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2 Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta capitulo 1

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~ S E L 0 U N I V E R S I 0 A D E 
: os Indios 
i nas· ·cartas de· ~ - - . 
' n6brega e 
arichieta 
FIUPE EDUARDO MOREAU 
Thayan
Highlight
Thayan
Highlight
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Highlight
Thayan
Highlight
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0 objeto oeste belo livro de Filipe Moreau e o Indio. 
Nao dirt;~tamente o indio empiri(;O do 111ato ou qualquer 
indio litenlrio, desses de Alencar, mas asrepresenta~oes 
que o efetuam nos textos de Pe. Manuel da Nobrega e 
Pe. Jose· .de Anchieta, jesuftas do sEkulo M. Sua leitura 
e uma experiencia de imagens de um ser extint~, o tupi 
do fitoral brasifeir0, COrA que OS jesuftas fizeram Cbntato 
no seculo M;- e, principalmente, uma experiencia das mo-
des de pensar, aglr e representar dos padres que as -in-
ventaram. Ou seja: neste livro nao ha indio, mas metafo-
ras de indio,. como algo visto e interpretado pelos padres. 
E interessantissimo, porque as lmagens-informam {') lei~or, 
antes d~ tudo, sobre os padres. Ha muito a antropologla 
clemonstra que nao SO OS ditos "primitiVOS" sao objetOS 
bons de observar. 0 exotismo e uma invenifcio europeia 
e poucas coisas s-eiao tao estranhamente interessantes 
•· como Ufli padre jesufta do seculo XVI. ' 
· DartdG conta de varias interpreta<;oes reladonadas ao 
tema "indio" dessas imagens, o !ivro __ de Filipe ordena as 
representa<;oes como t6picos de um glossarlo. 0 "indio" 
naa preexiste ans discursos em que aparece como 
imagem, por isso Fllipe o compoe como um objet'o 
caleidoscopico, que vai sendo construido com os t6picos, 
e,nquanto a· leitura avan!;a. E como comenta as imagens 
com t~xtos c:ontemporaneos delas e tarnbem recorre a . 
interpreta<;oos de historiadores e antropologos do seculo 
XX, o livro tern: carater de compendia: lendo-o sequen-
cialmente ou procu-rando t6picos espedficos, o leiter tern 
em maos um trabalht> minuciose e animado f)Or uma 
generosidade rara. 
da apresenta<;ao-de 
]OAO ADOLFO HA!NSEN 
ISBN 85-7419-385-2 
ll tl ·ll 
. t7 8 8 5 7 4 1 9 3 8 5 4 
-· 
. 
i 
Fll.lPE EDuARDO MoREAU 
_/ 
Os INDios 
NAS CARTAS DE 
N6BREGAE 
ANCHIETA 
Servi~o de Biblioteca e Documenta~ao da Faculdade de Filosofia, 
Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sao Paulo 
M837 Moreau, Filipe Eduardo 
Os indios nas cartas de N6brega e Anchieta - Filipe 
Eduardo Moreau - Sao Paulo: Annablume, 2003. 
356 p. ; 11,5 x 20 em 
Originalmente apresentada como Disserta~ao (Mestra-
do- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da 
Universidade de Sao Paulo, 1997). 
ISBN 85-7419-385-2 
1. Cartas Brasileiras (Literatura) 2. Hist6ria do Brasil -
Sociedade (Jesuftas) 3. Manuel da Nobrega (1517-1570) 
4. Jose de Anchieta (1534-1597) I. Tftu1o 
CDD 869.962 
981.6 
OS INDIOS NAS CARrAS DE N6BREGAEANCHIETA 
Coordenap'io editorial 
Joaquim Antonio Pereira 
Prodw;:ao 
Maria Eugenia Regis- prepara~ao 
C. Minsk - paginas;ao 
Supervisao 
Celso Cruz & Regina A. Coelho 
CONSELHO EDITORIAL 
Eduardo Peiiuela Caiiizal 
Norval Baitello Junior 
Maria Odila Leite da Silva Dias 
Gilberto Mendons;a Teles 
Maria de Lourdes Sekeff 
Cecilia de Almeida Salles 
Pedro Jacobi 
Gilberto Pinheiro Passos 
Eduardo Alcantara de Vasconcellos 
1' edi~;ao: novembro de 2003 
© Filipe Eduardo Moreau 
ANNABLUME editora . comunicas;ao 
Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 
05427-100. Sao Paulo. SP. Brasil 
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 
http://www.annab1ume.com.br 
AGRADECIMENTOS 
Aos professores Hansen (orientador), Vicentina e Ina (banca), 
Bosi (que apresentou o tema, incentivando estudos), Brandao, Me-
gale, Gallois, Wisnik, Paula, Adelia, Marcia, Flavio e outros, que 
tiveram grande importancia na rninha formas;ao. 
A Alain, Ana e Daniela, que me indicaram outras leituras. 
Aos demais farniliares, colegas e arnigos, pelo enorme apoio 
e afeto. 
[. .. ]Deus entendeu de dar a primazia 
Pro bern, pro mal, primeira mii.o na Bahia 
Primeira missa, primeiro [ndio abatido tambem 
Que Deus deu [. .. ] 
Gilberto Gil 
SUMARIO 
APRESENTA<;Ao 13 
INTRODU<;Ao 23 
CAPITULO I-ASPECTOS LITEAARIOS 
E HISTORICOS 35 
GENEROS UTILIZADOS PELOS AUTORES 37 
Dialogo 37 
Poesia 43 
Auto 46 
CMm 52 
Texto hist6rico, sermao, gramatica 57 
AUTORESCONTEMFORANEOS 63 
Caminha 64 
Gandavo 68 
Soares de Sousa 70 
Cardim 71 
INDIOS E PORTUGUESES 72 
Povos tupi-guaranis 73 
"Tapuias" 77 
Conquista (seculo XVI) 80 
CAPITULO II- OBSERV A<;AO DE "COSTUMES 
DEPRA V ADOS" 87 
PRA TICAS CORPORAlS 90 
Nudez 90 
Poligamia 101 
PRATICAS SIMBOLICAS 112 
Ausencia de idolatria e religiao 112 
Costumes ligados a cren~as 122 
"Supersti\(5es" 128 
Pajes e kara1ba 130 
Rito antropofagico 139 
OUTRASPRATICAS 172 
Deslocamentos 172 
Inconstancia 17 5 
CAPITULOill-A«;AOJESUITICA 181 
ESTRATEGIASDACATEQUESE 184 
Inclina\(5es favoraveis versus inaptidoes dos indios 184 
Conversao de chefes 189 
Doutrina9ao de meninos 191 
Elimina\(ao de "feiticeiros" 199 
ALDEAMENTOS 204 
Indices 208 
Rotina 210 
Conversao pacifica versus sujei9ao 212 
Resultados 226 
ASPECTOS "PSICOL6GICOS" DA CONVERSAO 231 
"Crucifica9ao" dos indios 23 1 
Proje~oes 238 
Votos jesuiticos 242 
"Demonizayao" 259 
Obscurantismos 265 
CAPITULO IV - CONFLITO LUSO-INDIGENA 273 
ESCRA VIZA<;Ao 275 
Questoes filosj,ficas 27 5 
Questoes pniticas 308 
DOEN<;AS 321 
ABUSOS 325 
GUERRAS, LEV ANTES, MASSACRES 327 
DESPOVOAMENTO 336 
RESISTENCIA 341 
CONCLUSAO 345 
BIBLIOGRAFIA 349 
APRESENTA{,;AO 
IMAGENS DE MISSIONARIOS JESUITAS NOS 
TEXTOS DE NOBREGA E ANCHIETA 
0 objeto deste belo livro de Filipe Moreau e o fndio. Nao 
diretamente o indio empfrico do mato ou qualquer indio liten1rio, 
desses de Alencar, mas as representa<;:6es que o efetuam nos textos 
de Pe. Manuel da Nobrega e Pe. Jose de Anchieta,jesuftas do seculo 
XVI. Sua leitura e uma experiencia de imagens de urn ser extinto, 
o tupi do literal brasileiro, com que os jesuftas fizeram contato no 
seculo XVI; e, principalmente, uma experiencia dos modos de 
pensar, agir e representar dos padres que as inventaram. Ou seja: 
neste livro nao ha Indio, mas metaforas de indio, como algo visto 
e interpretado pelos padres. E interessantfssimo, porque as imagens 
informam o leitor, antes de tudo, sabre os padres. Ha muito a antro-
pologia demonstra que nao SO OS ditos "primitives" Sao objetos 
bons de observar. 0 exotismo e uma inven<;:ao europeia e poucas 
coisas serao tao estranhamente interessante& como urn padre jesufta 
do seculo XVI. 
Dando conta de varias interpreta<;:6es relacionadas ao tema 
":indio" dessas imagens, o livro de Filipe ordena as representa<;:oes 
como t6picos de urn glossario. 0 "indio" nao preexiste aos discur-
sos em que aparece como imagem, por isso Filipe o comp6e como 
urn objeto caleidosc6pico, que vai sendo construfdo com os t6pi-
cos, enquanto a leitura avan<;:a. E como cementa as imagens com 
textos contemporiineos delas e tambem recorre a interpretag5es de 
historiadores e antrop6logos do seculo XX, o livro tern carater de 
compendia: lendo-o seqiiencialmente ou procurando t6picos espe-
cificos, o leitor tern em maos urn trabalho minucioso e animado 
por uma generosidade rara. 
Marcones
Highlight
14 FJLIPE EDUARDO MOREAU 
- Como o leitor sabe, nao havia "o indio" antes da invasao 
espanhola e portuguesa das terras que se chamaram America. 0 
termo resulta de urn engano de Cristovao Colombo, que calculou 
mal a circunferencia do planeta e pensou estar chegando a India, 
quando viu pela primeira vez, em 1492, os seres hinnanos que 
habitavam o Caribe. Nao eram brancos e a cor induziu o nave-
gante a ~ensar por semelhan~a, como era proprio do seu tempo, 
crendo que eram indianos e hindus. 
Inicialmente, o termo "indio" foi classificatorio; em pouco 
tempo, significou uma essencia,"o indio", como se hur6es, algon-
quins, sioux, hopis, astecas, maias, canhares, incas, chibchas, 
guaicurus, tupis e tapuias fossem urn mesmo corpo. E, simulta-
neamente, o indio assim inventado foi uma quesUio teol6gico-
polftica. E gente? Tern alma? Conhece Deus, deuses? Sem Fe, sem 
Lei, sem Rei? Carninhaja havia escrito, na Carta de 1500, que a 
gente nua na praia do Monte Pascoal era quem sabe uns cabritos 
monteses, talvez pardais no cevadouro e certamente gente bestial. 
Em 1537, a Igreja Cat6lica interessada em combater Lutero deere-
tau a humanidade dos cabritos, proibindo escravizar occidentales 
et meridionales lndos. Como homem do Papa, Nobrega repetiria 
a autoridade da bula, no Dialogo da conversiio do gentio, de 1556, 
afirmando que e gente como qualquer, pois tern memoria, vontade 
e inteligencia, mais as limita~6es da condi~ao humana que para ele, 
padre, era uma natureza. Quando escreveu o Dialogo, fazia tempo 
que o indio tambem era objeto da preda~ao econornica e problema 
rnilitar. Escravo p.or natureza? Selvagem? Gente sem historia? 
Barbaro? Quando e justa a guerra contra essa natureza vegetal 
sufocando as plantas boas da vinha do Senhor? Pois em 1570 Pero 
de Magalhaes Gandavo convidava ao genoddio, afirmando em seu 
Tratado da Terra df!, Brasil que nao se podia numerar ·nem 
compreender a multidao de barbaro gentio que a natureza semeou 
pela terra do Brasil. Com Foucault, podia-se inverter a formula com 
que Carl von Clausewitz definiu a guerra - continua9iio, por 
outros meios, da polftica do tempo de paz - para propor que a 
polftica portuguesa que em 1549 envia os primeiros rnissionarios 
chefiados por Nobrega para fabricar almas cat6licas para o Papa 
& o Rei, assim como a politica espanhola na mesma epoca no Rio 
da Prata, n:o Peru, no Caribe e na Nova Espanha, sao a guerra em 
Marcones
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Marcones
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OS 1:NDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIETA 15 
tempos de paz. 1 E, com a inversao, propor que a doutrina do 
Direito aplicada no seculo XVI a discussao da natureza do Indio 
pelos missionarios jesuftas, cronistas portugueses, viajantes 
franceses, juristas e te6logos cat6licos, luteranos e calvinistas, que 
o constituem como "selvagem" ou homem sem hist6ria, s6 
aparentemente e urn princfpio e urn limite pacfficos que especificam 
o legale o legftimo das medidas adotadas. Ou seja: politicamente, 
e mais eficaz pensar que o Direito tambem e urn instrumento de 
sujeic;ao quando estabelece a legalidade e a legitimidade das 
medidas. E certo que em muitas situac;oes particulares o Direito 
efetivamente serviu a defesa dos Indios. Basta lembrar a ac;ao de 
alguns homens admiraveis, que defenderam a liberdade deles 
contra a sanha colonialista, como Bartolome de Las Casas eManuel 
da N6brega, no seculo XVI, e AntOnio Vieira, no XVII. Mas, ainda 
assim, o mesmo Direito invocado por esses homens poe em pratica 
mecanismos de sujeic;ao. E isso porque as discussoes quinhentistas 
sobre os Indios e as medidas adotadas quanto a eles nao sao 
antropol6gicas, mas teol6gicas. 
No seculo XVI, Deus e o fundamento metafisico do Direito 
que regula a invasao e a conquista das novas terras. E isso e tudo: 
e porque Deus existe que tudo e permitido. Por outras palavras, 
para OS missionarios jesuitas e impensado e impensavel 0 
pensamento materialista que elimina o fundamento divino da 
hist6ria. Esse pensamento tambem e o pressuposto do relativismo 
cultural instaurado pelo lluminismo desde o seculo XVIll. Os textos 
dos jesuftas onde Filipe rastreia pacientemente imagens de indio nao 
as inventam segundo o pressuposto que a antropologia chamou de 
"pensamento selvagem", ou seja, segundo as pr6prias razoes da 
razao selvagem, que necessariamente implicam a relativizac;ao e a 
critica das razoes do observador. A universalidade alegada da 
religiao crista na base do Direito que entao e aplicado inclui e 
domina a priori todas as razoes da razao selvagem, classificando-
as como falta de Bern, abominac;ao e pecado, para os quais o padre 
fomece seu suplemento de alma. Em todos os casos levantados por 
1. Foucault, MicheL Il faut defendre Ia societe.Cours au College de France 
(1975-1976). Dir. de Fran~ois Ewald e Alessandro Fontana. Paris, Seuil/ 
Gallimard, 1997, p. 24. 
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16 FILIPE EDUARDO MOREAU 
Filipe nos textos de Nobrega e Anchieta, sempre se trata de urn 
modo de pensar e agir fundamentado metafisicamente como analo-
gia escohistica, ou seja, urn modo de pensar e agir que estabelece 
rela<;:6es de semelhan<;:a entre as pr:iticas selvagens e o principia 
metafisico cristao que o regula como universalidade. 0 Deus 
cat6lico e 0 principia doutrinario que da sentido a a<;:ao dos padres 
e, simultaneamente, o limite teorico deJa: eles pensam e agem em 
Deus e a partir de Deus, nunca sem Deus ou fota 'de Deus. Por 
outras palavras, nao ha, no caso de Nobrega e Anchieta, nenhuma 
imagem de indio que nao seja teologicamente determinada pela 
universalidade do Deus de Roma. Tanto a legalidade quanta a 
ilegalidade das medidas adotadas pela Coroa, pelos padres e pelos 
colonos pressupoem a universalidade desse Deus. Ainda na versao 
aparentemente mais branda sobre o indio, a dos textos desses 
jesuitas que reconhecem e defendem a humanidade dos povos 
invadidos, a mesma humanidade nao e entendida como diferen9a 
cultural, mas como identidade de uma 'mesma substiincia espiritual 
criada por Deus, a alma, comum' a todos os homens. Roma afirma 
que a alma participa na substiincia metafisica de Deus como urn 
efeito criado e urn signo reflexo dela; por isso, a alma e o micleo 
teorico, digamos assim, das classifica<;:5es quinhentistas do indio 
ou como "animal" ou como "homem". 
A atribui91io ou a produ91io de urria alma para ele, como 
ocorre nas pn'iticas de Nobrega e Anchieta, pressup5e logicamente 
que e urn "proximo", como no mandamento biblico "Amar o 
proximo". Mas.. urn proximo metaffsica e politicamente distancia-
dissimo da lei etema de Deus, pois de alma bronca, emporcalhada 
e corrompida pela bestialidade dos seus pecados. E preciso salva-
la, aflrmam OS padres, fomecendo-lhe a memoria do Bern que OS 
selvagens esquece_rpn. Essa caridade cat6lica, que tern a teologia-
politica portuguesa como fundamento e limite, significa seu fim, 
como a "destribaliza"ao" acusada por Florestan Fernandes. 2 
Como lembrava urn antrop6logo, a critica moral e prisio-
neira inconsciente da mesma moral religiosa que ela responsabiliza 
2. Fernandes, Florestan - "Antecedentes indfgenas: organizas;ao social das 
tribos tupis". In Holanda, Sergio Buarque de (Dir. e introd. geral). A Epoca 
Colonia! I. Do Descobrimento a Expansao Territorial. 6 ed. Sao Paulo/Rio 
de Janeiro, DIFEL, 1981 (Hist6ria Geral da Civiliza\;ao Brasileira, t. I, v. 1). 
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OS INDIOS NAS CARThS DE N6BREGA E ANCHIETA 17 
por ter escravizado e dizimado os indios. 3 Culpar os agentes 
hist6ricos da Conquista por nao terem tido o discernimento que a 
consciencia democratica acredita ter universaliza retrospectiva-
mente a particularidade dos criterios de julgamento. Por isso, e 
politicamente mais eficaz lembrar as pniticas guerreiras dos padres 
e colonos. 
A legitimidade da "guerra justa" contra os birbaros do Brasil 
tarnbem pressupoe Deus. No seculo XVI, a "guerra justa" e doutri-
nada reciclando-se t6picas medievais do Direito Canonico. Ela e 
definida como situac;:ao de excec;:ao relativamente a centralidade do 
poder da Coroa, que e definido pelos padres colonizadores como 
natural, legftimo e pacffico, porque o pacto de sujeis;ao que o esta-
belece esta fundado na metaffsica crista. A caracterizas;ao da 
"guerra justa" como situac;:ao de exces;ao encobre o fato de que o 
propriopoder central, que se afirma natural, legftimo e padfico, 
e poder de exces;ao, porque nao hi nenhum poder naturalmente 
institufdo. 4 
A polftica da monarquia portuguesa do seculo XVI e defini-
da, contudo, como arte crista que mantem a unidade e a segurans;a 
do reino contra inimigos internos e externos. Contra a hip6tese 
maquiavelica de que 0 poder e urn artiffcio que dispensa a etica 
crista para triunfar nas competis;6es da cidade, a doutrina cat6lica 
adapta t6picas do Velho e Novo Testamentos a redefinis;ao da 
polftica no novo estado de coisas decorrente das chamadas Desco-
bertas e da Reforma protestante.A partir de 1517, data das teses 
logo declaradas hereticas de Lutero, as vers6es cat6licas do poder 
reafirmam que s6 e legftimo quando a normalidade que institui e 
uma evidencia da presens;a da luz natural da Gras;a nas leis posi-
tivas feitas pelos homens. Essa mesma normalidade tambem e de 
exces,:ao, porem, quando se pensa nos processos que a estabelecem 
como concordia e paz do "bern comum" dos reinos governados 
por prfncipes cat6licos, como e o caso de Portugal. A doutrina 
reafirma a etica medieval como espelho ou modelo da ac;:ao dos 
3. Neves, Lufs Felipe Baeta. 0 Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos 
Papagaios. Colonialismo e Repressao Cultural. Rio de Janeiro, Forense 
Universitaria, 1978, p. 17. 
4. Foucault, Michel. Idem, ibidem. 
-
18 FILIPE EDUARDO MOREAU 
prfncipes.5 Visando a unidade e a seguraw;:a do reino, ela 
pressup5e a necessidade da concordia de cada urn consigo mesmo, 
o que em teoria se obtem pelo auto-controle dos apetites prescrito 
pela etica aristotelica entao relida em chave neo-escolastica. A 
concordia individual significa, conforme a doutrina, a amizade de 
todos os indivfduos entre si, como concordia de todos os mem-
bros do corpo politico do Estado. Da conc6rdia nasce a paz e, para 
garanti-la, a Coroa aplica varias especies de medidas baseadas no 
monop6lio da violencia fiscal, judiciiria e militar; no combate as 
heresias; na censura intelectual; nos castigos exemplares, a«oites, 
fogueira, forca, cutelo, gales, garrote vil e degredo. 0 "bern co-
mum" dessa paz e definido como o estado de equilibria dos 
interesses e conflitos particulares obtido pela subordina9ao volun-
taria do todo do corpo mfstico da comunidade a cabe<;a do reino, 
o rei, num pacto de sujei9ao pelo qual a comunidade se aliena do 
poder. Ao abrir mao dos direitos, declarando-se sUditos ou subor-
dinados, os indivfduos recebem os privilegios, que os hierarquizam. 
A hierarquia desce da cabe~a principal ate as plantas dos pes 
escravos e, nela, os indios sao livres para se integrarem como 
membros subordinados, pois a liberdade e entendida como subor-
dina~ao a cabe~a mandante. Contra os que nao aceitam a integra-
9ao faz-se a "guerra justa". 
Com Foucault, pode-se afirmar que o fato realmente brutal 
da invasao e da ocupa~ao dos territorios habitados pelos povos 
classificados como "indios", "selvagens" e "birbaros", invasao e 
conquista seinpre acompanhadas dos massacres e das atrocidades 
praticados pelos espanhois e portugueses em todas as partes onde 
estiveram, antecede l6gica e cronologicamente toda e qualquer 
5. Jean-Fran~ois Courtine demonstrou que os conflitos politicos que opoem os 
Estados europe~s no seculo XVI e infcio do XVII sao formulados como 
oposit;:5es de teologia contra teologia. Com Kantorowicz, propoe que: "Sous 
l' autorite du pape en tant que princeps et verus imperator. l'appareil 
hierarchique de l ' Eglise romaine ... mantra une tendance a devenir le 
prototype parfait d'une monarchie absolue et rationnelle sur une base 
mystique, landis que simultanement, l'Etat manifesta de plus en plus une 
tendance a devenir une quasi Eglise et, a bien des egards, une monarchie 
mystique sur une base rationnelle'". Cf. Courtine, Jean-Fran~ois. "L'heritage 
scolastique dans Ia problematique theologico-politique de l' Age Classique"'. 
Io Mechoulan, Henry (Dir.). L'Etat Baroque 1610-1652. Regards surla pensee 
politique de Ia Prance du premier XVIIe siecle. Paris, Librairie Philosophique 
J. Vrin, 1985, p. 109-10. 
Marcones
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Ou seja, os fins justificam os meios para essa "PAZ".
Marcones
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OS iNDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 19 
discussao juridica sobre a natureza deles, a legalidade e a legitimi-
dade da escraviza~;ae deles, ou a "guerra justa" contra eles. Os tex-
tos de Vitoria, Molina, Oviedo, Acosta, Gomara, Las Casas, Sepul-
veda, na area espanhola, e de Nobrega, Anchieta, Cardim e Vieira, 
na portuguesa, adaptam-se objetivamente aos acontecimentos, ou 
seja, sao produzidos pelos acontecimentos ou com a media~;ao dos 
acontecimentos, nao importa a inten~;ao particular muitas vezes 
admiravelmente justa de homens como Las Casas e Nobrega. 
Assim, como fica evidente no livro de Filipe, as imagens e 
as defini~;oes de indio feitas pelos padres tern necessariarnente que 
tarnbem incluir como determina~;ao do seu sentido o dado brutal-
mente objetivo da invasao. 0 leitor vera que muitas imagens de 
indio feitas por Nobrega e Anchieta pretendem regular o direito 
de guerra contra ele, especificando as condi~;oes em que seria 
"guerra justa" ou situa~;ao de exce~;ao. Mas as imagens sao, 
objetivamente, uma teoria da guerra aplicada como politica cat6lica 
da monarquia portuguesa na conquista territorial, na captura de 
mao-de-obra escrava e na competi~;ao comercial, religiosa e poli-
tica com potencias europeias, como a Franca e a Espanha. 
Os textos analisados por Filipe evidenciarn que a carencia do 
Bern catolico produzida quando o padre e sua verdade universal 
inventarn uma alma para o corpo classificado, no ato, como "gen-
tio'', "inconstante", "selvagem" e "barbaro", e suplementada no 
seculo XVI por duas especies de interven~;ao. Ambas sao violen-
tfssimas pelo mero fato de serem intervencoes, embora se pudesse 
pensar que tern violencias de especies e intensidades diversas. 
Genericarnente, a interven~;ao dos que afirmam que o indio e urn 
"cao", urn "porco", urn "barbaro" e urn "escravo por natureza", 
propondo o exterminio e a escravidao; e a intervem;:ao dos que 
defendem que e "humano", mas "selvagem", e que deve ser salvo 
para Deus por meio da verdadeira fe que o integra como subor-
dinado, escravo ou plebeu, ao corpo mistico do reino portugues. 
Os textos de Nobrega e Anchieta fazem urn mapeamento 
exaustivarnente descritivo das praticas indfgenas, ao qual associarn 
prescri~;oes teologico-politicas que interpretam as imagens com o 
sentido providencialista da historia que faz de Portugal a na~;ao elei-
ta por Deus para difundir a verdadeira fe. Quando classificarn seu 
objeto com as metaforas "animal", "gentio", "indio", "selvagem" 
e "barbaro", evidenciam a positivi dade prescritiva da uni-
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20 l<TIJPE EDUARDO MOREAU 
versalidade de "nao-indio", ou seja, a positividade de "civilizado", 
que e europeu, portugues, branco, macho, fidalgo, cat6lico e letrado. 
Obviamente, como disse, nao havia "indio" nem "indios" 
nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nomades, nao-
cristaos e sem Estado. No seculo XVI, quando sao classificados 
pelos colonizadores como "selvagens" ou "homens da natureza", 
tambem sao caracterizados como gente sem hist6ria. Em decor-
rencia, sao constitufdos como urn campo aberto para as inter-
ven<;:5es civilizadoras. Como Nobrega escreve em carta de 10/8/ 
1549: "Acd pocas tetras bastan, porque es todo papel blanco ... ".6 
No seculo XVI, como 0 leitor led., foi Corrente 0 lugar-comum: 
a lingua geral falada na costa do Brasil nao tern os fonemas F, L 
e R. Sem Fe, sem Lei e sem Rei, o selvagem nao conhece a reve-
la<;:ao da verdadeira Igreja, nem a racionalidade das leis do Imperio 
portugues, nem o born govemo da monarquia crista.E como o 
"barbaro" s6 existe diferencialmente, pois , para que exista, e 
preciso haver uma civiliza~ao precedente ou contemporanea que 
ele destruiu ou tenta destruir,7 nos textos de Nobrega e Anchieta 
sao barbaros os aimores do sertao e os caetes do Nordeste e os 
tarnoios do Rio e os tupinambas de llheus e outros que resistem a 
civilizas;ao portuguesa. Ao contrario dos selvagens pacfficos ou ja 
pacificados do litoral, os barbaros a atacam constantemente, 
aterrorizando os engenhos e as vilas com sua liberdade feroz. 
ovamente, como e a paz do "bern comum" que define a finali-
dade da colonizas;~o do Brasil alegada pela Coroa, a guerra contra 
OS barbaros e justa. 
Nas imagens da politica cat6lica portuguesa que Filipe estu-
da, as taticas e as estrategias adotadas na redm,;ao e na destrui<;:ao 
deles sao definidas como um direito e urn dever, pois a subordi-
nas;ao dos selvagenssignifica caridade para com os indivfduos 
trazidos para a verdadeira fe. E a extiw,;ao dos barbaros e amor do 
"bern comum" do corpo mfstico do reino. Assim, como Filipe 
demonstra, as iruagens da propaganda fidei jesuftica determinam que 
a alma do indio deve ser salva do Inferno por meio da conversao. 
6. N6hrega S. J ., Pe. Manuel da. In Leite S. J., Serafim. Cartas dos Primeiros 
Jesufta$·Jlo Brasil. Sao Paulo, Comissao do IV Centenano da Cidade de Sao 
Paulo, 1954, 3 v., v. I, p. 142. 
7. Foucault, M. Op. cit., p. 174-175. 
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OS INDIOS NAS CARThS DE NOBREGA E ANCHIETA 21 
Passado o entusiasmo inicial, Nobrega decide, por volta de 
1556, que e imperioso obriga-la a ser salva: e preferivel que 0 
fndio seja cativo, mas com a alma salva, a que viva a liberdade 
natural do mato com ela condenada ao Inferno. Nas imagens das 
praticas salvadoras de Nobrega e de Anchieta, o leitor encontrara, 
justificando as interven~6es, a afirma~ao reiterada de que a lei 
positiva das sociedades indfgenas e legal, como conven~ao hum ana 
que regula a vida coletiva, pois o Direito Canonico estabelece que 
as sociedades humanas nao dependem da Revela~ao crista para se 
institufrem politicamente. Mas o fato de estarem deturpadas pelas 
"abomina~6es" - antropofagia, nudez, poligamia, nomadismo, 
guerra por vingan~a - evidencia a ilegitimidade dessa legalidade 
corrompida pela a~ao do Diabo. E dever reduzi-las a primeira ver-
dade perdida ou talvez esquecida, a Palavra de Deus, legitimando-
se a participa~ao hierarquizada do indio na divindade por meio dos 
sacramentos catolicos, como o batismo, que a tomam visfvel. 
Como o leitor sabe, a coisa nao terminou com Nobrega ou 
Anchieta. Por exemplo, em 1657, numa carta enviada do Estado 
do Maranhao e Grao Para ao rei D. Afonso VI, de Portugal, Vieira 
escreveu que, nos quarenta anos anteriores, os portugueses haviam 
matado dois milh6es de indios na Amazonia. 0 maior horror, 
segundo ele, era pensar que tantas almas postas sob a jurisdi~ao de 
urn reino cuja missao era expandir a fe catolica tinham morrido 
sem batismo e ardiam para sempre no Inferno.8 
JOAO ADOLFO HANSEN 
8. Vieira S. J., Pe. Ant6nio. "Carta LXXVII. Ao Rei D. Afonso VI. 1657- Abril 
20". In Azevedo, Joao Lucio de. Cartas do Padre Antonio Vieira. Coimbra, 
Imprensa da Universidade, 1925, 3 t., t. 1, p. 468: "As injustiqas e tiranias, 
que se tern executado nos naturais destas terras, excedem muito as que se 
fizeram na Africa. Em espaqo de quarenta anos se mataram e se destruiram por 
esta costa e sertoes mais de dois milhOes de indios, e mais de quinhentas 
povoa<;5es como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo". 
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INTRODU<;AO 
A cultura letrada no Brasil teve infcio no seculo XVI, com 
os inumeros depoimentos, em diferentes linguas, que se seguiram 
a carta de Caminha. Na virada para o seculo seguinte, ja se contava 
com volumosos tratados reunindo informal{5es sobre a natureza 
da regiao, os povos nativos, a colonizal(ao e seus conflitos. 
A primeira obra de fic\{ao foi escrita nos anos de 1556-7, 
com o nome Dialogo do Padre Nobrega sabre a conversiio do 
gentio. E tambem da segunda metade do seculo toda a ampla 
colel(iiO de poesia e autos do padre Jose de Anchieta. Em comum, 
dois jesuftas: junto com outros (cerca de cern, no primeiro seculo), 
vieram a America portuguesa ensinar o catolicismo aos povos 
recem-contatados. Em comum, a tematica do indio: o evento maior 
do inicio da nossa hist6ria e o confronto entre os povos invasores 
e os naturais da terra, cada qual com costumes e conhecimentos 
desenvolvidos de forma independente por milhares de anos. 0 
Dialogo do Padre Nobrega ... destaca-se pela discussao sobre a 
natureza dos indios: a aptidao e os metodos mais adequados para 
que recebessem a doutrina. Ui em praticamente toda a produl(ao 
poetica e dram:itica de Anchieta, 0 indio e 0 proprio interlocutor, 
dentro do objetivo pratico de ser persuadido a fe. 
Este livro nao pretende aprofundar an:ilises sabre tais obras, 
mas mostrar o contexto em que foram produzidas. Investigando 
a relal(ao entre invasor e dominado, procura relacionar os 
componentes reais e fmjados da irnagem que os autores constitufram 
do chamado "indio" (no singular). 0 principal instrumento de 
referencia sao as cartas dos dois jesuftas. Delas se extraem inumeros 
aspectos sociais e hist6ricos da colonizal{ao: a chegada, o ideal da 
Companhia de Jesus, seu desempenho de agente colonizador 
(ligado a expansao do catolicismo ap6s a Contra-Reforma), as 
24 FILIPE EDUARDO MOREAU 
"chagas" da ColOnia, os aldeamentos, as guerras contra os indios 
e sua escraviza~ao. 
As informa~oes das cartas de Nobrega e Anchieta aparecem 
aqui agrupadas por trechos, seguindo uma ordem tematica pre-
viamente escolhida, procurando-se explicar, no caso de surgirem 
contradi~oes, os diferentes contextos. Essa ordem, diga-se, nao 
poderia ser de todo coerente, porque a interliga~ao dos assuntos 
torna inevitaveis as sobreposic;oes. 
No primeiro capitulo, comentamos a ampla produc;ao letrada 
dos dais jesuftas, fazendo tam bern referencia a autores importantes 
da epoca.l Por nao ser este o foco maior de interesse (mas a 
"contextualiza~ao" dessa produ~ao), restringimo-nos a amilises 
superficiais da obra ficticia - ou a sua citac;ao pura simples, como 
e o caso da gramatica tupi de Anchieta - que servem para ilustrar 
como foram concebidas as observa~5es das cartas. Sao tambem 
abordados os modemos conhecimentos sobre a organiza~ao social 
dos tupi-guaranis, com base em pesquisas feitas em outras areas 
(lingliistica, hist6ria, ciencias sociais) . 
No segundo capitulo, passamos pelos costumes indfgenas 
mais rejeitados (e por isso tao notados pelos europeus em geral), 
procurando avaliar os criterios da observa~;ao. Ao confrontar os 
depoimentos, buscamos separar realidade e tecnica narrativa (que 
inclui julgamento moral) , para contextualiza-los numa "cultura 
indfgena". Como fizemos em todo o livro, recorremos aqui a 
autores como Alfred Metraux, Florestan Fernandes, Viveiros de 
Castro e outros. 
No capitulo seguinte, o foco vai para os relatos de Nobrega 
e Anchieta sabre pnitica de conversao, para o desenrolar do 
projeto de aldeamentos e para a rea<;:ao dos indios, buscando-se 
investigar, tambem com base em autores modernos (havendo 0 
risco de anacronismos ), uma "ideologia jesuftica". 
No capitulo final, os relatos de ambos os jesuitas servem para 
tra<;ar urn roteiro hist6rico da tragedia vi vida pelos povos nativos 
desde a colonizat;ao. 
1. A op~;ao por ressaltar Nobrega e Anchieta se deveu a qualidade superior de 
seus textos, de rnaior importilncia em nossa literatura. 
OS !NDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIEfA 25 
* * * 
Nobrega e Anchieta foram responsaveis por ampla docu-
mentas:ao sabre o Brasil do seculo XVI. Suas anotas:oes sobre os 
indios se inserem nos balan(fos sobre a conversaoe a coloniza(faO 
(no que esta diz respeito aquela). Ah~m das caracterfsticas particu-
Iares dos povos nativos, esses jesuftas observaram o relacionamento 
entre eles e os colonos e entre eles e os padres. De seus muitos 
escritos se extrai toda uma a9ao polftica dos jesuftas, e tambem, de 
textos como o Dialogo ... , profundas reflex6es sobre a condi(faO 
humana. 
Pretendemos aqui passar parte das impress6es que os dois 
autores tiveram dos indios, podendo-se adiantar que sao muito 
proximas, pela propria forma9ao que tiveram. Como todos os 
textos da epoca (o que inclui o de Carninha, escrivao de armada), 
sao discursos proferidos por agentes da a9ao colonizadora. Do 
presente, e possfveJ apontar diferentes interpreta(fOeS para OS fatoS. 
Em geral, os depoimentos do seculo XVI possuem urn 
elevado grau de etnocentrismo,2 0 que leva a nao preocupavao 
com a complexidade (e com a alteridade) cultural dos povos 
indfgenas. Os europeus construfram a imagem dos indios a sombra 
de sua propria cultura, selecionando informa96es e deixando de 
acreditar em eventos contr:irios a 16gica que procuravam impor. 
Na opiniao de Alfredo Bosi (1992: 31-46), a cultura letrada, 
mesmo presa a modelos chissicos e medievais de descrivao, foi "em 
face do indio, [ ... ] estimulada, para nao dizer constrangida, a 
inventar". Isso nao quer dizer que se tenha distanciado do seu peso 
emocentrico para ver os indios, mas que a representa9ao do "novo" 
exigiu diferentes combinav6es do "velho". 
No caso dos jesuftas, os indios foram coadjuvantes de urn 
evento maior: o momento inedito e grandioso da inquestionavel 
~ssao. Mais do que apontar contradi96es das ideias, a este livro 
interessa avaliar se ha relavao entre elas e a realidade que hoje 
,;vemos - qual seja, a quase total extin9ao dos diversos povos que 
_ Que, segundo Alfred Metraux (1989: 33), s6 teria diminuido no Ocidente a 
partir do seculo XX, com os avans:os da antropologia social. 
26 FillPE EDUARDO MOREAU 
antes habitavam a costa (o que traz a consciencia o fato de 
vivermos numa civilizayao erguida sobre os escombros de outra). 
A quase extins;ao dos fndios foi causada, alem de por 
massacres e doens;as, par urn fenomeno que ainda marca a historia 
dos grupos sobreviventes: a aculturayao. Ja no seculo XVI, ela 
minava a capacidade de autonomia dos povos indfgenas, e talvez 
ate o XVIII os jesuftas tenham sido seus maiores responsaveis. 
Segundo Bosi (1992), a acultura<;ao e "o tema por exceH~ncia da 
antropologia colonial". 0 termo em si satisfaz a poucos te6ricos, 
preferindo alguns substituf-lo por "desculturas;ao" (Ronalda 
Vainfas), "de-cultura<;ao" (Baeta Neves), "ocidentaliza<;ao" (Serge 
Gruzinski) ou mesmo "destrui9ao cultural" (Roberto Garnbini) . 
Mas vale lembrar que poucos antropologos aceitam hoje a 
no«;:ao de "pureza" cultural, ou que urn grupo original deva ser 
mantido pelo isolamento (e, segundo Levi-Strauss, nao ha cultura 
isolada). Antes dos portugueses e dos espanhois, muitas culturas 
da America se impuseram a outras, mesmo que de forma menos 
violenta (provavelmente por uma questao tecnol6gica) . 
* * * 
Este livro pode apresentar erros de ordem metodologica: 
saltos bruscos de uma amilise cuidadosa para o questionarnento de 
determinada informa«;:ao (ou concep91io) jesuftica, ou para 
ponderas;5es acerca da interpretas;ao modema; falhas de'referencia 
informativa (como-a resistencia de Lisboa a ideia de Nobrega sobre 
urn clero indfgena, no comentario de Gambini sobre o batismo de 
Indios nus). 
A tematica, por sua vez, e simples: a questao humana no 
infcio de nossa Hist6ria; a documenta9ao sobre os indios feita 
pelos que hoje chamamos de literatos da epoca; a imagem 
projetada, a questao do etnocentrismo. Nada disso e novo: hoje 
sabemos que os povos indigenas foram as maiores vftimas do 
processo historico, Se o tema foi desenvolvido por Florestan 
Fernandes na decada de 50, tam bern o foi por Las Casas no seculo 
XVI e, cada qual a seu modo, por Nobrega e Anchieta. 
De forma panoramica- na expressao de Umberto Eco - , este 
livro procura relacionar e organizar as informag5es dos autores, 
nao havendo defesa inexonivel de uma ideia (mesmo que isso as 
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OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHlliTA 27 
vezes pare9a, ao tomar emprestadas algumas teses para argumen-
ta96es pontuais), ~as sim quest5es e comentarios, muitas vezes 
originais, acerca da documenta9ao referida. 
Tambem e reconhecida a falha de uma aparente concordancia 
geral com os te6ricos mais citados. Formaram-se verdadeiros 
"campos gravitacionais" em tomo de uma ecletica bibliografia, o 
que, pelo sabor mesmo de "deglutir" tamanha informa~tao, acabou 
prejudicando a linearidade do texto central (por exemplo, a 
inclusao do debate filos6fico na Europa em tomo da escraviza<;ao, 
que teve maior importancia numa primeira etapa, de aproxima~tao 
ao tema). 
Longe de se considerar aprofundado , o livro nao responde 
a uma pergunta-chave, sondada nos textos: a atuas;ao jesuitica 
favoreceu em alguma coisa aos indios? Numa resposta imediata, 
dir-se-ia que nao. Se a chegada dos europeus fosse mais declara-
damente uma invasao, e pelo desconhecimento que os indios ti-
nham de taticas militares complexas e do uso da p6lvora, a unica 
ops;ao seria a fuga para o interior, onde o processo de exterminio 
talvez fosse mais Iento (mesmo hoje o interior nao foi totalmente 
devastado). Assim, os indios nao ficariam tao expostos a doen9as 
e a escravizas;ao (a tentativa do uso da mao-de-obra indigena 
ocorreria com ou sem a presenc,:a dos jesuitas, perrnitindo a sobre-
vivencia instavel de alguns grupos, precariamente agregados a 
civilizac,:ao dominadora). 
No terceiro capitulo , os aspectos "psicol6gicos" (que 
poderiam ser "sociol6gicos", ou "simb6licos" - mas esta palavra 
ja se compromete em outras abordagens) nao deveriam s6 expor 
(de maneira resumida, como foi feito para os trabalhos de Helene 
Clastres- Terra sem mal- Ronald Vainfas- Santidade de 
Jaguaripe - e Sergio Buarque de Holanda - Mito de Silo Tome), 
mas principalmente criticar a interpretac,:ao psicanalftica de 
Roberto Gambini sobre a epoca. Mas, como a interpretac,:ao de 
Gambini se completa nos comentarios de outros autores (Raminelli, 
Bosi, Fernando Carneiro), e os textos que a ilustram sao muitos, a 
parte se transformou em tema, pecando por excesso de suposic,:oes. 
Ha trechos ate consistentes (como em "Sacrificios" ou em 
"Mulheres"), que permitiriam uma analise mais amarrada, caso 
se restringisse a eles. Porem, eon de as informa~t5es mais se prestam 
diretamente ao que se esta dizendo, e perderiamos a noc,:ao mais 
28 FlLIPE EDUARDO MOREAU 
abrangente dos depoimentos (mais honestamente passada quant9 
maior sua extensao). 
No ultimo capitulo, de carater hist6rico, as "indigna'toes e 
indiferenc;:as" mostram com certa dose de humor os depoimentos 
contradit6rios sabre a escravizas;ao. Para Anchieta, ela nao seria 
tolerada por Nobrega em "nenhum" momento, em "nenhuma" 
circunstancia, salvo em guerra justa. Nobrega, na chegada de urn 
superior, mandava logo urn escravo preparar a comida. 
Quanto a questiio levantada por Nobrega sobre a licitude de 
"o pai vender o filho" (sobre a qual teria escrito urn segundo 
dia:togo), Anchieta reconhece a astucia dos colonos para provocar 
essa venda enganosa ( os mdios nao sabiam o que era escravidao ), 
e discute ainda a etica desse procedimento, concluindo ser aceita 
apenas em casas de "extrema necessidade". 
Talvez ao Iongo da leitura se possa sentir que a hist6ria real 
e bern mais dramatica que as ficc,:oes de terror e opressao. Nos 
aldeamentos, a crianc;a indigena nao podia desobedecer as regras 
do invasor, que proibia os costumes que a sua intui'tiio pedia que 
fossem praticados. Recebendo castigos fisicos, via seu povo sofrer 
e morrer,notanda ser aquele urn desdobramento irreversivel da 
historia humana. 
OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 29 
PRINCIPAlS ETNIAS 
Legenda: 
1 - Carij6 (Guarani) 
2- Tupiniquim (Tupi) 
3 - Tamoio (Tupi) 
4 - Goitaca ("Tapuia") 
5- Tupiniquim (Tupi) 
6 - Aimore ("Tapuia") 
7 - Tupinamba (Tupi) 
8 - Caete (Tupi) 
9 - Potiguar (Tupi) 
1 0 - Tremembe (''Tapuia") 
30 FlLIPE EDUARDO MOREAU 
ANCHIETA 
ESPfRITO SANTO 
10 -12 
RIO 15E JANEIRO 
PIRATININGA 
3-5-6 
10-11 
OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 31 
Legenda: 
1- 1553: Chega a Bahia com Duarte da Costa e Luiz da Gra. 
2- 1554: Chega a Sao Vicente com L. Nunes (levando a Nobrega o 
titulo de Provincial do Brasil, dado por Loyola). 
3- 1554: Vai a Piratininga fundar o CoiE~gio de Sao Paulo, a mando de 
Nobrega (duas viagens). 
4- 1555: Volta a Sao Vicente. 
5- 1556: Vai e volta de Piratininga, tern rapida passagem pela Bahia, 
com Nobrega, voltando a Sao Vicente. 
6- 1557: Vai e volta de Piratininga. 
7- 1563: Vai e volta de Yperoig (onde foi "refem" por cinco meses) . 
8- 1565: Vai a Bahia conseguir refor9os contra os franceses, 
recebendo as Ordens Sacras do bispo P. Leitao. 
9- 1567: Volta a Sao Vicente, onde recebe novos cargos governamen-
tais (em 1569, e nomeado Reitor do Colegio, professando ate 1577, 
quando e nomeado Provincial). 
10 - 1578: Vai a Bahia, recebendo a patente de Provincial do Brasil (ate 
1585, viaja por Pernambuco, Bahia, Espfrito Santo e Rio de Janeiro, 
incentivando nucleos de ensino) . 
11- Vai ao Rio de Janeiro acornpanhar o reitor Fernao Cardim, passando 
a residir no Colegio. 
12- Vai ao Espfrito Santo, onde e Superior no Colegio de Reritiba (vindo 
a falecerem 1597). 
32 
PIRATININGA 
7-10 
Fll.JPE EDUARDO MOREAU 
NOBREGA 
OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 33 
Legenc!a: 
1 - 1549: Chega a Bahia com Tome de Souza e os padres L. Nunes, J. 
A. Navarro, A. Pires, V. Rodrigues, D. Jacome. 
2 - 1551: Vai a Pernambuco com A. Pires. 
3 - 1552: Volta a Bahia. 
4 - 1553: Vai a Sao Vicente com Tome de Souza. 
5 - 1556: Volta a Bahia com Anchieta. 
6- 1558: Acompanha Mem de Sa em guerras na Bahia (em 1559, 
doente, passa o cargo de Provincial a Luiz da Gra). 
7- 1560: Vai com Mem de Sa ao Rio de Janeiro (em guerra aos 
franceses), seguindo para S. Vicente e Piratininga. 
8 - 1561: Volta a S. Vicente. 
9 - 1563: Vai com Anchieta a Yperoig {Ubatuba), voltando a S. Vicente 
depois de dois meses entre os tamoios. 
1 o - 1564: Vai ao Rio de Janeiro a convite de Estacio de Sa. Reza a 
missa e volta em seguida aS. Vicente, visita Piratininga e volta a S. 
Vicente (em guerras e falta de alimento). 
11 - 1567: Vai ao Rio de Janeiro para fundar o CoiE§gio e ser seu 
Superior, a convite de Mem de Sa. Passa Ia a velhice, vindo a falecer 
ern 1570. 
CAPITULO I 
ASPECTOS LITERARlOS E 
HISTORICOS 
GENEROS UTILIZADOS PELOS AUTORES 
Dialogo 
0 padre Manoel da Nobrega chegou a Bahia, em 1549, na 
frota de Tome de Sousa, que veio fundar a cidade de Salvadore dar 
infcio ao Govemo Geral. Nobrega che:fiava a primeira leva de je-
suftas, e foi o primeiro deles a escrever a respeito do Brasil. Depois 
de sua morte, em 1570, suas cartas foram agrupadas nas Informa-
r;:oes sabre a Terra do Brasil, e publicadas em diversas linguas. 
A correspondencia de Nobrega e considerada importante nao 
s6 pela defesa dos indios, mas por observar o tipo de relaciona-
mento que havia entre eles e os colonos, tentando desvendar com 
imparcialidade o jogo de forc;as implicado. Mais do que born le-
trado, foi na medida do possfvel urn juiz lUcido e isento, procu-
rando o cerne das questoes e culpando uns e outros em fun<;:ao de 
juizo que alcan<;;asse apos longa reflexao: nunca por xenofobia 
(ROCHA PINTO, 1992: 62) . 
Na trajet6ria de Nobrega se nota a passagem do humanista 
esperan<;;oso das primeiras cartas, em que chega a exaltar as qua-
lidades clos indios, para o "administrador pragmatico" das tiltimas, 
em que prefere deprecia-los (CARNEIRO DACuNHA, 1990). 
Antes de se tornar urn homem amargo e desencantado, 
Nobrega fala "na gras:a que Nosso Senhor me fez, mandando-me 
a estas terras do Brasil, para dar principia ao conhecimento e louvor 
de seu santo nome nestas regWes" (Cruta IV). 
* * * 
0 Dialogo do Padre Nobrega sobre a converstio do gentio 
(NoBREGA, 1988: 229-45) e urn texto claro, consistente e ate hurno-
38 FILIPE EDUARDO MOREAU 
rado, deixando transparecer uma profunda convic9ao humanista. 
Mostra a apurada capacidade de observat;ao do autor, sua grande 
bagagem intelectual e humana, e abre o conhecimento sobre a 
mentalidade indigena, dentro das possibilidades da epoca. A obra 
aborda a questao da humanidade do indio, deliberada em 1534 por 
bula3 de Paulo III. Escrito nos anos de 1556-7, e tambem pouco 
posterior ao famoso debate entre Las Casas e Sepulveda. 4 
Alem da "carta", o "dialogo" foi o unico genero5 desen-
volvido por N6brega. Alem da conversao do gentio, escreveu as 
Respostas sobre se o pai pode vender a seufilho e se urn se pode 
vender a si mesmo, tambem referentes aos indios do Brasil.6 
0 genero "dialogo", utilizado por autores como Petrarca e 
Maquiavel, tern como modelo mais antigo e famoso a Republica , 
de Platao. No texto grego, a dialetica e dinfunica, havendo sempre 
contraposi96es as perguntas e as respostas de S6crates, locutor 
principal. Embora com posicionamentos razoavelmente definidos, 
as duas personagens do Ditilogo ... for am tiradas, segundo o 
pr6prio autor, de colegas menos graduados da Companhia, para 
figurar aquilo que o seu "espfrito sente". 
A constituit;ao de interlocutores com base em pessoas reais, 
com o sentido de que o outro e parte de si mesmo, tambem ocorre 
em Platao, mas a identifica9ao de Nobrega com os irmaos 
personagens e bern maior, resultando em dialogos menos 
conflitantes. Gon9alo Alves e Matheus Nogueira na maioria das 
vezes se completam no fluir de um pensamento teol6gico 
ortodoxo. 0 estiTo segue a ret6rica da doutrina, mas o ferreiro 
Nogueira, urn tipo vulgare de fala mais simples, demonstra maior 
clareza do que Alves, teoricamente mais erudito. 
* * * 
3. Segundo a antrop6loga Carneiro da Cunha (1990), menos pe1o ques-
tionamento propriamente dito do que pela reivindicayao de jurisdi~ao da 
Igreja sobre tal parcela da popula9ao. 
4. Que sera abordado em "Escraviza9ao": questoes fi1os6ficas . 
5. Cuja escolha ja determina, para a maioria dos criticos, significa~ao e sentido 
para o' que e dito. 
6. Manuscrito que se encontra na Biblioteca Publica de Evora (N6BREGA, 1988). 
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Contra os massacres aos índios pelos espanhoes
OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 39 
0 Dialogo .. . se mostra denso desde o infcio, colocando as 
questoes da conver~ao e referindo-se aos indios em tom grave: 
"bestiais [ ... ], encarni~ados [ ... ] , caes [ ... ], porcos [ ... ], mais 
ingrates que os filhos das vfboras que comem suas maes". A 
dramaticidade valoriza o trabalho dos padres, e Gonc,;alo Alves 
acaba por definir que a maior dificuldade e OS fndios OSCi!arem 
entre a aceita9ao da nova fe (unica verdadeira) e o seu nipido 
esquecimento. 
Para Matheus Nogueira, "se tiveram rei, poderao se converter, 
ou se adoraram alguma cousa [ ... ] poderao [ ... ] en tender a 
prega9ao do Evangelho", mas "este gentio nao adora coisa alguma, 
nem ere em nada". 
Viveiros de Castro (1992: 37-8) traduz a rela9ao na seguinte 
ordem: os indios nao acreditam porque nao adoram, nao adoram 
porque nao se sujeitam nem servem a ninguem, isto e, nao tern rei. 
A pe9a em falta era o "componente de sujei9ao, de abdica~ao do 
juizo e da vontade". Sinteticamente: "nao tinham fe porque nao 
tinham lei, nao tinham lei porque nao tinham rei". 
As personagens relembram t6picos da tradi~aocrista, 
servindo para se caracterizar como agentes da fe. Alves pede a 
Nogueira urn parecer sobre o gentio, e este diz: "para este firn de 
se converterem e serem cristaos nao ha mister muita inteligencia; 
porque as obras mostram quao poucas mostras eles tern de o poder 
vir a ser". 
Com a questao no ar, comparam os seus dois oficios, falar 
e fazer, concluindo que ambos devem ser semelhantes no servi9o 
a Deus (em provavel referencia ao trabalho, ligado a palavra, do 
proprio autor). 
Adentrando na importante questao da humanidade dos indios, 
Alves pergunta se podem ser considerados "pr6ximos" . Nogueira 
coloca a questao teol6gica as claras: se forem considerados homens, 
sim, pais " todo homem e uma mesma natureza, e todo pode 
conhecer a Deus e salvar sua alma". Como se lembrasse a Alves 
de sua obriga9ao, diz: "a obediencia lh ' o manda [ ... ] que nao fique 
nada por fazer a esta gente". 
Apesar da "rudeza" dos gentios, que se opoe a "delicadeza" 
da fe, e de que "nao tern razao e sao muito viciosos", Deus, com 
sua misericordia, abrira a eles a porta do entendimento, atraves dos 
jesuitas . Sobre a necessidade de estimulo nas dificuldades do 
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40 FILIPE EDUARDO MOREAU 
intento, relembram mais uma vez os dogmas: e preciso sacriffcio, 
fe, caridade. 
Parecendo tocar em questao de enorme profundidade, 
Nogueira pergunta de "que aproveitaria se fossem cristaos por 
for9a e gentios na vida, nos costumes e na vontade?" (0 que e 
ser realmente cristao?) Na resposta, de ordem pratica, subentende-
se que, sem mudar os costumes (apagando as cren9as a eles 
associadas), nao seriam cristaos: e diffcil mudar os habitos de 
velhos e adultos, devendo-se investir nas crian9as. Os adultos 
assumem o cristianismo, mas nao mudam seus habitos , sao 
inconstantes e nao totalmente cristaos, enquanto as crian~as 
teriam os habitos reconstruidos . A pergunta tambem se refere a 
conversao por for~a, havendo na resposta, em rela9ao as crian9as, 
consentimento. 
Quando o dialogo parece ser mais unissono, surte uma 
discordancia, de ordem teologica: Alves argumenta que caridade 
nao pressupoe razao, pois sao campos distintos o da vontade e o 
do entendimento. Em referencia ao oficio do outro, compara o 
efeito do fogo sobre o ferro. Mas a questao teologica e de diffcil 
acesso: "a vontade de Deus [ ... ] e regra que mede todas as obras" 
(mas como aferi-la?). Com exemplos historicos, mostra que nem 
sempre o que parecia ser born o era realmente, mas que era possivel 
acertar "tomando conselhos com Deus".7 
A questao da humanidade dos fndios reaparece com a 
coloca~ao de que todas as almas teriam sido feitas a semelhan9a 
de Deus e criadas para a Gloria, "tanto [ ... ] a [ ... ] do Papa [ ... ] como 
[ ... ]do vosso escravo Papana",8 e que, assim, os indios "tern almas". 
Voltam entao a teoria doutrinaria, com a seguinte premissa: 
"a alma tern tres potencias, entendimento, memoria e vontade, que 
7. Em rela~ao ao saber o que Deus de fato quer, Im\cio de Loyola encontrou duas 
maneiras: ilumina~;ao vinda de cima e medita9ao. A primeira, pelo cantata 
mfstico com Deus (acima das pr6prias ideias), nao era permitida aos 
discfpulos, pais feriria os princfpios basicos de hierarquia e obediencia. Foi 
entao desenvolvida (ou aperfeigoada a prlitica medieval de Devoti) a 
medita~;ao, ou metoda de descobrir, por uma real uniao de trabalho, o que 
Deus g11er de cada urn. lsso levaria, com respeito a obediencia, a uma 
contem~iafao na a<;ao (GAMBINJ, 1988: 98). 
8. Com o Pontffice e a tribo de Porto Segura formando interessante alitera9ao. 
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OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHJEfA 41 
todos tern". Depois que Adao pecou, tomou-se semelhante a besta, 
e assim todos os p_ovos (portugueses, castelhanos, tamoios , 
aimon~s) , em pe de igualdade, tern natureza corrupta. Em mais 
uma compara9iio como ferro- "as almas sem gra9a e caridade [ .. . ] 
sao ferros frios [ ... ] mas quanta mais se esquenta [ .. .]" -, Nogueira 
explica que a vontade de Deus fez que alguns desenvolvessem 
melhor entendirnento. 
Parecendo concordar, Alves admite que todos tern alma e 
bestialidade naturais , mas opoe a bestialidade dos "negros" 
(fndios)9 a discri9ao e aviso (informas;ao) de romanos, gregos e 
judeus. Nogueira pondera (com argumento igual ao de Las Casas)lO 
que todos os povos passaram por bestialidades - "adoravam pedras 
e paus, dos homens faziam deuses" - 0 que nao deixou de haver 
em muitas ramificas;oes do cristianismo; mesmo os judeus, "gente 
de mais razao, que [ ... ] tinham as escrituras desde o come9o do 
mundo" , adoraram objetos de metal e sacrificaram crians;as. Se 
outros adoraram anirnais, era ate racional do gentio temer o trovao 
(num raro elogio a uma cren9a nativa). Mas, antes de passar a 
palavra, coloca no mesmo nivel todas as idolatrias, procedentes do 
"pai da mentira, mentiroso desde o comes;o do mundo".11 
Em nova investida contra o gentio, Alves op5e o polimento 
dos que "sabem ler e escrever, tratam-se limpamente", desenvol-
veram ciencia e filosofia, aos que "nunca souberam mais que an-
darem nus e faze rem uma flecha". 
Embora os dois concordem que os indios possuem entendi-
mento, come9a a haver uma divergencia de opini5es. Nogueira 
defende os indios ao dizer que "terem os romanos e outros gentios 
9. N6brega usa o termo "negro" para se referir ao indio e ao africano como 
"decorrencia do pensamento anal6gico operante em sua teologia-politica, 
que constitui em uns e ouu·os a mesma carencia de Bern, como 'gentilidade' 
herdeira do pecado de Cam e, ainda, de urn criteria jurfdico, que para uns e 
outros postula o 'naturalmente escravo ' , como barbaros interpretados 
atraves da Polftica aristotelica" (HANSEN, 1993: 23). 0 "mito de Cam" sera 
ainda abordado no Dialogo ... , e a "servidao natural" em "Escraviza(_:ao": 
questoes filos6ficas. 
10. Em "Escraviza(_:ao": quest5es filos6ficas . 
11. Em referenda ao Evangelho segundo Siio Joiio. 
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42 FILIPE EDUARDO MOREAU 
mais policia [leis, civilizas;ao] que estes nao lhes veio de ter natu-
ralmente melhor entendimento", apenas melhor crias;ao e politica, 
e que os indios tern boas inven~oes, palavras discretas, e os fllhos 
deles tao born entendimento "que muitos fazem a vantagem aos 
filhos dos cristaos".l2 
Sobre a concordancia dos dois em rela~;ao ao entendimento, 
Viveiros de Castro (1992: 24) sintetiza que das tres potencias da 
alma, entendimento, memoria e vontade, a primeira era agil e 
aguda, enquanto as outras duas eram fracas e remissas. 
0 t6pico seguinte, introduzido por Alves, refere-se a origem 
das diferens;as, sendo citado urn velho "instituidor de cativeiros" 
(Bosr, 1992): o mito de Cam (rnuitas vezes usado para justificar a 
escravidao negra). Alves especula que os fndios sao carnitas 
(descendentes do terceiro filho de Noe, que, ao contrario dos 
irmaos, viu nu o pai que estava bebado, sendo entao amaldis;oado), 
e que por isso andam nus (associas;ao simb6lica que serve a 
argumentas;ao da personagem). Explica pela Bfblia que, apesar de 
toda a gente ter "urna rnesrna alma e urn entendimento", Isaac foi 
mais poHtico do que seu irmao Isrnael, "que andou nos rnatos", e 
que o meio (floresta, campo, aldeia) exercita o entendimento 
(tecnico e filos6fico). 
Faz entao uma suposis;ao: o gentio, nao tendo polfcia, teria 
"menos entendimento para receber a fe". Segue daf a constatas;ao 
de que 0 entendirnento se opoe a inconstancia: "mais facil e de 
converter urn ignorante, que urn malicioso e soberbo"; urn herege 
ou urn judeu, com toda a sua teimosia, uma vez convertido "ficaria 
mais constante". 
Essa nao e a opiniao de Nogueira, para quem, uma vez que 
"entre a fe no coras;ao, [ ... ] o mesmo sera de urn que de outro'', 
sendo necessaria o !l)esmotempo, trabalho e diligencia, nao 
importando filosofia ou razao: "uns e outros [ ... ] sao ferro frio e 
duro[ ... ] que quando Deus quiser meter a forja logo se converterao". 
Como born vendedor de seu peixe (o que tambem vale para 
o autor), diz: "offcio de converter almas e o maior de quantos hii 
na terra", e 0 que requer maior perfeis;ao. 
12. Colocao;ao que lembra Las Casas, criticando as desqualifica~oes feitas pelos 
que niio olhavam para a propria civiliza~ao. 
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OS l?IDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHJETA 43 
Comentam o custo e a demora do trabalho, em que nao basta 
conhecer a lingua, mas e preciso bondade no dizer (o que tambem 
propos Las Casas). Nogueira entende como dificuldade o fato de 
os indios ainda nao diferenciarem os padres dos colonos mal 
intencionados, mas que e uma questao de tempo. Lembram do 
quanta historicamente as conversoes foram lentas, mesmo feitas 
par ap6stolos, e que seria esperar o maior milagre do mundo se 
as coisas la fossem faceis. Tudo depende da vontade divina, pois 
"quando Ele quer, faz de pedras fi lhos de Israel". 
Voltam entao ao ponto principal, de que incutir a fe nos 
indios passa por faze-los abandonar os antigos costumes, o que dia 
a dia avan~a, ao conseguirem convencer alguns a enterrar seus 
mortos, em vez de come-los. 
Poesia 
Anchieta nasceu nas Canarias, estudou em Coimbra e veio 
para o Brasil em 1553, com 20 anos de idade. No ano seguinte, 
fundou na aldeia de Piratininga (hoje Sao Paulo) o primeiro 
colegio jesuitico da ColOnia. Foi mestre em latim, castelhano, 
doutrina crista e lingua brasilica. 
Atuou com Nobrega na pacifica~ao de indios do litoral entre 
Sao Paulo e Rio de Janeiro, viajando depois a Bahia para conseguir 
refon;;os na !uta contra os franceses. Em 1569 foi nomeado reitor 
do Colegio de Sao Vicente, tornando-se provincial do Brasil em 
1578. Nessa epoca, viajou por toda a colonia incentivando OS 
nucleos de ensino. Em 1585 pediu licenp do cargo e retirou-se 
para o Colegio do Rio de Janeiro, vindo a falecer em 1597. 
Nas andans;as pela pacifica~ao, Anchieta ficou refem dos 
tamoios em Ubatuba, enquanto Nobrega ia a Sao Vicente negociar 
a paz com os portugueses. Diz-se que nessa epoca ele escreveu nas 
areias de Iperoig o Poema em louvor da Virgem, decorando os 
versos para registro posterior. 
A produ~ao poetica de Anchieta (e mais ainda a dramatica) 
e quase toda voltada a catequiza~ao dos indios. Em estilo medieval, 
aborda assuntos cotidianos, como amor, alimentas;ao e doens;as 
(BRANDAO, 1993: 197). 
Apesar do uso de linguagem e religiosidade popular, visando 
a devos;ao dos indios, Anchieta tinha preocupas;oes com medida, 
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44 FILIPE EDUARDO MOREAU 
metrica e rima. Ele adaptou em tupi as formas trovadorescas nas 
suas variantes populares ibericas (Bosr, 1992: 64): 
Jande, rubete, Iesu [ ... ] 
oimomboreausukatu, 
Jande amotareymbiira. 
[Jesus, nosso verdadeiro Pai [ ... ) 
senhor da nossa existencia, 
aniquilou nosso inimigo'] 
Suas poesias eram copiadas, ou adaptadas, e distribuidas por 
cliferentes igrejas para serem cantadas. Para penetrar nos indios com 
seu aparato ret6rico persuasivo, a oposi~ao complementar entre 
Bern e Mal e sempre reiterada. 0 Bern e personificado pela 
imagem de Deus, de Jesus e da Virgem e delineado por urn campo 
semantico de conota'(6es positivas, sendo a meta a atingir. 0 Mal 
e representado pelo demonio e por maus espfritos e delineado por 
urn campo semantico de conotas;oes negativas , devendo ser 
rejeitado, por escravizar a alma. 13 
Nas palavras de Bosi (1992: 67) para converter o fndio, 
"Anchieta engendrou uma poesia e urn teatro cujo correlato 
imagimirio e urn mundo maniquefsta14 cindido entre fors;as em 
perpetua I uta", imposto "de fora para dentro da vida tribal". A 
aproximas;ao do Bern pelo afastamento do Mal implicava para os 
fndios a necessidade de rejeitar costumes, valores e cren9as 
tradicionais e adquirir novos: 
13. Lembrando que a vit6ria final e sempre do Bern, Baeta Neves, ao analisar 
De Gestis Mendi de Saa, chama aten~ao para o "triunfalismo que se exprirne 
sem qualquer recato apesar da crftica que recai - e quantas vezes - sabre a 
'altivez' (o pecado da altivez) de indigenas e prostestantes". 
14. Hansen ve exagero no termo "maniquefsta" (o maniquefsmo era uma heresia 
conhecida de Anchieta), preferindo falar de urn mundo ortodoxo. No 
cristianismo, ha urn unico plincipio, Deus, de que o Diabo e a falta. 0 Mal e 
ausencia, ou falta de Bern, como niio-ser, e e completado ou corrigido por 
este. Como Nao-ser, o Mal irnplica o Bern, como Ser. 
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OS iNDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 45 
Antigamente, eu mmTendo, 
urn ataque de de!J16nio 
pr-:nderia minha alma pee ad ora. 
Detestando o mal, agora eu amo 
a Jesus, meu senhor. 
[ ... ] 
Afaste eu os habitos antigos 
[ ... ] 
Abolindo os maus costumes, 
Deus nos perdoaraJ5 
Os costumes ind1genas multisseculares, que era preciso 
destruir para implantar o cristianismo, aparecem como "habitos 
antigos", "maus costumes", "costumes perversos", "habitos de 
meus avos" etc. Para ensinar as no96es de pecado e reden9ao, 
ganhar a simpatia dos indios e persuadi-los a devo9ao, as poesias 
tambem utilizam elementos de sua cultura - musica, canto, dan9a 
e lingua tupi - para serem declamadas: "Dan9o aqui I a moda 
dos meus". 
* * * 
Ao lado das poesias de mensagem religiosa, Anchieta 
compos, em 1560, o poema epico De Gestis Mendi de Saa, com 
3.054 versos de pura exalta91io a dureza guerreira do terceiro 
Govemador Geral. Na opiniao de Darci Ribeiro (1992: 29), essa 
composi9ao infeliz teria impossibilitado o Vaticano de canonizar 
aquele que seria o primeiro santo brasileiro. 
No poema, que comemora a alian9a entre o govemador e a 
Companhia contra os nao-cristaos, nota-se a violencia da a9ao 
contra os indios no sul da Bahia: 
At:ende-se mais a mais coragem do chefe e seus bravos: 
derrubam a golpes mortais, muitos selvagens. Ora decepam 
15. Anchieta, in Brandiio, 1993: 197-9. 
46 F1LIPE EDUARDO MOREAU 
brac,;os enfeitados com penas de piissaros, ora abatem com a 
lamina reluzente cabes;as alti vas, faces e bocas pintadas de 
vermelho urucum [ ... ].Junto ao mar o estrondo ecoa medonho, 
enfurece horrendo na praia o soldado matando e enterrando 
vitmioso na areia corpos aos montes e almas no inferno [ ... ]. 
'Triunfadores meus, diz o chefe [ ... ] Ou exte1minar de vez esta 
rac,;a felina com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia 
gloriosarnente.' [ ... ] Fossem mais crentes os colegas, mais viris 
os seus brac,;os, fervesse-lhes no peito urn sangue mais quente, 
acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, e esse dia 
marcaria a rufna desses feros selvagens, atirando-os para as 
sombras eternas do inferno[ ... ]. 
[ ... ] cento e sessenta aldeias incendiadas, mil as casas arruina-
das pela chama devoradora, <assolados os campos com suas 
riquezas, passando tudo pelo fio das espadas [grifos meus]. 
Auto 
Anchieta escreveu as primeiras pec,;as encenadas no Brasil, 
criando inumeros dialogos entre personagens que disputavam o 
dominio dos habitantes da Terra de Santa Cruz. Na opiniao de 
Ronald Raminelli (1996: 54), o teatro de Anchieta acentua o teor 
das cartas jesufticas, desenvolvendo a conceps;ao do indio como 
er demonfaco, o que nao havia nas cronicas portuguesas ate a 
metade do seculo .XVI. Mas acentua, na verdade, a ideia de que 
os costumes indfgenas eram demonfacos: ha esperans;a para o indio, 
que tern alma, desde que se converta para o Bern. Nas palavras de 
Baeta Neves (1978: 83), "o teatro foi uma forma de construir urn 
espelho destruidor d_::js culturas indfgenas, que, em tais pes;as, 
apareciam identificadas ao Mal" . 
Anchieta desenvolveu os autos baseando-se numa tecnica de 
d:i:ilogos com muitamfmica e encenas;ao, a qual dava o nome de 
-comedias". Seus autos representam a tentativa mais requintada de 
catequizac,;ao, pela dramatizas;ao dos ensinamentos. A linguagem 
,-erbal persuadia como fors;a viva, com eloqiiencia, cenografia, 
canto, musica, dan~a e vestuano. Apesar do comprometimento de 
quase todos os elementos com a catequese, o valor dramiitico nil.o 
era prejudicado, sobretudo na satira aos maus costumes dos indios. 
Segundo Bosi (1992: 82), e atraves do teatro que "a fe atinge o 
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OS INDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANC.HIETA 47 
nfvel da experiencia": no lugar da prega~ao, a fala expressa o 
sublime do sagracto e o -grotesco do demoniaco. 
Toda a produ~ao e voltada aos catecumenos, principalmente 
indios, mas tambem colonos e degredados, alternando a lfngua 
portuguesa com o tupi e o espanhol. Para ser acessivel ao publico, 
e teatro de cunho popular, baseado nos autos de devo~ao e na tra-
dis;ao medieval (BRAi'<"DAO, 1993: 199-204). As pe~as criavam urn 
clima rnistico, com atores e cenarios assumindo a funs;ao do cate-
quizador. A representas;ao mostrava diretamente aos cateclimenos 
os princfpios em que eles deveriam se basear e os castigos, caso 
isso nao ocorresse. Vivenciando simbolicamente as experiencias, 
os indios se atemorizavam e entravam emocionalmente num pro-
cesso de purgas;ao, devendo ao fmal se sentir confiantes e predis-
postos aos ensinamentos. 
N ormalmente os autos tinham tres partes. A primeira e a 
ultima, lfricas , eram comandadas por cantigas, enquanto a do meio 
era 0 nucleo dramatico (CARDOSO in BRMIDAO, 1993). Basicamente, 
a estrutura consistia de cinco atos: uma introdus;ao do assunto 
(composis;ao recitada ou cantada, seguida de desfile ou procissao), 
dais diilogos, urn sermao ou exortas;ao, e o final com dans;a, canto 
ou procissao. Nas menores, eram suprimidos urn dos diilogos eo 
sermao. 
Para Sabato Magaldi (in BRANDAo, 1993), o que prevalece 
e "a dicotomia fundamental da ldade Media", em que se defrontam 
o Bern e o Mal: santos e anjos, protetores da Igreja, lutam contra 
fors;as demoniacas , diabos que no caso tern os nomes de indios 
inimigos. 0 Bern triunfa sobre os covardes, representando a 
implantas;ao da religiao pela fe inexoravel. 
* * * 
0 auto Na aldeia de Guaraparim (BRANDAO, 1993), 
representado no Espfrito Santo por volta de 1590, eo mais longo 
escrito integralmente em tupi, especialmente para os indios. Nele, 
muitos elementos da cultura indfgena sao objetos de denuncia 
pela as;ao catequizadora. Com o "vil gentio" sendo sensfvel aos 
ensinamentos divinos, a conversao e o abandono das "erronias" 
trariam paz e prosperidade ao territ6rio "descoberto" pelos 
portugueses. 
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48 FJLIPE EDUAROO MOREAU 
Em mon6logo, o diabo Anhangw;u se diz amea~ado pelo 
padre que tirara indios do seu dominio. Chama tres auxiliares, e 
em conselho planejam seduzir os indios para subjuga-los. Cada 
diabo representa urn tipo de pecado. 
Tataripera ("lans;a-fogo") fomenta a inimizade: "Perturbo os 
cora~;oes das velhas, I irritando-as, fazendo-as brigarem [ ... ] I aos 
seu pr6prios amigos I eles vingam, dizendo desaforos" . 
Caumondd ("ladrao de vinho") faz os indios beberem, 
causando desordem moral, roubo e luxuria: "fa~;o-os todos 
pecarem I bebendo vinho a noite [ ... ]I vou cochichar aos ouvidos 
dos homens I ajudando-os acerca de mulheres I incitando-os a 
desejarem-nas". 
Moroupiaroera ("antigo adversario temfvel") incentiva a 
antropofagia: "Ontem, a urn cristao I agarraram, amarrando-o [ ... ] 
I Ali o assaram e comeram I Enfim, de urn cristao, que passava I 
vingaram-se a meu mandado". 
As praticas indfgenas condenadas pelos padres sao atribuidas 
a a~;ao do diabo. Sao criticados em cena os costumes antigos consi-
derados inaceitaveis, como antropofagia, bebedeira e obediencia 
ao paje. Os que eram aceitos, como a lingua, a dans;a e os orna-
mentos, utilizavam-se como forma de envolvimento. 
No seu objetivo catequetico, Anchieta usa uma linguagem 
acessivel e manipula o significado dos elementos indigenas, trans-
figurando a realidade. Mas ao mesmo tempo cria urn afastamento, 
pois os costumes "abominaveis" estao projetados no diabo, e, par-
tanto, fora deles. Estrategicamente, os indios aprendem a ridicu-
larizar os pr6prios costumes. 
Na luta pela condena~ao ou salva~ao da alma do indio 
Pirataraca, que acabara de morrer, os diabos a acusam de uma serie 
de pecados. Ela se defende e fala ao espectador como praticara os 
ensinamentos dos padres. A alma eo proprio vefculo da mensagem 
catequetica, falando de urn passado de maus habitos e de urn 
presente cristao. Os diabos denunciam o vinculo com o passado, 
mas a mensagem final contrapoe a desordem das tradi<;5es 
pecaminosas ao presente iluminado pela fe. 
A pes;a tras;a a trajet6ria da conversao: os diabos e a 
desordem1 a luta entre Bern e Mal, a presen~a do anjo que instaura 
a ordem. A substituis;ao do caos "diab6lico" pela ordem "divina" 
se da pela obediencia as leis de Deus e repressao aos velhos habitos: 
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OS INDIOS NAS CAR'D\.S DE NOBREGA E ANCIDETA 49 
"Devorando urn banquete de escravos, daw;:am os meus avos; 
faminto das leis deDeus I abjuro as de meus pais". 
Substituindo sua cultura, Pirataraca muda de nome para se 
salvar: 
Caumonda: -Que nome o sacerdote te deu? 
Alma:- 0 do pobre Francisco Pereira, chefe branco que morou 
em Quirimure. Depois disso, o bispo tambem colocou o do 
velho Vasco Fernandes Coutinho. Este nome eu conservo. 
Mon-i com ele. 
A vit6ria dos santos sobre os diabos representa o fim dos 
tormentas eo futuro promissor. Na voz do anjo, Anchieta diz: 
- Alegrai-vos, filhos meus, por mim. Aqui estou para vos 
proteger. Vim do ceu para junto de v6s a ajudar-vos sempre. 
- Iluminando esta aldeia, junto de v6s estou. Nao me afastarei 
daqui. De custodiar a aldeia encarregou-me Nosso Senhor. 
-De agora em diante v6s sereis felizes . Quero felicitar esta vossa 
teiTa agora venturosfssima, pois que se lembrou dela a virtuosa 
mae de Deus. 16 
- Seja a maldade expulsa aqui de Guaraparim. Extirpe-se o mal, 
para o espfdto de Deus dominar perenemente. 
Raminelli (1996) nota aqui a representa~ao da America 
como reino de Sata, e da Europa como reino de luz e salva~ao. A 
propria expansao maritima seda efeito da providencia divina, com 
a colonizas;ao, pelo mercantilismo e cristianismo, anunciando o fim 
da miseria. Pela oposi~ao entre Bern e Mal se representa a alteri-
!6. Para os jesuftas, o cristianismo nao e apenas o unico termo de compara~ao, 
mas a unica realidade. 0 que nao se assemelha aos costumes cristaos nao 
pode ser considerado. Mais do que isso: e como se os Indios nao existissem 
ate aquele momenta. Os jesuitas distorcem essa inexistencia para o 
cristianismo, considerando-a uma inexistencia real. Na constata~ao das 
diferen~;as (desenvolvida no segundo capitulo), esta implfcito que elas nao 
podem ser aceitas, e que o conhecimento sem origem na religiao cat6lica 
jamais e legitime. 
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50 FILIPE EDUAROO MOREAU 
dade entre europeus e Indios, cujas existencias sao mediadas pelo 
imagimirio cristao. As "paginas em branco'' estavam, primordial-
mente, sob o dominio do Mal. 
Como todo discurso se situa socialmente num tempo e Iugar, 
o lugar a que Anchieta se refere, apesar dos prop6sitos missionanos, 
e sempre o do conquistador portugues, que quer de todas as 
maneiras trazer o Outro para o mesmo espa~o. fisico e espiritual. 
0 discurso evangelizador e universalista e redutor, por desconhecer 
e desrespeitar a alteridade. Aparentemente brando, ele disfan;:a a 
violencia. Os cantos e a encena~ao seduzem e condicionam o 
publico, impoem a adesao e camuflam em dia!ogo o mon6logo do 
catequizador. 
* * * 
0 Auto representadona festa de Sfio Louren(:o se inicia com 
o martfrio do santo. Os diabos Guaixani, Aimbere e Saravaia 
querem destruir a aldeia indfgena, defendida por Sao Louren~o, 
Sao Sebastiao e pelo Anjo da Guarda. Novamente as virtudes estao 
representadas nas figuras dos santos e do anjo, e os vicios nas 
figuras dos diabos, caracterizando a oposi~ao entre Bern e MaJ. A 
materializa~ao do Mal em monstros e demonios sera atropelada pela 
etema vit6ria do Bern. 
Guaixani e Aimbere eram chefes tamoios, inimigos dos 
portugueses. A representac;:ao como diabos pecadores que queriam 
destruir a aldeia evidencia a intenc;:ao polftica de Anchieta de 
conseguir aliados da terra, na luta pela coloniza~ao portuguesa. 
Pelas vozes de Sao Sebastiao e Sao Lourenc;:o, o jesufta condena a 
indolencia dos fndios quando chamados as atividades colonizadoras 
e tambem a pratica d~ i'feiti<;:arias" (pajelan~as) e festas com cauim 
e fumo . 
0 Anjo postula: "- Evitai, de hoje em diante, o mal; I limpai 
de maus costumes a vida: I [ ... ] seja adulterio, bebida, mentiras, 
brigas: llutai contra a guerra fratricida" . 
Depois da morte do santo, o diabo-rei Guaixara pede ajuda 
aos comparsas para perverter a aldeia. Falando em tupi, mostra 
irritw,;ao contra os novos habitos dos virtuosos, dizendo que s6 ele 
deveria ser obedecido: "- Meu sistema e agradavel. I Nao quero 
que seja constrangido, nem abolido. I Prerendo alvoros;ar as tabas 
OS INDIOS NAS CART4S DE NOBREGA E ANCHIETA 51 
todas. I [ ... ] Boa coisa e beber ate vomitar cauim. I Isto e apre-
ciadfssimo. I Isto se recomenda, isto e adminivel". 
Ronald Raminelli (1996: 154-5) nota que o diabo nao cas-
riga nem pune, mas promove tentw;;oes, afastando os indios dos 
preceitos cristaos. Guaixara e "bebado, grande boicinga [cascavel], 
jaguar, antrop6fago, agressor, andira-guac;;u que voa, demonio 
assassino" . Aimbere possui chifres, range os dentes, mostra as 
garras, e enfim o demonio trazido por Anchieta, 17 com propriedades 
de anim~tis nativos como cobra, morcego e jaguar. Anchieta recorre 
as feras conhecidas para traduzir OS medos e perigos dos que 
estivessem alheios a palavra do Senhor. 
Com medo da presenc;;a dos santos, OS diabos agem as 
escondidas, lembrando a maneira dos franceses de distribuirem 
arcabuzes entre os fndios para se levantarem contra os portugueses. 
No auto, Anchieta mostra o indio como semelhante que nao 
ere porque desconhece Deus. Por isso, tenta incutir nele alguns 
sentimentos. As personagens aleg6ricas "Temor de Deus" e "Amor 
de Deus" figuram as ideias de pecado e devoc;;ao a Deus, ou, 
genericamente, a declarac;;ao do que se deve e nao se deve fazer. 
Assim, enquadra-se na tentativa de organizar as aldeias e grupos 
com conceitos cristaos de sociedade. A ideia expressa por Nobrega 
no Dialogo ... , de que os indios nao tern fe nem rei e nem lei, 
justifica a introdw;;ao, junto com a fe crista, de ideias basilares da 
sociedade organizada por leis cat6licas.18 Era necessaria ensinar 
aos indios a diferens;a entre Bem e Mal, entre certo e etTado, para 
que entendessem conceitos e dogmas cristaos. 
A catequese utilizou diversos recursos narrativos e lin-
giifsticos para atingir seus objetivos. A mensagem cat6lica era mais 
universal do que a simples colonizas;ao e busca de riqueza dos 
portugueses, mas a tentativa de defender os indios da escravizas;ao 
fracassou justamente pela desestruturac;;ao social causada com a 
aculturas;ao. Na opiniao de Alfredo Bosi (1992: 75-81), "a alegoria 
foi o primeiro instrumento de uma arte para massas criada pelos 
17. Ass unto abordado em "Aspectos 'psicol6gicos' da conversao: demoniza~ao". 
18. Mas N6brega sabe, segundo Hansen, que os fndios tem leis. 0 que deseja e 
mo1dar o estatuto delas, que pressupoe serem legais, mas nao legftimas. 
Marcones
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Marcones
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52 FILIPE EDUARDO MOREAU 
intelectuais organicos da aculturas;ao". Segundo ele, "o didatismo 
aleg6rico rigido, autoritarlo" lev aria a "moral do terror das missoes". 
Carta 
A Companhia de Jesus foi cuidadosa no seu proprio registro, 
reunindo em 80 volumes a Monumenta Historia Societatis Jesu, 
da qual faz parte a Monumenta Brasilica, editada pelo Padre 
Serafim Leite. 
As cartas jesufticas do Brasil tinham como destinatario urn 
superior da Ordem em Portugal ou Roma, informando sobre a 
nova terra e as as;oes cotidianas dos missionarios. Atraves delas, o 
proprio Inacio de Loyola podia acompanhar e orientar a expansao 
da Ordem. Algumas foram vertidas para o latim e enviadas as 
missoes de outras partes do mundo (Alemanha, India, China), 
servindo de exemplo, estimulo, ou mesmo como prova de milagre. 
A primeira publicas;ao em Portugal e de 1551, as Cartas dos 
jesuitas do Oriente e do Brasil-1549-1551, tendo uma parte 
dedicada aos indios chamada Capias de unas cartas embiadas del 
Brasil, com depoimentos de Nobrega e outros (RAMINELLI, 1996: 51). 
Segundo Gambini (1988), elas eram de dois tipos: "de 
negocios" e "de edificas;ao", sendo apenas as ultimas copiadas e 
distribufdas, pois continham noticias dos indios e interessavam a 
urn publico maior. 
As cartas eram adequadas ao uso politico. Em 1553, Inacio 
de Loyola instruiu Nobrega para que os dois tipos nao se mis-
turassem. As cartas "publicaveis" deveriam trazer informas;oes 
completas sobre os seguintes topicos: dados estatisticos, descris;ao 
das casas missionarias, numero de leitos, vestuario, alimentas;ao, 
atividades, caraeterfsticas e mapa da regiao, clima, descris;ao e 
numero de gentio ou mouro (GAMBINI, 1988: 71). 
Os jesuftas tinham apres;o especial por cada carta recebida, 
o que se nota na constante insistencia por respostas. As poucas que 
chegavam (muito menos do que as enviadas, fazendo com que 
cada navio atracado causasse enorme ansiedade) davam consolo 
a solidao da perigosa empreitada no desconhecido. Elas eram lidas 
na h<;>ra da ceia, em voz alta, madrugada adentro. 
N a opiniao de Gam bini ( 1988: 1 02), as cartas pod em ser lidas 
"como se tivessem sido todas escritas por urn mesmo autor 
OS iNDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIETA 53 
indiferenciado", 19 uma vez que os missionarios deveriam ser como 
soldados e, assim, nao manifestar suas pr6prias ideias ou rea~5es 
pessoais: "a personalidade de via, no minimo, ser reprimida". 
As cartas retratam a vida cotidiana dos povos nativos, 
principalmente aldeados. Mas , ao contnirio do que ocorreu na 
Espanha, 20 elas nao suscitaram debates ou querelas em tomo da 
natureza do fn dio . A antropofagia, a idolatria e a nudez nao 
despertaram di scuss5es moralistas ou teol6gicas na metr6pole, a 
nao ser em raros momentos. 0 fato esta ligado ao pragmatismo 
lusitano de "conhecer os costumes [dos] indfgenas para melhor 
conquista-los" (RAMINELLI, 1996: 140-1). 
Nas palavras de Rarninelli, 
Os costumes ex6ticos niio passaram despercebidos, mas ga-
nhm·am uma abordagem superficial [afirma<;iio contestada por 
Hansen] . Na correspondencia entre os jesuftas, os amerindios 
eram denominados de barbaros, selvagens e demonfacos. Em 
Coimbra, sede da Companhia de Jesus, os sacerdotes limi-
tavam-se a conhecer os "vis costumes" e as atrocidades perpe-
tradas pelos futures cristiios. Nas cartas jesu!ticas, os desvios 
da fe jamais promoveram urn debate em tomo da viabilidade 
dacatequese entre os amerindios [idem] . Os conimbricenses nao 
refletiram, como em Espanha, sobre os conceitos empregados 
pelos missionaries; nem mesmo os princfpios da conquista 
foram amea<;ados. 0 Colegio da Companhia apenas constatava 
as desventu.ras na America. 
* * * 
Joao Adolfo Hansen (1993: 1-2), analisando os discursos das 
cartas mais pela "maneira" (forma) que pela "materia" (conteUdo), 
procura identificar os "atos da invenc;;ao" dos autores, bern como 
o "ethos aplicado [ ... ] como decoro estilfstico adequado a con-
19. Mas no

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