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ISSN 0034-7701 Revista de Antropologia Publicação do Departamento de Antropologia Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo Volume 53 nº 2 Número especial: Antropologia do Direito SÃO PAULO julho-dezembro 2010 revista_2010_53(2)_finalh.indd 433 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia Fundada por Egon Schaden em 1953 Editora Responsável: Heloísa Buarque de Almeida Comissão Editorial Heloísa Buarque de Almeida; Renato Sztutman; Laura Moutinho Conselho Editorial †David Maybury-Lewis (Harvard University, EUA); Eduardo Viveiros de Castro (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); Fernando Giobelina Brumana (Universidad de Cádiz); Joanna Overing (The London School of Economics and Political Science, Inglaterra); Julio Cézar Melatti (Universidade de Brasília, DF); Klaas Woortmann (Universidade de Brasília, DF); Lourdes Gonçalves Furtado (Museu Paraense Emílio Goeldi, PA); Marisa G. S. Peirano (Universidade de Brasília, DF); Mariza Corrêa (Unicamp, SP); Moacir Palmeira (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ); †Roberto Cardoso de Oliveira (Unicamp, SP); Roberto Kant de Lima (Universidade Federal Fluminense, RJ); Ruben George Oliven (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS); Simone Dreyfus Gamelon (École de Hautes Études en Sciences Sociales, França); Terence Turner (University of Chicago, EUA) Secretário Edinaldo Faria Lima Equipe Técnica Editoração eletrônica: Claudia Intatilo Revisão: Carla Kinzo e Tereza Ruiz Revisão do inglês: Pedro Lopes Capa: Ettore Bottini Os artigos serão aceitos para publicação após análise, pela Comissão Editorial, de sua adequação ao formato e à linha editorial da Revista e avaliação do conteúdo por dois pareceristas externos. Esta revista é indexada pelo Índice de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ –, pela Ulrich’s International Periodicals Directory, pela Hispanic American Periodicals Index. revista_2010_53(2)_finalh.indd 434 8/14/11 8:19 PM ISSN 0034-7701 Revista de Antropologia Volume 53 nº 2 SÃO PAULO julho-dezembro 2010 revista_2010_53(2)_finalh.indd 435 8/14/11 8:19 PM Periódico – Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – vol. 53(2), julho-dezembro 2010, São Paulo, SP. Publicação semestral ISSN 0034-7701 1. Antropologia; 2. Etnografia; 3. Teoria e Método; 4. História da Antropologia. Tiragem: 500 exemplares A Revista de Antropologia tem como objetivo a divulgação e discussão de temas, resultados de pesquisas e modelos teórico-metodológicos próprios da Antropologia, em suas diversas áreas e interfaces com disciplinas afins, a partir de textos inéditos, resenhas e traduções, de forma a proporcionar aos leitores um panorama sempre atualizado das questões mais relevantes de seu campo de pesquisa e reflexão no país e no exterior. Endereço para correspondência /Address for correspondence: Revista de Antropologia – Departamento de Antropologia – FFLCH/USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil e-mail: revant@usp. br Edição eletrônica: http://www.revistasusp.sibi.usp. br revista_2010_53(2)_finalh.indd 436 8/14/11 8:19 PM Sumário Número Especial: Antropologia do Direito Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Apresentação 441 Artigos Luís Roberto Cardoso de Oliveira A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos 451 Guita Grin Debert Desafios da politização da justiça e a antropologia do direito 475 Claudia Fonseca Direito às origens: segredo e desigualdade no controle de informações sobre a identidade pessoal 493 Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (In) visíveis casais: conjugalidades homoeróticas e discursos de magistrados brasileiros sobre seu reconhecimento jurídico 527 Gabriel de Santis Feltran Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana 565 Alba Zaluar A abordagem ecológica e os paradoxos da cidade 611 Kátia Sento Sé Mello Sofrimento e ressentimento: dimensões da descentralização de políticas públicas de segurança no município de Niterói 645 Theophilos Rifiotis; Andresa Burigo Ventura & Gabriela Ribeiro Cardoso Reflexões críticas sobre a metodologia do estudo do fluxo de justiça criminal em caso de homicídios dolosos 689 revista_2010_53(2)_finalh.indd 437 8/14/11 8:19 PM Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira Povos indígenas e cidadania: inscrições constitucionais como marcadores sociais da diferença na América Latina 715 Deborah Stucchi & Rebeca Campos Ferreira Os Pretos do Carmo diante do possível, porém improvável: uma análise sobre o processo de reconhecimento de direitos territoriais 745 Resenhas Cabaço, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação Sandro M. de Almeida-Santos 779 Sáez, Oscar Calavia. Os caminhos de Santiago e outros ensaios sobre o paganismo Fernando Giobellina Brumana 787 Abu-Lughod, Lila. Dramas of Nationhood: the Politics of Television in Egypt Raphael Bispo 793 Frangella, Simone M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo Taniele Rui 801 Entrevista As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier 811 Heitor Frúgoli Jr. Guilhermo Aderaldo Janaína Damasceno Isabela Oliveira Natália Helou Fazzioni revista_2010_53(2)_finalh.indd 438 8/14/11 8:19 PM Contents Special Number: Anthropology of Law Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Presentation 441 Articles Luís Roberto Cardoso de Oliveira The Symbolic Dimension of Rights and the Analysis of Conflicts 451 Guita Grin Debert The Challenges of Politicizing Justice and the Anthropology of Law 475 Claudia Fonseca The Right to the Origins: Secrecy and Hierarchy in the Control of Information on Personal Identity 493 Rosa Maria Rodrigues de Oliveira (In) visible Couples: Homoerotic Conjugality and the Discourse of Brazilian Magistrates on its Legal Recognition 527 Gabriel de Santis Feltran Peripheries, Right and Difference: Notes of an Urban Ethnography 565 Alba Zaluar The Ecological Approach and the Paradoxes of the City 611 Kátia Sento Sé Mello Suffering and Resentment: Dimensions of the Decentralization of Public Policies for Security in the City of Niterói 645 Theophilos Rifiotis; Andresa Burigo Ventura & Gabriela Ribeiro Cardoso Critical Reflections on the Methodology Used in the Study of the Flow of Criminal Justice in Intentional Homicide Cases 689 revista_2010_53(2)_finalh.indd 439 8/14/11 8:19 PM Jane Felipe Beltrão & Assis da Costa Oliveira Indigenous People and Citizenship: Constitutional Registrations as Social Markers of Difference in Latin America 715 Deborah Stucchi & Rebeca Campos Ferreira The Blacks from Carmo Facing the Possible, but Unlikely: An Analysis of the Process of Territorial Rights Recognition 745 Reviews Cabaço, José Luis. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação Sandro M. de Almeida-Santos 779 Sáez, Oscar Calavia. Os caminhos de Santiago e outros ensaios sobre o paganismo Fernando Giobellina Brumana 787 Abu-Lughod, Lila. Dramas of Nationhood: the Politics of Television in Egypt Raphael Bispo 793 Frangella, Simone M. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo Taniele Rui 801 Interview The Cities of Anthropology: Interview with Michel Agier 811 Heitor Frúgoli Jr. Guilhermo Aderaldo Janaína Damasceno Isabela Oliveira Natália Helou Fazzioni revista_2010_53(2)_finalh.indd 440 8/14/11 8:19 PM Por que um dossiê voltado para a antropologia do direito? Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer1 Este é o primeiro dossiê brasileiro, publicado por um dos mais respeitados periódicos antropológicos,voltado para a antropologia do direito. Ao menos duas questões imediatamente me ocorrem a partir desta cons- tatação: por que tardou tanto para que tal tipo de publicação viesse à luz? E o que os artigos, aqui reunidos, sinalizam em relação à antropologia do direito no Brasil? Foram reflexões semelhantes a estas que ensejaram a realização do I ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito – ocorrido nos dias 20 e 21 de agosto de 2009, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên- cias Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP.2 Por que, até aquele ano, não ocorrera, no Brasil, um encontro de antropólogos do direi- to? E o que sinalizariam, sobre o estado da arte dessa área, os palestrantes das várias universidades e centros de pesquisa nacionais, componentes das mesas redondas, bem como os participantes dos grupos de trabalhos (GTs) e os graduandos e pós-graduandos que acompanharam o Encontro?3 A principal hipótese por mim aventada sobre essa clássica área da antro- pologia mundial não ensejar uma articulação específica entre pesquisadores e docentes brasileiros foi a de que não se tratava de escassez de reflexões e de produções acadêmicas relativas às problemáticas do direito, da lei, da ordem, dos mecanismos de controle e de resolução de conflitos, mas a de que, por tais problemáticas estarem presentes em várias outras subáreas da antropologia brasileira, como as voltadas para questões de gênero, urbanização, raça e etnia, ciclos de vida, instituições e política, elas criaram certos nichos no interior dessas linhas de pesquisa e nelas se acomodaram. Mas por que, mesmo assim, revista_2010_53(2)_finalh.indd 441 8/14/11 8:19 PM Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para... - 442 - tais nichos não suscitariam convergências e especificidades em nome de uma antropologia do direito a ponto de fomentar articulações específicas e fortes entre pesquisadores? Segundo Norbert Rouland, a atual produção mundial da antropologia do direito continua alicerçada em países ocidentais de língua inglesa,4 prati- camente inexistindo associações que a agrupem fora deles. Tal fato, em sua opinião, decorre de razões de ordem ideológica, pois concepções jurídicas unitárias, legadas por ex-colonizadores a suas colônias, ainda estariam nelas presentes, obstaculizando o desenvolvimento de reflexões e práticas condizen- tes com o pluralismo jurídico, as quais constituem, por excelência, a maioria das considerações teóricas e das consequências políticas de trabalhos de antro- pólogos do direito. Desenvolvendo tal raciocínio, poderíamos concluir que, no Brasil, graças, portanto, a uma tradicional correlação entre direito, Estado e leis oficiais, a identificação de um pesquisador com a antropologia do di- reito poderia significar a assunção de que seu objeto primordial de estudo é o Estado, são suas leis, suas instâncias produtoras e aplicadoras de normas, seus agentes e suas dinâmicas. Tais estudos, de fato, desde os anos 1980, foram os que mais se identificaram, no Brasil, com uma antropologia do direito, registrando-se, sob outras rubricas, vários trabalhos focados em demandas por direitos e justiças advindas de diversos grupos da sociedade civil organiza- da, ainda que em relação com o Estado, em tensão com as leis vigentes e em conflito com os agentes da ordem. Especialmente com a abertura política com a Constituição Federal de 1988 e com o surgimento de novos protagonistas no cenário jurídico-polí- tico, inclusive dos próprios antropólogos como militantes de causas ligadas a direitos de “minorias” e direitos humanos, multiplicaram-se etnografias voltadas para atores de sistemas de justiça não estatais, embora não necessa- riamente sob o rótulo de antropologia do direito. Será que, por todo um contexto de lutas contra um Estado tradicional- revista_2010_53(2)_finalh.indd 442 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 443 - mente conservador e ditatorial, revelar-se-ia mais atraente a identificação de antropólogos e de seus trabalhos com grupos opositores ao Estado e, con- sequentemente, com linhas de pesquisa que enfatizassem os protagonistas dessas oposições, em detrimento de uma linha de pesquisa mais voltada para os protagonistas do próprio Estado, das leis e de suas instâncias, ainda que de uma perspectiva crítica? Passados mais de 20 anos da abertura política e levando-se em conta o muito que se produziu, desde então, nas mais diversas frentes da antropo- logia mundial e brasileira, especialmente no que tange a questionamentos teórico-metodológicos das relações entre antropólogos e seus interlocutores e à natureza do fazer e dos textos etnográficos, parece-me que muitas novidades surgiram, no Brasil, em estudos voltados para o direito, até porque o Estado brasileiro atual passou a protagonizar muitas das demandas dos que a ele se opunham há algumas décadas. A clássica cisão “nós, demandantes” X “eles, representantes do Estado e da ordem”, multiplicou-se em inúmeros “nós” e “eles”, tanto no que se refere aos movimentos sociais, que internamente se fragmentaram e passaram a disputar legitimidades, quanto ao que diz respei- to aos agentes do Estado, dentre os quais houve e há inclusive antropólogos. Estaríamos, portanto, em função de toda uma conjuntura político-acadêmi- ca, específica desta primeira década do século XXI, vislumbrando a conso- lidação de uma antropologia do direito no Brasil, agora, sim, mais definida enquanto tal, porque mais plural, menos ligada a heranças coloniais e menos confortavelmente acomodada em outras rubricas acadêmicas? Justamente a partir do lançamento destas reflexões e questionamentos, a mesa inaugural do I ENADIR foi proposta5 e, neste dossiê, os quatro exposi- tores convidados a compô-la fizeram-se presentes com contribuições funda- mentais para o incremento do debate. O texto de Luís Roberto Cardoso de Oliveira abre o dossiê porque, a partir de uma série de considerações abrangentes sobre as distintas atitudes revista_2010_53(2)_finalh.indd 443 8/14/11 8:19 PM Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para... - 444 - interpretativas da antropologia e do direito no Brasil, especialmente frente a articulações entre o geral e o particular, ele atesta o crescimento da área e o quão inesgotável é a possibilidade de novos estudos. A partir de menções a alguns trabalhos de campo, tanto seus quanto de colegas, justifica a impor- tância da dimensão simbólica da antropologia para a compreensão dos con- flitos, dos direitos e de concepções de justiça dificilmente apreensíveis sem os recursos da observação antropológica. Neste sentido, faz uma crítica a Geertz, pois considera faltar em suas análises do direito maior atenção à dimensão contextual de casos específicos. Com outras palavras, Guita Debert elabora crítica semelhante às análises geertzianas do direito, uma vez que nelas percebe certa “tranquilidade refle- xiva”, muito distinta do tom dos debates travados por antropólogos e antro- pólogas brasileiros envolvidos em estudos referentes a demandas por direitos. Valendo-se de considerações teóricas e empíricas referentes ao campo da antro- pologia feminista, ela aponta que etnografias, em que os grupos analisados são os de pertencimento dos próprios antropólogos, tornam-se textos produtores de efeitos energizadores, algo, a seu ver, potencializador para uma antropologia do direito no Brasil. Este campo, segundo Guita, envolve exercícios de poder e de responsabilidade pertinentes à vida de todos, uma vez que as sociedades contemporâneas estão cada vez mais enredadas na semântica dos direitos e em seus procedimentos institucionais. Assim como os exemplos etnográficos de Guita endossam colocações de Luís Roberto sobre as sutilezas que os recursos da observação antropológicapermitem alcançar frente a dilemas da justiça e da cidadania no Brasil, o artigo de Cláudia Fonseca o faz no que concerne às observações de Luís sobre a rele- vância da antropologia do direito abarcar as áreas do parentesco e da família. Ao analisar a interação entre adotados adultos, em busca de suas origens biológicas, e as figuras de autoridade detentoras de informações sobre tais origens, Cláudia aborda a questão do segredo e dos dilemas suscitados pela revista_2010_53(2)_finalh.indd 444 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 445 - nova Lei de Adoção brasileira, garantidora de “acesso irrestrito” dos adota- dos a seus dossiês. É a dimensão simbólica da antropologia que lhe permite, através de narrativas de adotados e de funcionários de um Juizado, trabalhar o pressuposto de que a busca de origens se relaciona a vários direitos funda- mentais, todos eles politicamente construídos por sujeitos atuantes em um mundo relacional e envolvidos em uma complexa microfísica presente nos espaços administrativos. Na sequência deste dossiê, em sintonia com as ideias desenvolvidas nos artigos anteriores, está o texto apresentado por Rosa Oliveira em um dos GTs do I ENADIR,6 no qual ela articula antropologia do direito, gênero e família a partir de um estudo baseado na análise de acórdãos e na interlocução com vinte e cinco desembargadores acerca de recursos judiciais sobre “conjugalida- des homoeróticas”. Questões teórico-antropológicas advindas do campo dos estudos de gênero iluminam suas análises sobre posições jurídicas relativas a casamento, união estável e família. Os três artigos seguintes se voltam para temas clássicos da antropologia urbana – periferias, violência e segurança pública – e reúnem reflexões que, à época do I ENADIR, ensejaram a montagem de outra mesa redonda.7 Gabriel Feltran, com base em situações etnográficas que vivenciou na ci- dade de São Paulo em função de seu trabalho de campo de doutorado, dis- cute algumas consequências sociais, políticas e analíticas da transformação de periferias urbanas no Brasil contemporâneo, enfatizando a importância da percepção de mudanças simbólicas no estatuto dos conflitos ali engendrados, especialmente nas últimas quatro décadas. Antes pautados em lutas de traba- lhadores assalariados pelo acesso a direitos garantidores de sua cidadania, esses territórios urbanos passaram a espaços de gerenciamento de conflitos não mais diretamente associados a assalariados em busca de integração urbana e social. Alba Zaluar nos leva aos morros do Rio de Janeiro e, também a partir de resultados de pesquisas etnográficas, aponta o enfraquecimento de laços revista_2010_53(2)_finalh.indd 445 8/14/11 8:19 PM Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para... - 446 - interpessoais, intergeracionais e interpares como os principais favorecedores da fragmentação e do esgarçamento do tecido social e, consequentemente, do acirramento de ações criminosas bem menos controladas socialmente por redes familiares e de vizinhança e bem mais envolvidas com modalida- des variadas do crime organizado, especialmente ações ligadas aos tráficos de drogas e de armas. Ainda em territórios do estado do Rio de Janeiro, no município de Niterói, temos a base empírica do trabalho etnográfico desenvolvido por Kátia Sento Sé Mello. Ao analisar enfrentamentos entre guardas municipais e camelôs, ela analisa paradoxos existentes entre estratégias políticas governamentais de des- centralização da segurança pública, cadastramento de camelôs e a continui- dade da socialização de guardas a partir de princípios e práticas militarizados. De certo modo, “fechando” esses dois blocos de artigos e articulando-os a partir de reflexões metodológicas, temos o texto de Theophilos Rifiotis, An-An- dresa Burigo Ventura e Gabriela Ribeiro Cardoso. Nele, a problemática do fluxo da justiça criminal em casos de homicídios dolosos, julgados na região Metropolitana de Florianópolis (SC) entre 2000 e 2003, serve de contexto etnográfico para ponderações acerca da literatura antropológica especializada e da revisão crítica de metodologias normalmente empregadas em pesquisas sobre processos penais de homicídios. Os dois últimos textos do dossiê, em diálogo com os demais, retomam especialmente uma das questões levantadas por Luís Roberto Cardoso de Oli- veira: o dilema das lutas por igualdade jurídica, no plano da cidadania e das leis constitucionais, mas sem prejuízo de garantias, também jurídicas, para o exercício de direitos à diferença. No artigo de Jane Beltrão, escrito em coautoria com Assis da Costa Oli- veira, estão registradas reflexões apresentadas na Mesa Redonda III do I ENADIR.8 Eles colocam em foco o protagonismo dos povos indígenas lati- no-americanos em demandas por reconhecimento constitucional de sua ci- revista_2010_53(2)_finalh.indd 446 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 447 - dadania e de suas diferenças, dando destaque às inovações propostas pela atu- al constituição boliviana que, frente a outras constituições latino-americanas, na opinião dos autores, é a que, além de reconhecer direitos à pluralidade, mais os tem, de fato, assegurado. Abordando o protagonismo jurídico-político de grupos remanescentes de quilombos, as antropólogas Deborah Stucchi e Rebeca Campos Ferreira, da Procuradoria Geral da República no Estado de São Paulo, cujo trabalho tam- bém foi apresentado em um GT do I ENADIR,9 trazem ao debate o tema da emergência de novas categorias de sujeitos de direito e da importância de a antropologia se voltar, após mais de 20 anos da promulgação de Constituição Federal de 1988, para análises dos impactos de processos de reconhecimento no cotidiano de grupos beneficiados. Pelo conjunto destes dez artigos e por tudo o que foi brevemente comen- tado a seu respeito, parece-me inegável a existência de uma antropologia do direito em plena consolidação em nosso país. Seus temas são tão múltiplos quanto o são os interesses da antropologia brasileira, mas os articulam, toda- via, questões recorrentes, como a tensão entre lutas pelo reconhecimento de igualdade jurídica e, ao mesmo tempo, pela garantia do exercício da diver- sidade. Do mesmo modo se reitera, nestes trabalhos, o recurso etnográfico como caminho profícuo para abordar tais questões recorrentes, fazendo-as convergir em função da ênfase que as análises antropológicas dão às dimen- sões simbólicas dos conflitos, dos interesses e dos reconhecimentos sempre em jogo no campo de demandas por direitos. Os pesquisadores que contribuíram para este dossiê, assim como os que participaram do I ENADIR, representam uma pluralidade de interesses, de linhas de pesquisa, de universidades e de outras instituições brasileiras en- volvidas com temas antropológico-jurídicos. Enfim, tudo indica que há não apenas uma continuidade e um amadurecimento significativos de reflexões que, em nome da área, se desenvolvem há pelo menos três décadas, mas que, revista_2010_53(2)_finalh.indd 447 8/14/11 8:19 PM Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer. Por que um dossiê voltado para... - 448 - principalmente, estamos diante de um campo cujo território teórico-meto- dológico se encontra em franca expansão. A expectativa, com a publicação deste dossiê, é a de que a Revista de Antropo- logia, mais do que registrar um momento importante do estado da arte da an- tropologia do direito no Brasil, contribua com um material de consulta que se torne referencial para disciplinas de graduação e de pós, tanto em cursos de an- tropologia quanto de direito, bem como com novas frentes de pesquisa e com o incremento de trocas entre estudiosos desta inconteste área transdisciplinar. Notas 1 Coordenadora do NADIR – Núcleo de Antropologiado Direito; Professora do Departamento de Antropologia da USP; Presidente da ANDHEP – Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação; Membro da Comissão de Direitos Humanos da ABA – Associação Brasileira de Antropologia; e Membro da Cátedra UNESCO de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância do IEA-USP – Instituto de Estudos Avançados da USP. 2 Este evento foi organizado pelo NADIR e se realizou graças aos apoios financeiros da CAPES, das Pró-Reitorias de Pesquisa, de Pós-Graduação e de Cultura e Extensão Universitária da USP. Tam- bém contou com os apoios institucionais da FFLCH, do Departamento de Antropologia da USP, do CCE – Centro de Comunicação Eletrônica da USP e da Revista de Antropologia. 3 A programação completa do I ENADIR, os papers e um balanço do perfil dos participantes se encontra disponível para consulta e download em http://www.fflch.usp.br/da/arquivos/i_ena- dir_2009/ 4 Ele estima que Estados Unidos e Canadá agrupem mais da metade de todos os que se reconhecem como antropólogos do direito (Rouland, Norbert. L’anthropologie juridique, Paris PUF, 1995, Col- lection Que sais-je?, nº 2528, p. 43). 5 Seu título foi Antropologia do Direito no Brasil: campo e perspectivas. 6 GT.6 – Antropologia e Marcadores Sociais da Diferença. 7 Mesa Redonda II – Antropologia e Sistemas de Justiça. 8 Antropologia do Direito e Marcadores Sociais da Diferença 9 GT.6 – Antropologia e Marcadores Sociais da Diferença. revista_2010_53(2)_finalh.indd 448 8/14/11 8:19 PM Artigos revista_2010_53(2)_finalh.indd 449 8/14/11 8:19 PM revista_2010_53(2)_finalh.indd 450 8/14/11 8:19 PM A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos Luís Roberto Cardoso de Oliveira Universidade de Brasília RESUMO: O artigo procura discutir a contribuição da perspectiva antropológi- ca para a análise de conflitos, contrastando a ênfase da Antropologia na pesquisa empírica com a orientação predominantemente doutrinária que caracteriza o Direito. Dialogando com textos de repercussão significativa na Antropologia do Direito, o artigo realça a importância da dimensão simbólica dos direitos, carac- terizada como aspecto central do universo empírico investigado, e sem a qual de- mandas por direitos, acordos e decisões judiciais não podem ser adequadamente compreendidos. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia do Direito, etnografia, conflitos, ideias de justiça, equidade. Desde a contribuição inicial de Kant de Lima sobre as perspectivas para a Antropologia do Direito no Brasil (1983), a disciplina tem ampliado sistematicamente sua participação nas atividades de ensino e pesquisa em nossas universidades, inclusive no que concerne à interlocução com o Direito. Neste sentido é sempre estimulante cultivar o diálogo com pesquisadores que têm se dedicado ao tema, dirigindo seus interesses de pesquisa e sensibilidade antropológica para o campo do direito, da jus- tiça e da cidadania. A propósito, trata-se de um campo em que o debate revista_2010_53(2)_finalh.indd 451 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 452 - interdisciplinar é particularmente interessante, em vista da singularidade do Direito como disciplina, de uma maneira geral, e pela distância que a formação jurídica no Brasil mantém com relação ao mundo empírico ou à perspectiva etnográfica, que está no coração da Antropologia. Inicialmente, tive alguma dúvida sobre qual seria a alternativa mais adequada para articular minha contribuição ao debate nesta ocasião, e acabei optando por enfocar um tema bem expresso no título do artigo: “A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos”. 1 A proposta seria proporcionar uma breve discussão sobre o que me parece ser o cerne da contribuição específica da perspectiva antropológica para a compreen- são dos conflitos, dos direitos, e das concepções de justiça. Como tenho procurado argumentar, o foco nas evidências simbólicas teria um papel especial nesta contribuição (Cardoso de Oliveira, 2008a). Também devo dizer alguma coisa sobre o campo da Antropologia do Direito, mas vou começar abordando alguns aspectos interessantes da relação entre as pers- pectivas da Antropologia e do Direito enquanto disciplinas. Neste sentido, tenho uma visão um pouco diferente da de Geertz, cujo texto sobre o tema tem tido grande repercussão no Brasil (Geertz, 1998). Além de caracterizar o direito como um saber local, contextualizado, ain- da que (pelo menos no Ocidente) tenha fortes pretensões universalistas, Geertz desenvolve sua reflexão comparativa a partir da articulação entre fato e lei, ou direito, em diferentes tradições jurídicas (a anglo-americana, a islâmica, a indiana, e a malaia). Partindo da tradição anglo-americana, da Common Law, o autor identifica na prática dos juristas ocidentais uma forte preocupação com a elucidação dos fatos, o que não seria bem o caso no contexto do Direito brasileiro. A formação dos advogados no Brasil não oferece nenhum treinamento em pesquisa empírica, ou na investigação dos fatos que dão substância às causas julgadas em nossos tribunais. A rigor, a retórica do contraditório, estruturado como uma competição onde persua- revista_2010_53(2)_finalh.indd 452 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 453 - são e elucidação (empírica) estão totalmente dissociadas, sugere que os fatos têm um peso muito pequeno no desfecho dos julgamentos. De todo modo, meu interesse no direito começou quando da realiza- ção de minha pesquisa para a tese de doutorado, no Juizado de Pequenas Causas de Cambridge, Massachusetts. Portanto, sob a vigência da tradi- ção da Common Law. Não tenho formação jurídica, e meu interesse no Juizado foi motivado por três preocupações que não posso desenvolver aqui, mas que ajudam a contextualizar minha aproximação ao Direito como objeto de pesquisa: (1) a possibilidade de realizar algum trabalho voluntário vinculado ao Juizado, e poder combinar a inserção tradicio- nal do antropólogo no campo, como um pesquisador que produzirá um trabalho acadêmico sobre o universo investigado – como quer que isto venha ser compreendido por seus interlocutores –, com a inserção a partir de uma posição institucional nativa;2 (2) o objetivo de realizar a pesquisa utilizando uma língua que eu dominasse bem, mas que não fosse minha língua nativa, enfatizando a atitude de descentramento do pesquisador também no plano linguístico-comunicacional; e, (3) relacionar estas duas preocupações com uma reflexão sobre o caráter da interpretação antro- pológica e com meus interesses em questões de legitimidade, a partir de conflitos interpretativos enfrentados pelos próprios sujeitos da pesquisa. Assim, eu poderia desenvolver meu interesse mais amplo sobre questões de validade nos planos cognitivo e normativo, sob forte influência das contribuições de Habermas (1975; 1984; 1986), as quais, a meu ver, permitiam uma abordagem que fosse simultaneamente impermeável ao relativismo-niilista3 e ao etnocentrismo. No plano mais geral, enquanto Geertz (1998) enfoca o potencial de diálogo entre Antropologia e Direito no Ocidente a partir da preocupa- ção em articular o geral e o particular que ambas as disciplinas comparti- lhariam, embora assinale que esta identidade de propósitos é frequente- revista_2010_53(2)_finalh.indd 453 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 454 - mente apenas aparente, eu prefiro enfatizar as implicações das diferenças de perspectiva entre as duas disciplinas ao procurar equacionar estas duas dimensões do real para as quais ambas dirigem seus esforços interpreta- tivos. Se no Direito tal articulação se pauta pela necessidade de situar o caso particular noplano de regras ou padrões gerais, externos ao caso, que permitam equacioná-lo de acordo com princípios de imparcialidade, na Antropologia o objetivo seria desvendar o sentido das práticas locais, à luz do ponto de vista nativo, para apreender em que medida a singularidade do caso em tela teria algo a nos dizer sobre o universal. Como argumentei em outro lugar (Cardoso de Oliveira; Grossi & Ribeiro, no prelo), o que as duas perspectivas disciplinares têm em comum é a critica às interpreta- ções arbitrárias, ainda que em muitas oportunidades as distinções na ma- neira de fazê-lo provoquem choques interpretativos de difícil superação: a recusa em aceitar a arbitrariedade de uma decisão parcial, no campo do Direito, e a rejeição à arbitrariedade das interpretações etnocêntricas, no campo da Antropologia, nem sempre facilitam o diálogo e viabilizam acordos interpretativos entre as duas disciplinas. Outro aspecto importante destas diferenças entre as disciplinas se re- fere às respectivas atitudes interpretativas que cada uma delas assume ao articular o geral e o particular. Enquanto o Direito Positivo aciona fortes mecanismos de filtragem interpretativa para dar sentido normativo ao caso em tela, a Antropologia explora todas as alternativas interpretati- vas disponíveis no horizonte do pesquisador, porosamente exposto às de- mandas e afirmações de sentido dos “nativos”, para captar o significado singular do caso analisado. Embora o mecanismo não seja exatamente o mesmo no Brasil e nos EUA, tanto a prática do “reduzir a termo” no Brasil como o procedimento de “to narrow down a case”4 nos EUA ex- cluem da avaliação judicial aspectos importantes da disputa na ótica dos litigantes, afetando a compreensão do contexto mais amplo onde se situa revista_2010_53(2)_finalh.indd 454 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 455 - o conflito, o qual se apresenta como uma referência imprescindível para o antropólogo. Esta diferença de perspectiva, que orienta os pesquisadores em direções opostas, não deixa de estar associada a objetivos diversos das disciplinas no quadro institucional: enquanto a Antropologia privilegia a elucidação do caso ou situação pesquisada para ampliar o horizonte compreensivo do intérprete (e da disciplina), procurando levar em conta todas as visões e opiniões enunciadas no processo, o Direito dá precedên- cia à resolução dos conflitos examinados ou à produção de um desfecho institucionalmente balizado para os mesmos. O foco na compreensão num caso é substituído pelo foco na decisão no outro. Evidentemente, uma função não deve substituir a outra e, se as duas disciplinas poderiam beneficiar-se de maior diálogo entre as respectivas perspectivas, a eventual eliminação das diferenças poderia ter consequências desastrosas: como, por exemplo, o antropólogo decidindo disputas judiciais baseando-se em sua visão etnográfica, às vezes voltada para a compreensão de apenas uma das partes e sem treinamento adequado para equacionar conflitos; ou, o jurista avaliando o sentido normativo e o significado de práticas sociais diversas a partir de parâmetros jurídicos locais. De certo modo, a distância entre as disciplinas talvez seja maior no caso brasileiro, visto que o princípio do contraditório, igualmente presen- te nas duas grandes tradições vigentes no Ocidente, tem implicações di- versas em cada uma delas ao incutir nos operadores do Direito lógicas ou estilos de confrontação distintos. Enquanto na tradição anglo-americana o estilo de confrontação entre as partes, chamado de adversário, exige a produção de um consenso sobre os fatos válidos ao longo do processo (a eventual impossibilidade de produção deste consenso impõe a liberação do acusado), na versão brasileira da tradição civilista o princípio do con- traditório se traduz numa lógica ou retórica do contraditório que é imune a consensos. Isto é, nesta versão da tradição civilista prevalece uma lógica do revista_2010_53(2)_finalh.indd 455 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 456 - contraditório na qual se exige a confrontação de teses opostas, entre defesa e acusação, sem que se realize um cotejamento sistemático do substrato empírico de referência acionado pelas partes de modo a viabilizar uma interpretação argumentada sobre a veracidade dos fatos. Neste contexto a chamada verdade real é definida unilateralmente pelo juiz, com base em sua autoridade institucional, e seu livre convencimento (motivado) não é produto de um processo de esclarecimento argumentado. A ausência de critérios de validação discursiva do referencial empírico, o embate retóri- co que não distingue adequadamente entre argumento (fundamentado) e opinião, e o processo decisório que prioriza o argumento da autoridade em oposição à autoridade do argumento, tornam o estilo de contraditó- rio vigente na apropriação brasileira da tradição civilista mais distante da perspectiva das ciências sociais.5 No que concerne ao campo da Antropologia do Direito, o universo de pesquisa me parece de fato inesgotável. Pois, se supusermos que toda interação social tem uma dimensão normativa e que toda relação está su- jeita a conflitos, disputas sobre direitos seriam constitutivas da vida social, como, aliás, Simmel (1983) já chamara a atenção. Costumo dizer a meus alunos que o aparecimento de conflitos em qualquer relação é sempre uma questão de tempo. Se pensarmos numa relação padrão que envolva interações frequentes, com um mínimo de intensidade, e que seja impor- tante para as partes, ela deverá suscitar conflitos em algum momento. É neste sentido que o objeto da Antropologia do Direito seria absolutamen- te inesgotável, e tais conflitos e demandas por direitos seriam examinados pela Antropologia com ênfase na dimensão simbólica. Sem me preocupar muito em elaborar teoricamente sobre a constituição da dimensão sim- bólica na antropologia, mas optando por uma comunicação mais direta, no estilo “pão-pão, queijo-queijo”, eu diria que o simbólico para o qual gostaria de voltar minha atenção no momento se traduz na maneira como revista_2010_53(2)_finalh.indd 456 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 457 - os direitos são vividos pelos atores que se envolvem nessas relações confli- tuosas. Isto é, como os direitos são vividos e como ganham sentido para as partes. O foco estaria na indagação sobre como os atores orientam a ação, como diria Weber, ou na compreensão de que regras estariam se- guindo quando interagem, como diria Wittgenstein. Em uma palavra, a etnografia dos conflitos supõe um esforço de compreensão das interações entre as partes, com respaldo na experiência delas, de modo a viabilizar a atribuição de um sentido que esclareça o desenrolar do conflito e/ou da relação. Um bom exemplo deste enfoque abrangente da antropologia ao abordar conflitos seria a análise do drama celebrizada por Victor Turner (1957). A dimensão simbólica, portanto, vai muito além daquilo que está expresso em qualquer código de direito, ou mesmo nos princípios formais que balizam os procedimentos e nas leis positivadas. A propósito, uma área que tem sido relativamente pouco estudada no Brasil é a do direito de família, embora haja trabalhos importantes publicados sobre o tema (Moura, 1978; Fonseca, 2000, 2006 e 2009; Vianna, 1999 e 2005). Refiro-me especialmente ao campo jurídico em sentido estrito, ainda que, evidentemente, a Antropologia do Direito não se preocupe apenas com o que acontece nos tribunais, mas com todas as formas institucionalizadas de equacionar conflitos. Quer dizer, a Antro- pologia do Direito se interessa por todas as formas reconhecidas pelos atores como apropriadas para equacionar conflitos, nas várias circunstân- cias,assim como pelos processos sociais que envolvem disputas e pelos procedimentos adotados para fazer valer direitos e interesses. De todo modo, gostaria de estimular colegas e alunos a fazerem mais pesquisas sobre direito de família no âmbito do judiciário. Por exemplo, casos en- volvendo disputas sobre herança e sucessão, ou sobre separação e divórcio costumam ser muito interessantes, e levantam questões muito mais am- plas do que é explicitado no objeto imediato da lide ou disputa. Na An- revista_2010_53(2)_finalh.indd 457 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 458 - tropologia, há uma sabedoria consolidada no que concerne ao estudo das sociedades ditas “simples”, onde o parentesco e a família são vistos como objeto de pesquisa privilegiado para a compreensão dessas sociedades, mas eu diria que estas instituições têm o mesmo potencial de elucidação ou de ampliação de nossa compreensão das sociedades ditas “complexas”, urbanas e ocidentais. Se o parentesco tem sido uma chave importante para a compreensão antropológica da vida social de uma maneira geral, a Antropologia do Di- reito tem procurado realçar a dimensão política dos conflitos. Aliás, como demonstra abundantemente a literatura na área, o Direito e a Política têm sido estudados de forma articulada na antropologia. Na tradição anglo- americana, por exemplo, onde o foco na análise do aspecto jurídico-legal dos conflitos teve maior desenvolvimento, o campo tem sido comparti- lhado com a Antropologia Política, e não deixa de ser significativo que a principal revista na área traga a marca desta relação no título: Political and Legal Anthropology Review – POLAR. Entretanto, prefiro referir-me à Antropologia Jurídica e à Antropologia Política como, respectivamen- te, Antropologia do Direito e Antropologia da Política, para marcar a especificidade do olhar antropológico sobre estes temas, contrastando-o com as perspectivas vigentes no Direito e na Ciência Política. Diferente- mente destes últimos, a antropologia olha para o direito ou para a polí- tica como campos abertos, sujeitos a redefinições múltiplas, conforme o desenvolvimento da pesquisa e a interlocução com os atores no campo. Esta articulação entre direito e política se expressa nitidamente também nas pesquisas sobre direitos de cidadania, ou sobre processos que envol- vem demandas por direitos de todo tipo, frequentemente associadas a movimentos sociais. Recentemente, um tema que tem suscitado muito interesse na inter- face entre antropologia e direito é o do pluralismo jurídico. Trata-se de revista_2010_53(2)_finalh.indd 458 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 459 - tema bastante amplo e diverso, variando entre, de um lado, análises de situações nas quais pelo menos dois sistemas jurídicos coexistem e são reconhecidos pelo Estado (Kuper & Smith, 1969) e, de outro, análises que procuram articular o sistema jurídico do Estado com a produção jurídica não-estatal.6 O primeiro tipo de análise tem como referência a situação colonial, e aparece com força na literatura sobre sociedades afri- canas, onde o sistema estatal exportado pela metrópole convive com sis- temas jurídicos tribais igualmente reconhecidos pelo Estado, ainda que com status e abrangência diferenciada. Mesmo as etnografias na área que não estão preocupadas com o pluralismo indicam a sua presença, como na monografia clássica de Bohannan (1968) sobre os Tiv, na qual as cortes tribais são situadas no contexto jurídico mais amplo, colonial. Já o outro tipo de análise tem como foco sociedades industrializadas onde as leis do Estado competem ou se articulam com outras fontes de normatização com poder de sanção, ainda que as diferenças de poder entre as fontes e suas respectivas implicações não sejam adequadamente tratadas na litera- tura (Moore, 2005; Schuch, 2009, p.48). Do meu ponto de vista a segunda acepção de pluralismo jurídico tem implicações diferentes da primeira, as quais precisam ser explicitadas, e sua fecundidade interpretativa dependeria da identificação das diversas fontes de direito em tela, com seus respectivos diferenciais de poder e abran- gência, onde o Estado ocupa uma posição muito especial, sem deixar de abordar questões de equidade e perspectivas de legitimação (Cardoso de Oliveira, 1989 e 1996). Além disso, esta segunda acepção descreve uma condição universal do processo de produção de direitos, pois nenhuma sociedade conhecida teria apenas uma fonte de criação e sancionamento de direitos,7 tornando a noção de pluralismo jurídico pouco elucidadora. Uma alternativa que me parece mais fecunda para lidar com os proble- mas abordados na segunda acepção de pluralismo seria a discussão sobre revista_2010_53(2)_finalh.indd 459 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 460 - diferentes fontes de regulamentação das relações sociais, assim como pro- posta por Moore (1978, pp. 13-30). Esta autora fala em reglementary pro- cesses para salientar não apenas a multiplicidade de fontes de direito, mas o caráter processual e dinâmico da criação de direitos e obrigações, assim como de sua implementação em diferentes contextos institucionais. Além de diferenciar adequadamente as fontes de regulamentação não estatal das leis criadas pelo Estado e sancionadas pelo sistema jurídico oficial, em termos do respectivo poder de implementação das mesmas, a formulação de Moore é suficientemente flexível para permitir a análise das diferentes formas e contextos de controle social existentes em qualquer sociedade. Meu único reparo às suas proposições nesta área se refere à pouca im- portância atribuída por ela às questões de equidade e legitimidade que permeiam quaisquer processos de regulamentação (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 210-239). A preocupação com questões de equidade me permite retomar a discus- são de meu próprio trabalho na área, marcado pela ênfase nestas questões, caracterizadas como constitutivas do objeto da Antropologia do Direito (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 96-268). Isto é, tendo como referência as justificativas acionadas pelas partes para dar sentido ou para justificar suas demandas, dentro de uma perspectiva aberta à expansão dos parâmetros interpretativos para definir o cerne do conflito (em oposição à filtragem judicial mencionada acima), acabei dirigindo minhas investigações para a dimensão moral dos direitos (Cardoso de Oliveira, 2002). Tal dimensão traz à tona aspectos dos direitos de difícil positivação, e se expressa de ma- neira mais evidente em atos de agressão aos respectivos direitos, que se- riam frequentemente invisibilizados no judiciário. Trata-se, por um lado, de ofensas que não podem ser adequadamente traduzidas em evidências materiais e que, por outro, envolvem sempre uma desvalorização ou mes- mo a negação da identidade do interlocutor. Se, portanto, referimo-nos revista_2010_53(2)_finalh.indd 460 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 461 - a direitos cuja positivação encontra sérias dificuldades de legitimação, a etnografia das situações nas quais os mesmos são afrontados daria plena sustentação à sua proteção e/ou à necessidade de repressão do agressor. Este quadro levou-me a distinguir três dimensões temáticas constitu- tivas das causas ou conflitos judiciais, ainda que nem sempre elas tenham a mesma importância e significado: (a) a dimensão dos direitos; (b) a di- mensão dos interesses; e, (c) a dimensão do reconhecimento. Enquanto as duas primeiras dimensões são diretamente enfrentadas pelo judiciário (por exemplo, desrespeito a direitos positivos e prejuízos causados como consequência), a última remete a um direito de cidadania, associado a concepçõesde dignidade e de igualdade no mundo cívico, e não encontra respaldo específico em nossos tribunais. O reconhecimento, ou o direito de ser tratado com respeito e consideração, é o aspecto que melhor ex- pressaria a dimensão moral dos direitos, e as demandas a ele associadas traduzem (grande) insatisfação com a qualidade do elo ou relação entre as partes, vivida como uma imposição do agressor e sofrida como um ato de desonra ou de humilhação (Cardoso de Oliveira, 2004 e 2008b) . Nos casos em que a reparação a este tipo de ofensa é suficientemente embu- tida nas deliberações judiciais sobre as outras duas dimensões temáticas dos conflitos (direitos e interesses), os tribunais promovem um desfecho satisfatório para as respectivas causas. Entretanto, nas causas em que este tipo de ofensa - que tenho caracterizado como insulto moral - ganha pre- cedência ou certa autonomia nos processos não há reparação adequada e o desfecho judicial é frequentemente insatisfatório do ponto de vista das partes (Cardoso de Oliveira, 2002, 2004, 2008b). Um desdobramento de minhas preocupações com a equidade de decisões, de acordos, e das diversas formas de equacionamento de con- flitos é o meu interesse recente em pesquisar concepções de igualdade (Cardoso de Oliveira, 2010). Tais concepções, ou ideias-valor, ganharam revista_2010_53(2)_finalh.indd 461 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 462 - uma abrangência quase universal no século XX, passando a constituir um componente central do princípio de justiça, ainda que o sentido ou significado das respectivas concepções seja incrivelmente diverso, e sua variação talvez seja proporcional à extensão de sua abrangência. Dumont já havia chamado a atenção para esta diversidade, ao dirigir o foco de suas investigações para o que definiu como diferentes configurações da ideo- logia individualista no Ocidente (Dumont, 1977, 1986, 1994). Mesmo na Índia, matriz conceitual da noção de hierarquia que Dumont contras- ta com o valor da igualdade no Ocidente, este último não deixa de ter vigência na esfera pública contemporaneamente, ainda que, certamente, seu significado não seja exatamente o mesmo difundido no Ocidente. Aparentemente, ficou muito difícil defender princípios de justiça que não estejam em sintonia com os ideais de igualdade.8 A propósito, a meu ver um dos maiores problemas para a cidadania no Brasil seria a existência de uma tensão entre duas concepções de igualda- de, que faz com que as ações do Estado sejam frequentemente percebidas pelos cidadãos como atos arbitrários. Por um lado, nossa constituição en- fatiza uma concepção de igualdade definida como tratamento uniforme, seguindo o padrão dominante nas democracias ocidentais bem expresso na Constituição de 1988 por meio da ideia de isonomia jurídica. Por ou- tro lado, tal concepção compete com outra que define a igualdade como tratamento diferenciado, a qual parece-me dominante em nossas institui- ções públicas e no espaço público, tomado como o universo de interação social por excelência nas relações fora do círculo da intimidade dos atores. O maior símbolo dessa visão seria uma frase de Rui Barbosa, acionada reiteradamente por políticos de esquerda e de direita, ou por autoridades dos três poderes, ainda que a matriz seja o judiciário, e segundo a qual a igualdade seria tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. O instituto da prisão especial (para quem tem curso superior, revista_2010_53(2)_finalh.indd 462 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 463 - entre outros) e o fórum privilegiado dos políticos seriam bons exemplos desta concepção, e apenas a ponta do iceberg de um amplo conjunto de práticas e situações nas quais a implementação da concepção de igualdade como tratamento diferenciado no âmbito da justiça implica desigualdade no plano dos direitos. Olhando para o Brasil em perspectiva comparada, tendo como refe- rência minhas pesquisas sobre o mesmo tema nos EUA, Canadá, e mais recentemente na França, dois aspectos chamam a atenção: (1) a segunda concepção de igualdade, que Rui Barbosa (1999, p. 26) define como uma regra relativizadora de direitos, é incompatível tanto com o igualitarismo vigente no liberalismo anglo-saxão, como naquele presente no republi- canismo francês, muito diferentes entre si, mas idênticos na radicalidade com que concebem a igualdade de direitos entre indivíduos-cidadãos; (2) a tensão permanente com a visão que concebe a igualdade como trata- mento uniforme não oferece parâmetros de referência confiáveis para o cidadão, que lhe permitam saber que direitos são válidos em que circuns- tâncias e em que tipo de interações. Pois nem sempre os cidadãos devem ser tratados da mesma maneira, ou ter os mesmos direitos observados, e quem define que parâmetros são válidos em cada caso é uma autoridade com autonomia interpretativa. Além da sensação de arbitrariedade que este quadro sugere, a ausência de parâmetros socialmente consensuados com validade universal faz com que no espaço público brasileiro não te- nha vigência a ideia foucaultiana da disciplina, como instrumento de au- torrepressão do cidadão. Devo dizer ainda, que a concepção de igualdade como tratamento uni- forme não está imune a provocar situações de desrespeito sistemático a di- reitos tanto no plano jurídico como no plano das interações públicas e nos processos sociais, como os movimentos associados a demandas multicul- turalistas sugerem.9 Neste sentido, minha pesquisa no Canadá sobre as de- revista_2010_53(2)_finalh.indd 463 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 464 - mandas de reconhecimento do Quebec indicam que o não reconhecimento da singularidade quebequense é vivido pelos atores como uma negação de direitos dos cidadãos quebequenses, e que tal percepção não deixa de ter fundamento (Cardoso de Oliveira, 2002). Em outras palavras, a compa- ração entre processos de administração de conflitos e de demandas por di- reitos em diferentes sociedades sugere maior complexidade na avaliação da inteligibilidade dos direitos, assim como das ideias de justiça. Retomando a discussão acima sobre o olhar etnográfico e a ênfase da perspectiva antropológica na dimensão simbólica dos direitos, os dile- mas da justiça, da cidadania, e dos direitos são de muito difícil apreensão quando o intérprete não enfoca adequadamente a maneira como as res- pectivas questões são vividas pelos atores, ou como elas ganham sentido nas suas práticas, e motivam determinados padrões de orientação para a ação. A observação do antropólogo – qualquer que seja seu objeto e não apenas no caso da Antropologia do Direito – tem que estar situada num universo simbolicamente pré-estruturado, e seu acesso a este demanda a assunção da perspectiva de um participante virtual, para retomar aqui uma formulação de Habermas (1984, pp. 1-141). O participante virtual é aquele que não pode ser neutro, e que precisa acionar as suas pré-supo- sições para ter acesso ao mundo social, ainda que necessite relativizá-las para encontrar um ângulo a partir do qual consiga fazer conexões de sen- tido com o universo pesquisado, as quais, por sua vez, devem encontrar algum respaldo ou sintonia no ponto de vista nativo. Segundo Habermas, a virtualidade da participação estaria marcada pelo fato de o intérprete não ter interesses da mesma ordem daqueles partilhados pelos atores no que concerne ao desenrolar da ação na si- tuação pesquisada. Vale lembrar ainda que a ausência de neutralidade não implica parcialidade, e que o intérprete deve assumir uma atitude de imparcialidade, que não exclua de sua atenção ou consideração nenhu- revista_2010_53(2)_finalh.indd 464 8/14/11 8:19 PMRevista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 465 - ma das visões ou ponderações propostas por seus interlocutores. É neste sentido que o pesquisador precisa levar o ponto de vista dos atores a sé- rio, combinando a disponibilidade intelectual para apreender o inusitado com a cobrança de sentido ao que lhe é transmitido, fazendo com que a compreensão alcançada possa ser explicada a outros por meio das próprias palavras e (re)interpretações do pesquisador. Mas, como tal perspectiva se traduziria na prática da Antropologia do Direito? Qualquer que seja o foco da pesquisa o antropólogo não pode se abster de examinar as pretensões de validade dos atores no que concerne aos direitos e obrigações proclamados ou pretendidos, aos desfechos insti- tucionalmente sancionados para os conflitos administrados, ou às críticas e divergências apresentadas pelos atores ao longo do processo. Todas estas pretensões são baseadas em ideais de correção normativa que supõe sem- pre a equanimidade dos encaminhamentos em tela. A propósito, algo que me aproxima muito de Geertz e de Gluckman é a preocupação que ambos cultivam em relação às pretensões de validade normativa que permeiam todo processo de administração de conflitos. No caso de Gluckman (1955), tal preocupação se expressa na discussão sobre a convicção dos Barotse quanto ao caráter equânime das decisões tomadas pelas Kutas (suas cortes), sempre orientadas por ideais de fairness ou equidade. Já Geertz (1998), insiste na importância do antropólogo procurar captar os sensos de justiça embutidos nos procedimentos de ad- ministração de conflitos e em suas respectivas sensibilidades jurídicas, sem deixar de chamar atenção que, embora distintos e comparáveis – com o objetivo de elucidação recíproca –, não há critérios que permitam estrati- ficá-los em ordem crescente ou decrescente de superioridade relativa. Ou seja, não seria adequado avaliar o senso de justiça ou sensibilidade jurídica vigente em uma determinada sociedade a partir da perspectiva dominante em outra. Os insights de Gluckman – com ênfase na perspectiva interna revista_2010_53(2)_finalh.indd 465 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 466 - – e de Geertz – com ênfase no diálogo entre perspectivas – quanto às pre- tensões de validade normativa são retomados de forma talvez um pouco mais obsessiva no meu trabalho, dada a ênfase mencionada acima em levar a sério o ponto de vista dos atores, com suas respectivas implicações. Isto significa que para apreender a sensibilidade jurídica ou senso de justiça em tela o pesquisador deve levar a sério as pretensões de validade dos “nativos” quanto ao caráter equânime do procedimento adotado e dos res- pectivos encaminhamentos. Tal esforço deve desembocar no convencimen- to do pesquisador quanto à razoabilidade destas pretensões ou em questio- namentos razoáveis quanto às mesmas, sempre com o cuidado de evitar, num só tempo, o etnocentrismo (autoritário e excludente por definição) e o relativismo-niilista, que não consegue aceitar a capacidade argumentativa do interlocutor e as possibilidades de fundamentação de suas justificativas. Neste empreendimento, propus uma maneira de viabilizar melhor compreensão dos processos de administração de conflitos através do foco, de forma articulada, em três dimensões contextuais que contribuiriam para a elucidação destes processos: (1) a dimensão do contexto cultural abrangente, que se refere ao universo simbólico mais amplo onde o con- flito tem lugar; (2) a dimensão situacional do contexto, que se refere aos padrões de aplicação normativa associados a situações típico-ideais (por exemplo, definição de um certo tipo de furto e que pena se aplicaria a ele); e, (3) a dimensão contextual do caso específico, que analisa até que ponto o processo em tela pode ser adequadamente compreendido como um bom exemplo da situação típico-ideal a partir da qual ele estaria sen- do enquadrado (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 185-186). A falta de atenção a esta dimensão foi o principal foco de minha crítica à análise de Geertz no famoso ensaio já mencionado aqui (1998, pp. 239-268). Finalmente, uma abordagem que leve em conta as três dimensões temá- ticas dos conflitos (direitos, interesses e reconhecimento), e que incorpore a revista_2010_53(2)_finalh.indd 466 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 467 - análise das três dimensões contextuais que dão sentido ao que está efetiva- mente em jogo em cada caso concreto, tem tudo para viabilizar uma com- preensão mais ampla e profunda dos conflitos, das demandas por direitos e dos procedimentos. Deste modo o aspecto simbólico dos direitos seria ple- namente incorporado à análise, e a Antropologia poderia explorar melhor o potencial de sua contribuição no diálogo com o Direito. Isto é, trazendo à tona aspectos significativos dos conflitos e dos direitos que tendem a ser invi- sibilizados no judiciário. Há quase seis anos (em 12 de maio de 2004) fiz uma palestra na Escola Superior do Ministério Público da União, cujo texto ainda está inédito, e na qual procurava abordar causas vividas com dramaticidade pelos litigantes, mas que não eram recebidas adequadamente no judiciário. Com o sugestivo título de “A Invisibilidade do Insulto: ou como perder o juízo em Juízo”, e inspirado num artigo sobre a “paranoia do litigante” na Austrália (Lester et. al, 2004), discuti os casos australianos comparando-os com casos similares nos Estados Unidos e no Brasil assinalando que, em todos eles, o judiciário identifica um aspecto de insanidade nos litigantes ao não compreender a natureza das demandas encaminhadas pelos mesmos. A propósito, gostaria de concluir minha intervenção com um breve re- lato sobre o caso referente ao Brasil, e que foi retirado da tese de Ciméa Beviláqua, hoje publicada em livro (2008). Trata-se do caso de um tra- balhador de baixa renda e pouca instrução, que compra um terreno em empreendimento imobiliário na periferia de Curitiba, e é enganado pela empresa que não garante as condições de ocupação e os serviços oferecidos no momento da compra. A falta de drenagem adequada provoca a inun- dação do terreno e a danificação do barraco construído, causando enor- mes prejuízos ao trabalhador. As dificuldades em negociar uma reparação com a empresa, o acesso precário ao judiciário, e o desgaste ao longo do litígio trazem muitos transtornos à sua vida pessoal – nos planos material e emocional –, fazendo com que ele não consiga apresentar sua causa no revista_2010_53(2)_finalh.indd 467 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos... - 468 - Juizado sem relatar detalhes de seu sofrimento. Como o juiz não consegue fazer com que o trabalhador limite sua exposição aos aspetos contratuais da causa e à avaliação dos prejuízos materiais a serem indenizados, interpreta a exposição como um discurso sem sentido, e condiciona a continuidade do processo em uma nova audiência ao compromisso do litigante em passar por um teste de sanidade mental. O trabalhador aceita fazer o teste, e o lau- do do psicólogo do Ministério Público é muito interessante e revelador das dificuldades do judiciário em lidar com certas demandas por direitos. Pois, segundo o psicólogo, o trabalhador não seria apenas uma pessoa na plenitu- de de sua sanidade mental, mas que se distinguiria pelo apreço e confiança que teria em nossas instituições judiciárias. Quando enunciei o diagnóstico do psicólogo ao final de minha palestra, para um público majoritariamente de procuradores, ouvi um conjunto de vozes manifestando-se em uníssono no auditório: “Então ele é louco mesmo!” Notas 1 Texto produzido a partir da transcrição de intervenção na mesa-redonda “Antropologiado Direito no Brasil: campo e perspectiva”, realizada em 20 de agosto de 2009 na USP durante o I Encontro Nacional de Antropologia do Direito. A mesa foi coordenada por Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, e também contou com a participação de Claudia Lee W. Fonseca, Guita Grin Debert e Theophilos Rifiotis. 2 Trabalhei durante cerca de dois anos no Small Claims Advisory Service (Serviço de Acon- selhamento Para Pequenas Causas), como conselheiro leigo prestando esclarecimentos ao telefone para prováveis litigantes, e no final de minha pesquisa no Juizado também atuei durante um mês como mediador de disputas (Cardoso de Oliveira, 1989). 3 Refiro-me ao tipo de relativismo que não leva a sério pretensões de validade, e do qual Geertz faz questão de se distanciar em sua famosa conferência sobre o tema (Geertz, 1988). 4 A ideia seria de estreitar ou afunilar os parâmetros de classificação e de interpretação do litígio. 5 Kant de Lima foi quem primeiro me chamou a atenção sobre estas importantes diferenças entre os modelos acusatório e inquisitorial (1995; 2008), com seus respectivos estilos de con- revista_2010_53(2)_finalh.indd 468 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 469 - frontação: do adversário e do contraditório. Minha compreensão deste último deve muito aos diálogos com ele, com Maria Stella de Amorim (et alii 2005, xi-xxxviii; 2006, pp.107-108), e com o grupo de pesquisa que eles coordenam no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Gama Filho, com destaque para minhas discussões com Barbara Lupetti e Regina Lúcia Teixeira Mendes. 6 Veja discussão em Moore (2005, pp. 356-358) e em Schuch (2009, pp. 43-50). 7 Moore (1978, pp. 1-31) caracteriza bem esta condição para as sociedades com Estado, e Pospisil (1974) desenvolve um argumento similar para as sociedades tribais, ainda que não discuta ade- quadamente os problemas de articulação entre os diferentes níveis jurídicos que ele identifica. 8 Sobre a relação entre justiça e igualdade, veja também a contribuição de Ricoeur (2005). 9 Evidentemente, todo e qualquer sistema jurídico está sujeito a cometer equívocos e arbitra- riedades ao proferir decisões ou sancionar desfechos diversos na administração de conflitos. Entretanto, quando falo em desrespeito sistemático a direitos refiro-me a condições estrutu- rais que revelam padrões de arbitrariedade processual e indicam a presença de uma força ou poder ilegítimo (Cardoso de Oliveira, 1989, pp. 239-268; 2010). Bibliografia AMORIM, Mª Stella 2006 “Juizados Especiais na região metropolitana do Rio de Janeiro”, em Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, vol. 17, de agosto de 2006, pp. 107-131. AMORIM, Mª Stella., KANT DE LIMA, R. & TEIXEIRA MENDES, R. L. (orgs.). 2005 “Introdução”, em Ensaios sobre a Igualdade Jurídica, Rio de Janeiro, Lúmen Júris. BARBOSA, Rui 1999 Oração aos Moços, Edição Popular anotada por Adriano da Gama Kury (5ª edição), Rio de Janeiro, Edições Casa de Rui Barbosa. BEVILAQUA, Ciméa 2008 Consumidores e seus direitos: um estudo sobre conflitos no mercado de consumo, São Paulo, Humanitas, pp. 336. revista_2010_53(2)_finalh.indd 469 8/14/11 8:19 PM Luís Roberto Cardoso de Oliveira. 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Recebido em abril de 2010. Aceito em dezembro de 2010. revista_2010_53(2)_finalh.indd 473 8/14/11 8:19 PM revista_2010_53(2)_finalh.indd 474 8/14/11 8:19 PM Desafios da politização da Justiça e a Antropologia do Direito Guita Grin Debert Universidade Estadual de Campinas RESUMO: O artigo discute os desafios de uma antropologia do direito que tem como foco a sociedade do pesquisador e está voltada para a análise do sistema de justiça em sua relação com temas como a violência contra a mulher e contra o idoso. A partir da apresentação dos debates no interior das teorias jurídico-feministas, as seguintes questões são exploradas: (1) a relação entre universalismo e os diferentes particularismos; (2) a oposição entre judicialização das relações sociais e politização da justiça; (3) o caráter das formas de controle que marcam as sociedades ocidentais contemporâneas. Trata-se de apontar os limites e as falácias do conceito de cultura na compreensão de dilemas jurídico-políticos contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE: violência contra a mulher, violência contra o idoso, teorias jurídico-feministas, judicialização de relações sociais, sistema de justiça. Num artigo sobre o direito e o conhecimento local Geertz (1999, p.252) carac- teriza a antropologia do direito como uma disciplina centauro. Em comentá- rios por ele mesmo considerados impertinentes, alega que os debates nessa área são estáticos e reiteram incansavelmente as mesmas questões: a jurisprudência ocidental pode ser aplicada em contextos não-ocidentais? Como os africanos ou os esquimós concebem a justiça? Como disputas são resolvidas na Turquia ou no México? As regras e ordenamentos jurídicos restringem os comporta- mentos ou servem como justificativas legitimadoras de interesses específicos? revista_2010_53(2)_finalh.indd 475 8/14/11 8:19 PM Guita Grin Debert. Desafios da politização da Justiça e a Antropologia... - 476 - No Brasil, diferentes dimensões do sistema de justiça como a polícia e suas delegacias, as prisões, o Tribunal do Júri têm atraído um número cada vez maior de pesquisas em antropologia. Contudo, pode-se dizer, há certa resistência por parte dos pesquisadores na inclusão e identificação destes trabalhos com a área da antropologia do direito. Da mesma forma, os estudos clássicos, que consa- graram essa área como um campo específico da reflexão antropológica, nem sempre servem de inspiração às pesquisas realizadas. A tendência dos pesquisa- dores, particularmente quando seus trabalhos têm também um foco nas mino- rias discriminadas, é filiá-los em rubricas tidas como mais abrangentes como a antropologia política, estudos de gênero, raça e relações interétnicas. O interesse deste artigo é refletir sobre os desafios envolvidos no tratamento do direito e do sistema de justiça quando os temas abordados envolvem a nos- sa própria sociedade. Procuro sugerir que a indignação possa ser um motivo central do entusiasmo que pesquisas sobre as diferentes instâncias do judiciário têm despertado entre nós e do interesse renovado pela antropologia do direito. Tomando como base as diferenças e os debates no interior do que tem sido chamado de a teoria feminista do direito, busco dissolver a suposta homoge- neidade das posições que têm recebido essa rubrica e, por fim, apresento um leque de questões que deveriam ser incorporadas na antropologia do direito, de forma a evitar identificações apressadas ou estranhamentos fáceis nos estu- dos que têm como palco a sociedade brasileira. Antropologia do Direito e Indignação Para Geertz, no artigo citado, definir uma área ou uma subdisciplina é ten- tar resolver o problema do saber local de modo equivocado. A criação de uma subdisciplina só tem sentido quando estiver em jogo um saber novo que não se enquadra totalmente nos ramos já existentes das disciplinas. A constituição de uma nova especialidade requer antes a definição de temas de pesquisa que se revista_2010_53(2)_finalh.indd 476 8/14/11 8:19 PM Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2. - 477 - encontram no caminho entre duas áreas. Geertz sugere então uma abordagem mais desagregante da antropologia e do direito, uma abordagem que vá além do ataque que uma disciplina possa fazer a outra, posto que o interesse da an- tropologia do direito não pode ser o de corrigir raciocínios jurídicos através de descobertas antropológicas. Era exatamente isso, no entanto, que mais estimulava aqueles estudos empreendidos das várias instituições do sistema de justiça no país. A base inspiradora do meu trabalho nas delegacias da mulher, nas delegacias de proteção do idoso e nos Juizados Especiais Criminais,1 eram os livros de Mariza Corrêa (1981 e 1983), que mostraram, com muita precisão e maestria, como figuras jurídicas inusitadas são criadas de modo a dissolver a apregoada igualdade jurídica entre homens e mulheres como é o caso da “legítima defesa da honra”. Era importante demonstrar, com rigor, aos juristas e outros profissionais do direito como a ideia de imparcialidade era bombar- deada, na prática, por procedimentos tidos como expressão da normalidade e frutos de pura isenção. Não seria pretensioso dizer que tivemos um sucesso relativo nessa direção. O estupro, depois de muitos debates encabeçados por feministas, que muitas vezes tomaram emprestado pesquisas de cunho antro- pológico, passou a ser tratado de outra forma no Código Penal Brasileiro2 e a legítima defesa da honra já não é um argumento aceito juridicamente, embora seja ainda utilizado nas teses da defesa nos tribunais. Eram esses os debates que empolgavam porque mostravam como análises cuidadosas podiam contribuir com um debate mais amplo, politizando questões que aparentemente eram expressões de
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