado, declarações de membros do grupo mostram explicitamente o fortaleci- mento de um processo que já há al- guns anos vem se desenrolando: o da concorrência entre cidades e Estados como centros de poder na tomada de importantes decisões políticas. Na ocasião, o atual presidente do grupo, o prefeito de Nova Iorque, Michael Bloomberg lembrou a liderança das cidades no processo de redução dos gases: “O encontro de hoje é mais uma prova de que as cidades continu- am liderando ações que apresentam resultados tangíveis”.1 Ao ressaltar a necessidade de as cidades receberem recursos do governo central, Bloom- berg foi incisivo e direto: “Queremos que eles nos deem dinheiro, mas não queremos que deem opinião sobre o que fazemos”.2 Por sua vez, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, fez questão de evidenciar o poder políti- co das cidades: “As ações locais têm impacto muito grande no cotidiano do planeta. Mobilizados, os muni- cípios têm um grande poder para trazer visibilidade e importância à questão ambiental”.3 Paes também fa- lou criticamente sobre o processo de negociação da Rio+20, recorrendo à ideia de “agilidade”: “são 200 pessoas discutindo cada vírgula de um gran- de documento. Sinceramente, como prefeito, eu não gostaria de participar dessa discussão. Quando se governa uma cidade com milhões de pessoas, é preciso ter agilidade”.4 As cidades têm sido um im- portante objeto de investigação das ciências sociais. A renomada soci- óloga, Saskia Sassen, por exemplo, ganhou notoriedade por cunhar o termo “cidades globais”. Para ela, a combinação de “dispersão social e integração global” abriu um novo papel estratégico para as grandes cidades. A economia global passa a atribuir um papel muito importante a algumas cidades não apenas como polos de concentração de empresas, mas, dentre outros elementos, por serem lugares de produção, inclusive de inovação.5 Entende-se, assim, por- que Bloomberg não reconhece nos governos centrais uma autoridade para dizer às cidades o que fazer, e Paes vê na articulação dos prefeitos de grandes cidades uma qualidade não encontrada na articulação realizada entre representantes de Estados: a agilidade. Antes esse quadro, cabe indagar que resposta o Direito Internacional ensaia dar para essa mudança significativa de estruturação das relações sociais globais. Para um pouco além da pers- pectiva de Sassen, que se concentra no estudo das cidades globais do ponto de vista da economia mundial, é importante partir de um conceito de cidade global com impactos diretos também para a esfera jurídica. Nesse sentido, o conceito de Jean Bernard Auby é suficientemente amplo. Para ele, “cidades globais são locais onde muito da riqueza e do poder estão concentrados, e que estão em posi- ção de tomar parte em redes globais muito influentes e em situação de in- dependência real, mas limitada, em relação aos seus Estados e governos nacionais”.6 Certa tradição de pensamen- to internacionalista nunca deixou de atribuir importância a cidades para o surgimento e funcionamento de um sistema jurídico internacional. Ro- berto Ago, por exemplo, já na déca- da de 1970, lembrava que o Direito Internacional teria surgido de um contexto que poderia ser descrito como pluralismo jurídico. As origens do sistema estariam propriamente não na Paz de Westphalia, mas na Arraes Editores em revista - setembro 2012 15 direito internacional emergência de certas coletividades ter- ritoriais, como as chamadas cidades- -Estado italianas.7 Essa tradição, no entanto, vê a importância das cidades apenas na medida em que elas, ao se- rem superadas, cederam espaço para uma outra entidade disposta a reali- zar a centralização do poder em um território delimitado: o Estado. Diferentemente da atribuição de importância às cidades a partir de um modelo evolutivo de sua supera- ção pelos Estados, o desafio atual é compreender como o Direito Inter- nacional pode (ou deve) regular um espaço social em que Estados e cida- des convivem, muitas vezes conver- gem em seus interesses, mas também competem entre si. Uma importante estudiosa do tema, a jurista holandesa Janne Nijman,8 acredita que essa convi- vência entre Estados e cidades ain- da durará algum tempo e o Direito Internacional necessita oferecer canais para ela. Nijman prevê ao menos seis tipos de impacto que as cidades globais proporcionarão ao Direito Internacional. Serão intensificadas relações diretas e institucionalizadas entre Ins- tituições Internacionais e as cidades. Diversos documentos internacionais já mencionam a importância das ci- dades no cenário global. É o caso de instrumentos ambientais, como a Agenda 21 ou aqueles que lidam com problemas cruciais como a ocupação urbana – veja-se a Conferência das Nações Unidas - Habitat. No futuro, cidades poderiam até ocupar o status ao menos de observadoras em algu- mas organizações internacionais. A implementação e aplica- ção do Direito Internacional passa- rá crescentemente pelas cidades. A própria decisão do C40 de reduzir a emissão de gases poluentes pode ser vista como tendência nesse sentido. Está-se diante da situação em que, dada a relutância ou inépcia dos go- vernos centrais em se conformarem a padrões de proteção ambiental, as ci- dades passarão a ocupar esse papel, à revelia mesmo dos governos centrais. Sistemas federativos que pouca ou nenhuma importância dão a Estados e municípios na conduta das relações exteriores – como é o caso do Brasil – serão forçados a adaptar a divisão de competências para acomodar in- teresses e mesmo necessidades que só podem ser bem identificados e supridos na esfera regional ou local. O Direito Internacional pau- latinamente se tornará menos for- mal. A desformalização do Direito Internacional, que tem sido objeto de inúmeras discussões na discipli- na atualmente, afeta diretamente as cidades. A reunião do C40 ocorreu paralelamente à Rio+20 e não impli- ca um compromisso formal entre as cidades. Tais instrumentos se mul- tiplicam em diversas áreas e a pres- são para torná-los vinculantes – seja direta ou indiretamente – poderá crescer quando, por exemplo, cida- dãos tentarem impor, em tribunais internos (ou internacionais) o cum- primento de tais padrões. As cidades se tornarão atores informais na produção do Direito Internacional. De maneira conjunta ou isolada, até mesmo instrumentos jurídicos formais não ficarão imu- nes à influência das cidades. Nijman dá inclusive o exemplo de iniciati- vas nesse sentido na Organização Mundial da Saúde, que encorajou a presença de autoridades locais em delegações de Estados para discutir temas que dizem respeito às cida- des. O quinto cenário prospectivo diz respeito à tendên- cia do Direito Internacio- nal de se dirigir diretamente àscidades. Diversas organizações in- ternacionais vêm delineando pau- latinamente um conceito de “boa governança urbana” que, ao mesmo tempo em que ressalta campos de atuação para as cidades, estabele- ce obrigações para elas – ainda que não estritamente jurídicas. Isso quer dizer que as recentes discussões so- bre a necessidade de observância de princípios como a democracia ou os Direitos Humanos como pré-requisi- to para o reconhecimento de Estados não se esgotam nesse locus. Cidades também precisam se comprometer com certos padrões. Desse desenvol- vimento, uma nova forma de com- preender os assuntos internos de um Estado (e de uma cidade), com os inúmeros conflitos que disso podem advir, surgirá. Por último, Nijman apresenta – de maneira um tanto claudicante – o cenário da cidade como um sujeito de Direito Internacional no futuro. Esse seria um coroamento buscado pelas cidades diante de seu crescente poder em matéria de implementação e produção normativa internacional, além de participação em instituições internacionais. Ainda que tal subjeti- vidade seja caracterizada como bran- da (soft), o fato é que o Direito Inter- nacional do futuro terá de acomodar, de algum modo, as cidades. Além dos cenários apresen- tados acima, pode-se perceber que a emergência das cida- des porá em destaque Arraes Editores em revista - setembro 201216 dois grandes desafios para o Direito Internacional. Primeiramente, o sistema jurídico internacional terá de esta- belecer uma normativa própria de responsabilização jurídica para atos oriundos do poder local. A correla- ção existente entre direito e obriga- ções como elementos para a inserção de uma entidade como sujeito de Di- reito Internacional torna irrelevantes uma série de atos que, na prática, são de difícil atribuição ao poder central – que representa o Estado interna- cionalmente. O chamado princípio da responsabilidade unitária – que prescreve que o Estado é um só em termos de responsabilidade interna- cional, independentemente de suas divisões internas – produz uma série de distorções, pois poucas violações em um nível micro são levadas ao Direito Internacional para serem re- solvidas. A visualização das cidades no cenário internacional pode per- mitir que problemas aparentemente vistos como meramente locais e de pouca importância adquiram uma estatura internacional e possam ser resolvidos – inclusive juridicamen- te – pelo Direito Internacional. Para isso, é preciso repensar a correlação direitos/obrigações, pois ela permite às cidades argumentarem que, por não possuírem direitos formalmente reconhecidos na esfera internacional, não podem igualmente ser obrigadas nessa esfera. Em segundo lugar, as normas de Direito Internacional deverão le- var em conta as diferenças materiais entre as cidades como uma diferença juridicamente relevante. As discre- pâncias materiais entre as cidades talvez sejam mais significativas que aquelas existentes entre os Estados. O índice “global” concedido a uma cidade é passível de numerosas gra- dações. As alianças ou grupos de ci- dades são estabelecidas por aquelas que possuem uma relevância e poder de barganha maiores. Há milhares de cidades que não se fazem representar em tais entidades mas que sofrem consequências concretas por conta da urbanização crescente do mundo. Em outras palavras, a inserção das cidades no Direito Internacional é necessária, mas deve acontecer com o reconhecimento formal das desi- gualdades de condições existentes entre elas. Ao índice “global”, o índice “desigualdade” necessita ser acres- centado. Tal movimento, inclusive, permitirá que o Direito Internacional se envolva mais diretamente com te- mas que tradicionalmente ele tem se furtado a tratar, em virtude do recur- NOTAS 1 Ver http://c40.org/media/press_releases/prefeitos-das-maiores-cidades-do-mundo-anunciam-medidas-para-reduzir-a- -emissão-de-gases-do-efeito-estufa 2 Ver http://www.valor.com.br/rio20/2720118/questoes-ambientais-devem-ser-discutidas-localmente-dizem-prefeitos 3 Ver http://c40.org/media/press_releases/prefeitos-das-maiores-cidades-do-mundo-anunciam-medidas-para-reduzir-a- -emissão-de-gases-do-efeito-estufa 4 Ver http://www.valor.com.br/rio20/2720118/questoes-ambientais-devem-ser-discutidas-localmente-dizem-prefeitos 5 SASSEN, Saskia. The Global City. 2nd ed. Princeton: Princeton University Press, 2001, p. 3-13. 6 AUBY, Jean- Bernard. Mega-Cities, Glocalisation and the Law of the Future. In: MULLER, Sam eta al (ed.). The Law of the Future and the Future of Law. Oslo: Torkel Opsahl Academic EPublisher, 2011, p. 205. 7 Ver AGO, Roberto. El pluralismo de la comunidad internacional en la época de su nacimiento. In: Estudios de Derecho Internacional, Homenaje al profesor Miaja de la Muela. Tomo I. Madrid: Tecnos, 1979, p. 71-97. 8 Ver NIJMAN, Janne. The Future of the City and the International Law of the Future. In: MULLER, Sam eta al (ed.). The Law of the Future and the Future of Law. Oslo: Torkel Opsahl Academic EPublisher, 2011, p. 213-229. Este artigo traz vários exemplos concretos de atuação das cidades no plano internacional. direito internacional George Rodrigo Bandeira Galindo Professor e Vice-Diretor da Faculdade de Direito, UnB so a critérios excessivamente formais (como os elementos que compõem o Estado ou o domínio reservado). A realização da Rio+20 e o evento paralelo da C-40 mostram que um palco novo e cada vez mais amplo se abre aos internacionalistas. Cabe a estes utilizar esse novo palco para montar uma peça mais compro- metida com valores muito básicos, mas que constantemente perdemos de vista, como igualdade e justiça. Arraes Editores em revista - setembro 2012 17 por Jorge Fontoura OS DILEMAS DA DIPLOMACIA CLIMÁTICA A inserção de temas ecologi- camente corretos e de tutela do meio ambiente ganhou espaço definitivo na grande agenda internacional. De forma curiosa, não foram temores procedentes de catástrofes nucle- ares que precipitaram o advento da defesa do meio ambiente como tema de primeira grandeza, dentre as tendências e prioridades da polí- tica internacional. Com efeito, o es- pectro a enfrentar era a certeza da mútua destruição assegurada, o in- sano plano MAD – de mutual assured destruction, mas também “mad” em seu outro sentido, “louco”, na pers- pectiva do holocausto nuclear que se desenhava com a terceira guer- ra mundial: devido a possibilidade de incontáveis revides atômicos, da capacity of second strike, o país destruído destruiria seu destruidor. Com isso, já no limiar dos anos de 1950, arsenais nucleares disponí- veis eram aptos a destruir a terra por dezenas de vezes. Se o desarmamento e a dis- suasão nuclear foram os apelos ex- celentes do segundo pós-guerra, a grande demanda do pós-guerra fria projeta-se para o tratamento e para o enfrentamento jurídico do aque- cimento global e das consequências funestas do efeito estufa. Trata-se de inconteste zeitgeist daquele mo- mento histórico, a envolver países desenvolvidos e em desenvolvi- mento, agrícolas e industrializados, periféricos e emergentes, hegemô- nicos ou não. A necessidade da governança internacional do meio ambiente tornou-se, no giro de poucas décadas, em apelo abran- gente e inadiável, de plena inser- ção na pauta multilateral. Afinal, o meio ambiente não usa passaporte. E de fato, quando se pergunta qual o futuro do planeta, a indagação pa- rece abstrair questões como grau de desenvolvimento, ideologia, políti- ca ou economia. Nesse quadro, o Brasil tem sido ator dos mais participativos, e ao mesmo tempo polêmico, tanto como gerador contumaz de problemas, quanto como formulador eficiente de soluções. Com isso, a diplomacia Arraes Editores em revista- setembro 201218 brasileira tem-se debruçado com re- novado interesse em relação ao tema, em crise de identidade a contemplar constantes idas e vindas do banco dos réus para o púlpito solene da acusa- ção. O poder simbológico da escolha do Rio de Janeiro, desde os primei- ros anos de 1990, para substituir Kyoto e as capitais nórdicas como lócus emblemáticos de negociações ambientalistas, em prol de entente universal, desde logo demonstra o protagonismo e o ativismo exitoso das postulações brasileiras. Em de- zembro de 2009, em Copenhague, em uma Dinamarca exultante pelo seu então recente ingresso na União Europeia, 45 mil pessoas e 125 chefes de estados e de governos se debruça- ram de forma inconcludente sobre o A inserção de temas ecologicamente corretos e de tutela do meio ambiente ganhou espaço definitivo na grande agenda internacional. “ ” Copenhague foi desde logo sig- no de frustração, na impossibilidade de permitir a geração de obrigações internacionais gerais e abrangen- tes, as únicas formas satisfatórias de fazer-se face aos dilemas ambientais de maneira consequente. Desafortu- nadamente, na fórmula que se vem repetindo à exaustão, até os resul- tados verificados na recente cúpula climática denominada Rio+20, os países grandes recusaram-se a pa- gar a conta. Dentre outras razões, porque adstritos a rationale do po- der e do realismo político, renun- ciaram as suas responsabilidades como inveterados países poluidores. Já os pequenos, porque pequenos, deixaram de fazê-lo por não poder. Quando da reunião da Dinamarca, Enquanto a Europa vai en- sinando paulatinamente ao mundo que a política não pode ser sempre refém da economia, no reposicio- namento acerca do projeto suicida de salvar o euro a qualquer preço, ainda que a custa de bem-estar das pessoas, as fantasmagorias do aque- cimento global continuam a pairar, agravadas pelos interesses econô- micos que aprisionam a política e, por consequência, a diplomacia. Como negociadores e justificadores da insensatez inevitável, burocratas e diplomatas constroem o discurso da postergação, na árdua tarefa de elaborar comunicados conjuntos que nada dizem. Comunicados no mais das vezes versados em lingua- gem evasiva de soft low, ou de ley blanda, apenas exortatória e pouco ou nada mandamental. Pelos impe- rativos da razão e contra a insub- missão de mandatários mesmerizados pelo calendário eleitoral e pelo pejo imediatista de manutenção do po- der a qualquer preço, há urgência na reversão de posições de cautela e de inação dos principais líderes mundiais em face da urgência da governança ambiental global. Isso para que se possa avançar no inadi- ável clamor da sociedade civil para a construção de regime eficiente, com governança, prevenção e precaução. Em face do ululante sinal vermelho ambiental, não há mais tempo histó- rico disponível para tergiversações e dissimulações mascaradas por dis- cursos pretensamente favoráveis ao meio ambiente, porém desprovidos de ações de Estado. Ações condu- centes a acervo de obrigações jurí- dicas multilaterais, voluntariamente assumidas pelos países. Embora os tempos e contratempos da política externa tenham sempre seus misté- rios, a par das diplomacias presiden- ciais em off, nem sempre alinhadas com as posições das chancelarias e das delegações negociadoras, a uniformização dos discursos, bem como a clara definição das responsa- bilidades por avanços e por eventu- leito preocupante de um planeta en- fermo. O desafio era o de definir um regime minimamente aceitável para o enfrentamento e a prevenção do agravamento dos efeitos deletérios do efeito estufa, do aquecimento global e das inelutáveis mudanças climáticas que já se faziam sentir em todos os quadrantes. Com menos audiência e com menos interesse e compro- metimento político, as negociações conducentes ao Protocolo de Kyoto, em 1997, já haviam fracassado, sem a adoção de medidas efetivas no senti- do de diminuir de forma conseqüen- te a emissão de gases de promotores do efeito estufa. foi ainda nebuloso acordo em petit comitê, celebrado a portas fechadas pelos países majoritariamente do G20, o que impediu entendimento abrangente e suficiente a configurar os primeiros passos para o enfrenta- mento global da maior e mais grave das virtuais ameaças climáticas, qual seja o efeito estufa e o consectário aquecimento do planeta. Como re- sultado da ausência de decisões con- cretas a urgentes, todas as esperan- ças se voltaram para a conferência do Rio de Janeiro recém concluída, com expectativas que eram despro- porcionais à efetiva disponibilidade e engajamento ambiental dos países. diplomacia climática Arraes Editores em revista - setembro 2012 19 diplomacia climática particular, de mais um fracasso no esforço multilateral para a constru- ção de uma rationale que abstraia os limites políticos das fronteiras entre Estados soberanos, contra o aqueci- mento global, a enfrentar as notórias e notáveis alterações climáticas que já vem golpeando os mais diversos continentes. Longe, porém, de ser fracasso minimamente atribuível ao Brasil, parece cediço afirmar que o anfitrião tem responsabilidades li- mitadas acerca da conduta dos con- vidados. Ademais, incumbe agora à diplomacia brasileira saber lidar com os fragmentos de uma intenção que se revelou frustrada, na visão panglossiana de que seria possível avançar na Rio+20, com decisões efetivas e que implicasse investi- mentos internacionais importantes no preservacionismo, a despeito do momento de crise generalizada que ais fracassos devem ficar claramente demarcadas. Após o término da fastidiosa conferência Rio+20, com seu melan- cólico comunicado final, é inelutável a constatação de que a realidade é atroz e não comporta otimismo. A percepção de ser o documento final parcialmente exitoso, apenas por fazer referência a compromissos so- ciais que devem acompanhar o de- senvolvimento, como o combate à pobreza e às desigualdades sociais, dando-lhe feição de documento internacional pós-neoliberal, não pode por si só caracterizar vitória da diplomacia climática. Bem ao con- trário, corresponde a arroubo retóri- co, com a evasiva suposição servindo apenas para acusar o golpe de mais um rotundo fracasso na tentativa da construção da governa internacio- nal da tutela do meio ambiente. Em atinge mesmo às economias dos pa- íses desenvolvidos, de forma a não contaminar a imagem brasileira com o inelutável fracasso da conferência global. Foi o mundo que perdeu, e não apenas o Brasil. Bem a propósi- to, vale sempre a afirmação de exor- tação de François Ewald, para quem o direito do meio ambiente deve ser de interdependência, de indispen- sável solidariedade, no qual, para evocar uma das definitivas máximas sartrianas, colhidas nas falas pun- gentes de suas memoráveis persona- gens, “a ninguém é possível salvar-se só”. Não só nos meandros angustian- tes do existencialismo, mas ainda na preservação do planeta. Arraes Editores em revista - setembro 201220 sustentabilidade O estudo do ambiente ganhou amplitude mundial passan- do a ser devidamente reconhecido a partir do momento em que a degradação ambiental atingiu índices alarmantes e verificou-se que a preservação de um ambiente sadio está intimamente ligada à preservação da própria espécie humana. A emergência de múltiplos problemas am- bientais propicia graves prejuízos para o desenvol- vimento do indivíduo, devendo ser coordenados esforços em prol da criação de uma verdadeira cultura de preservação do ambiente. Além disso, a necessidade de se estabe- lecer um sistema protetivo internacional do ambiente decorre do fato deste ter natureza transnacional, isto é, certos
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