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A VARA TEIMOSA Debatendo com Paolo Nosella Em 1983 saía pela Cortez e Autores Associados o livro Escola e Democracia, do professor Dermeval Saviani. Uma das preocupações do livro era realizar uma crítica rigo rosa à Pedagogia Liberal-Burguesa, em suas três principais ver tentes: Tradicional, Nova e Tecnicista. Ao contrário da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Tecni cista, a Pedagogia Nova, após mais de cinqüenta anos de atuação no Brasil, havia escapado ilesa de qualquer crítica progressista. Certos setores que historicamente se auto-intitulavam democrá ticos, “de esquerda", simpatizavam com as propostas da Pedagogia Nova. Desde os anos 20 a Pedagogia Nova vem tentando se fazer passar por progressista. E, de fato, conseguiu iançar alguns germes de confusão à opinião pública. Diante disso, o professor Saviani resolveu aplicar sobre a Pedagogia Nova a “teoria da curvatura da vara”, de Lênin. E o que dizia essa “teoria"? Lênin, ao ser criticado por adotar posições extremistas e radicais, dizia: "quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endirei tá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso curvá-la do lado oposto." (Saviani, 1983: p. 41). Passados três anos da publicação de Escola e Democracia, já é possível dizer que o texto alcançou o objetivo de revigorar a discussão pedagógica brasileira. Surgem e ressurgem colocações polêmicas. Algumas das questões que têm vindo à tona refletem apenas uma leitura apressada dos textos do professor Saviani e, portanto, podem muito bem ser resolvidas através de uma maior disciplina mental por aqueles que as levantam. Outras questões, de caráter mais profundo, fazem a discussão avançar, e devem ser incentivadas. Todavia, existem questões que abrigam afirmações insustentáveis historicamente, e que, se não corretamente respon didas, em tempo breve, podem fazer a discussão pedagógica retroceder ao caos e confusionismo do passado. Recentemente, a revista Educação & Sociedade trouxe a público o texto “Educação Tradicional e Educação Moderna", do instigante professor Paolo Nosella. Com o intuito de estabelecer um debate com o professor Saviani, em particular com as teses contidas em Escola e Democracia, o professor Nosella formula uma série de problemas com diferentes graus de importância. Todavia, ao formular tais questões, o texto “Educação Tradicional e Educação Moderna” desliza por abordagens pouco confiáveis do ponto de vista histórico. Este texto pretende tratar de três pontos fundamentais que surgem no artigo do professor Nosella e que, se não corretamente encaminhados no momento certo, poderão disseminar dúvidas ca pazes de truncar, durante algum tempo, o processo de avanço que a discussão pedagógica tem alcançado. A primeira questão refere-se à confusão, estabelecida no texto do professor Nosella, entre Pedagogia Nova e Pedagogia Moderna. Entre tantas passagens em que essa confusão se estabelece, é possível exemplificar uma: “não há retomo na história à velha pedagogia, mesmo que a pedagogia nova tenha de sofrer outras tantas derrotas: há um único desafio para nós atualmente, fazer com que a pedagogia moderna se efetive no Brasil.” (Nosella, 1986: p. 130). Ora, como é possível tratar a Pedagogia Nova como sinônimo de Pedagogia Moderna? A Pedagogia Moderna é a pedagogia que nasce com o Mundo Moderno, ou seja, como o “mundo burguês”, em oposição ao Mundo Medieval/Portanto, a Pedagogia Moderna nasce com a burguesia, mais propriamente com Comênio, e tem seu apogeu com o sistema de Herbart. A Pedagogia Nova também tem suas origens na bur guesia, pois nasce, essencialmente, com alguns escritos de Rousseau e, posteriormente, é retomada por pedagogos do século XX, principalmente Dewey. É a Pedagogia Nova que vai chamar a pedagogia herbartiniana de “tradicional” e gerar, com isso, a polê mica Escola Nova versus Escola Tradicional. Um segundo problema preocupante no texto do professor Nosella é a total indistinção entre o que é política educacional e Paulo Ghiraldelli Jr. Do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP - Rio Claro 116 117 o que é pedagogia-didática. A completa indiferenciação entre os patamares da didática e os da política educacional leva o texto a posições teóricas que acreditam na existência de somente duas pedagogias”, ligadas às duas classes fundamentais da sociedade, a burguesia e o proletariado. É interessante recuperar esse redu cionismo no próprio texto do professor Nosella: “Na história moderna, a rigor, não há muitas propostas metodológicas em edu cação. Existem fundamentalmente duas relacionadas a cada uma das classes sociais fundamentais e antagônicas ( . . . ) Essa proliferação de metodologias de ensino só interessa à classe que está no poder, que as apresenta como pluralidade natural para escamotear o real antagonismo político-educacional entre a proposta escolar da classe burguesa e a do proletariado ( . . . ) Para além de todas classificações didático-metodológicas, qual é historica mente a proposta educacional da burguesia? Ela se resume na seguinte fórmula, para os dirigentes, o máximo de fornecimento escolar; para os trabalhadores o mínimo ( . . . ) " (Nosella, 1986: p. 116). É óbvio que, ao olhar a história de uma maneira geral, pode-se ter a impressão de enxergar uma proposta de política educacional mais ou menos constante, provinda da burguesia. Tal proposta pode ser expressa, em última instância, pela sintética frase de Marx em relação às formulações de Adam Smith quanto à educa ção: é preciso dar ensino às camadas populares, porém, pruden temente, em doses homeopáticas (Cf. Marx, 1983: p. 415). Assim, caberia ao proletariado, em oposição, reivindicar uma política edu cacional que possibilitasse ensino além das “doses homeopáticas”. Todavia, se esse raciocínio um tanto simplista pode, num primeiro momento, explicar a política educacional do Mundo Moderno, é absolutamente incorreto tomá-lo para explicar a diversidade dos métodos didáticos. Admitir a existência de somente duas pedagogias, estatica mente colocadas é, sem dúvida, desconhecer a história da burgue sia e do proletariado. Em outras palavras, é não admitir a dinami cidade da história. É possível dizer que as propostas pedagógico -didáticas de um Comênio, de um Rousseau, de um Herbart ou de um Dewey — todos representantes de frações da burguesia his toricamente construídas — são iguais? É possível dizer que as propostas pedagógico-didáticas de um Proudhon, de um Marx, de um Lênin, de um Ferrer ou de um Gramsci — todos representantes do "pensamento proletário” — são iguais? É preciso evitar redu cionismos que não compreendem que as classes alteram suas táticas e interesses no percurso histórico. Um terceiro problema contido no texto do professor Nosella refere-se às insinuações que colocam sobre os ombros dos traba lhadores a responsabilidade da criação e divulgação da Pedagogia Nova. Ao citar documentos pouco elucidativos sobre a Comuna de Paris, o professor Nosella procura, desesperadamente, comprome ter o trabalho dos communards com idéias ligadas aos princípios da Pedagogia Nova, talvez influenciados pela denominação de uma associação de ensino, vigente nos dias da Comuna, que se auto intitulava ‘‘Sociedade Educação Nova”! (Cf. Nosella, 1986: p. 121). Mas se já não bastasse isso, o professor Nosella ousa dizer que no Brasil, no início do século, ‘‘escolas anarquistas” se utilizavam da metodologia da Pedagogia Nova. Para tal, faz uso de uma passagem pouco rigorosa do ponto de vista da Pedagogia, encontrada no livro A Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de Moura: Observe-se que muitos dos métodos ativos e da utilização da experiência de vida preconizados pela Escola Nova, dos reformadores de ensino, nadécada de 20, foram aplicados pelas escolas modernas, difundidas pelos anarquistas na décadas anterior, e voltaram a aparecer nas escolas experimentais, criadas na década de 50." (Apud Nosella, 1986: p. 127). Ora, não se pode confundir as Escolas Modernas, fundadas pelos militantes libertários do início do século atual, com qualquer coisa parecida com o Movimento da Escola Nova, ligada aos "pro fissionais da educação" dos anos 20 e 30. E já existem estudos detalhados sobre ambos assuntos que não deixam margem a dú vidas. (Cf. Ghiraldelli Jr., 1986a e 1986b: pp. 136-47). Ainda no interior deste terceiro problema, que se refere à ligação entre Pedagogia Nova e classe trabalhadora, faz-se neces sário citar mais um episódio em que o texto ‘‘Educação Tradicio nal e Educação Moderna” parece comprometer-se com um certo grau de simplismo. Ao comentar as reivindicações e propostas contidas no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova o texto toma a bandeira de publicização do ensino, certamente interes sante à classe trabalhadora, como estatuto geral do Movimento da Escola Nova. É interessante citar o trecho: “Quanto ao histórico movimento dos pioneiros da Educação Nova, da década de 30, ( . . . ) traz nos seus ideais pedagógicos, ainda que de forma muito mais branda, as marcas inconfundíveis das propostas educacionais reivindicadas pela classe trabalhadora do final do século passado e das primeiras décadas do sé culo XX.” (Nosella, 1986: p. 127). Não é possível endossar a tese que sustenta que a Pedagogia Nova tem suas raízes no seio do movimento dos trabalhadores. É fato conhecido que tanto ao nível da Europa e Estados Unidos, como ao nível de Brasil, os chamados ‘‘métodos novos” estão vinculados a frações da burguesia. 119118 É fato conhecido que os chamados "métodos novos" têm suas raízes com Rousseau, portanto, com frações da burguesia do século XVIII, e não propriamente com o proletariado. É possível dizer que elementos socialistas se entusiasmaram com Rousseau; isso é verdade, o caso de Babeuf é típico (apesar de Babeuf já estabelecer uma certa revisão crítica às propostas de Rousseau), mas daí concluir vinculação orgânica entre a Pedagogia Nova e o proletariado é, no mínimo, exagero desvairado. Em relação ao Brasil, inúmeros pesquisadores já se esforça ram no intuito de aprofundar o tema relativo às origens do Movi mento da Escola Nova. O movimento dos trabalhadores não pode ser culpado, em sua totalidade, pela divulgação dos chamados "métodos novos”, pelo contrário, é importante lembrar as falas do professor Carlos Jamil Cury, que chegou a intuir que de fato o Manifesto de 32 respondeu, ao nível do educacional, ao célebre dito do governador Antonio Carlos; “façamos a revolução antes que o povo faça”. (Cf. Cury, 1982: p. 9). De tudo o que foi dito nesta introdução, é possível enxergar O seguinte apesar de o professor Saviani ter envergado a vara para além do aparentemente necessário, ela não voltou à posição correta, mantendo-se teimosa. O fascínio do Liberalismo-Burguês, através da Pedagogia Nova, continua cativando corações! Talvez seja necessário recolocar a vara em seu devido lugar através de um ato de força, a força da História. 1 A pedagogia tradicional como expressão máxima da pedagogia moderna A sociedade medieval, berço das lutas incessantes entre a nobreza feudal, não resistiu ao trabalho de solapamento de suas estruturas, silenciosamente, pacienciosamente forjado pelas clas ses oprimidas. Enquanto os nobres se preocupavam com suas guerras e com a exploração e opressão do camponês, sorrateira mente as cidades ressurgiam das cinzas. Por trás das muralhas dessas cidades abrigava-se o artesanato medieval e concentra vam-se os primeiros capitais; nascia o comércio e, em seguida, as medidas de proteção desse comércio — “Desde o século XV, os burgueses da cidade se tornaram mais indispensáveis à socie dade que a nobreza feudal”. (Engels, in lanni, 1978; p. 289). A Pedagogia Moderna tem suas raízes nos séculos XVI e XVII, ou seja, no período de nascimento do Mundo Moderno. Tal época representou, na verdade, o palco de atuação da burguesia enquanto classe emergente. É o período de fortalecimento do Rei, da for mação dos Estados nacionais, das Monarquias absolutistas, da 120 estruturação do regrário mercantilista; tudo isso impulsionado pelos novos grupos sociais, os burgueses comerciantes, os mer cadores que, revolucionando o mundo da produção, alteravam com relativa rapidez as relações sociais. Todas essas transformações ao nível da produção e circulação material não deixaram de pro vocar semelhantes mudanças ao nível da produção e circulação das idéias. Esse é o período que serve de pano de fundo à Re forma,1 que deu origem a uma religião laica, impondo, assim der rotas à Igreja Católica e provocando rachaduras no sustentáculo ideológico do mundo feudal. (Cf. Touchard, 1970: pp. 10-13). O movimento da Reforma esboçou os primeiros alertas em relação à necessidade de democratização da educação. Lutero (1493-1546), no Sermão sobre o Dever de Enviar as Crianças à Escola (1530), deixava bem claro sua plataforma de política edu cacional, atribuindo aos Governos (ao Estado) a responsabilidade da educação popular: “Eu sustento que as autoridades civis têm obrigação de forçar o povo a enviar seus filhos à escola, exatamente como estão prometendo... Se o governo pode obrigar tais cidadãos, quando prestam serviço militar em tempo de guerra, tem muitíssimo mais direito de obrigar o povo a enviar seus filhos à escola, porque neste caso nós estamos lutando contra o Demônio. .. ” (Apud EBY, 1962: p. 62). É óbvio que a luta da burguesia emergente, a quem Lutero servia como porta-voz, não era contra o Demônio, mas sim a favor de uma abertura de oportunidades dentro da estrutura ainda rígida do período. O movimento de publicização do ensino fazia parte dessa luta. E se Lutero insistia na educação popular sob responsabilidade estatal, não deixava de tecer, também, duras críticas às metodo logias e finalidades do ensino normalmente adotadas nas escolas da época, dirigidas pela Igreja Católica. Em seu tratado Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja (1520) enfatizou: “Não era uma ardente vergonha que antes um menino necessitasse estudar vinte anos ou mais, somente para aprender uma algaravia de mau latim e então tornar-se padre e dizer missa? E ele, que finalmente chegou ao apogeu de suas esperanças, era considerado feliz... Mas, para tudo isso, permanecia um pobre homem iletrado toda sua vida e não servia nem para cacarejar nem para pôr ovos. Assim são os professores e chefes que temos de suportar, que nada sa biam eles próprios e, conseqüentemente, eram incapazes de ensinar qualquer coisa boa ou verdadeira”. (Apud EBY, 1962: p. 54). 1. Na verdade esse período abriga o Renascimento e a Reforma. O pri meiro se caracterizava por um caráter restrito, vinculado às elites intelectuais. O segundo atingia a massa, modificando valores e esquemas mentais, adaptando o pensamento das populações às modificações econômicas que se processavam com rapidez. 121 De uma certa maneira, o pensamento dos educadores pro testantes se inseria no contexto de uma nova concepção de mundo e uma nova concepção de educação. E se, por um lado, Lutero refreou seus discursos em favor de medidas democratizantes após as revoltas camponesas daquele período, por outro lado outros pastores protestantes continuaram a difusão das novas idéias. Uma dessas figuras foi Comênio (1592-1671) que, com sua Didática Magna (1597) inaugurou alguns patamares básicos da Pedagogia Moderna. A Didática Magna dava continuidade aos projetos da burgue sia emergente no sentido de defender propostas democráticas de ensino para todos. O livro de Comênioinvertia as posições utili zadas pelas classes feudais, pelo clero católico. A Igreja Católica utilizava as divindades para justificar as desigualdades; Comênio fazia o oposto; para ele, "perante Deus não há pessoas privile giadas", portanto, seria afrontar a Deus admitir a “cultura do es pírito apenas a alguns, excluindo outros”. Coerente com seus pres supostos teórico-religiosos, na prática Comênio expunha uma plataforma de política educacional que interessava à burguesia: "Toda a juventude de ambos os sexos deve ser enviada às escolas. Que devem ser enviados às escolas não apenas os filhos dos ricos ou dos cida dãos principais, mas todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e raparigas, em todas as cidades, aldeias e casais isolados (...)" (Comênio, 1957: p. 139). A Didática Magna era a proposta democrática de uma classe em ascenção, capaz de apresentar uma simpática maneira de ‘‘en sinar tudo a todos” (sub-título da Didática Magna: “Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos", 1597). O livro de Comênio era um espelho que refletia, com razoável fidedignidade, o novo mundo que surgia. A racionalidade, a eficiência, o utilitarismo, a ênfase em técnicas e instrumentos, a programação e toda a rotina cultivada no nascente sistema de produção burguês, exalavam por todos os poros do texto de Comênio (Cf. Ponce, 1985: p. 375).2 Em quase todo o continente europeu as escolas que mistu ravam os filhos dos burgueses com os da pequena nobreza, ainda se prendiam ao regrário escolástico; faltavam o moderno ensino das ciências, da geografia, da história, etc. “O mundo da indústria e do comércio, sobre os quais a burguesia construía sua fortuna, não penetrava de fato nas suas escolas." (Abbagnano, 1982: p. 375, v. 2). Comênio foi convidado por vários chefes de Estado 2. Para uma melhor compreensão da produção no período consultar MARX, K. O Capital. São Paulo, Difel, livro I, Vol. I, capítulo "A manufatura e a divisão do trabalho". a corrigir esta situação, implantando reformas de ensino que di minuíssem a defasagem entre o ensino escolar e as novas con dições de produção. Assim, enquanto nos países católicos o ensino continuava nas mãos das ordens religiosas, em especial dos jesuítas,3 os países adeptos do protestantismo deram maior participação do Estado na educação, as autoridades públicas, sob a luz de algumas idéias de Comênio, passaram a intervir na educação, criando legislação que obrigava as pessoas a freqüentarem escolas (Cf. Luzuriaga, 1984: p. 126). A obra de Comênio não era democrática apenas pelas suas proposições a favor da extensão do ensino básico a todos os setores sociais. O caráter democrático ia além, se integrava tam bém na formulação da metodologia escolar, a qual ele procurou aperfeiçoar ao máximo, para que as classes emergentes apreen dessem os conteúdos escolares com mais eficiência. À burguesia, que cedo ou tarde deveria tentar a conquista do poder político, interessava os conteúdos escolares; é certo que não eram os mes mos conteúdos escolásticos da velha escola medieval, mas em boa parte eram os conteúdos referentes às conquistas científicas e filosóficas das gerações passadas, necessárias para o real en tendimento das novas ciências que vinham se desenvolvendo (Cf. Ribeiro, 1984: p. 59). De classe emergente dos séculos XVI e XVII, a burguesia passou, no século XVIII, para classe revolucionária;4 as idéias em butidas no Iluminismo se radicalizaram e, com elas, também a pedagogia se radicalizou, insistindo em críticas cada vez mais ferozes ao mundo feudal e exigindo modificações a favor da bur guesia e das camadas populares. 3. Faz-se necessário distinguir a Companhia de Jesus das antigas ordens religiosas medievais. A Companhia, apesar de imprimir um conteúdo ideológico baseado na escolástica, e nesse sentido, conservador, era montada sobre os moldes das companhias capitalistas. No Brasil, por exemplo, chegou a ter navios, agricultura desenvolvida, artesanato, etc., e disputava a mão-de-obra indígena com os colonos. Ao nível das preocupações educacionais também não se pode pensar nos Jesuítas como representantes do ensino medieval; o regrário disci plinar da Ratio Studiorum está mais próximo do espírito de racionalização do mundo capitalista do que muitas outras obras educacionais desenvolvidas por autoridades laicas. (Cf. LEITE, 1938). 4. A expressão “burguesia enquanto classe revolucionária" deve ser to mada com um certo cuidado. Afinal, até que ponto é possível dizer que, no caso da Revolução Francesa, a burguesia agiu revolucionariamente até as últimas con seqüências? (Cf. FLORENZANO, 1981). 123122 Apesar de controlar o mundo da produção e impulsionar o avanço das forças produtivas, a burguesia não detinha, de forma completa, o poder político. Foi com apoio dos burgueses que o Rei se fortaleceu e se tornaram concretas as possibilidades de criação dos Estados Nacionais. Mas isso não significou que a bur guesia tivesse conseguido participação decisiva no aparelho de Estado, a ponto de dirigir mudanças contínuas na política econô mica. Pelo contrário, as Monarquias Absolutistas, que outrora pro porcionaram grandes lucros à burguesia comercial, haviam se tornado um empecilho ao progresso. A política econômica do Mer cantilismo, que favorecia os monopólios e emperrava a livre nego ciação, a partir de um certo estágio do desenvolvimento capita lista passou a prejudicar os interesses do próprio capitalismo. O crescimento da produção industrial agiu como causa e efeito no sentido de provocar a derrocada do Mercantilismo, ou seja, o enfraquecimento da intervenção do Estado na economia e o fim dos monopólios (Rol1, 1972: Cap. II, III e IV). Nascia, então, o liberalismo, o pensamento moderno, o pensamento da burguesia que exigia o laissez-faire. Marx atentou várias vezes para o momento histórico em que a burguesia, ansiosa de fazer continuar o desenvolvimento, via-se obrigada a vestir o manto revolucionário e avançar espalhafatosa mente sobre a organização social e política que se mantinha em posturas conservadoras: "Os meios de produção e de troca, sobre cuja base se ergue a burguesia, foram gerados no seio da sociedade feudal. Em certo grau de desenvolvimento desses meios de produção e de troca as condições em que a sociedade feudal pro duzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Entravavam a produção em lugar de impulsioná-la. Transformaram-se em outras tantas cadeias que era preciso despedaçar (Marx & Engels, s.d., pp. 27-45, v.l.). A França, sem dúvida, é o exemplo clássico da derrocada do regime feudal e da vitória da burguesia e do Liberalismo.5 A luta travada pelo Terceiro Estado contra a nobreza e o clero repre sentou o paradigma dos acontecimentos que marcaram o fim do chamado Antigo Regime e, portanto, o fim do mundo feudal. Os períodos revolucionários são precedidos de férteis deba tes e intensa produção cultural. Os anos que precederam a Revo 5. Para uma exposição clara e não extensa dos princípios do Liberalismo, ou seja, dos princípios de Liberdade, Igualdade, Democracia, Individualismo o Propriedade, e que foram fundamentais para a composição da Pedagogia Libe ral-Burguesa. (Ver Cunha. 1975, pp. 27-45). 124 lução Francesa (1789) deram origem ao movimento do Iluminismo que, como escreveu Gramsci, preparou o terreno europeu para as transformações que vieram, posteriormente, com as baionetas napoleônicas (Gramsci, 1916). O século XVIII abrigou, entre tantas, duas vozes importantíssimas quanto à elaboração da Pedagogia Liberal Burguesa. Foram as vozes de Adam Smith e de Rousseau. Smith (1723-1790) foi o grandecrítico do Mercantilismo; seu livro Inquérito sobre a Natureza e Causa da Riqueza das Nações (1776) pautava-se pela defesa intransigente da “liberdade natural”, contra a intervenção estatal na economia. O Riqueza das Nações admitia a intervenção do governo somente em três casos: refe rente à defesa do país contra inimigos estrangeiros; o dever de distribuir justiça por todo o país para garantir a posse da pro priedade privada; e o dever de manter obras públicas que um grupo de indivíduos não manteriam por falta de recursos. Fora isso, a “mão invisível” do desenvolvimento “natural” era mais eficaz. Assim, apesar de Smith acreditar que o melhor ensino era o for necido pelas escolas particulares (Cf. Smith, s . d . , pp. 415-16), via a necessidade de o Estado deslocar recursos para a educação básica dos trabalhadores. De fato, Smith foi obrigado a descer de seu pedestal liberal e admitir a intervenção do Estado na edu cação das camadas populares, imbecilizadas pela pobreza e pelo grau de subordinação do trabalho ao capital: “Mas embora a gente comum não possa, em qualquer sociedade civilizada, ter tão boa instrução como as pessoas de posição e fortuna, contudo as partes fun damentais da educação, ler, escrever e contar, devem ser cedo adquiridas na vida das pessoas de tal modo que a grande parte das pessoas que se destinam às ocupações mais inferiores, tenham tempo de as adquirir antes que tenham de se entregar nessas ocupações. Com uma despesa bastante reduzida o pú blico pode facilitar, encorajar, e mesmo impor a necessidade da aquisição des sas partes mais essenciais da educação ao conjunto das pessoas." (Smith, s.d., pp. 420-21). A plataforma de política educacional adotada por Rousseau (1712-1778) também enfatizava a intervenção do poder público na educação popular. Nas Considerações sobre o Governo da Polônia declarou que a educação era “a mais importante atribuição do Es tado". Insistentemente diretivo e valorizando os conteúdos cien tíficos e escolares Rousseau afirmava: " ( . . . ) Aos vinte anos de idade, um polonês deve ser um polonês e nada mais. Quando ele estiver aprendendo a ler, eu quero que leia sobre seu próprio país. Aos dez anos deveria estar familiarizado com todas as suas províncias, estradas e cidades. Aos quinze deveria conhecer toda a sua história; aos dezesseis, to das as suas leis. Não deveria haver uma bela ação ou um homem ilustre em toda a Polônia, cuja fama não ocupasse o coração e a memória de modo que ele pudesse fazer o relato instantâneo delas..." (Apud EBY, 1962: pp. 298-99). 125 Esse discurso difere radicalmente do Emílio (1762), romance de Rousseau mais ao nível da metodologia pedagógico-didática e menos relativo à política educacional. Nessa obra o filósofo fran cês encarna o revolucionarismo do Terceiro Estado, que desejava a destruição do Antigo Regime. A pedagogia contida no Emílio expressava o brado revolucionário que desejava a extirpação da sociedade dominada pelo clero e pela nobreza. (Cf. Suchodolski, s.d., p. 39). A pedagogia rousseauniana aconselhava os burgueses a edu carem, eles próprios, seus filhos, arrancando-os das mãos da socie dade dominada pelo clero e pela nobreza. De fato, naquelas con dições, o homem era naturalmente bom, mas inevitavelmente cor rompido pela sociedade. Na ânsia de livrar a criança das mãos da hierarquia eclesiástica e da sociedade corrompida, Rousseau apre sentou uma didática titubeante, que deixava por conta do "desen volvimento natural” (a “mão invisível”, de Adam Smith) a educa ção da criança. O Emílio contém o paciencioso método rousseau niano, capaz de esperar a livre vontade dos filhos de ricos bur gueses para o despertar intelectual: " ( . . . ) Emílio ( . . . ) não terá dissecado insetos; não terá contado as manchas do sol; não saberá o que seja um microscópio ou um telescópio. Vossos doutos alunos zombarão da ignorância dele. Terão razão, pois antes de se servir de tais instrumentos quero que os invente e, sem dúvida, isso não virá tão cedo. Eis o espírito de todo o meu método ( . . . ) . ” (Rousseau, 1978; p. 227). Se por um lado o Iluminismo continha a crítica ao Antigo Re gime, por outro lado possuía também os determinantes teóricos capazes de acenarem às camadas populares com bandeiras demo cráticas de universalização de ensino público, laico e gratuito que se autodefiniria como passarela mágica capaz de proporcionar a tão propalada igualdade entre homens, constante nos discursos dos filósofos burgueses do século XVIII. A Revolução Francesa, processo pelo qual a burguesia, cumprindo função dirigente pe rante seus aliados das camadas populares, imprimiu a derrota às classes feudais, representou uma esperança aos setores demo cráticos que desejavam a expansão de oportunidades educacio nais. Desta forma, o discurso de Condorcet (1743-1794) na Assem bléia Legislativa francesa (1º de outubro de 1791 a 21 de setem bro de 1792) procurava garantir a “instrução universal e gratuita”, e, com isso, procurava satisfazer os interesses ainda um tanto indistintos de todos os setores do Terceiro Estado. (Cf. Lopes, 1981: p. 71 ).6 6. Para uma exposição breve dos principais acontecimentos da Revolução Francesa ver Manfred, A. Z. A Concepção Materialista da Revolução Francesa, 1982. A Revolução Gloriosa da Inglaterra (1688), a Independência dos E . U . A . (1776), a Reforma Protestante, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa fazem parte de um conjunto de aconteci mentos históricos que completam, na verdade, a ascenção da burguesia e o fim do mundo feudal. O século XIX, portanto, berço histórico da Revolução Industrial, ou seja, testemunha inevitável da consolidação do modo de produção capitalista em sua forma avançada, consubstanciada em grandes empresas fabris (sobre a diferença entre manufatura e a fábrica ver Marx, K. O capital, 1982), traz uma dura tarefa à burguesia. A Revolução já estava pra ticamente concluída. Era preciso se instalar nos aparelhos de Esta do e . . . governar. E governar uma sociedade industrial complexa e cheia de conflitos. A burguesia encarnava a classe triunfante. A Pedagogia de Comênio pertencia a um mundo onde a pro dução manufatureira era dominante, um período que logo se viu superado. A pedagogia de Rousseau correspondeu aos anos revo lucionários, não mais servia à burguesia que se instalava no poder. Fazia-se necessário que as escolas não perdessem tempo com delírios românticos e se comprometessem com a tarefa da bur guesia de governar. A burguesia necessitava de se instrumentali zar culturalmente, formar seus quadros, formar o cidadão, preparar as elites para o avanço tecnológico, forjar escalões médios e di fundir sua visão de mundo às camadas populares. Era preciso uma escola eficiente, e uma pedagogia... científica! O século XIX não decepcionou a burguesia, pois foi nesse século que Herbart (1776-1841) edificou a pedagogia enquanto “ciência da educação” (Cf. Eby, 1962: p. 473). Para Herbart não havia sentido falar de educação sem falar de Instrução. A aquisição da cultura era por si só, educativa. A educação era vista em seu sistema como um processo em que a “humanidade se educa a si mesma ( . . . ) através do universo de idéias que ela produz”, portanto, faz-se necessário que a huma nidade venha a “oferecer de modo concentrado todo o ganho de suas tentativas à descendência” (Kowarzik, 1983: p. 30). O impor tante para Herbart era que através do estudo da matemática, das ciências físicas e dos clássicos da literatura, pudesse o processo pedagógico forjar uma elite dirigente sábia, capaz, competente na tarefa de comandar as massas. (Cf. Abbagnano, 1982: p. 627). A burguesia, uma vez no poder, impôs uma nova ordem social, Do episódio revolucionário de 1789, quando derrotou a velha con cepção de mundo, até os épicos acontecimentosda Comuna de Paris (1871), quando impôs limites à novíssima concepção de mun do, a burguesia percorreu mais de oitenta anos, período suficiente para passar de classe triunfante para classe dominante. 127126 Enquanto classe dominante, a burguesia, sob pressão do pro letariado crescente e cada vez mais combativo, expandiu as redes de ensino público,7 oferecendo uma válvula de escape ao sistema que se dizia democrático, mas que, cada vez mais, desencantava as camadas populares. A maioria dos países onde o sistema capi talista se desenvolveu rapidamente, logo no início do século XX, já havia praticamente eliminado o analfabetismo (Cf. Eby, 1962: p. 473). No entanto, era justamente nesses países que se expli citavam as contradições do sistema. As grandes redes de ensino público desenvolvidas pela burguesia, empunhando o método da pedagogia científica de Herbart, cresceram vertiginosamente. As camadas populares, uma vez instrumentalizadas através de um saber mínimo, mas eficientemente transmitido pela didática her bartiniana, aumentaram o potencial de mobilização e passaram a rejeitar a dominação burguesa, revivendo, a todo instante, os ideais sufocados da Comuna de Paris A Pedagogia Moderna, com Herbart, chegava ao seu ponto de maior avanço, conseguindo montar, através da indissolução do binônimo instrução-educação, uma proposta rigorosa e científica. Ao mesmo tempo essa Pedagogia Moderna engendrava um nível máximo de contradição pois, se por um lado Herbart havia se proposto a montar um ensino forjador de elites, sua pedagogia estava, na verdade, servindo às massas, à medida que a burguesia via-se forçada em ampliar a rede de ensino público. As coisas pareciam querer escapar do controle da burguesia; o ensino pú blico e gratuito parecia se expandir de forma um tanto exagerada; Marx reconheceu a extensão da gratuidade do ensino em sua Crítica ao Programa de Gotha (1875) (Cf. Marx in Marx & Engels, s . d . , pp. 209-225). Por outro lado, a organização dos trabalhadores, dia a dia, ficava mais forte, reivindicando jornadas de trabalho reduzidas. Os filhos dos trabalhadores ameaçavam, dessa forma, chegar ao ensino secundário e até mesmo à Universidade. Parecia que as democracias parlamentaristas montadas pela burguesia não conseguiam manter o fornecimento de educação ao nível de "doses homeopáticas”, como aconselhara Smith. Isso preocupava os setores mais conservadores da sociedade. Esse era o problema pedagógico-educacional da burguesia na entrada do século XX. Como ceder aos trabalhadores mais educação, mantendo a escola como fator de equalização social, e ao mesmo tempo negar-lhes acesso à cultura? 7. As conquistas sobre ensino público anuciadas no início da Revolução Francesa sofreram retrocesso, principalmente com Napoleão. Somente depois do episódio da Comuna o governo francês passou a se interessar em efetivar os princípios de 1789. (Cf. S., Froumov, s.d.). 128 Historicamente esse problema encontrou solução no advento da Pedagogia Nova. O escolanovismo forjou vários profetas; um dos expoentes máximos dessa corrente foi Dewey (1859-1952). O período da disseminação da Pedagogia Nova encerrou a fase da burguesia enquanto classe dominante e inaugurou uma nova fase, a fase da burguesia como classe reacionária. O primeiro trabalho a que se dedicou a Pedagogia Nova foi a de fazer a crítica da concepção pedagógica dominante na época, ou seja, a concepção herbartiana. O movimento da Escola Nova acusou a “velha escola”, a “escola tradicional” de ineficiente, não-científica... medieval! Dessa forma, renegando o próprio pas sado, a burguesia lançou seus ataques àquela pedagogia que ela mesma havia gerado, ou seja, a pedagogia de Herbart. Uma vez tendo qualificado a pedagogia de Herbart, a “Peda gogia Tradicional”, como medieval, a Pedagogia Nova tratou de criar, no plano imaginário, a sua luta contra o mundo feudal. Assim, de maneira fantástica, a burguesia retirou das catacumbas os fantasmas feudais para, quixotescamente, derrotá-los sob os aplausos dos trabalhadores. O escolanovismo acabou criando uma falsa polêmica, à medida que em pleno século XX, se propôs a fazer oposição à escolástica, à Aristóteles! Kilpatrick, um dos educadores americanos que endossavam o escolanovismo, insis tia na tônica de afirmar que a questão educacional, em pleno século XX, se dava entre experimentalismo galileano e autorita rismo aristotélico! (Cf. Kilpatrick, 1974). A idéia central da Pedagogia Nova era fazer crer que as pro postas que haviam se disseminado nas escolas eram não-cientí ficas, “jesuíticas”. Muitos educadores engoliram tal fato e pas saram a acreditar que o alvo real do escolanovismo era de fato a Pedagogia Jesuítica! Na verdade, a Pedagogia Nova recebeu boa colaboração da Igreja no sentido de perpetuar essa idéia. Afinal, os setores reacionários da Igreja fisgaram a isca da Pedagogia Nova e, num ato de obscurantismo extremado, passaram a atacar os “novos métodos", proporcionando um certo teor de autentici dade e atualidade no debate Escola Nova versus Escola Tradicio nal. O próprio Papa Pio XI, por exemplo, lançou uma encíclica onde condenava veementemente “essa liberdade sem limites da criança” e o direito que os “novos métodos” concederam à criança de forjar sua própria formação. (Cf. Snyders, 1974: p. 144). A Pedagogia Nova procurou destruir o método herbartiniano, e com isso agiu de modo reacionário, à medida que combateu uma didática que, apesar das limitações elitistas, vinha dando bons resultados. 129 Na verdade, ao nível da sala de aula, a proposta de Dewey diferia radicalmente da didática herbartiniana. O método de Herbart compunha-se de aula expositiva segundo os “cinco passos for mais”; preparação, apresentação, associação, generalização e apli cação. O método de Dewey procurava ser “mais científico", e para isso adotou, também em cinco passos, o procedimento do cientista no laboratório de pesquisa; atividade, problema, dados, hipótese e experimentação.8 De fato, o escolanovismo confundiu “método didático” com “método de pesquisa”, e dessa forma acabou desestruturando o trabalho de sala de aula que vinha se fazendo desde o século X I X . Se já não bastasse isso para transformar a escola em inferno, a Pedagogia Nova passou a hiper-valorizar as possibilidades da psicologia infantil. Dessa forma, passou-se a dar importância ao processo de aprendizagem, manifestação do processo mental, rele gando a segundo plano os resultados da aprendizagem. Pior ainda foi a introdução, pela Pedagogia Nova, das idéias de “participação democrática” em sala de aula. As aulas passaram, então, a se pautarem pela famosa “dinâmica de grupo”, onde todos tinham voz, e todas as opiniões eram válidas! Não era impor tante para a Pedagogia Nova que não houvesse democracia fora da escola, o importante é que internamente existia o "jogo demo crático”, que nada mais era do que a reprodução do parlamento burguês. 2. Da comuna de Paris à revolução de outubro, ou da “pedagogia socialista” utópica à “pedagogia socialista” científica Os anos finais do século XVIII e boa parte do século XIX foram marcados por uma série de transformações no mundo da produção — com claras conseqüências sócio-político-filosóficas — comumente englobadas no termo "Revolução Industrial". A In glaterra, que chegou a ser reconhecida como "oficina do mundo” foi, sem dúvida, o berço histórico de tal revolução. Na Inglaterra, desde o século XV, a política já estava com seus olhos voltados para o favorecimento do lucro privado. A terra passou rapidamente às mãos de proprietários com espírito comercial e era trabalhada por arrendatários que empregavam camponeses assalariados. O fenômeno dos "cercamentos” cola 8. Para um melhor detalhamento dos passos,tanto de Herbart como de Dewey ver: Saviani, 1983; e ainda Brubacher, 1961. borou bastante para que, em relativo pouco tempo, a agricultura se preparasse para aumentar a produção e a produtividade a fim de alimentar uma população não agrícola; para fornecer um grande excedente de mão-de-obra para as cidades; e, finalmente, propor cionar um mecanismo para acúmulo de capital a ser empregado nos setores mais avançados da economia. Em outras palavras; estavam delineadas as condições agrícolas para o desenvolvimento industrial. (Cf. Hobsbawm, 1982; p. 47). A participação do proletariado no contexto social está inti mamente ligada à Revolução Industrial. Engels, que foi uma das primeiras pessoas a usar a expressão “revolução industrial” no sentido que ela possui hoje, já nos seus escritos de juventude destacava o seu papel na formação do proletariado urbano: "A história da classe trabalhadora na Inglaterra começa na segunda metade do século passado, com a invenção da máquina a vapor e das máquinas destina das a trabalhar o algodão. Estas invenções desencadearam, como é sabido, uma revolução industrial que, simultaneamente, transformou a sociedade burguesa no seu conjunto e cuja importância só agora se começa a reconhecer na his tória do mundo. A Inglaterra é o país clássico desta revolução que foi tanto mais poderosa quanto mais silenciosamente se fez. É por isso que a Inglaterra é também o país clássico para o desenvolvimento do principal produto desta revolução: o proletariado" (Engels, 1986: p. 11). O Mundo Moderno,9 ou seja, o mundo burguês das grandes indústrias, do comércio internacional e das grandes transações financeiras colocou de forma mais clara os conflitos sociais, expli citando a história como “história das lutas de classes”. Engels, ao descrever o período posterior à Revolução Francesa, tendo como paradigma a França e a Inglaterra, destacou essa caracte rística da modernidade: “ ( . . . ) desde 1930 em ambos os países (França e Inglaterra) se reconhece como terceiro combatente, na luta pelo poder, a classe operária, o proletariado. As condições tinham se simplificado a tal ponto, que seria necessário fechar deli beradamente os olhos para não ver na luta dessas três grandes classes e no choque de seus interesses a força motriz da história moderna, pelo menos nos seus países mais avançados.” (Engels in Marx & Engels, s.d., p. 200).9a De fato, a emergência do proletariado e sua decisiva insis tência em participar do jogo político levaram a burguesia à ela 9. É significativo o seguinte trecho da Acumulação Primitiva, em que Marx caracteriza a passagem da sociedade medieval para a sociedade moderna: "Ao mesmo tempo que se acabava, na Inglaterra, de queimar os feiticeiros, começa ram-se a enforcar os falsificadores de bilhetes de banco”. (Marx, 1985: p. 103). 9a. As três classes a que Engels se refere são obviamente a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado. 131130 boração de métodos tão repressivos quanto as outroras “leis feu dais”. O Código Napoleônico, que explicitava juridicamente as verdadeiras intenções de uma classe que se dizia defensora da "igualdade, da fraternidade e liberdade” era, na verdade, um ins trumento com poucos amores por uma democracia efetiva. O Có digo possuía 2.000 artigos, enquanto somente 7 tratavam do Tra balho, cerca de 800 versavam sobre a proteção da Propriedade Privada! (Cf. Huberman, 1978: p. 162). Era um código de burgueses para burgueses. O proletariado deveria ser mantido sob "rédea curta”. A riqueza e prosperidade da sociedade industrial, montada sob a batuta da burguesia, não trouxe felicidade ao proletariado. No século XIX a pobreza das classes trabalhadoras chegou a dar vida ao "espectro do comunismo", que aterrorizava os industriais, os funcionários públicos, os padres e os professores. (Hobsbawm, 1982: p. 329). Contra os princípios individualistas do Liberalismo, o proletariado passou a forjar, idealmente, uma sociedade oposta, regida pelo coletivismo e pela solidariedade. Eram os germes do Socialismo. Da mesma forma que o Iluminismo precedeu a Revolução Francesa do século XVIII, no século XIX, com o movimento do proletariado, surgiram várias idéias sobre socialismo preparando terreno para episódios do tipo da Comuna de Paris (1871) e, pos teriormente, a Revolução de Outubro na Rússia. A esse socialismo incipiente, ainda confuso pelo barulho da Revolução Francesa e das batalhas napoleônicas, a História deno minou de Socialismo Utópico. E foi justamente com os utópicos que surgiu, pela primeira vez, os germes de uma pedagogia ligada aos interesses dos trabalhadores. De fato, no interior mesmo da Revolução Francesa, já era possível encontrar vozes discordantes do Liberalismo. Babeuf (1760-1797), o líder da "Conspiração dos Iguais", endossava teses "comunistas" e, sem dúvida, esboçou alguns parâmetros iniciais de uma "pedagogia socialista". Ao nível da política educacional, Baubeuf desejava a extensão total dos princípios democráticos da Revolução. No Manifesto dos Iguais (1796), insistia que "ninguém poderia, pela acumulação de bens, privar outro ser humano da instrução necessária à felicida de.” (Apud Ghiraldelli, 1986a:). No plano pedagógico-didático, ape sar de admirador do Emílio de Rousseau, Babeuf rompeu com tal pedagogia à medida que colocava em dúvida e eficiência do "mé todo natural”. Na educação de seus filhos, Babeuf se mostrava preocupado com a possibilidade do método rousseniano levar os garotos a não apreenderem os conteúdos escolares básicos rela tivos às conquistas filosóficas e científicas da humanidade. Marx e Engels consideraram Fourier (1772-1858), Saint Simon (1760-1825) e Robert Owen (1771-1858) como os três grandes re presentantes do Socialismo Utópico (Cf. Engels, 1981).10 Mais tarde, com a crescente divulgação do marxismo nas massas tra balhadoras, também Proudhon (1809-1865) e os "socialistas liber tários” passaram a ser incluídos no rol dos utopistas. As idéias pedagógicas dos socialistas utópicos, apesar de ex pressarem um núcleo válido que foi aproveitado pelo marxismo, ainda estavam demasiadamente presas ao pensamento liberal da Revolução Francesa. Por isso, apesar de conterem os germes de uma pedagogia comprometida com os trabalhadores, ainda pos suíam ranços elitistas e ingênuos. A educação era vista como fator de equalização social, capaz de transformar a sociedade e con cretizar os ideais de igualdade e liberdade. Até mesmo Owen, a quem Marx elogiou por ter previsto o "ensino do futuro", não deixava de endossar resquícios liberais, esperando da educação um poder revolucionário: “Eu sei que a sociedade pode ser organizada de modo que possa existir sem crimes, sem pobreza, com condições de saúde grandemente melhoradas, com pouca ou nenhuma miséria e com a inteligência e a felicidade centuplicadas. E para que tal estado de coisas seja conseguido e tome-se universal, não há no momento qualquer obstáculo senão a ignorância.” (Apud Rossi, 1981: p. 83). Assim, para Owen, bastava um investimento considerável na educação popular — e foi o que ele fez, com relativo sucesso em suas fábricas em New Lanark — e grande parte dos problemas sociais se resolveriam. Durante os 80 anos de intervalo entre a Revolução Francesa e os episódios da Comuna de Paris, as concepções socialistas de diversos matizes oscilaram no terreno europeu e, umas mais outras menos, dirigiram o proletariado e principalmente suas van guardas. Também o socialismo científico de Marx e Engels se desenvolvia rapidamente, no entanto, foram necessárias muitas lutas para que o marxismo conseguisse um espaço no pensamento proletário europeu. A próprio Comuna de Paris representou, na ver dade, o apogeu das concepções socialistas utópicas e libertárias. No interior da guerra entre a Françae a Prússia nasceu a Comuna de Paris (1871). A guerra levou a França à derrota e pôs 10. Para uma leitura rápida sobre o assunto ver Coelho, T. O que é Utopia. São Paulo, Brasiliense, 1981. 133132 fim ao Segundo Império Francês. No dia 18 de março estourou em Paris uma revolução proletária inaugurando, pela primeira vez na história, um Estado sob o comando dos trabalhadores. Apesar de Marx ter sido o primeiro historiador da Comuna, de ter aco lhido communards em sua própria casa após a derrota do movi mento, e de Engels afirmar que a Comuna era “filha intelectual da A . I . T . " , 1 1 isso não significava que os operários franceses fos sem marxistas. (Cf. Fedosseiev, 1983: pp. 541-60). Pelo contrário, nem mesmo dentro da A . I . T . o marxismo tinha hegemonia frente aos socialistas utópicos e libertários. Na ver dade, a Comuna carregava as idéias do socialismo blanquista e do socialismo proudoniano; somente uma parcela muita diminuta de communards recebeu influência de Marx. Os jornais da Comuna, o Candida, o River Gauche, eram li bertários e anticlericais e seguiam a linha revolucionária de Blan qui (1805-1881). Por outro lado Le Courier Frangais esboçava uma tentativa de unir o ativismo blanquista com as doutrinas de Prou dhon. (Cf. Gonzales, 1981: p. 14). A Comuna foi, então, o templo efêmero que abrigou duas ten dências pedagógicas opostas que já vinham se degladiando nos debates internos da I Internacional. Proudhon, no que concerne ao plano do pedagógico-didático, encarnava a crítica radical contra as fórmulas educativas "da bur guesia e do clero”. Todavia, seu discurso de política educacional titubeava em apoiar o ensino público, gratuito e obrigatório. De fato, o libertarismo afastava Proudhon do compromisso com o ensino público-estatal: “Desde los siete a los dieciocho anos, se continuará Ia educación y Ia instruc ción de Ia juventud, o por los padres mismos, en su domicilio, se tal es su deseo; o en escuelas particulares, instituídas e dirigidas por ellos y a sua costa, si prefieren no confiar sus hijos a Ias escuelas públicas. De de]a a los padres y a los municipios Ia maxima libertad en esa cuestión: el Estado no interviene más que a título de ayuda a11í donde la família y el município no pueden llegar (Apud Dommanget, 1972: p. 278). Blanqui, ao contrário de Proudhon, via na "liberdade de ensino um perigo. Segundo ele, tal liberdade só favorecia os interesses 11. A. I. T. — Associação Internacional dos Trabalhadores — I Internacio nal, fundada em 1864. Para uma leitura detalhada sobre a I Internacional consul tar Rosai, A. Los Congressos Obreros Internacionales en el Siglo XIX. Barcelona, Grijalbo, 1975. Para uma leitura rápida ver Spindel, A. O que é Socialismo. São Paulo, Bra siliense, 1981. clericais. Em escritos de 1869, muito provavelmente endereçados contra Proudhon nos debates internos da Internacional, Blanqui explicou: “Eu ciudadano P . . . combate la instruccíón obligatoria y piede ‘da ensenanza libre’. Y anade que 'apesar de los prejuicios, la doctrina de la ensenanza libre, de la libertad sinla obligación, gana cada dia terreno, y acabará por triunfar'. Ese dia, los jesuítas contarán un hermonoso Tedeum. Tendrán en su manos a Fran- cia. El ciudadano P . . . es su emisario, no es posible dudarlo. Un hombre de simple buen sentido ve al primer vistazo que la ensenanza libre, sin la interven- ción del Estado ni la gratuidade, es el monopolio de la ensenanza en Ias manos del clero, el triunfo de la coalición clérigocapitalista”. (Apud Dommanqet 1972: p. 317). Assim, como se pode notar, a Comuna de Paris representou a coragem dos trabalhadores franceses, mas nem por isso deixou de demonstrar que ainda faltava ao proletariado uma concepção de mundo despojada das questiúnculas liberais. A roda da história não parou com os utópicos e libertários heróis da Comuna de Paris. Esmagada em banho de sangue, a classe operária refugiou-se, cedeu, para, 46 anos depois, ressurgir barulhenta na Rússia de 1917. Com a Revolução Russa de 17 inaugurava-se, novamente, um Estado proletário com um governo socialista. As utopias haviam sido enterradas junto com os mortos da Comuna; as correntes libertárias se desgastaram, o marxismo, já hegemônico no Mo vimento operário, era empunhado por Lênin (1870-1924) na cons trução do socialismo na Rússia. Por essa época a Pedagogia Nova surgia com sucesso nos Estados Unidos e parte da Europa. Era uma proposta sedutora aos intelectuais simpáticos às tendências pedagógicas que uniam escola e trabalho. Não foi difícil para a Escola Nova cooptar edu cadores comprometidos com os setores populares. Dentro da URSS, após a Revolução, os ideais escolanovistas chegaram a penetrar, conquistando adeptos no seio do próprio partido bolchevique. Ora, Lênin sabia a que ramo filosófico o movimento da Pedagogia Nova estava filiado. Sabia perfeitamente que o pragmatismo de Dewey era uma filosofia da pequena burguesia, uma filosofia que negava a luta de classes, que achava que a verdadeira luta se dava dentre homem e natureza (Cf. Sarup, 1980: p. 139). Lênin, sempre atento às artimanhas da burguesia, alertou os educadores mais afoitos quanto às reais conseqüências que a introdução do modelo esco lanovista traria ao processo revolucionário: Abordarei aqui as acusações, as censuras à velha escola, que constantemente se ouvem e que conduzem não raro e interpretações inteiramente falsas. Diz-se que a velha escola era uma escola do estudo livresco, uma escola de amestra- 134 135 mento, uma escola de aprendizagem de cor. Isto é verdade, mas é preciso saber distinguir aquilo que a velha escola tinha de útil para nós, é preciso saber esco lher dela aquilo que é necessário para o comunismo ( . . . ) Quando ouvimos com freqüência, tanto entre representantes da juventude como entre defensores da nova educação, ataques à velha escola, dizendo que a velha escola era a escola da aprendizagem de cor, dizemo-lhes que devemos tomar dessa velha escola tudo quanto ela tinha de bom ( . . . ) " (Lênin, 1981: pp. 90-109). Na verdade, a preocupação de Lênin não se desenvolvia no sentido de defender a educação tradicional, tratava-se sim de não deixar que os chamados ‘‘novos métodos” enfraquecessem o pro cesso de escolarização, interrompendo a formação de uma geração, justamente a geração responsável pela construção do socialismo. Dessa forma, contra a Pedagogia Nova, Lênin defendia a valori zação daquilo que a “velha escola tinha de bom”, ou seja, a ga rantia de transmissão do saber sistematizado, a transmissão do saber escolar que era, num certo sentido, o legado cultural das gerações passadas: “Só se pode chegar a ser comunista depois de ter enriquecido a memória com o conhecimento de todas as riquezas que a humanidade elaborou.” (Lênin, 1981: pp. 90-109). E se por um lado Lênin se via na obrigação de alertar os edu cadores soviéticos em relação aos “métodos novos", por outro lado, tinha também de combater certas tendências pedagógicas que, baseadas na concepção célebre do ‘‘aprender fazendo", aca bavam por insistir na transformação da escola em mera profissio nalização. Lênin interveio diretamente na questão, insistindo na proposta original de Marx de combinação da educação com o tra balho produtivo, sem, porém, querer com isso reduzir à profissio nalização restrita. Lênin defendeu a proposta educacional marxista, exposta pelo próprio Marx em 1868 nas Instruções aos Delegados do Conselho Provisório da A.I.T. que dizia entender a educação sobre três pilares: “Por educação entendemos três coisas: 1. Educação intelectual. 2. Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios de ginás tica e militares. 3. Educação tecnológica, que recolhe os princípios gerais e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e osadolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais. ( . . . ) Esta combinação de trabalho produtivo pago com a educação intelectual, os exercícios corporais e a formação politécnica elevará a classe operária acima dos níveis das classes burguesa e aristocrática. ( . . . ) ” (Marx in Marx & Engels, 1983: p. 60). 136 Enquanto alguns membros do partido bolchevique insistiam na proposta burguesa de ensino profissional, Lênin se mantinha fiel à proposta marxista. Frente ao critério burguês de pluriprofis sionalização, Lênin colocava a proposta de Marx da omilaterali dade pela qual os operários deveriam obter uma educação com pleta. (Manacorda, s . d . , p. 105). Na verdade, o marxismo não se dobrou aos deslocamentos estratégicos da burguesia. Por essa mesma época, em que Lênin refutava os ‘‘métodos novos" e o ensino profissionalizante, um outro marxista combativo também alertou para o real direciona mento do escolanovismo. Examinando as experiências de escolas européias que aplicavam princípios da Pedagogia Nova, Gramsci (1891-1937) não se conteve. É útil acompanhar todas essas tentativas, que não são mais que 'exceções' mais talvez para ver o que não se deve fazer do que por qualquer outra coisa". (Gramsci, 1982: p. 151). Com Gramsci, o pensamento socialista ofereceu uma contribui ção fecunda à pedagogia do século XX. O filósofo italiano não se limitou a repetir as idéias contidas no Manifesto Comunista (1948) de Marx e Engels, cuja plataforma de política educacional falava em educação pública gratuita para todas as crianças” e ‘‘abolição do trabalho das crianças nas fábricas (como existe hoje)" (Cf. Marx, in Marx & Engels, s.d., V.T., p. 37). Também não se restrin giu aos parâmetros da fórmula marxista que desejava a "conju gação do trabalho produtivo de todos os meninos além de uma certa idade com o ensino e a ginástica” (Cf. Marx & Engels, 1982, V.T., Livro I, p. 554).12 Pelo contrário, o marxismo foi empunhado por Gramsci para uma fecunda discussão não só dos temas rela tivos à metodologia pedagógica ou à política educacional, mas, principalmente, para uma vigorosa e singular discussão da cul tura e da transmissão da cultura no desenrolar das lutas sociais. Em Gramsci não há nenhum compromisso com os "métodos novos", que acabaram descambando para o espontaneísmo e para o não-diretivismo. Gramsci expôs, perfeitamente, que o mérito de Rousseau e do "naturalismo pedagógico” do século XVIII residiu em ter elaborado uma crítica violenta ao jesuitismo. Todavia, essa fase revolucionária, de "entusiasmo romântico", estava superada, e fazia-se necessário uma "fase clássica”, de reflexão serena sobre as conveniências e inconveniências dos "novos métodos" 12. Esta fórmula, expressa em alguns textos de Marx, nasceu dos debates internos da A.I.T. e teve grande influência do libertário Paul Robin (1837-1909) (Cf. Dommanget, 1972, cap. sobre Robin). 137 (Cf. Betti, 1976: p. 50). Na verdade, o pensamento gramsciniano se empenhou nessa “reflexão serena”, recuperando e superando por um processo de negação-incorporação, os vários princípios da Pedagogia Tradicional execrados pela Pedagogia Nova. Assim é que voltaram à baila, mas com conotações enriquecidas pelo crivo progressista, princípios como o da disciplina mental e corporal, do dogmatismo, do saber erudito, do diretivismo, etc. (Cf. Mana corda, 1977; Betti, 1976 e Gramsci, 1982). Toda a discussão gramsciniana ao nível da pedagogia-didática e da política educacional, na verdade, se encaminha para o pro jeto-proposta de construção da “escola unitária”. Tal escola repre senta o instrumento eficaz de eliminação da orientação clássica que procura impor um tipo de educação diferente para cada classe social; em suma, trata-se de uma escola universal gratuita, man tida pelo Estado, capaz de abrigar todos os jovens de todas as classes, e que deveria lançar os “elementos primordiais de uma nova concepção do mundo” capaz de entrar em luta contra as “concepções determinadas pelos diversos ambientes sociais tra dicionais” (folclore) (Cf. Gramsci, 1982: p. 122). Essa escola unitária, como o próprio Gramsci não esqueceu em frisar, não deve ter sua metodologia voltada para os anti- exemplos das “escolas novas”; “o problema didático a resolver, no interior da escola unitária, é o de temperar e fecundar a orien tação dogmática que não pode deixar de existir” nos primeiros anos escolares da criança. (Gramsci, 1982: p. 122). Porém, para além dos problemas relativos à vida escolar, o pensamento gramsciniano se preocupou, como já foi dito, com a questão da cultura e da transmissão da cultura no âmbito da so ciedade em geral. Neste ponto, a polêmica hodierna que se verifica na tão propalada bipolaridade “cultura popular" versus "cultura erudita”, recebeu o toque objetivo do marxismo gramsciniano. De fato, em Gramsci, o “senso comum” (folclore filosófico) é a con cepção de mundo do povo, das classes instrumentais e subalternas, que não puderam ter concepções elaboradas, sistemáticas e polí ticamente organizadas. (Cf. Gramsci, 1978: p. 184). Todavia, o ca ráter contraditório do “senso comum” não o torna de todo inútil, dado que ele sempre está enriquecido por um “núcleo válido”, ou seja, o “bom senso”. (Gramsci, 1978). O “bom senso”, de fato, é a ponte necessária capaz de permitir acesso do homem popular ao saber erudito, ao saber sistematizado... ao saber escolar. Eis ai, de volta, o papel da escola. De fato, cabe então à escola o papel de elemento de ligação entre a cultura popular e a cultura elabo rada. (Cf. Snyders, 1981: p. 279). E, sem dúvida, é a escola quem vai lutar contra o folclore, contra a visão mágica do mundo, que domina a criança, oferecendo-lhe o saber científico, o saber siste matizado. 3. Algumas palavras sobre o Brasil: trabalhismo e escolanovismo No Brasil, como já foi exposto por diversos pesquisadores, os ideais escolanovistas permearam boa parte da história da Repú blica e, depois de meio século martelando a cabeça de pedagogos e normalistas, acabaram desembocando na pedagogia tecnicista que, com apoio da Ditadura pós-64, passou a ser a pedagogia oficial.13 Não há razão para negar que o papel da Pedagogia Nova no Brasil não tenha se efetivado no sentido de concluir no plano pe dagógico o que o Trabalhismo fez com esmero no plano político: a desmobilização dos setores populares e a recomposição da hege monia burguesa (Cf. Ghiraldelli, Jr. 1986a e Saviani, in Trigueiro, 1983: p. 35). De fato, escolanovismo e trabalhismo são amantes confessos, desde os tempos de infância na Primeira República. A perspectiva elitista, que procura relegar a um segundo plano a participação popular na História, omitiu vários fatos sobre o Movimento Ope rário brasileiro capazes de esclarecerem melhor a gênese de tais movimentos (escolanovismo e trabalhismo). Faz-se necessário re cuperar algumas passagens interessantes. É muito comum ouvir dizer que durante a Primeira República as oligarquias cafeeiras resolviam tudo “à bala”. A frase de Was hington Luís, afirmando que a questão social era caso de polícia, tinha muito de verdade. Porém, tomada como paradigma da atua ção dos setores dirigentes durante a Primeira República, acabou forjando uma interpretação pouco confiável dos acontecimentos desse período. Na verdade, alguns governos republicanos chega ram a formular propostas definidas no sentido de arregimentar o operariado, tentando, assim, criar um sindicalismo dócil, um sin dicalismo afável. No governo de Hermes da Fonseca, por exemplo, foi realizado no Rio de Janeiro um Congresso Operário com todos os gastos financiados pelo Estado. Tal congresso foi obra do pró prio filho do Presidente da República, o tenente-deputado Mário Hermes, que em conjuntocom líderes sindicais que se diziam socia 13. Estudos detalhados sobre as correntes e tendências pedagógicas no Brasil: Saviani, D. Escola e Democracia. 1983; Saviani, D. "Tendências e Cor rentes da Educação Brasileira". In: “Trigueiro, D. Filosofia da Educação Brasi leira. 1983, pp. 19-47. 139138 listas, plantavam o germe do peleguismo e do trabalhismo no país. O Movimento Operário da Primeira República, dirigido por liber tários (anarquistas e anarco-sindicalistas), socialistas e, após 1920, comunistas, era de caráter internacionalista, antimilitarista e revo lucionário. As resoluções do Congresso Operário realizado no go verno Hermes da Fonseca caminharam no sentido oposto a essas tendências. Tentava-se a criação de um movimento sindical nacio nalista, que valorizasse as "tradições e a índole do povo brasileiro”, que combatesse a violência da Revolução e que, antes de tudo, não tocasse na questão da propriedade (Cf. Documentos do Movi mento Operário, 1963: pp. 69-87). Após 1930, com a criação do Estado corporativista, tais tendências ganharam força o bastante para oferecer sérios obstáculos às teorias mais progressistas no interior do Movimento Operário. De forma análoga ao trabalhismo gestado na Primeira Repú blica e robustecido após 1930, desenvolveu-se o escolanovismo. Em 1928 a Metro Goldwin Mayer e a Universal Picture Corpo ration já eram responsáveis pela maior parte dos filmes distri buídos aos cinemas nacionais; a agência noticiosa United Press monopolizava as informações absorvidas pela imprensa brasileira ( C f . Cunha, 1980: p. 197). No campo da filosofia o pragmatismo americano conquistava boa parte dos intelectuais liberais. No âm bito da educação, a Pedagogia Nova, principalmente as idéias de Dewey, começavam a desembarcar no Brasil. Em suma, junto com os empréstimos públicos e com as multinacionais, os americanos introduziam no país um componente ideológico baseado no ameri- can way of life. O imperialismo americano começava a substituir a influência do capital inglês na América Latina. Nos anos finais da Primeira República e início dos anos 30, a burguesia brasileira já dava mostras de ter aprendido a lidar com o Movimento Operário. Mecanismos de controle e cooptação, como o trabalhismo, já estavam montados. A influência americana cola borou para desmobilização do Movimento Operário, conquistando boa parcela da intelectualidade democrática, que passava a ver nos E.U.A. um ideal de sociedade. A década de 30 colocou de modo claro o projeto de sociedade desejado pela burguesia industrial, pelos militares e burocratas. A política getuliana, baseada no corporativismo, no paternalismo, in centivadora do peleguismo, foi um duro golpe no Movimento Ope rário. Os intelectuais liberais, principalmente os chamados "profis sionais da educação”, se dividiam em dois grupos: “liberais eli tistas” (do tipo de um Fernando de Azevedo) e “liberais igualitaris- 140 tas” (do tipo de um Anísio Teixeira) (Cf. Cury, 1984). O compromisso dos “liberais igualitaristas” com o pragmatismo de John Dewey e com as posturas escolanovistas impediu-os de avançar em caminhos efetivamente democráticos. Por obra dos “profissionais da educação” veio a público, em 1922, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que reivindicava “ensino público, gratuito, obrigatório e laico” — e nesse sentido era progressista — mas que também endossava a metodologia pautada nas idéias da Pedagogia Nova americana. Dois fatos importantes contribuíram para que, durante bom tempo, a real caracterização ideológica do Manifesto não viesse à tona. Em primeiro lugar é preciso lembrar que o P.C.B. — na época a maior força de esquerda no país — vivia o período do “obreiris- mo”, e carecia, portanto, de uma discussão interna vigorosa sobre educação e pedagogia. Em segundo lugar, a presença de Anísio Tei xeira, Paschoal Leme, Hermes Lima, como signatários do Manifesto, deram-lhe uma imagem histórica mais democrática do que a que ele realmente tinha. Assim, com a retração do P.C.B. no campo pedagógico e o avanço do liberalismo, o escolanovismo acabou pas sando à história como progressista. E, sem dúvida, os ataques ao escolanovismo desencadeados pelos intelectuais católicos contri buíram para essa imagem (Cf. Morais, 1985). Na verdade, nem mesmo os elementos simpáticos às idéias de esquerda, participantes do Manifesto, haviam-se libertado da “inge nuidade" liberal. O próprio Paschoal Leme, nos dias atuais, con firma o fato: “ ( . . . ) Por essa época, não tinha qualquer contato com as organizações de es querda existentes no País nem especificamente com o Partido Comunista do Brasil. Acreditava, então, que a educação do povo seria o elemento propulsor que realizaria todas as transformações políticas, econômicas e sociais que alme jávamos para o Brasil”.14 As teses escolanovistas não desagradavam os elementos do governo de Getúlio. As idéias de reformulação qualitativa das esco las, de construção de escolas que se pautassem por "métodos ativos", a edificação de estabelecimentos de ensino profissiona lizante, eram bem utilizados pelo discurso getuliano. As lideranças pelegas do trabalhismo vibravam! De fato, o arcabouço ideológico da Pedagogia Nova servia (e serviu realmente) muito bem a regimes autoritários. O Estado Novo 14. Esse trecho pertence a carta de Paschoal Leme ao autor deste artigo, datada de 15 de fevereiro de 1986. 141 contou com a colaboração de escolanovistas; a Ditadura pós-64 cansou de indicar, como bibliografia dos concursos oficiais para acesso ao magistério, livros “democráticos” de Dewey, Piaget e até mesmo Anísio Teixeira. As idéias liberais em pedagogia não preocupavam os militares! 4. Conclusões preliminares Ao longo desse artigo procurou-se demonstrar a evolução das diversas correntes pedagógicas, vinculadas aos conflitos entre as classes sociais e mantendo por referência cada patamar alcan çado pelo desenvolvimento das forças produtivas. Didaticamente, as lutas travadas pela burguesia foram apre sentadas em cinco estágios, e a cada estágio procurou-se adjetivar a burguesia de maneira a caracterizar o período: classe emergente, classe revolucionária, classe triunfante, classe dominante e classe reacionária. A cada um desses momentos explicitou-se uma pro posta pedagógica específica: Comênio, Rousseau, Condorcet, Her bart e Dewey. O proletariado foi tratado de forma análoga. Foram fixados dois momentos: A Comuna e a Revolução Russa. Ao primeiro mo mento, ou seja, no período de intervalo entre a Revolução Francesa e a Comuna, vinculou-se um socialismo embrionário, que deu ori gem a um amálgama de concepções pedagógicas ao utopismo e ao libertarismo. Ao segundo fixou-se a vitória do socialismo marxista sobre as demais correntes democráticas e, portanto, a explicitação de concepções pedagógicas ligadas a Marx, Lênin e Gramsci. Procurou-se demonstrar no decorrer desse breve artigo que as diversas propostas pedagógicas que existem não podem ser tomadas, simplisticamente, como frutos de uma conspiração da burguesia com o intuito de dissimular a existência do antagonismo de classes. Pelo contrário, esse artigo endossou a tese de que as diversas concepções pedagógicas nascem da necessidade de um momento histórico específico. No entanto, passado aquele pe ríodo crucial, muitas vezes tais propostas perdem o significado, ficam defasadas. Porém, não desaparecem, continuam a perambu lar como fantasmas e se aglutinam nas galerias dos manuais de didática Outra preocupação desse artigo foi a de evitar qualquer inter pretação maniqueísta, que viesse a sugerir que a “pedagogia pro letária” representa a salvação e que a “pedagogia burguesa” a condenação eterna. Combatendo essa visão, esse artigo centrou sua análise na evolução histórica, mostrandoo caráter predatório que a burguesia acabou assumindo. Ou seja, a burguesia, como 142 os habitantes de Moscou diante de Napoleão, preferiu atear fogo em seus pertences do que cedê-los ao inimigo. Assim, diante da possibilidade de ceder a Pedagogia de Herbart ao proletariado, a burguesia optou pela sua destruição! Um raciocínio semelhante foi utilizado em relação ao prole tariado. Também o Movimento Operário se viu obrigado à prática da autofagia; as propostas do socialismo utópico e do socialismo libertário tiveram de ser combatidas pelo marxismo para que o proletariado pudesse efetivamente se apossar de uma pedagogia avançada e científica. Em relação ao Brasil procurou-se não ser repetitivo em relação a inúmeros pesquisadores que descreveram de forma brilhante o desenvolvimento das correntes e tendências da pedagogia no de correr da República. Nesse artigo a contribuição foi no sentido de deixar claro a atuação do Imperialismo no Brasil, principalmente nos anos vinte e trinta. A tese principal era que Trabalhismo e Escolanovismo caminharam juntos, como frutos do Imperialismo na sua política de desmobilização do proletariado nacional. Durante todo esse artigo os chamados "métodos novos" foram jogados na berlinda. Todos os professores que assistiram, durante dezenas de anos, a deteriorização do ensino, sabem muito bem que a questão econômica é decisiva. Se os salários dos professores é ridículo, mais ridículo ainda é o salário dos pais de alunos, ou seja, o salário dos trabalhadores. No entanto, a dominação impe rialista não se efetiva somente através da socialização da miséria pelo Terceiro Mundo. Os mecanismos culturais de dominação ca minham juntos com os empréstimos externos conferidos a esses países. O Escolanovismo faz parte desses mecanismos. É preciso dizer um basta! Bibliografia ABBAGNANO, N, História da pedagogia. Lisboa, Horizonte, 1982. BETTI, G. Escuela, educación y pedagogia en Gramsci. Barcelona, Martínez Roca, 1976. BRUBACHER, J. S. Importância da teoria em educação. Rio de Janeiro, MEC-INEP CBPE, 1961. COMÊNIO, J. A. Didáctica magna. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1957. CUNHA, L. A. A Universidade temporã. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1980. ----------- . 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