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I' , - ~ S E L 0 U N I V E R S I 0 A D E : os Indios i nas· ·cartas de· ~ - - . ' n6brega e arichieta FIUPE EDUARDO MOREAU Thayan Highlight Thayan Highlight Thayan Highlight Thayan Highlight ' ' - :.4 0 objeto oeste belo livro de Filipe Moreau e o Indio. Nao dirt;~tamente o indio empiri(;O do 111ato ou qualquer indio litenlrio, desses de Alencar, mas asrepresenta~oes que o efetuam nos textos de Pe. Manuel da Nobrega e Pe. Jose· .de Anchieta, jesuftas do sEkulo M. Sua leitura e uma experiencia de imagens de um ser extint~, o tupi do fitoral brasifeir0, COrA que OS jesuftas fizeram Cbntato no seculo M;- e, principalmente, uma experiencia das mo- des de pensar, aglr e representar dos padres que as -in- ventaram. Ou seja: neste livro nao ha indio, mas metafo- ras de indio,. como algo visto e interpretado pelos padres. E interessantissimo, porque as lmagens-informam {') lei~or, antes d~ tudo, sobre os padres. Ha muito a antropologla clemonstra que nao SO OS ditos "primitiVOS" sao objetOS bons de observar. 0 exotismo e uma invenifcio europeia e poucas coisas s-eiao tao estranhamente interessantes •· como Ufli padre jesufta do seculo XVI. ' · DartdG conta de varias interpreta<;oes reladonadas ao tema "indio" dessas imagens, o !ivro __ de Filipe ordena as representa<;oes como t6picos de um glossarlo. 0 "indio" naa preexiste ans discursos em que aparece como imagem, por isso Fllipe o compoe como um objet'o caleidoscopico, que vai sendo construido com os t6picos, e,nquanto a· leitura avan!;a. E como comenta as imagens com t~xtos c:ontemporaneos delas e tarnbem recorre a . interpreta<;oos de historiadores e antropologos do seculo XX, o livro tern: carater de compendia: lendo-o sequen- cialmente ou procu-rando t6picos espedficos, o leiter tern em maos um trabalht> minuciose e animado f)Or uma generosidade rara. da apresenta<;ao-de ]OAO ADOLFO HA!NSEN ISBN 85-7419-385-2 ll tl ·ll . t7 8 8 5 7 4 1 9 3 8 5 4 -· . i Fll.lPE EDuARDO MoREAU _/ Os INDios NAS CARTAS DE N6BREGAE ANCHIETA Servi~o de Biblioteca e Documenta~ao da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sao Paulo M837 Moreau, Filipe Eduardo Os indios nas cartas de N6brega e Anchieta - Filipe Eduardo Moreau - Sao Paulo: Annablume, 2003. 356 p. ; 11,5 x 20 em Originalmente apresentada como Disserta~ao (Mestra- do- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sao Paulo, 1997). ISBN 85-7419-385-2 1. Cartas Brasileiras (Literatura) 2. Hist6ria do Brasil - Sociedade (Jesuftas) 3. Manuel da Nobrega (1517-1570) 4. Jose de Anchieta (1534-1597) I. Tftu1o CDD 869.962 981.6 OS INDIOS NAS CARrAS DE N6BREGAEANCHIETA Coordenap'io editorial Joaquim Antonio Pereira Prodw;:ao Maria Eugenia Regis- prepara~ao C. Minsk - paginas;ao Supervisao Celso Cruz & Regina A. Coelho CONSELHO EDITORIAL Eduardo Peiiuela Caiiizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Gilberto Mendons;a Teles Maria de Lourdes Sekeff Cecilia de Almeida Salles Pedro Jacobi Gilberto Pinheiro Passos Eduardo Alcantara de Vasconcellos 1' edi~;ao: novembro de 2003 © Filipe Eduardo Moreau ANNABLUME editora . comunicas;ao Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100. Sao Paulo. SP. Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 http://www.annab1ume.com.br AGRADECIMENTOS Aos professores Hansen (orientador), Vicentina e Ina (banca), Bosi (que apresentou o tema, incentivando estudos), Brandao, Me- gale, Gallois, Wisnik, Paula, Adelia, Marcia, Flavio e outros, que tiveram grande importancia na rninha formas;ao. A Alain, Ana e Daniela, que me indicaram outras leituras. Aos demais farniliares, colegas e arnigos, pelo enorme apoio e afeto. [. .. ]Deus entendeu de dar a primazia Pro bern, pro mal, primeira mii.o na Bahia Primeira missa, primeiro [ndio abatido tambem Que Deus deu [. .. ] Gilberto Gil SUMARIO APRESENTA<;Ao 13 INTRODU<;Ao 23 CAPITULO I-ASPECTOS LITEAARIOS E HISTORICOS 35 GENEROS UTILIZADOS PELOS AUTORES 37 Dialogo 37 Poesia 43 Auto 46 CMm 52 Texto hist6rico, sermao, gramatica 57 AUTORESCONTEMFORANEOS 63 Caminha 64 Gandavo 68 Soares de Sousa 70 Cardim 71 INDIOS E PORTUGUESES 72 Povos tupi-guaranis 73 "Tapuias" 77 Conquista (seculo XVI) 80 CAPITULO II- OBSERV A<;AO DE "COSTUMES DEPRA V ADOS" 87 PRA TICAS CORPORAlS 90 Nudez 90 Poligamia 101 PRATICAS SIMBOLICAS 112 Ausencia de idolatria e religiao 112 Costumes ligados a cren~as 122 "Supersti\(5es" 128 Pajes e kara1ba 130 Rito antropofagico 139 OUTRASPRATICAS 172 Deslocamentos 172 Inconstancia 17 5 CAPITULOill-A«;AOJESUITICA 181 ESTRATEGIASDACATEQUESE 184 Inclina\(5es favoraveis versus inaptidoes dos indios 184 Conversao de chefes 189 Doutrina9ao de meninos 191 Elimina\(ao de "feiticeiros" 199 ALDEAMENTOS 204 Indices 208 Rotina 210 Conversao pacifica versus sujei9ao 212 Resultados 226 ASPECTOS "PSICOL6GICOS" DA CONVERSAO 231 "Crucifica9ao" dos indios 23 1 Proje~oes 238 Votos jesuiticos 242 "Demonizayao" 259 Obscurantismos 265 CAPITULO IV - CONFLITO LUSO-INDIGENA 273 ESCRA VIZA<;Ao 275 Questoes filosj,ficas 27 5 Questoes pniticas 308 DOEN<;AS 321 ABUSOS 325 GUERRAS, LEV ANTES, MASSACRES 327 DESPOVOAMENTO 336 RESISTENCIA 341 CONCLUSAO 345 BIBLIOGRAFIA 349 APRESENTA{,;AO IMAGENS DE MISSIONARIOS JESUITAS NOS TEXTOS DE NOBREGA E ANCHIETA 0 objeto deste belo livro de Filipe Moreau e o fndio. Nao diretamente o indio empfrico do mato ou qualquer indio liten1rio, desses de Alencar, mas as representa<;:6es que o efetuam nos textos de Pe. Manuel da Nobrega e Pe. Jose de Anchieta,jesuftas do seculo XVI. Sua leitura e uma experiencia de imagens de urn ser extinto, o tupi do literal brasileiro, com que os jesuftas fizeram contato no seculo XVI; e, principalmente, uma experiencia dos modos de pensar, agir e representar dos padres que as inventaram. Ou seja: neste livro nao ha Indio, mas metaforas de indio, como algo visto e interpretado pelos padres. E interessantfssimo, porque as imagens informam o leitor, antes de tudo, sabre os padres. Ha muito a antro- pologia demonstra que nao SO OS ditos "primitives" Sao objetos bons de observar. 0 exotismo e uma inven<;:ao europeia e poucas coisas serao tao estranhamente interessante& como urn padre jesufta do seculo XVI. Dando conta de varias interpreta<;:6es relacionadas ao tema ":indio" dessas imagens, o livro de Filipe ordena as representa<;:oes como t6picos de urn glossario. 0 "indio" nao preexiste aos discur- sos em que aparece como imagem, por isso Filipe o comp6e como urn objeto caleidosc6pico, que vai sendo construfdo com os t6pi- cos, enquanto a leitura avan<;:a. E como cementa as imagens com textos contemporiineos delas e tambem recorre a interpretag5es de historiadores e antrop6logos do seculo XX, o livro tern carater de compendia: lendo-o seqiiencialmente ou procurando t6picos espe- cificos, o leitor tern em maos urn trabalho minucioso e animado por uma generosidade rara. Marcones Highlight 14 FJLIPE EDUARDO MOREAU - Como o leitor sabe, nao havia "o indio" antes da invasao espanhola e portuguesa das terras que se chamaram America. 0 termo resulta de urn engano de Cristovao Colombo, que calculou mal a circunferencia do planeta e pensou estar chegando a India, quando viu pela primeira vez, em 1492, os seres hinnanos que habitavam o Caribe. Nao eram brancos e a cor induziu o nave- gante a ~ensar por semelhan~a, como era proprio do seu tempo, crendo que eram indianos e hindus. Inicialmente, o termo "indio" foi classificatorio; em pouco tempo, significou uma essencia,"o indio", como se hur6es, algon- quins, sioux, hopis, astecas, maias, canhares, incas, chibchas, guaicurus, tupis e tapuias fossem urn mesmo corpo. E, simulta- neamente, o indio assim inventado foi uma quesUio teol6gico- polftica. E gente? Tern alma? Conhece Deus, deuses? Sem Fe, sem Lei, sem Rei? Carninhaja havia escrito, na Carta de 1500, que a gente nua na praia do Monte Pascoal era quem sabe uns cabritos monteses, talvez pardais no cevadouro e certamente gente bestial. Em 1537, a Igreja Cat6lica interessada em combater Lutero deere- tau a humanidade dos cabritos, proibindo escravizar occidentales et meridionales lndos. Como homem do Papa, Nobrega repetiria a autoridade da bula, no Dialogo da conversiio do gentio, de 1556, afirmando que e gente como qualquer, pois tern memoria, vontade e inteligencia, mais as limita~6es da condi~ao humana que para ele, padre, era uma natureza. Quando escreveu o Dialogo, fazia tempo que o indio tambem era objeto da preda~ao econornica e problema rnilitar. Escravo p.or natureza? Selvagem? Gente sem historia? Barbaro? Quando e justa a guerra contra essa natureza vegetal sufocando as plantas boas da vinha do Senhor? Pois em 1570 Pero de Magalhaes Gandavo convidava ao genoddio, afirmando em seu Tratado da Terra df!, Brasil que nao se podia numerar ·nem compreender a multidao de barbaro gentio que a natureza semeou pela terra do Brasil. Com Foucault, podia-se inverter a formula com que Carl von Clausewitz definiu a guerra - continua9iio, por outros meios, da polftica do tempo de paz - para propor que a polftica portuguesa que em 1549 envia os primeiros rnissionarios chefiados por Nobrega para fabricar almas cat6licas para o Papa & o Rei, assim como a politica espanhola na mesma epoca no Rio da Prata, n:o Peru, no Caribe e na Nova Espanha, sao a guerra em Marcones Highlight Marcones Highlight OS 1:NDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIETA 15 tempos de paz. 1 E, com a inversao, propor que a doutrina do Direito aplicada no seculo XVI a discussao da natureza do Indio pelos missionarios jesuftas, cronistas portugueses, viajantes franceses, juristas e te6logos cat6licos, luteranos e calvinistas, que o constituem como "selvagem" ou homem sem hist6ria, s6 aparentemente e urn princfpio e urn limite pacfficos que especificam o legale o legftimo das medidas adotadas. Ou seja: politicamente, e mais eficaz pensar que o Direito tambem e urn instrumento de sujeic;ao quando estabelece a legalidade e a legitimidade das medidas. E certo que em muitas situac;oes particulares o Direito efetivamente serviu a defesa dos Indios. Basta lembrar a ac;ao de alguns homens admiraveis, que defenderam a liberdade deles contra a sanha colonialista, como Bartolome de Las Casas eManuel da N6brega, no seculo XVI, e AntOnio Vieira, no XVII. Mas, ainda assim, o mesmo Direito invocado por esses homens poe em pratica mecanismos de sujeic;ao. E isso porque as discussoes quinhentistas sobre os Indios e as medidas adotadas quanto a eles nao sao antropol6gicas, mas teol6gicas. No seculo XVI, Deus e o fundamento metafisico do Direito que regula a invasao e a conquista das novas terras. E isso e tudo: e porque Deus existe que tudo e permitido. Por outras palavras, para OS missionarios jesuitas e impensado e impensavel 0 pensamento materialista que elimina o fundamento divino da hist6ria. Esse pensamento tambem e o pressuposto do relativismo cultural instaurado pelo lluminismo desde o seculo XVIll. Os textos dos jesuftas onde Filipe rastreia pacientemente imagens de indio nao as inventam segundo o pressuposto que a antropologia chamou de "pensamento selvagem", ou seja, segundo as pr6prias razoes da razao selvagem, que necessariamente implicam a relativizac;ao e a critica das razoes do observador. A universalidade alegada da religiao crista na base do Direito que entao e aplicado inclui e domina a priori todas as razoes da razao selvagem, classificando- as como falta de Bern, abominac;ao e pecado, para os quais o padre fomece seu suplemento de alma. Em todos os casos levantados por 1. Foucault, MicheL Il faut defendre Ia societe.Cours au College de France (1975-1976). Dir. de Fran~ois Ewald e Alessandro Fontana. Paris, Seuil/ Gallimard, 1997, p. 24. Marcones Highlight Marcones Highlight Marcones Highlight Marcones Highlight Marcones Highlight 16 FILIPE EDUARDO MOREAU Filipe nos textos de Nobrega e Anchieta, sempre se trata de urn modo de pensar e agir fundamentado metafisicamente como analo- gia escohistica, ou seja, urn modo de pensar e agir que estabelece rela<;:6es de semelhan<;:a entre as pr:iticas selvagens e o principia metafisico cristao que o regula como universalidade. 0 Deus cat6lico e 0 principia doutrinario que da sentido a a<;:ao dos padres e, simultaneamente, o limite teorico deJa: eles pensam e agem em Deus e a partir de Deus, nunca sem Deus ou fota 'de Deus. Por outras palavras, nao ha, no caso de Nobrega e Anchieta, nenhuma imagem de indio que nao seja teologicamente determinada pela universalidade do Deus de Roma. Tanto a legalidade quanta a ilegalidade das medidas adotadas pela Coroa, pelos padres e pelos colonos pressupoem a universalidade desse Deus. Ainda na versao aparentemente mais branda sobre o indio, a dos textos desses jesuitas que reconhecem e defendem a humanidade dos povos invadidos, a mesma humanidade nao e entendida como diferen9a cultural, mas como identidade de uma 'mesma substiincia espiritual criada por Deus, a alma, comum' a todos os homens. Roma afirma que a alma participa na substiincia metafisica de Deus como urn efeito criado e urn signo reflexo dela; por isso, a alma e o micleo teorico, digamos assim, das classifica<;:5es quinhentistas do indio ou como "animal" ou como "homem". A atribui91io ou a produ91io de urria alma para ele, como ocorre nas pn'iticas de Nobrega e Anchieta, pressup5e logicamente que e urn "proximo", como no mandamento biblico "Amar o proximo". Mas.. urn proximo metaffsica e politicamente distancia- dissimo da lei etema de Deus, pois de alma bronca, emporcalhada e corrompida pela bestialidade dos seus pecados. E preciso salva- la, aflrmam OS padres, fomecendo-lhe a memoria do Bern que OS selvagens esquece_rpn. Essa caridade cat6lica, que tern a teologia- politica portuguesa como fundamento e limite, significa seu fim, como a "destribaliza"ao" acusada por Florestan Fernandes. 2 Como lembrava urn antrop6logo, a critica moral e prisio- neira inconsciente da mesma moral religiosa que ela responsabiliza 2. Fernandes, Florestan - "Antecedentes indfgenas: organizas;ao social das tribos tupis". In Holanda, Sergio Buarque de (Dir. e introd. geral). A Epoca Colonia! I. Do Descobrimento a Expansao Territorial. 6 ed. Sao Paulo/Rio de Janeiro, DIFEL, 1981 (Hist6ria Geral da Civiliza\;ao Brasileira, t. I, v. 1). Marcones Highlight Marcones Highlight Marcones Highlight OS INDIOS NAS CARThS DE N6BREGA E ANCHIETA 17 por ter escravizado e dizimado os indios. 3 Culpar os agentes hist6ricos da Conquista por nao terem tido o discernimento que a consciencia democratica acredita ter universaliza retrospectiva- mente a particularidade dos criterios de julgamento. Por isso, e politicamente mais eficaz lembrar as pniticas guerreiras dos padres e colonos. A legitimidade da "guerra justa" contra os birbaros do Brasil tarnbem pressupoe Deus. No seculo XVI, a "guerra justa" e doutri- nada reciclando-se t6picas medievais do Direito Canonico. Ela e definida como situac;:ao de excec;:ao relativamente a centralidade do poder da Coroa, que e definido pelos padres colonizadores como natural, legftimo e pacffico, porque o pacto de sujeis;ao que o esta- belece esta fundado na metaffsica crista. A caracterizas;ao da "guerra justa" como situac;:ao de exces;ao encobre o fato de que o propriopoder central, que se afirma natural, legftimo e padfico, e poder de exces;ao, porque nao hi nenhum poder naturalmente institufdo. 4 A polftica da monarquia portuguesa do seculo XVI e defini- da, contudo, como arte crista que mantem a unidade e a segurans;a do reino contra inimigos internos e externos. Contra a hip6tese maquiavelica de que 0 poder e urn artiffcio que dispensa a etica crista para triunfar nas competis;6es da cidade, a doutrina cat6lica adapta t6picas do Velho e Novo Testamentos a redefinis;ao da polftica no novo estado de coisas decorrente das chamadas Desco- bertas e da Reforma protestante.A partir de 1517, data das teses logo declaradas hereticas de Lutero, as vers6es cat6licas do poder reafirmam que s6 e legftimo quando a normalidade que institui e uma evidencia da presens;a da luz natural da Gras;a nas leis posi- tivas feitas pelos homens. Essa mesma normalidade tambem e de exces,:ao, porem, quando se pensa nos processos que a estabelecem como concordia e paz do "bern comum" dos reinos governados por prfncipes cat6licos, como e o caso de Portugal. A doutrina reafirma a etica medieval como espelho ou modelo da ac;:ao dos 3. Neves, Lufs Felipe Baeta. 0 Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios. Colonialismo e Repressao Cultural. Rio de Janeiro, Forense Universitaria, 1978, p. 17. 4. Foucault, Michel. Idem, ibidem. - 18 FILIPE EDUARDO MOREAU prfncipes.5 Visando a unidade e a seguraw;:a do reino, ela pressup5e a necessidade da concordia de cada urn consigo mesmo, o que em teoria se obtem pelo auto-controle dos apetites prescrito pela etica aristotelica entao relida em chave neo-escolastica. A concordia individual significa, conforme a doutrina, a amizade de todos os indivfduos entre si, como concordia de todos os mem- bros do corpo politico do Estado. Da conc6rdia nasce a paz e, para garanti-la, a Coroa aplica varias especies de medidas baseadas no monop6lio da violencia fiscal, judiciiria e militar; no combate as heresias; na censura intelectual; nos castigos exemplares, a«oites, fogueira, forca, cutelo, gales, garrote vil e degredo. 0 "bern co- mum" dessa paz e definido como o estado de equilibria dos interesses e conflitos particulares obtido pela subordina9ao volun- taria do todo do corpo mfstico da comunidade a cabe<;a do reino, o rei, num pacto de sujei9ao pelo qual a comunidade se aliena do poder. Ao abrir mao dos direitos, declarando-se sUditos ou subor- dinados, os indivfduos recebem os privilegios, que os hierarquizam. A hierarquia desce da cabe~a principal ate as plantas dos pes escravos e, nela, os indios sao livres para se integrarem como membros subordinados, pois a liberdade e entendida como subor- dina~ao a cabe~a mandante. Contra os que nao aceitam a integra- 9ao faz-se a "guerra justa". Com Foucault, pode-se afirmar que o fato realmente brutal da invasao e da ocupa~ao dos territorios habitados pelos povos classificados como "indios", "selvagens" e "birbaros", invasao e conquista seinpre acompanhadas dos massacres e das atrocidades praticados pelos espanhois e portugueses em todas as partes onde estiveram, antecede l6gica e cronologicamente toda e qualquer 5. Jean-Fran~ois Courtine demonstrou que os conflitos politicos que opoem os Estados europe~s no seculo XVI e infcio do XVII sao formulados como oposit;:5es de teologia contra teologia. Com Kantorowicz, propoe que: "Sous l' autorite du pape en tant que princeps et verus imperator. l'appareil hierarchique de l ' Eglise romaine ... mantra une tendance a devenir le prototype parfait d'une monarchie absolue et rationnelle sur une base mystique, landis que simultanement, l'Etat manifesta de plus en plus une tendance a devenir une quasi Eglise et, a bien des egards, une monarchie mystique sur une base rationnelle'". Cf. Courtine, Jean-Fran~ois. "L'heritage scolastique dans Ia problematique theologico-politique de l' Age Classique"'. Io Mechoulan, Henry (Dir.). L'Etat Baroque 1610-1652. Regards surla pensee politique de Ia Prance du premier XVIIe siecle. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1985, p. 109-10. Marcones Highlight Ou seja, os fins justificam os meios para essa "PAZ". Marcones Highlight Marcones Highlight Marcones Highlight OS iNDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 19 discussao juridica sobre a natureza deles, a legalidade e a legitimi- dade da escraviza~;ae deles, ou a "guerra justa" contra eles. Os tex- tos de Vitoria, Molina, Oviedo, Acosta, Gomara, Las Casas, Sepul- veda, na area espanhola, e de Nobrega, Anchieta, Cardim e Vieira, na portuguesa, adaptam-se objetivamente aos acontecimentos, ou seja, sao produzidos pelos acontecimentos ou com a media~;ao dos acontecimentos, nao importa a inten~;ao particular muitas vezes admiravelmente justa de homens como Las Casas e Nobrega. Assim, como fica evidente no livro de Filipe, as imagens e as defini~;oes de indio feitas pelos padres tern necessariarnente que tarnbem incluir como determina~;ao do seu sentido o dado brutal- mente objetivo da invasao. 0 leitor vera que muitas imagens de indio feitas por Nobrega e Anchieta pretendem regular o direito de guerra contra ele, especificando as condi~;oes em que seria "guerra justa" ou situa~;ao de exce~;ao. Mas as imagens sao, objetivamente, uma teoria da guerra aplicada como politica cat6lica da monarquia portuguesa na conquista territorial, na captura de mao-de-obra escrava e na competi~;ao comercial, religiosa e poli- tica com potencias europeias, como a Franca e a Espanha. Os textos analisados por Filipe evidenciarn que a carencia do Bern catolico produzida quando o padre e sua verdade universal inventarn uma alma para o corpo classificado, no ato, como "gen- tio'', "inconstante", "selvagem" e "barbaro", e suplementada no seculo XVI por duas especies de interven~;ao. Ambas sao violen- tfssimas pelo mero fato de serem intervencoes, embora se pudesse pensar que tern violencias de especies e intensidades diversas. Genericarnente, a interven~;ao dos que afirmam que o indio e urn "cao", urn "porco", urn "barbaro" e urn "escravo por natureza", propondo o exterminio e a escravidao; e a intervem;:ao dos que defendem que e "humano", mas "selvagem", e que deve ser salvo para Deus por meio da verdadeira fe que o integra como subor- dinado, escravo ou plebeu, ao corpo mistico do reino portugues. Os textos de Nobrega e Anchieta fazem urn mapeamento exaustivarnente descritivo das praticas indfgenas, ao qual associarn prescri~;oes teologico-politicas que interpretam as imagens com o sentido providencialista da historia que faz de Portugal a na~;ao elei- ta por Deus para difundir a verdadeira fe. Quando classificarn seu objeto com as metaforas "animal", "gentio", "indio", "selvagem" e "barbaro", evidenciam a positivi dade prescritiva da uni- Marcones Highlight Marcones Highlight 20 l<TIJPE EDUARDO MOREAU versalidade de "nao-indio", ou seja, a positividade de "civilizado", que e europeu, portugues, branco, macho, fidalgo, cat6lico e letrado. Obviamente, como disse, nao havia "indio" nem "indios" nas terras invadidas pelos portugueses, mas povos nomades, nao- cristaos e sem Estado. No seculo XVI, quando sao classificados pelos colonizadores como "selvagens" ou "homens da natureza", tambem sao caracterizados como gente sem hist6ria. Em decor- rencia, sao constitufdos como urn campo aberto para as inter- ven<;:5es civilizadoras. Como Nobrega escreve em carta de 10/8/ 1549: "Acd pocas tetras bastan, porque es todo papel blanco ... ".6 No seculo XVI, como 0 leitor led., foi Corrente 0 lugar-comum: a lingua geral falada na costa do Brasil nao tern os fonemas F, L e R. Sem Fe, sem Lei e sem Rei, o selvagem nao conhece a reve- la<;:ao da verdadeira Igreja, nem a racionalidade das leis do Imperio portugues, nem o born govemo da monarquia crista.E como o "barbaro" s6 existe diferencialmente, pois , para que exista, e preciso haver uma civiliza~ao precedente ou contemporanea que ele destruiu ou tenta destruir,7 nos textos de Nobrega e Anchieta sao barbaros os aimores do sertao e os caetes do Nordeste e os tarnoios do Rio e os tupinambas de llheus e outros que resistem a civilizas;ao portuguesa. Ao contrario dos selvagens pacfficos ou ja pacificados do litoral, os barbaros a atacam constantemente, aterrorizando os engenhos e as vilas com sua liberdade feroz. ovamente, como e a paz do "bern comum" que define a finali- dade da colonizas;~o do Brasil alegada pela Coroa, a guerra contra OS barbaros e justa. Nas imagens da politica cat6lica portuguesa que Filipe estu- da, as taticas e as estrategias adotadas na redm,;ao e na destrui<;:ao deles sao definidas como um direito e urn dever, pois a subordi- nas;ao dos selvagenssignifica caridade para com os indivfduos trazidos para a verdadeira fe. E a extiw,;ao dos barbaros e amor do "bern comum" do corpo mfstico do reino. Assim, como Filipe demonstra, as iruagens da propaganda fidei jesuftica determinam que a alma do indio deve ser salva do Inferno por meio da conversao. 6. N6hrega S. J ., Pe. Manuel da. In Leite S. J., Serafim. Cartas dos Primeiros Jesufta$·Jlo Brasil. Sao Paulo, Comissao do IV Centenano da Cidade de Sao Paulo, 1954, 3 v., v. I, p. 142. 7. Foucault, M. Op. cit., p. 174-175. Marcones Highlight OS INDIOS NAS CARThS DE NOBREGA E ANCHIETA 21 Passado o entusiasmo inicial, Nobrega decide, por volta de 1556, que e imperioso obriga-la a ser salva: e preferivel que 0 fndio seja cativo, mas com a alma salva, a que viva a liberdade natural do mato com ela condenada ao Inferno. Nas imagens das praticas salvadoras de Nobrega e de Anchieta, o leitor encontrara, justificando as interven~6es, a afirma~ao reiterada de que a lei positiva das sociedades indfgenas e legal, como conven~ao hum ana que regula a vida coletiva, pois o Direito Canonico estabelece que as sociedades humanas nao dependem da Revela~ao crista para se institufrem politicamente. Mas o fato de estarem deturpadas pelas "abomina~6es" - antropofagia, nudez, poligamia, nomadismo, guerra por vingan~a - evidencia a ilegitimidade dessa legalidade corrompida pela a~ao do Diabo. E dever reduzi-las a primeira ver- dade perdida ou talvez esquecida, a Palavra de Deus, legitimando- se a participa~ao hierarquizada do indio na divindade por meio dos sacramentos catolicos, como o batismo, que a tomam visfvel. Como o leitor sabe, a coisa nao terminou com Nobrega ou Anchieta. Por exemplo, em 1657, numa carta enviada do Estado do Maranhao e Grao Para ao rei D. Afonso VI, de Portugal, Vieira escreveu que, nos quarenta anos anteriores, os portugueses haviam matado dois milh6es de indios na Amazonia. 0 maior horror, segundo ele, era pensar que tantas almas postas sob a jurisdi~ao de urn reino cuja missao era expandir a fe catolica tinham morrido sem batismo e ardiam para sempre no Inferno.8 JOAO ADOLFO HANSEN 8. Vieira S. J., Pe. Ant6nio. "Carta LXXVII. Ao Rei D. Afonso VI. 1657- Abril 20". In Azevedo, Joao Lucio de. Cartas do Padre Antonio Vieira. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, 3 t., t. 1, p. 468: "As injustiqas e tiranias, que se tern executado nos naturais destas terras, excedem muito as que se fizeram na Africa. Em espaqo de quarenta anos se mataram e se destruiram por esta costa e sertoes mais de dois milhOes de indios, e mais de quinhentas povoa<;5es como grandes cidades, e disto nunca se viu castigo". Marcones Highlight Marcones Highlight INTRODU<;AO A cultura letrada no Brasil teve infcio no seculo XVI, com os inumeros depoimentos, em diferentes linguas, que se seguiram a carta de Caminha. Na virada para o seculo seguinte, ja se contava com volumosos tratados reunindo informal{5es sobre a natureza da regiao, os povos nativos, a colonizal(ao e seus conflitos. A primeira obra de fic\{ao foi escrita nos anos de 1556-7, com o nome Dialogo do Padre Nobrega sabre a conversiio do gentio. E tambem da segunda metade do seculo toda a ampla colel(iiO de poesia e autos do padre Jose de Anchieta. Em comum, dois jesuftas: junto com outros (cerca de cern, no primeiro seculo), vieram a America portuguesa ensinar o catolicismo aos povos recem-contatados. Em comum, a tematica do indio: o evento maior do inicio da nossa hist6ria e o confronto entre os povos invasores e os naturais da terra, cada qual com costumes e conhecimentos desenvolvidos de forma independente por milhares de anos. 0 Dialogo do Padre Nobrega ... destaca-se pela discussao sobre a natureza dos indios: a aptidao e os metodos mais adequados para que recebessem a doutrina. Ui em praticamente toda a produl(ao poetica e dram:itica de Anchieta, 0 indio e 0 proprio interlocutor, dentro do objetivo pratico de ser persuadido a fe. Este livro nao pretende aprofundar an:ilises sabre tais obras, mas mostrar o contexto em que foram produzidas. Investigando a relal(ao entre invasor e dominado, procura relacionar os componentes reais e fmjados da irnagem que os autores constitufram do chamado "indio" (no singular). 0 principal instrumento de referencia sao as cartas dos dois jesuftas. Delas se extraem inumeros aspectos sociais e hist6ricos da colonizal{ao: a chegada, o ideal da Companhia de Jesus, seu desempenho de agente colonizador (ligado a expansao do catolicismo ap6s a Contra-Reforma), as 24 FILIPE EDUARDO MOREAU "chagas" da ColOnia, os aldeamentos, as guerras contra os indios e sua escraviza~ao. As informa~oes das cartas de Nobrega e Anchieta aparecem aqui agrupadas por trechos, seguindo uma ordem tematica pre- viamente escolhida, procurando-se explicar, no caso de surgirem contradi~oes, os diferentes contextos. Essa ordem, diga-se, nao poderia ser de todo coerente, porque a interliga~ao dos assuntos torna inevitaveis as sobreposic;oes. No primeiro capitulo, comentamos a ampla produc;ao letrada dos dais jesuftas, fazendo tam bern referencia a autores importantes da epoca.l Por nao ser este o foco maior de interesse (mas a "contextualiza~ao" dessa produ~ao), restringimo-nos a amilises superficiais da obra ficticia - ou a sua citac;ao pura simples, como e o caso da gramatica tupi de Anchieta - que servem para ilustrar como foram concebidas as observa~5es das cartas. Sao tambem abordados os modemos conhecimentos sobre a organiza~ao social dos tupi-guaranis, com base em pesquisas feitas em outras areas (lingliistica, hist6ria, ciencias sociais) . No segundo capitulo, passamos pelos costumes indfgenas mais rejeitados (e por isso tao notados pelos europeus em geral), procurando avaliar os criterios da observa~;ao. Ao confrontar os depoimentos, buscamos separar realidade e tecnica narrativa (que inclui julgamento moral) , para contextualiza-los numa "cultura indfgena". Como fizemos em todo o livro, recorremos aqui a autores como Alfred Metraux, Florestan Fernandes, Viveiros de Castro e outros. No capitulo seguinte, o foco vai para os relatos de Nobrega e Anchieta sabre pnitica de conversao, para o desenrolar do projeto de aldeamentos e para a rea<;:ao dos indios, buscando-se investigar, tambem com base em autores modernos (havendo 0 risco de anacronismos ), uma "ideologia jesuftica". No capitulo final, os relatos de ambos os jesuitas servem para tra<;ar urn roteiro hist6rico da tragedia vi vida pelos povos nativos desde a colonizat;ao. 1. A op~;ao por ressaltar Nobrega e Anchieta se deveu a qualidade superior de seus textos, de rnaior importilncia em nossa literatura. OS !NDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIEfA 25 * * * Nobrega e Anchieta foram responsaveis por ampla docu- mentas:ao sabre o Brasil do seculo XVI. Suas anotas:oes sobre os indios se inserem nos balan(fos sobre a conversaoe a coloniza(faO (no que esta diz respeito aquela). Ah~m das caracterfsticas particu- Iares dos povos nativos, esses jesuftas observaram o relacionamento entre eles e os colonos e entre eles e os padres. De seus muitos escritos se extrai toda uma a9ao polftica dos jesuftas, e tambem, de textos como o Dialogo ... , profundas reflex6es sobre a condi(faO humana. Pretendemos aqui passar parte das impress6es que os dois autores tiveram dos indios, podendo-se adiantar que sao muito proximas, pela propria forma9ao que tiveram. Como todos os textos da epoca (o que inclui o de Carninha, escrivao de armada), sao discursos proferidos por agentes da a9ao colonizadora. Do presente, e possfveJ apontar diferentes interpreta(fOeS para OS fatoS. Em geral, os depoimentos do seculo XVI possuem urn elevado grau de etnocentrismo,2 0 que leva a nao preocupavao com a complexidade (e com a alteridade) cultural dos povos indfgenas. Os europeus construfram a imagem dos indios a sombra de sua propria cultura, selecionando informa96es e deixando de acreditar em eventos contr:irios a 16gica que procuravam impor. Na opiniao de Alfredo Bosi (1992: 31-46), a cultura letrada, mesmo presa a modelos chissicos e medievais de descrivao, foi "em face do indio, [ ... ] estimulada, para nao dizer constrangida, a inventar". Isso nao quer dizer que se tenha distanciado do seu peso emocentrico para ver os indios, mas que a representa9ao do "novo" exigiu diferentes combinav6es do "velho". No caso dos jesuftas, os indios foram coadjuvantes de urn evento maior: o momento inedito e grandioso da inquestionavel ~ssao. Mais do que apontar contradi96es das ideias, a este livro interessa avaliar se ha relavao entre elas e a realidade que hoje ,;vemos - qual seja, a quase total extin9ao dos diversos povos que _ Que, segundo Alfred Metraux (1989: 33), s6 teria diminuido no Ocidente a partir do seculo XX, com os avans:os da antropologia social. 26 FillPE EDUARDO MOREAU antes habitavam a costa (o que traz a consciencia o fato de vivermos numa civilizayao erguida sobre os escombros de outra). A quase extins;ao dos fndios foi causada, alem de por massacres e doens;as, par urn fenomeno que ainda marca a historia dos grupos sobreviventes: a aculturayao. Ja no seculo XVI, ela minava a capacidade de autonomia dos povos indfgenas, e talvez ate o XVIII os jesuftas tenham sido seus maiores responsaveis. Segundo Bosi (1992), a acultura<;ao e "o tema por exceH~ncia da antropologia colonial". 0 termo em si satisfaz a poucos te6ricos, preferindo alguns substituf-lo por "desculturas;ao" (Ronalda Vainfas), "de-cultura<;ao" (Baeta Neves), "ocidentaliza<;ao" (Serge Gruzinski) ou mesmo "destrui9ao cultural" (Roberto Garnbini) . Mas vale lembrar que poucos antropologos aceitam hoje a no«;:ao de "pureza" cultural, ou que urn grupo original deva ser mantido pelo isolamento (e, segundo Levi-Strauss, nao ha cultura isolada). Antes dos portugueses e dos espanhois, muitas culturas da America se impuseram a outras, mesmo que de forma menos violenta (provavelmente por uma questao tecnol6gica) . * * * Este livro pode apresentar erros de ordem metodologica: saltos bruscos de uma amilise cuidadosa para o questionarnento de determinada informa«;:ao (ou concep91io) jesuftica, ou para ponderas;5es acerca da interpretas;ao modema; falhas de'referencia informativa (como-a resistencia de Lisboa a ideia de Nobrega sobre urn clero indfgena, no comentario de Gambini sobre o batismo de Indios nus). A tematica, por sua vez, e simples: a questao humana no infcio de nossa Hist6ria; a documenta9ao sobre os indios feita pelos que hoje chamamos de literatos da epoca; a imagem projetada, a questao do etnocentrismo. Nada disso e novo: hoje sabemos que os povos indigenas foram as maiores vftimas do processo historico, Se o tema foi desenvolvido por Florestan Fernandes na decada de 50, tam bern o foi por Las Casas no seculo XVI e, cada qual a seu modo, por Nobrega e Anchieta. De forma panoramica- na expressao de Umberto Eco - , este livro procura relacionar e organizar as informag5es dos autores, nao havendo defesa inexonivel de uma ideia (mesmo que isso as Marcones Highlight Marcones Highlight OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHlliTA 27 vezes pare9a, ao tomar emprestadas algumas teses para argumen- ta96es pontuais), ~as sim quest5es e comentarios, muitas vezes originais, acerca da documenta9ao referida. Tambem e reconhecida a falha de uma aparente concordancia geral com os te6ricos mais citados. Formaram-se verdadeiros "campos gravitacionais" em tomo de uma ecletica bibliografia, o que, pelo sabor mesmo de "deglutir" tamanha informa~tao, acabou prejudicando a linearidade do texto central (por exemplo, a inclusao do debate filos6fico na Europa em tomo da escraviza<;ao, que teve maior importancia numa primeira etapa, de aproxima~tao ao tema). Longe de se considerar aprofundado , o livro nao responde a uma pergunta-chave, sondada nos textos: a atuas;ao jesuitica favoreceu em alguma coisa aos indios? Numa resposta imediata, dir-se-ia que nao. Se a chegada dos europeus fosse mais declara- damente uma invasao, e pelo desconhecimento que os indios ti- nham de taticas militares complexas e do uso da p6lvora, a unica ops;ao seria a fuga para o interior, onde o processo de exterminio talvez fosse mais Iento (mesmo hoje o interior nao foi totalmente devastado). Assim, os indios nao ficariam tao expostos a doen9as e a escravizas;ao (a tentativa do uso da mao-de-obra indigena ocorreria com ou sem a presenc,:a dos jesuitas, perrnitindo a sobre- vivencia instavel de alguns grupos, precariamente agregados a civilizac,:ao dominadora). No terceiro capitulo , os aspectos "psicol6gicos" (que poderiam ser "sociol6gicos", ou "simb6licos" - mas esta palavra ja se compromete em outras abordagens) nao deveriam s6 expor (de maneira resumida, como foi feito para os trabalhos de Helene Clastres- Terra sem mal- Ronald Vainfas- Santidade de Jaguaripe - e Sergio Buarque de Holanda - Mito de Silo Tome), mas principalmente criticar a interpretac,:ao psicanalftica de Roberto Gambini sobre a epoca. Mas, como a interpretac,:ao de Gambini se completa nos comentarios de outros autores (Raminelli, Bosi, Fernando Carneiro), e os textos que a ilustram sao muitos, a parte se transformou em tema, pecando por excesso de suposic,:oes. Ha trechos ate consistentes (como em "Sacrificios" ou em "Mulheres"), que permitiriam uma analise mais amarrada, caso se restringisse a eles. Porem, eon de as informa~t5es mais se prestam diretamente ao que se esta dizendo, e perderiamos a noc,:ao mais 28 FlLIPE EDUARDO MOREAU abrangente dos depoimentos (mais honestamente passada quant9 maior sua extensao). No ultimo capitulo, de carater hist6rico, as "indigna'toes e indiferenc;:as" mostram com certa dose de humor os depoimentos contradit6rios sabre a escravizas;ao. Para Anchieta, ela nao seria tolerada por Nobrega em "nenhum" momento, em "nenhuma" circunstancia, salvo em guerra justa. Nobrega, na chegada de urn superior, mandava logo urn escravo preparar a comida. Quanto a questiio levantada por Nobrega sobre a licitude de "o pai vender o filho" (sobre a qual teria escrito urn segundo dia:togo), Anchieta reconhece a astucia dos colonos para provocar essa venda enganosa ( os mdios nao sabiam o que era escravidao ), e discute ainda a etica desse procedimento, concluindo ser aceita apenas em casas de "extrema necessidade". Talvez ao Iongo da leitura se possa sentir que a hist6ria real e bern mais dramatica que as ficc,:oes de terror e opressao. Nos aldeamentos, a crianc;a indigena nao podia desobedecer as regras do invasor, que proibia os costumes que a sua intui'tiio pedia que fossem praticados. Recebendo castigos fisicos, via seu povo sofrer e morrer,notanda ser aquele urn desdobramento irreversivel da historia humana. OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 29 PRINCIPAlS ETNIAS Legenda: 1 - Carij6 (Guarani) 2- Tupiniquim (Tupi) 3 - Tamoio (Tupi) 4 - Goitaca ("Tapuia") 5- Tupiniquim (Tupi) 6 - Aimore ("Tapuia") 7 - Tupinamba (Tupi) 8 - Caete (Tupi) 9 - Potiguar (Tupi) 1 0 - Tremembe (''Tapuia") 30 FlLIPE EDUARDO MOREAU ANCHIETA ESPfRITO SANTO 10 -12 RIO 15E JANEIRO PIRATININGA 3-5-6 10-11 OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 31 Legenda: 1- 1553: Chega a Bahia com Duarte da Costa e Luiz da Gra. 2- 1554: Chega a Sao Vicente com L. Nunes (levando a Nobrega o titulo de Provincial do Brasil, dado por Loyola). 3- 1554: Vai a Piratininga fundar o CoiE~gio de Sao Paulo, a mando de Nobrega (duas viagens). 4- 1555: Volta a Sao Vicente. 5- 1556: Vai e volta de Piratininga, tern rapida passagem pela Bahia, com Nobrega, voltando a Sao Vicente. 6- 1557: Vai e volta de Piratininga. 7- 1563: Vai e volta de Yperoig (onde foi "refem" por cinco meses) . 8- 1565: Vai a Bahia conseguir refor9os contra os franceses, recebendo as Ordens Sacras do bispo P. Leitao. 9- 1567: Volta a Sao Vicente, onde recebe novos cargos governamen- tais (em 1569, e nomeado Reitor do Colegio, professando ate 1577, quando e nomeado Provincial). 10 - 1578: Vai a Bahia, recebendo a patente de Provincial do Brasil (ate 1585, viaja por Pernambuco, Bahia, Espfrito Santo e Rio de Janeiro, incentivando nucleos de ensino) . 11- Vai ao Rio de Janeiro acornpanhar o reitor Fernao Cardim, passando a residir no Colegio. 12- Vai ao Espfrito Santo, onde e Superior no Colegio de Reritiba (vindo a falecerem 1597). 32 PIRATININGA 7-10 Fll.JPE EDUARDO MOREAU NOBREGA OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 33 Legenc!a: 1 - 1549: Chega a Bahia com Tome de Souza e os padres L. Nunes, J. A. Navarro, A. Pires, V. Rodrigues, D. Jacome. 2 - 1551: Vai a Pernambuco com A. Pires. 3 - 1552: Volta a Bahia. 4 - 1553: Vai a Sao Vicente com Tome de Souza. 5 - 1556: Volta a Bahia com Anchieta. 6- 1558: Acompanha Mem de Sa em guerras na Bahia (em 1559, doente, passa o cargo de Provincial a Luiz da Gra). 7- 1560: Vai com Mem de Sa ao Rio de Janeiro (em guerra aos franceses), seguindo para S. Vicente e Piratininga. 8 - 1561: Volta a S. Vicente. 9 - 1563: Vai com Anchieta a Yperoig {Ubatuba), voltando a S. Vicente depois de dois meses entre os tamoios. 1 o - 1564: Vai ao Rio de Janeiro a convite de Estacio de Sa. Reza a missa e volta em seguida aS. Vicente, visita Piratininga e volta a S. Vicente (em guerras e falta de alimento). 11 - 1567: Vai ao Rio de Janeiro para fundar o CoiE§gio e ser seu Superior, a convite de Mem de Sa. Passa Ia a velhice, vindo a falecer ern 1570. CAPITULO I ASPECTOS LITERARlOS E HISTORICOS GENEROS UTILIZADOS PELOS AUTORES Dialogo 0 padre Manoel da Nobrega chegou a Bahia, em 1549, na frota de Tome de Sousa, que veio fundar a cidade de Salvadore dar infcio ao Govemo Geral. Nobrega che:fiava a primeira leva de je- suftas, e foi o primeiro deles a escrever a respeito do Brasil. Depois de sua morte, em 1570, suas cartas foram agrupadas nas Informa- r;:oes sabre a Terra do Brasil, e publicadas em diversas linguas. A correspondencia de Nobrega e considerada importante nao s6 pela defesa dos indios, mas por observar o tipo de relaciona- mento que havia entre eles e os colonos, tentando desvendar com imparcialidade o jogo de forc;as implicado. Mais do que born le- trado, foi na medida do possfvel urn juiz lUcido e isento, procu- rando o cerne das questoes e culpando uns e outros em fun<;:ao de juizo que alcan<;;asse apos longa reflexao: nunca por xenofobia (ROCHA PINTO, 1992: 62) . Na trajet6ria de Nobrega se nota a passagem do humanista esperan<;;oso das primeiras cartas, em que chega a exaltar as qua- lidades clos indios, para o "administrador pragmatico" das tiltimas, em que prefere deprecia-los (CARNEIRO DACuNHA, 1990). Antes de se tornar urn homem amargo e desencantado, Nobrega fala "na gras:a que Nosso Senhor me fez, mandando-me a estas terras do Brasil, para dar principia ao conhecimento e louvor de seu santo nome nestas regWes" (Cruta IV). * * * 0 Dialogo do Padre Nobrega sobre a converstio do gentio (NoBREGA, 1988: 229-45) e urn texto claro, consistente e ate hurno- 38 FILIPE EDUARDO MOREAU rado, deixando transparecer uma profunda convic9ao humanista. Mostra a apurada capacidade de observat;ao do autor, sua grande bagagem intelectual e humana, e abre o conhecimento sobre a mentalidade indigena, dentro das possibilidades da epoca. A obra aborda a questao da humanidade do indio, deliberada em 1534 por bula3 de Paulo III. Escrito nos anos de 1556-7, e tambem pouco posterior ao famoso debate entre Las Casas e Sepulveda. 4 Alem da "carta", o "dialogo" foi o unico genero5 desen- volvido por N6brega. Alem da conversao do gentio, escreveu as Respostas sobre se o pai pode vender a seufilho e se urn se pode vender a si mesmo, tambem referentes aos indios do Brasil.6 0 genero "dialogo", utilizado por autores como Petrarca e Maquiavel, tern como modelo mais antigo e famoso a Republica , de Platao. No texto grego, a dialetica e dinfunica, havendo sempre contraposi96es as perguntas e as respostas de S6crates, locutor principal. Embora com posicionamentos razoavelmente definidos, as duas personagens do Ditilogo ... for am tiradas, segundo o pr6prio autor, de colegas menos graduados da Companhia, para figurar aquilo que o seu "espfrito sente". A constituit;ao de interlocutores com base em pessoas reais, com o sentido de que o outro e parte de si mesmo, tambem ocorre em Platao, mas a identifica9ao de Nobrega com os irmaos personagens e bern maior, resultando em dialogos menos conflitantes. Gon9alo Alves e Matheus Nogueira na maioria das vezes se completam no fluir de um pensamento teol6gico ortodoxo. 0 estiTo segue a ret6rica da doutrina, mas o ferreiro Nogueira, urn tipo vulgare de fala mais simples, demonstra maior clareza do que Alves, teoricamente mais erudito. * * * 3. Segundo a antrop6loga Carneiro da Cunha (1990), menos pe1o ques- tionamento propriamente dito do que pela reivindicayao de jurisdi~ao da Igreja sobre tal parcela da popula9ao. 4. Que sera abordado em "Escraviza9ao": questoes fi1os6ficas . 5. Cuja escolha ja determina, para a maioria dos criticos, significa~ao e sentido para o' que e dito. 6. Manuscrito que se encontra na Biblioteca Publica de Evora (N6BREGA, 1988). Marcones Highlight Contra os massacres aos índios pelos espanhoes OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 39 0 Dialogo .. . se mostra denso desde o infcio, colocando as questoes da conver~ao e referindo-se aos indios em tom grave: "bestiais [ ... ], encarni~ados [ ... ] , caes [ ... ], porcos [ ... ], mais ingrates que os filhos das vfboras que comem suas maes". A dramaticidade valoriza o trabalho dos padres, e Gonc,;alo Alves acaba por definir que a maior dificuldade e OS fndios OSCi!arem entre a aceita9ao da nova fe (unica verdadeira) e o seu nipido esquecimento. Para Matheus Nogueira, "se tiveram rei, poderao se converter, ou se adoraram alguma cousa [ ... ] poderao [ ... ] en tender a prega9ao do Evangelho", mas "este gentio nao adora coisa alguma, nem ere em nada". Viveiros de Castro (1992: 37-8) traduz a rela9ao na seguinte ordem: os indios nao acreditam porque nao adoram, nao adoram porque nao se sujeitam nem servem a ninguem, isto e, nao tern rei. A pe9a em falta era o "componente de sujei9ao, de abdica~ao do juizo e da vontade". Sinteticamente: "nao tinham fe porque nao tinham lei, nao tinham lei porque nao tinham rei". As personagens relembram t6picos da tradi~aocrista, servindo para se caracterizar como agentes da fe. Alves pede a Nogueira urn parecer sobre o gentio, e este diz: "para este firn de se converterem e serem cristaos nao ha mister muita inteligencia; porque as obras mostram quao poucas mostras eles tern de o poder vir a ser". Com a questao no ar, comparam os seus dois oficios, falar e fazer, concluindo que ambos devem ser semelhantes no servi9o a Deus (em provavel referencia ao trabalho, ligado a palavra, do proprio autor). Adentrando na importante questao da humanidade dos indios, Alves pergunta se podem ser considerados "pr6ximos" . Nogueira coloca a questao teol6gica as claras: se forem considerados homens, sim, pais " todo homem e uma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua alma". Como se lembrasse a Alves de sua obriga9ao, diz: "a obediencia lh ' o manda [ ... ] que nao fique nada por fazer a esta gente". Apesar da "rudeza" dos gentios, que se opoe a "delicadeza" da fe, e de que "nao tern razao e sao muito viciosos", Deus, com sua misericordia, abrira a eles a porta do entendimento, atraves dos jesuitas . Sobre a necessidade de estimulo nas dificuldades do Marcones Highlight Marcones Highlight 40 FILIPE EDUARDO MOREAU intento, relembram mais uma vez os dogmas: e preciso sacriffcio, fe, caridade. Parecendo tocar em questao de enorme profundidade, Nogueira pergunta de "que aproveitaria se fossem cristaos por for9a e gentios na vida, nos costumes e na vontade?" (0 que e ser realmente cristao?) Na resposta, de ordem pratica, subentende- se que, sem mudar os costumes (apagando as cren9as a eles associadas), nao seriam cristaos: e diffcil mudar os habitos de velhos e adultos, devendo-se investir nas crian9as. Os adultos assumem o cristianismo, mas nao mudam seus habitos , sao inconstantes e nao totalmente cristaos, enquanto as crian~as teriam os habitos reconstruidos . A pergunta tambem se refere a conversao por for~a, havendo na resposta, em rela9ao as crian9as, consentimento. Quando o dialogo parece ser mais unissono, surte uma discordancia, de ordem teologica: Alves argumenta que caridade nao pressupoe razao, pois sao campos distintos o da vontade e o do entendimento. Em referencia ao oficio do outro, compara o efeito do fogo sobre o ferro. Mas a questao teologica e de diffcil acesso: "a vontade de Deus [ ... ] e regra que mede todas as obras" (mas como aferi-la?). Com exemplos historicos, mostra que nem sempre o que parecia ser born o era realmente, mas que era possivel acertar "tomando conselhos com Deus".7 A questao da humanidade dos fndios reaparece com a coloca~ao de que todas as almas teriam sido feitas a semelhan9a de Deus e criadas para a Gloria, "tanto [ ... ] a [ ... ] do Papa [ ... ] como [ ... ]do vosso escravo Papana",8 e que, assim, os indios "tern almas". Voltam entao a teoria doutrinaria, com a seguinte premissa: "a alma tern tres potencias, entendimento, memoria e vontade, que 7. Em rela~ao ao saber o que Deus de fato quer, Im\cio de Loyola encontrou duas maneiras: ilumina~;ao vinda de cima e medita9ao. A primeira, pelo cantata mfstico com Deus (acima das pr6prias ideias), nao era permitida aos discfpulos, pais feriria os princfpios basicos de hierarquia e obediencia. Foi entao desenvolvida (ou aperfeigoada a prlitica medieval de Devoti) a medita~;ao, ou metoda de descobrir, por uma real uniao de trabalho, o que Deus g11er de cada urn. lsso levaria, com respeito a obediencia, a uma contem~iafao na a<;ao (GAMBINJ, 1988: 98). 8. Com o Pontffice e a tribo de Porto Segura formando interessante alitera9ao. Marcones Highlight Marcones Highlight OS INDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHJEfA 41 todos tern". Depois que Adao pecou, tomou-se semelhante a besta, e assim todos os p_ovos (portugueses, castelhanos, tamoios , aimon~s) , em pe de igualdade, tern natureza corrupta. Em mais uma compara9iio como ferro- "as almas sem gra9a e caridade [ .. . ] sao ferros frios [ ... ] mas quanta mais se esquenta [ .. .]" -, Nogueira explica que a vontade de Deus fez que alguns desenvolvessem melhor entendirnento. Parecendo concordar, Alves admite que todos tern alma e bestialidade naturais , mas opoe a bestialidade dos "negros" (fndios)9 a discri9ao e aviso (informas;ao) de romanos, gregos e judeus. Nogueira pondera (com argumento igual ao de Las Casas)lO que todos os povos passaram por bestialidades - "adoravam pedras e paus, dos homens faziam deuses" - 0 que nao deixou de haver em muitas ramificas;oes do cristianismo; mesmo os judeus, "gente de mais razao, que [ ... ] tinham as escrituras desde o come9o do mundo" , adoraram objetos de metal e sacrificaram crians;as. Se outros adoraram anirnais, era ate racional do gentio temer o trovao (num raro elogio a uma cren9a nativa). Mas, antes de passar a palavra, coloca no mesmo nivel todas as idolatrias, procedentes do "pai da mentira, mentiroso desde o comes;o do mundo".11 Em nova investida contra o gentio, Alves op5e o polimento dos que "sabem ler e escrever, tratam-se limpamente", desenvol- veram ciencia e filosofia, aos que "nunca souberam mais que an- darem nus e faze rem uma flecha". Embora os dois concordem que os indios possuem entendi- mento, come9a a haver uma divergencia de opini5es. Nogueira defende os indios ao dizer que "terem os romanos e outros gentios 9. N6brega usa o termo "negro" para se referir ao indio e ao africano como "decorrencia do pensamento anal6gico operante em sua teologia-politica, que constitui em uns e ouu·os a mesma carencia de Bern, como 'gentilidade' herdeira do pecado de Cam e, ainda, de urn criteria jurfdico, que para uns e outros postula o 'naturalmente escravo ' , como barbaros interpretados atraves da Polftica aristotelica" (HANSEN, 1993: 23). 0 "mito de Cam" sera ainda abordado no Dialogo ... , e a "servidao natural" em "Escraviza(_:ao": questoes filos6ficas. 10. Em "Escraviza(_:ao": quest5es filos6ficas . 11. Em referenda ao Evangelho segundo Siio Joiio. Marcones Highlight 42 FILIPE EDUARDO MOREAU mais policia [leis, civilizas;ao] que estes nao lhes veio de ter natu- ralmente melhor entendimento", apenas melhor crias;ao e politica, e que os indios tern boas inven~oes, palavras discretas, e os fllhos deles tao born entendimento "que muitos fazem a vantagem aos filhos dos cristaos".l2 Sobre a concordancia dos dois em rela~;ao ao entendimento, Viveiros de Castro (1992: 24) sintetiza que das tres potencias da alma, entendimento, memoria e vontade, a primeira era agil e aguda, enquanto as outras duas eram fracas e remissas. 0 t6pico seguinte, introduzido por Alves, refere-se a origem das diferens;as, sendo citado urn velho "instituidor de cativeiros" (Bosr, 1992): o mito de Cam (rnuitas vezes usado para justificar a escravidao negra). Alves especula que os fndios sao carnitas (descendentes do terceiro filho de Noe, que, ao contrario dos irmaos, viu nu o pai que estava bebado, sendo entao amaldis;oado), e que por isso andam nus (associas;ao simb6lica que serve a argumentas;ao da personagem). Explica pela Bfblia que, apesar de toda a gente ter "urna rnesrna alma e urn entendimento", Isaac foi mais poHtico do que seu irmao Isrnael, "que andou nos rnatos", e que o meio (floresta, campo, aldeia) exercita o entendimento (tecnico e filos6fico). Faz entao uma suposis;ao: o gentio, nao tendo polfcia, teria "menos entendimento para receber a fe". Segue daf a constatas;ao de que 0 entendirnento se opoe a inconstancia: "mais facil e de converter urn ignorante, que urn malicioso e soberbo"; urn herege ou urn judeu, com toda a sua teimosia, uma vez convertido "ficaria mais constante". Essa nao e a opiniao de Nogueira, para quem, uma vez que "entre a fe no coras;ao, [ ... ] o mesmo sera de urn que de outro'', sendo necessaria o !l)esmotempo, trabalho e diligencia, nao importando filosofia ou razao: "uns e outros [ ... ] sao ferro frio e duro[ ... ] que quando Deus quiser meter a forja logo se converterao". Como born vendedor de seu peixe (o que tambem vale para o autor), diz: "offcio de converter almas e o maior de quantos hii na terra", e 0 que requer maior perfeis;ao. 12. Colocao;ao que lembra Las Casas, criticando as desqualifica~oes feitas pelos que niio olhavam para a propria civiliza~ao. Marcones Highlight - OS l?IDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHJETA 43 Comentam o custo e a demora do trabalho, em que nao basta conhecer a lingua, mas e preciso bondade no dizer (o que tambem propos Las Casas). Nogueira entende como dificuldade o fato de os indios ainda nao diferenciarem os padres dos colonos mal intencionados, mas que e uma questao de tempo. Lembram do quanta historicamente as conversoes foram lentas, mesmo feitas par ap6stolos, e que seria esperar o maior milagre do mundo se as coisas la fossem faceis. Tudo depende da vontade divina, pois "quando Ele quer, faz de pedras fi lhos de Israel". Voltam entao ao ponto principal, de que incutir a fe nos indios passa por faze-los abandonar os antigos costumes, o que dia a dia avan~a, ao conseguirem convencer alguns a enterrar seus mortos, em vez de come-los. Poesia Anchieta nasceu nas Canarias, estudou em Coimbra e veio para o Brasil em 1553, com 20 anos de idade. No ano seguinte, fundou na aldeia de Piratininga (hoje Sao Paulo) o primeiro colegio jesuitico da ColOnia. Foi mestre em latim, castelhano, doutrina crista e lingua brasilica. Atuou com Nobrega na pacifica~ao de indios do litoral entre Sao Paulo e Rio de Janeiro, viajando depois a Bahia para conseguir refon;;os na !uta contra os franceses. Em 1569 foi nomeado reitor do Colegio de Sao Vicente, tornando-se provincial do Brasil em 1578. Nessa epoca, viajou por toda a colonia incentivando OS nucleos de ensino. Em 1585 pediu licenp do cargo e retirou-se para o Colegio do Rio de Janeiro, vindo a falecer em 1597. Nas andans;as pela pacifica~ao, Anchieta ficou refem dos tamoios em Ubatuba, enquanto Nobrega ia a Sao Vicente negociar a paz com os portugueses. Diz-se que nessa epoca ele escreveu nas areias de Iperoig o Poema em louvor da Virgem, decorando os versos para registro posterior. A produ~ao poetica de Anchieta (e mais ainda a dramatica) e quase toda voltada a catequiza~ao dos indios. Em estilo medieval, aborda assuntos cotidianos, como amor, alimentas;ao e doens;as (BRANDAO, 1993: 197). Apesar do uso de linguagem e religiosidade popular, visando a devos;ao dos indios, Anchieta tinha preocupas;oes com medida, Marcones Highlight 44 FILIPE EDUARDO MOREAU metrica e rima. Ele adaptou em tupi as formas trovadorescas nas suas variantes populares ibericas (Bosr, 1992: 64): Jande, rubete, Iesu [ ... ] oimomboreausukatu, Jande amotareymbiira. [Jesus, nosso verdadeiro Pai [ ... ) senhor da nossa existencia, aniquilou nosso inimigo'] Suas poesias eram copiadas, ou adaptadas, e distribuidas por cliferentes igrejas para serem cantadas. Para penetrar nos indios com seu aparato ret6rico persuasivo, a oposi~ao complementar entre Bern e Mal e sempre reiterada. 0 Bern e personificado pela imagem de Deus, de Jesus e da Virgem e delineado por urn campo semantico de conota'(6es positivas, sendo a meta a atingir. 0 Mal e representado pelo demonio e por maus espfritos e delineado por urn campo semantico de conotas;oes negativas , devendo ser rejeitado, por escravizar a alma. 13 Nas palavras de Bosi (1992: 67) para converter o fndio, "Anchieta engendrou uma poesia e urn teatro cujo correlato imagimirio e urn mundo maniquefsta14 cindido entre fors;as em perpetua I uta", imposto "de fora para dentro da vida tribal". A aproximas;ao do Bern pelo afastamento do Mal implicava para os fndios a necessidade de rejeitar costumes, valores e cren9as tradicionais e adquirir novos: 13. Lembrando que a vit6ria final e sempre do Bern, Baeta Neves, ao analisar De Gestis Mendi de Saa, chama aten~ao para o "triunfalismo que se exprirne sem qualquer recato apesar da crftica que recai - e quantas vezes - sabre a 'altivez' (o pecado da altivez) de indigenas e prostestantes". 14. Hansen ve exagero no termo "maniquefsta" (o maniquefsmo era uma heresia conhecida de Anchieta), preferindo falar de urn mundo ortodoxo. No cristianismo, ha urn unico plincipio, Deus, de que o Diabo e a falta. 0 Mal e ausencia, ou falta de Bern, como niio-ser, e e completado ou corrigido por este. Como Nao-ser, o Mal irnplica o Bern, como Ser. Marcones Highlight OS iNDIOS NAS CARTAS DE NOBREGA E ANCHIETA 45 Antigamente, eu mmTendo, urn ataque de de!J16nio pr-:nderia minha alma pee ad ora. Detestando o mal, agora eu amo a Jesus, meu senhor. [ ... ] Afaste eu os habitos antigos [ ... ] Abolindo os maus costumes, Deus nos perdoaraJ5 Os costumes ind1genas multisseculares, que era preciso destruir para implantar o cristianismo, aparecem como "habitos antigos", "maus costumes", "costumes perversos", "habitos de meus avos" etc. Para ensinar as no96es de pecado e reden9ao, ganhar a simpatia dos indios e persuadi-los a devo9ao, as poesias tambem utilizam elementos de sua cultura - musica, canto, dan9a e lingua tupi - para serem declamadas: "Dan9o aqui I a moda dos meus". * * * Ao lado das poesias de mensagem religiosa, Anchieta compos, em 1560, o poema epico De Gestis Mendi de Saa, com 3.054 versos de pura exalta91io a dureza guerreira do terceiro Govemador Geral. Na opiniao de Darci Ribeiro (1992: 29), essa composi9ao infeliz teria impossibilitado o Vaticano de canonizar aquele que seria o primeiro santo brasileiro. No poema, que comemora a alian9a entre o govemador e a Companhia contra os nao-cristaos, nota-se a violencia da a9ao contra os indios no sul da Bahia: At:ende-se mais a mais coragem do chefe e seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens. Ora decepam 15. Anchieta, in Brandiio, 1993: 197-9. 46 F1LIPE EDUARDO MOREAU brac,;os enfeitados com penas de piissaros, ora abatem com a lamina reluzente cabes;as alti vas, faces e bocas pintadas de vermelho urucum [ ... ].Junto ao mar o estrondo ecoa medonho, enfurece horrendo na praia o soldado matando e enterrando vitmioso na areia corpos aos montes e almas no inferno [ ... ]. 'Triunfadores meus, diz o chefe [ ... ] Ou exte1minar de vez esta rac,;a felina com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia gloriosarnente.' [ ... ] Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus brac,;os, fervesse-lhes no peito urn sangue mais quente, acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, e esse dia marcaria a rufna desses feros selvagens, atirando-os para as sombras eternas do inferno[ ... ]. [ ... ] cento e sessenta aldeias incendiadas, mil as casas arruina- das pela chama devoradora, <assolados os campos com suas riquezas, passando tudo pelo fio das espadas [grifos meus]. Auto Anchieta escreveu as primeiras pec,;as encenadas no Brasil, criando inumeros dialogos entre personagens que disputavam o dominio dos habitantes da Terra de Santa Cruz. Na opiniao de Ronald Raminelli (1996: 54), o teatro de Anchieta acentua o teor das cartas jesufticas, desenvolvendo a conceps;ao do indio como er demonfaco, o que nao havia nas cronicas portuguesas ate a metade do seculo .XVI. Mas acentua, na verdade, a ideia de que os costumes indfgenas eram demonfacos: ha esperans;a para o indio, que tern alma, desde que se converta para o Bern. Nas palavras de Baeta Neves (1978: 83), "o teatro foi uma forma de construir urn espelho destruidor d_::js culturas indfgenas, que, em tais pes;as, apareciam identificadas ao Mal" . Anchieta desenvolveu os autos baseando-se numa tecnica de d:i:ilogos com muitamfmica e encenas;ao, a qual dava o nome de -comedias". Seus autos representam a tentativa mais requintada de catequizac,;ao, pela dramatizas;ao dos ensinamentos. A linguagem ,-erbal persuadia como fors;a viva, com eloqiiencia, cenografia, canto, musica, dan~a e vestuano. Apesar do comprometimento de quase todos os elementos com a catequese, o valor dramiitico nil.o era prejudicado, sobretudo na satira aos maus costumes dos indios. Segundo Bosi (1992: 82), e atraves do teatro que "a fe atinge o Marcones Highlight OS INDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANC.HIETA 47 nfvel da experiencia": no lugar da prega~ao, a fala expressa o sublime do sagracto e o -grotesco do demoniaco. Toda a produ~ao e voltada aos catecumenos, principalmente indios, mas tambem colonos e degredados, alternando a lfngua portuguesa com o tupi e o espanhol. Para ser acessivel ao publico, e teatro de cunho popular, baseado nos autos de devo~ao e na tra- dis;ao medieval (BRAi'<"DAO, 1993: 199-204). As pe~as criavam urn clima rnistico, com atores e cenarios assumindo a funs;ao do cate- quizador. A representas;ao mostrava diretamente aos cateclimenos os princfpios em que eles deveriam se basear e os castigos, caso isso nao ocorresse. Vivenciando simbolicamente as experiencias, os indios se atemorizavam e entravam emocionalmente num pro- cesso de purgas;ao, devendo ao fmal se sentir confiantes e predis- postos aos ensinamentos. N ormalmente os autos tinham tres partes. A primeira e a ultima, lfricas , eram comandadas por cantigas, enquanto a do meio era 0 nucleo dramatico (CARDOSO in BRMIDAO, 1993). Basicamente, a estrutura consistia de cinco atos: uma introdus;ao do assunto (composis;ao recitada ou cantada, seguida de desfile ou procissao), dais diilogos, urn sermao ou exortas;ao, e o final com dans;a, canto ou procissao. Nas menores, eram suprimidos urn dos diilogos eo sermao. Para Sabato Magaldi (in BRANDAo, 1993), o que prevalece e "a dicotomia fundamental da ldade Media", em que se defrontam o Bern e o Mal: santos e anjos, protetores da Igreja, lutam contra fors;as demoniacas , diabos que no caso tern os nomes de indios inimigos. 0 Bern triunfa sobre os covardes, representando a implantas;ao da religiao pela fe inexoravel. * * * 0 auto Na aldeia de Guaraparim (BRANDAO, 1993), representado no Espfrito Santo por volta de 1590, eo mais longo escrito integralmente em tupi, especialmente para os indios. Nele, muitos elementos da cultura indfgena sao objetos de denuncia pela as;ao catequizadora. Com o "vil gentio" sendo sensfvel aos ensinamentos divinos, a conversao e o abandono das "erronias" trariam paz e prosperidade ao territ6rio "descoberto" pelos portugueses. Marcones Highlight 48 FJLIPE EDUAROO MOREAU Em mon6logo, o diabo Anhangw;u se diz amea~ado pelo padre que tirara indios do seu dominio. Chama tres auxiliares, e em conselho planejam seduzir os indios para subjuga-los. Cada diabo representa urn tipo de pecado. Tataripera ("lans;a-fogo") fomenta a inimizade: "Perturbo os cora~;oes das velhas, I irritando-as, fazendo-as brigarem [ ... ] I aos seu pr6prios amigos I eles vingam, dizendo desaforos" . Caumondd ("ladrao de vinho") faz os indios beberem, causando desordem moral, roubo e luxuria: "fa~;o-os todos pecarem I bebendo vinho a noite [ ... ]I vou cochichar aos ouvidos dos homens I ajudando-os acerca de mulheres I incitando-os a desejarem-nas". Moroupiaroera ("antigo adversario temfvel") incentiva a antropofagia: "Ontem, a urn cristao I agarraram, amarrando-o [ ... ] I Ali o assaram e comeram I Enfim, de urn cristao, que passava I vingaram-se a meu mandado". As praticas indfgenas condenadas pelos padres sao atribuidas a a~;ao do diabo. Sao criticados em cena os costumes antigos consi- derados inaceitaveis, como antropofagia, bebedeira e obediencia ao paje. Os que eram aceitos, como a lingua, a dans;a e os orna- mentos, utilizavam-se como forma de envolvimento. No seu objetivo catequetico, Anchieta usa uma linguagem acessivel e manipula o significado dos elementos indigenas, trans- figurando a realidade. Mas ao mesmo tempo cria urn afastamento, pois os costumes "abominaveis" estao projetados no diabo, e, par- tanto, fora deles. Estrategicamente, os indios aprendem a ridicu- larizar os pr6prios costumes. Na luta pela condena~ao ou salva~ao da alma do indio Pirataraca, que acabara de morrer, os diabos a acusam de uma serie de pecados. Ela se defende e fala ao espectador como praticara os ensinamentos dos padres. A alma eo proprio vefculo da mensagem catequetica, falando de urn passado de maus habitos e de urn presente cristao. Os diabos denunciam o vinculo com o passado, mas a mensagem final contrapoe a desordem das tradi<;5es pecaminosas ao presente iluminado pela fe. A pes;a tras;a a trajet6ria da conversao: os diabos e a desordem1 a luta entre Bern e Mal, a presen~a do anjo que instaura a ordem. A substituis;ao do caos "diab6lico" pela ordem "divina" se da pela obediencia as leis de Deus e repressao aos velhos habitos: Marcones Highlight Marcones Highlight OS INDIOS NAS CAR'D\.S DE NOBREGA E ANCIDETA 49 "Devorando urn banquete de escravos, daw;:am os meus avos; faminto das leis deDeus I abjuro as de meus pais". Substituindo sua cultura, Pirataraca muda de nome para se salvar: Caumonda: -Que nome o sacerdote te deu? Alma:- 0 do pobre Francisco Pereira, chefe branco que morou em Quirimure. Depois disso, o bispo tambem colocou o do velho Vasco Fernandes Coutinho. Este nome eu conservo. Mon-i com ele. A vit6ria dos santos sobre os diabos representa o fim dos tormentas eo futuro promissor. Na voz do anjo, Anchieta diz: - Alegrai-vos, filhos meus, por mim. Aqui estou para vos proteger. Vim do ceu para junto de v6s a ajudar-vos sempre. - Iluminando esta aldeia, junto de v6s estou. Nao me afastarei daqui. De custodiar a aldeia encarregou-me Nosso Senhor. -De agora em diante v6s sereis felizes . Quero felicitar esta vossa teiTa agora venturosfssima, pois que se lembrou dela a virtuosa mae de Deus. 16 - Seja a maldade expulsa aqui de Guaraparim. Extirpe-se o mal, para o espfdto de Deus dominar perenemente. Raminelli (1996) nota aqui a representa~ao da America como reino de Sata, e da Europa como reino de luz e salva~ao. A propria expansao maritima seda efeito da providencia divina, com a colonizas;ao, pelo mercantilismo e cristianismo, anunciando o fim da miseria. Pela oposi~ao entre Bern e Mal se representa a alteri- !6. Para os jesuftas, o cristianismo nao e apenas o unico termo de compara~ao, mas a unica realidade. 0 que nao se assemelha aos costumes cristaos nao pode ser considerado. Mais do que isso: e como se os Indios nao existissem ate aquele momenta. Os jesuitas distorcem essa inexistencia para o cristianismo, considerando-a uma inexistencia real. Na constata~ao das diferen~;as (desenvolvida no segundo capitulo), esta implfcito que elas nao podem ser aceitas, e que o conhecimento sem origem na religiao cat6lica jamais e legitime. Marcones Highlight Marcones Highlight 50 FILIPE EDUAROO MOREAU dade entre europeus e Indios, cujas existencias sao mediadas pelo imagimirio cristao. As "paginas em branco'' estavam, primordial- mente, sob o dominio do Mal. Como todo discurso se situa socialmente num tempo e Iugar, o lugar a que Anchieta se refere, apesar dos prop6sitos missionanos, e sempre o do conquistador portugues, que quer de todas as maneiras trazer o Outro para o mesmo espa~o. fisico e espiritual. 0 discurso evangelizador e universalista e redutor, por desconhecer e desrespeitar a alteridade. Aparentemente brando, ele disfan;:a a violencia. Os cantos e a encena~ao seduzem e condicionam o publico, impoem a adesao e camuflam em dia!ogo o mon6logo do catequizador. * * * 0 Auto representadona festa de Sfio Louren(:o se inicia com o martfrio do santo. Os diabos Guaixani, Aimbere e Saravaia querem destruir a aldeia indfgena, defendida por Sao Louren~o, Sao Sebastiao e pelo Anjo da Guarda. Novamente as virtudes estao representadas nas figuras dos santos e do anjo, e os vicios nas figuras dos diabos, caracterizando a oposi~ao entre Bern e MaJ. A materializa~ao do Mal em monstros e demonios sera atropelada pela etema vit6ria do Bern. Guaixani e Aimbere eram chefes tamoios, inimigos dos portugueses. A representac;:ao como diabos pecadores que queriam destruir a aldeia evidencia a intenc;:ao polftica de Anchieta de conseguir aliados da terra, na luta pela coloniza~ao portuguesa. Pelas vozes de Sao Sebastiao e Sao Lourenc;:o, o jesufta condena a indolencia dos fndios quando chamados as atividades colonizadoras e tambem a pratica d~ i'feiti<;:arias" (pajelan~as) e festas com cauim e fumo . 0 Anjo postula: "- Evitai, de hoje em diante, o mal; I limpai de maus costumes a vida: I [ ... ] seja adulterio, bebida, mentiras, brigas: llutai contra a guerra fratricida" . Depois da morte do santo, o diabo-rei Guaixara pede ajuda aos comparsas para perverter a aldeia. Falando em tupi, mostra irritw,;ao contra os novos habitos dos virtuosos, dizendo que s6 ele deveria ser obedecido: "- Meu sistema e agradavel. I Nao quero que seja constrangido, nem abolido. I Prerendo alvoros;ar as tabas OS INDIOS NAS CART4S DE NOBREGA E ANCHIETA 51 todas. I [ ... ] Boa coisa e beber ate vomitar cauim. I Isto e apre- ciadfssimo. I Isto se recomenda, isto e adminivel". Ronald Raminelli (1996: 154-5) nota que o diabo nao cas- riga nem pune, mas promove tentw;;oes, afastando os indios dos preceitos cristaos. Guaixara e "bebado, grande boicinga [cascavel], jaguar, antrop6fago, agressor, andira-guac;;u que voa, demonio assassino" . Aimbere possui chifres, range os dentes, mostra as garras, e enfim o demonio trazido por Anchieta, 17 com propriedades de anim~tis nativos como cobra, morcego e jaguar. Anchieta recorre as feras conhecidas para traduzir OS medos e perigos dos que estivessem alheios a palavra do Senhor. Com medo da presenc;;a dos santos, OS diabos agem as escondidas, lembrando a maneira dos franceses de distribuirem arcabuzes entre os fndios para se levantarem contra os portugueses. No auto, Anchieta mostra o indio como semelhante que nao ere porque desconhece Deus. Por isso, tenta incutir nele alguns sentimentos. As personagens aleg6ricas "Temor de Deus" e "Amor de Deus" figuram as ideias de pecado e devoc;;ao a Deus, ou, genericamente, a declarac;;ao do que se deve e nao se deve fazer. Assim, enquadra-se na tentativa de organizar as aldeias e grupos com conceitos cristaos de sociedade. A ideia expressa por Nobrega no Dialogo ... , de que os indios nao tern fe nem rei e nem lei, justifica a introdw;;ao, junto com a fe crista, de ideias basilares da sociedade organizada por leis cat6licas.18 Era necessaria ensinar aos indios a diferens;a entre Bem e Mal, entre certo e etTado, para que entendessem conceitos e dogmas cristaos. A catequese utilizou diversos recursos narrativos e lin- giifsticos para atingir seus objetivos. A mensagem cat6lica era mais universal do que a simples colonizas;ao e busca de riqueza dos portugueses, mas a tentativa de defender os indios da escravizas;ao fracassou justamente pela desestruturac;;ao social causada com a aculturas;ao. Na opiniao de Alfredo Bosi (1992: 75-81), "a alegoria foi o primeiro instrumento de uma arte para massas criada pelos 17. Ass unto abordado em "Aspectos 'psicol6gicos' da conversao: demoniza~ao". 18. Mas N6brega sabe, segundo Hansen, que os fndios tem leis. 0 que deseja e mo1dar o estatuto delas, que pressupoe serem legais, mas nao legftimas. Marcones Highlight Marcones Highlight 52 FILIPE EDUARDO MOREAU intelectuais organicos da aculturas;ao". Segundo ele, "o didatismo aleg6rico rigido, autoritarlo" lev aria a "moral do terror das missoes". Carta A Companhia de Jesus foi cuidadosa no seu proprio registro, reunindo em 80 volumes a Monumenta Historia Societatis Jesu, da qual faz parte a Monumenta Brasilica, editada pelo Padre Serafim Leite. As cartas jesufticas do Brasil tinham como destinatario urn superior da Ordem em Portugal ou Roma, informando sobre a nova terra e as as;oes cotidianas dos missionarios. Atraves delas, o proprio Inacio de Loyola podia acompanhar e orientar a expansao da Ordem. Algumas foram vertidas para o latim e enviadas as missoes de outras partes do mundo (Alemanha, India, China), servindo de exemplo, estimulo, ou mesmo como prova de milagre. A primeira publicas;ao em Portugal e de 1551, as Cartas dos jesuitas do Oriente e do Brasil-1549-1551, tendo uma parte dedicada aos indios chamada Capias de unas cartas embiadas del Brasil, com depoimentos de Nobrega e outros (RAMINELLI, 1996: 51). Segundo Gambini (1988), elas eram de dois tipos: "de negocios" e "de edificas;ao", sendo apenas as ultimas copiadas e distribufdas, pois continham noticias dos indios e interessavam a urn publico maior. As cartas eram adequadas ao uso politico. Em 1553, Inacio de Loyola instruiu Nobrega para que os dois tipos nao se mis- turassem. As cartas "publicaveis" deveriam trazer informas;oes completas sobre os seguintes topicos: dados estatisticos, descris;ao das casas missionarias, numero de leitos, vestuario, alimentas;ao, atividades, caraeterfsticas e mapa da regiao, clima, descris;ao e numero de gentio ou mouro (GAMBINI, 1988: 71). Os jesuftas tinham apres;o especial por cada carta recebida, o que se nota na constante insistencia por respostas. As poucas que chegavam (muito menos do que as enviadas, fazendo com que cada navio atracado causasse enorme ansiedade) davam consolo a solidao da perigosa empreitada no desconhecido. Elas eram lidas na h<;>ra da ceia, em voz alta, madrugada adentro. N a opiniao de Gam bini ( 1988: 1 02), as cartas pod em ser lidas "como se tivessem sido todas escritas por urn mesmo autor OS iNDIOS NAS CARTAS DE N6BREGA E ANCHIETA 53 indiferenciado", 19 uma vez que os missionarios deveriam ser como soldados e, assim, nao manifestar suas pr6prias ideias ou rea~5es pessoais: "a personalidade de via, no minimo, ser reprimida". As cartas retratam a vida cotidiana dos povos nativos, principalmente aldeados. Mas , ao contnirio do que ocorreu na Espanha, 20 elas nao suscitaram debates ou querelas em tomo da natureza do fn dio . A antropofagia, a idolatria e a nudez nao despertaram di scuss5es moralistas ou teol6gicas na metr6pole, a nao ser em raros momentos. 0 fato esta ligado ao pragmatismo lusitano de "conhecer os costumes [dos] indfgenas para melhor conquista-los" (RAMINELLI, 1996: 140-1). Nas palavras de Rarninelli, Os costumes ex6ticos niio passaram despercebidos, mas ga- nhm·am uma abordagem superficial [afirma<;iio contestada por Hansen] . Na correspondencia entre os jesuftas, os amerindios eram denominados de barbaros, selvagens e demonfacos. Em Coimbra, sede da Companhia de Jesus, os sacerdotes limi- tavam-se a conhecer os "vis costumes" e as atrocidades perpe- tradas pelos futures cristiios. Nas cartas jesu!ticas, os desvios da fe jamais promoveram urn debate em tomo da viabilidade dacatequese entre os amerindios [idem] . Os conimbricenses nao refletiram, como em Espanha, sobre os conceitos empregados pelos missionaries; nem mesmo os princfpios da conquista foram amea<;ados. 0 Colegio da Companhia apenas constatava as desventu.ras na America. * * * Joao Adolfo Hansen (1993: 1-2), analisando os discursos das cartas mais pela "maneira" (forma) que pela "materia" (conteUdo), procura identificar os "atos da invenc;;ao" dos autores, bern como o "ethos aplicado [ ... ] como decoro estilfstico adequado a con- 19. Mas no
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