de loza, nome que deriva de mbaʼe rupáva (B:256) lugar donde se guarda algo. Considerações Finais A construção de um artigo a partir de 445 palavras e frases do vocabulário sobre vasilhas cerâmicas é mais do que uma alternativa à falta de fontes históricas e etnográficas. Com efeito, é um exercício no limite do vazio epistemológico para superar o esquecimento de um conhecimento tradicional multimilenar ofuscado com as mudanças impostas pelas vicissitudes da história colonial. No presente, em certas comunidades, alguns Guaraní decidiram voltar a fazer vasilhas cerâmicas, procurando ressignificar alguns conhecimentos atuais sobre usos e formas. Mas enfrentam dificuldades para superar entre eles a longa ausência da produção de vasilhas cerâmicas e o desaparecimento das protagonistas deste campo do saber. Com a morte das mulheres que detinham a expertise prática, a capacidade para oferecer a orientação prática e teórica na aprendizagem da tecnologia cerâmica e da memória do conhecimento tradicional ficaram reduzidas. A linguagem da cerâmica registrada por Montoya pode estimular estudos entre os Guaraní atuais interessados na cerâmica. Seria uma oportunidade para reunir experiências do passado e do presente; seria como um sopro poético das tradições passadas insuflando, inspirando vigor, às práticas tecnológicas da atualidade das comunidades Guaraní. O conteúdo apresentado no artigo poderá ser avaliado e utilizado conforme a disciplina científica de cada um. Mas desde a perspectiva da linguística histórica comparada, podemos contrastar e cotejar o vocabulário coligido por Montoya com os vocabulários da cerâmica das 10 famílias linguísticas do Revista Brasileira de Linguística Antropológica194 A Linguagem da Cerâmica Guarani tronco Tupí. Este contraste oferecerá empiria sobre o desenvolvimento das classes funcionais na longa duração de 5 mil anos desde o Proto-Tupí, as quais possibilitaram o processamento de plantas, a criação de novas dietas e maneiras de servir o cardápio. O vocabulário Guaraní, desde que não confinemos as fontes – e inclusive as linguísticas! – nos limites de uma única disciplina, oferece muitas possibilidades de encontrar pareamentos compatíveis nos vocabulários das demais 70 línguas do tronco Tupí (Rodrigues e Cabral, 2012). Talvez as línguas Tupinambá, Asuriní do Xingu, Suruí e Juruna ofereçam no presente léxicos mais completos, e possibilidades de exercícios interessantes a serem descobertos. Também seria importante vasculhar as fontes linguísticas, históricas e etnográficas sobre as demais famílias do tronco Tupí, para deslocar o peso atual da família Tupí-Guaraní como referência quase absoluta do conhecimento tecnológico e arqueológico da cerâmica. É importante procurar um equilíbrio que permita uma compreensão mais adequada do que representou a cerâmica para cada um dos povos Tupí. Adotando-se uma perspectiva interdisciplinar, o problema de pesquisa é verificar se as regularidades linguísticas se evidenciam nos conjuntos artefatuais de todas as famílias, como no caso dos Tupí-Guaraní. A regularidade da morfologia nas principais classes funcionais encontradas nos sítios arqueológicos da imensa área ocupada pelos Guaraní é uma evidência de que a regularidade linguística também ocorria: se as vasilhas eram feitas e usadas de modos específicos, é provável que conservassem seus nomes e as linguagens afins. A base empírica e teórica desta perspectiva é o trabalho de Aryon Rodrigues (2007, 2010), que mostrou através de reconstruções fonéticas pela linguística histórica comparada que os Tupí são ceramistas desde o Proto-Tupí. As tabelas 2 e 3 mostram a reconstrução fonética da palavra panela, uma vasilha emblemática para os Tupí, uma palavra do vocabulário básico que foi conservada desde o Proto-Tupí. Mesmo com variações, a fonética revela um aspecto estrutural e estruturante na manutenção do nome panela na longa duração, em 7 das 10 famílias linguísticas, incluindo a família Tupí-Guaraní, onde a língua Guaraní foi incluída no ramo I (faltam dados nas famílias Puruborá, Mondé e Arikém). No cerne do modelo genético de Rodrigues (1985:34) está a hipótese, aceita por diversas tendências teóricas que investigam a linguística histórica da família Tupí-Guaraní, “de que as línguas em questão sejam manifestações diferenciadas do que foi no passado uma mesma língua e que as propriedades compartilhadas sejam a herança comum conservada sem diferenciação ou apenas diferenciações menos profundas”. Este componente estrutural marcado no vocabulário básico da cultura material explicaria uma das causas das semelhanças tecnológicas e funcionais entre tantos conjuntos artefatuais. A tabela 4 mostra o nome da panela em 15 línguas da família Tupí-Guaraní. Volume 10, Número 2, Dezembro de 2018 Francisco S. Noelli, José Proenza Brochado, Ângelo Alves Corrêa 195 Tabela 2: Reconstrução fonética da palavra panela Proto-Língua Região Panela Fonte Proto-Tupí Rondônia **waʔẽ Rodrigues 2007 Proto-Tupí-Guaraní ? *jaʔẽ Tabela 3: Panela nas famílias do Tronco Tupí Famílias Panela Fonte Juruna waʔẽ Rodrigues 2007 Munduruku waʔe Awetí taʔẽ Tupí-Guaraní jaʔẽ Tuparí waʔẽ Ramaráma\Káro maʔẽ-káʔ Mawé\ maʔã Tabela 4: relação forma/função das vasilhas cerâmicas da família Tupí-Guaraní Língua Região Cozinhar\Panela Armazenar líquidos\ cauim\ Talha Servir\ Consumir\ Prato Fonte Ramo 1 Guaraní Brasil Meridional\ Paraguai Argentina\ Uruguai Japepó kambutsí ~ kãmbuˈtʃí ja’ẽmbe Montoya 2011 Chiriguano Bolívia japépo kambúʃí jáẽ Giannecchini 1916 Tapieté Bolívia japépo ñaʼẽʼõ González 2005 Ramo 2 Sirionó Bolívia ñéo [ˈñiõ] Holmberg 1960 Ramo 3 Língua Geral\ Amazonas Baixo Amazonas japepú kamusí, kamutí jaẽ Stradelli 1929 Tupinambá Litoral Brasileiro, ja’ẽpepó kamisí ja’ẽ VLB Ramo 4 Revista Brasileira de Linguística Antropológica196 A Linguagem da Cerâmica Guarani Língua Região Cozinhar\Panela Armazenar líquidos\ cauim\ Talha Servir\ Consumir\ Prato Fonte Tapirapé Tapirapé tʃã’ʔẽ Baldus 1970 Asuriní do Tocantins Tocantins saʼé Nicholson 1982 Tembé Maranhão zapepó kamutí Rice 1934 Ramo 5 Asuriní do Xingu Xingu japepaí ja’é Silva 2000 Ramo 6 Parintintin Tapajós japepó kamabuí jaetíngy’á Betts 1981 Tupí- Kawahíb Madeira japepoí Apiaká Tapajós jẽpepó Coudreau 1897 Kayabí Tapajós japepó Weiss 1988 Ramo 7 Kamayurá Xingu ja’ẽ Baldus 1970 Ramo 8 Kaapor Maranhão kamuxĩ Kakumasu e Kakumasu 1988 Paralelamente é necessário construir um caminho semelhante na comparação das vasilhas cerâmicas das 70 línguas. As coleções arqueológicas melhor conhecidas são as Guaraní e Tupinambá; as coleções etnográficas mais estudadas são as Asurini do Xingu, Juruna, Suruí e Parakanã. Existem ainda coleções menores, com poucas ou apenas uma vasilha para várias línguas e existe uma grande quantidade de iconografias e fotografias em arquivos e publicações que precisam ser pesquisadas. Um exercício de arqueologia reversa comparada, indo das coleções do presente para as coleções do passado, poderia associar à deriva genética linguística com a diferenciação das vasilhas e encontrar os marcadores que possam permitir identificar no passado a autoria do registro arqueológico em nível de língua ou família. A partir da nossa experiência de campo na arqueologia, da visita a 150 instituições nacionais e internacionais para registrar vasilhas inteiras arqueológicas e etnográficas, de ler milhares de fontes históricas, etnográficas, linguísticas arqueológicas; e, finalmente, depois de examinar milhares de fragmentos cerâmicos, concluímos que existe um imenso potencial de pesquisa nas coleções, cujo acúmulo provém do século XIX. Tanto quanto os sítios arqueológicos, este acúmulo oferece chances e atalhos para compreender uma Volume 10, Número 2, Dezembro de 2018 Francisco S. Noelli, José Proenza Brochado, Ângelo Alves Corrêa 197 parte dos processos históricos dos Tupí em relação a sua origem e expansão geográfica. Podem indicar,