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Copyright @ 2008, Liardria Mdrtins Fontes Editora, Sio Paulo. paro a presenle edildo. t edigeo 1998 Editoru UFMG E edigio 2008 Acompanhmento editorial Helenq Guimar Aes Bitl encour t Preparagio do original Solange Martins Revisdes graficas Margaret Presser Ana Maria Alpares Produ(eo griifica Geraldo Alaes Paginagio Moacir Katsumi Matsusaki Dados Intemacionais de Catalogagio na Publicaqio (CIP) (Cimaa Brasileira do Liw, Sl Brasil) Rocha, Luiz Carlos de Assis Estruturas morfol6gicas do portuguds / Luiz Calos de As- sis Rocha. - 2i ed. - 56o Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2008. Bibliografia. ISBN 978-85-7827-041-4 1. Lingiiistica estrutural 2. Portugu6s - Morfologia 3. Por- tuguas - Sintaxe I. Titulo. 08-05936 cDIl-469.5 indices para catdlogo sistemitico: 1. Estiutura morfossintdtica : Portugues 469.5 2. Estrutura sint6tica: Portugu6s: Lingiistica 469.5 3. Morfologia: Portugu6s: Lingliistica 469.5 4. Sintaxe: Portugues: Lingriistica 469.5 Todos os direitos desta edigdo reseraados i) Liaraia Martins Eontes Editora Ltila. Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 Sdo Paulo SP Brssil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 e-mail: info@wmfmartinsfontes.com.br httpf/zoww.wmftnartinsfontes.com.br Capitulo I O nsruno DA MoRFoLocrA Para tentar definir em que consiste o estudo da morfologia, vamos descrever algumas situag6es em que foram criadas novas palavras. Situagdo l: Pai e filho passeiam pelo terreiro. De repente, o filho vC uma formiga e pisa em cima dela. Como ela permanece im6vel, o filho afirma: -Pai, a formiga morreu! Segundos depois, a formiga volta a andar e o filho exclama: - Pai, a formiga desmorreul Situagdo 2: Questionado sobre o que seria quando crescesse, o mesmo "fi- lho" da Situagio I respondeu: -Fabricador de carro! Situaqdo 3: Em seu conhecido programa de televis6o, o entrevistador )O Soares, ap6s saber que determinado integrante de uma banda tinha o cos- tume de colocar apelido em todo mundo, exclamou: - Ah, esse 6. o apelidador da turma! Al6m das situaE6es apresentadas, consideremos os contextos a se- guir, em que aparecem algumas palavras novas na lingua: A Previd€ncia Social e imexivelt (palavras pronunciadas por um ministro de Estado perante as cAmeras de televis5o) A Petrobr6s precisa atingir a produgio de 1.200.000 barris de petr6leo por* dia. Mas esse atingimento s6 ser6 possivel se. . . (palavras pronunciadas por outro ministro de Estado perante as cdmeras de televislo) 2t Os taxistas de Belo Horizonte e os taxeiros de Salvador nio estSo satisfei- tos com as tarifas das corridas. P ichadores e gr afiteiros, uni-vos ! A minha relaEdo com o governador ndo 6 camal. E .t-, relaEio de amizade! O atual prefeito 6 mestre em criar factSides. Associaqdo dos Sexadores de Pintos de um Dia. E possivel citar um grande nfimero de palavras novas da lingua - consagradas pelo uso ou neo -, como: bipar, malufar, chunasquear, clientar, agito, xingo, restduro, desmate, agroboy, narco-deputado, eco- er6tico (a prop6sito da novela O pantanal), blecaqa (de black + aga), cdrre(ttct, tratorata, bicicleata, bondeata, barqueata, seqiiestravel, meda- lhdvel, clondvel, elc. Partindo das palavras que acabamos de citar, inirmeras perguntas podem ser feitas: a) Por que causa estranheza a formaqSo de palavras como desmoner e fabricador? Afinal, se a l(ngua possui palavras consagradas como des- merecer, desentenar, pescador e paquerador, os vocdb,slos desmoner e fabricador n5o poderiam ser "normais" na lingua? b) Por qt:.e apelidador e atingimento s5o consideradas palavras ndo- existentes na lingua, mas perfeitamente possiveis de serem criadas? c) Por que a criaEi o de imextvel por um ministro de Estado causou tantos comentdrios entre as pessoas? d) E possivel encontrar as duas formas, palestrista e palestrante' Qual seria considerada a forma correta e por qu6? e) Encontrisfa 6 uma palavra formada de acordo com o "espfrito" da lingua? f) Por que em Belo Horizonte 6 consagrado o termo taxista e em Salvador, taxeiro? g) Por que dizemo s pichador e grafiteiro e n5o invertemos os sufixos e falamos picheiro e grafitador? h) Se existe teatral (de teatro), braqal (de brago), camal (de came), por que n5o existe camal (de cama)? i) Por que formamos novas palavras com os sufixos -dor, -eiro e -ista (como nos exemplos citados) e n5o formamos novas palavras com o 22 sufixo -Aneo (de moment-Aneo), -estre (de camp-estre) ou -ebre (de cas-ebre)? j) Por que laraniada e limonada s5o termos "familiares" aos falantes de Belo Horizonte, e caiuada e maracuiada ntro o sio, apesar de esses refrescos serem muito comuns na capital mineira? S5o perguntas como essas que interessam ao estudo da morfologia. Indmeras outras podem ser feitas, mas parece que essas atingem a es- s6ncia do problema. Neste trabalho pretendemos, em sfntese, responder a perguntas do tipo: - Por que formamos novas palavras? - Como formamos novas palavras? * Quando formamos novas palavras? - Por que formamos determinadas palavras e n5o outras? - Quais s5o as "partes" de uma palavra? - Quando variamos uma mesma palavra e quando criamos :unira nova palavra? - Qualquer pessoa pode criar uma nova palavra? - Baseado em que crit6rio se pode dizer que uma palavra existe em uma lingua? - Existem "palavras impossiveis"? Cremos estar assim sintonizados com os objetivos de uma teoria morfol6gica, tais como foram sintetizados por Scalise (1984, p. 4l): "O objetivo de uma TEORTA MORFOLOGICA 6 o de definir as 'novas' pala- vras que os falantes podem formar, ou mais especificamente, as regras atrav6s das quais as palavras s5o formadas." Mais adiante o autor con- clui, citando Aronoff: Um falante que ouve uma palavra pela primeira vez reconhece-a como uma palavra da sua lfngua, e tem intuiE6es a respeito de sua estrutura e de seu significado. Uma teoria morfol6gica, conclui Aronoff, deve tamb6m dizer alguma coisa a respeito desses fatos, em particular a respeito da rela- E5o entre os mecanismos formais que criam novas palavras e a andlise de palavras jd existentes. z3 I.1 A MORFOLOGIA E OS ESTUDOS LINGUISTICOS Se consultarmos gramdticas da lingua portuguesa, como a de Cunha e Cintra (1985), Bechara (1972) ou Cegalla (I979),veremos que todas elas dedicam um capitulo especial ao estudo da morfologia. Isso se d6 com as chamadas gramdticas normativas. No Ambito da lingiiistica ge- ral, ou seja, no que se refere ao estudo cientifico da linguagem, a mor- fologia tem tido dias de gl6ria e dias de abandono. Como veremos ain- da nesta introdugdo, a morfologia foi o centro das preocupaE6es da gramdtica estrutural, tendo ai alcanEado um progresso notdvel.16 na lingtifstica gerativo-transformacional, a morfologia ficou "perdida em algum ltgar", como afirma Aronoff (I976, p. 4): "Havia uma boarazlo ideol6gica para isso: com o seu zelo, a lingiiistica p6s-Syntatic Stnrctu- res viu fonologia e sintaxe por toda parte, resultando dai que a morfolo- gia ficou perdida em algum lugar." Thl posicionamento pode ser com- provado por interm6dio de outros trabalhos, como se verifica por esta passagem de Bauer (1983, p. 7): "No momento, o estudo da formagSo de palavras est6 sujeito a alteraEdes freqrientes. N5o h6 um corpo de doutrina pacificamente aceito nesse campo, de tal forma que os pes- quisadores est5o sendo obrigados a estabelecer a sua pr6pria teoria e procedimentos ) medida que caminham." De uns tempos para c6, no entanto, o zelo"p6s-Syntatic Structures" tem cedido lugar a estudos cadavez mais profundos da morfologia, em diversas partes do mundo, como se pode comprovar pela bibliografia no final deste trabalho. No Ambito especifico da lingua portuguesa, tem-se observado um interesse crescente pela disciplina, principal- mente depois da publicag5o no Brasil de Estruturaslexicais do portu- guAs: uma abordagem gerativa, de Margarida Basilio (i980). Neste trabalho defenderemos a posiEdo de que a morfologia 6 um ramo autdnomo da lingiiistica, com suas regras especificas, n5o coinciden- tes com as regras da fonologia, da sintaxe, da semAntica ou do discurso. E possivel distinguir quatro grandes correntes ou escolas que procu- raram descrever e analisar o componente morfol6gico das lfnguas: o descritivismo, o historicismo, o estruturalismo e o gerativismo. Maio- res informag6es sobre o hist6rico da morfologia poder5o ser encontra- das em Basilio (1980), Bauer (1983), Scalise (1984) e Spencer (1991). Nos itens subseqiientes trataremos de cada uma dessas correntes. 24 1.1.1 DSScRITIVISMo Como sabemos, os gram6ticos-fil6sofos gregos, com seu espfrito lo- grcizante, preocuparam-se sobretudo com a relaqdo entre a l6gica e a linguagem. Afinal, o que predomina: uma relaEdo de regularidade (analogia) entre os conceitos estabelecidos pelos homens e as linguas ou uma relag5o de irregularidade (anomalia) entre esses mesmos con- ceitos e as lfnguas? Preocupados, portanto, com a questSo da regularidade e da irregu- laridade em linguagem, os gregos Procuraram fixar paradigmas, como as declinaEdes e coniugaq6es. Esse modelo de estudo da lingua, ou, mais especificamente, de estudo da morfologia, a que se deu mais tar- de o nome de "Elemento e Paradigma",6, em filtima an6lise, um mo- delo preocupado com a descriqSo e fixaqSo de paradigmas, razSo por que pode ser chamado de descritivista. Com base na filosofia, ou, mais especificamente, na l6gica, a gram6tica grega aPresentou estudos de fon6tica, como a classificaEdo dos sons da lingua grega e descrig6es do acento, a par do estudo do vocabul6rio e da oraE5o. Foi Aristdteles quem primeiro apresentou as c6lebres "partes do discurso" (substanti- vos, verbos e particulas) e quem primeiro discorreu sobre a estrutura da oraq5o (o nome como suieito e o verbo como predicado). Os est6icos, por sua vez, introduziram o conceito dos casos nominais. Com relagdo aos modelos de estudo da lingua como o de "Elemento e Paradigma", citado anteriormente, consulte-se Hockett (1954) e Villalva (1986). Torna-se desnecess6rio dizer que a gramdtica latina seguiu o mode- lo da gramdtica grega. Como a influOncia da cultura greco-latina foi - e continua sendo - avassaladora sobre o mundo ocidental, 6 de se suPor que as gram6ticas escritas nos primeiros s6culos da nossa era tenham tido forte influ€ncia da gram6tica cldssica. Foi o que de fato aconteceu. Depois de uma 6poca de obscurantismo (ldade M6dia), a gramdtica descritivista gre- co-latina ressurgiu brilhantemente no s6culo XVII, i6 sob o dominio das concepE6es filos6ficas de Descartes, como se pode verificar pela Crammaire Gendrale et Raisonnde de Lancelot e Arnaud, de 1660 (ci- tado por IENSEN, 1990, p. 4). 25 1.1.2 HrsroRrcrsMo A influ6ncia da gramAtica grecoJatina sobre as linguas ocidentais foi tio grande, que um dos primeiros comp6ndios gramaticais do idio- ma, a Grdmmdtica da ltngua portugueza, de )o5o de Barros, que 6 de i540, apresenta um capitulo especial dedicado ) declinagSo dos no- mes, como em gramdticas do latim. No s6culo XIX, os estudiosos chegaram i conclusSo de que lfnguas como o portugu€s, o franc6s, o espanhol e o italiano, dentre outras, ti- nham vindo do latim, ou, mais especificamente, do latim vulgar. Sur- ge entSo a Filologia Romdnica que, ao lado da Filologia Germdnica, deu um enorme impulso ao estudo das linguas. A filologia, por ser um estudo essencialmente hist6rico, introduziu nas pesquisas lingiiisticas a obrigatoriedade de uma abordagem diacr6nica. Essa postura exerceu uma grande influ6ncia na concepgdo dos estudos gramaticais, tendo havido um progresso considerdvel na morfologia hist6rica. Ao mesmo tempo, essa visSo essencialmente hist6rica dos estudos lingii(siicos pri- vou os estudiosos de observaq6es sobre o funcionamento da lingua em uso. Em resumo, na chamada gramdtica hist6rica ou gram6tica com- parativa, embora tenha comeEado a surgir um interesse mais acentuado pela constituiEdo da palavra, pode-se dizer que esse interesse foi super- ficial, por dois motivos: em primeiro lugar, porque o comparativismo ainda estava dominado pelos ideais clSssicos, que atrelavam o modelo lexical a uma visSo padronizada da realidade lingtiistica. Em segundo lugar, a perspectiva hist6rica, que era o fulcro das preocupag6es dos comparativistas, confinava as pesquisas lingiiisticas a exemplos cristali- zados, dificultando ao extremo o estudo do vocdbulo em formaE5o. Em decorrdncia disso, nio houve posibilidade de pesquisas relaciona- das com a produtividade. A gramdtica comparativa preocupou-se mui- to mais com a evoluEso da palavra como um todo. 1.1.3 EsrnuruRAt-rsMo No principio do s6culo )C(, o pensamento ocidental foi sacudido por uma nova ordem, que teve inicio sobretudo a partir da obra do lin- gtiista suiqo Ferdinand de Saussure - Cours de Linguistique G1ndrale - publicado em i9l6 (1964). A essdncia do pensamento saussuriano 26 pode ser resumida nestas palavras de Dosse (1993, P. 65), ao referir-se i obra do mestre genebrino: "O essencial da demonstragSo consiste em fundamentar o arbitr6rio do signo, em mostrar que a lfngua 6 um sistema de valores constituido n5o por contefdos ou produtos de uma viv6ncia, mas fpor] diferenEas puras." A ess6ncia do pensamento saussuriano consiste, portanto, em se considerar que a lingua 6 um "sistema de valores". Podemos dizer que os fonemas, os morfemas, as palavras, as frases, o texto, enfim, as for- mas lingiiisticas s5o valores que se op6em entre si, formando as mais variadas estruturas da lfngua. Saussure 6 considerado o "pai do estrutu- ralismo", embora esse termo tenha sido usado pela primeiravez por fa- kobson. Na verdade, Saussure s6 tinha feito uso do termo sistema, qtte usou 1J8 vezes nas 300 pdginas do seu Cours de Linguistique Cdn'lrale (citado por DOSSE, 1997,p.66). Paralelamente h vertente europ6ia do estruturalismo, fundada por Saussure, surge o estruturalismo norte-americano, cujos principais mentores foram Edward Sapir (l9Zl) e Leonard Bloomfield (1933). Embora possam ser citados alguns autores norte-americanos mais preocupados com a "filosofia da linguagem", como 6 o caso de Sapir, n5o hd drivida de que o estruturalismo norte-americano, capitaneado por Bloomfield, apresentou um cardter eminentemente prdtico, utili- tarista. De fato, preocupados com a possivel extinqSo das linguas indi- genas norte-americanas, localizadas sobretudo na costa oeste do pais, os lingiiistas lanEaram-se a uma aventura semelhante d Corrida do Ouro: passaram a descrever as linguas indigenas do territ6rio america- no. No inicio, a tarefa foi puramente empirica, tendo inclusive surgido um manual que "ensinava" a descrever e analisar as linguas: trata-se da obra organizada por Franz Boas, intitulada Handbook of American In- dian Languages (l9Il). Mais tarde surgiram obras not6veis de andlise lingiiistica, como o livro de Bloomfield (1933), Language, considera- do um marco na evoluqSo da Lingtiistica. Embora tenham se Preocu- pado com a descriqdo das linguas, os estruturalistas ndo foram, portan- to, simplesmente descritivistas, como os gregos e os latinos. A noESo de estrutura foi fundamental para a caracterizaEso dessa escola. No afd de descrever as linguas, os estruturalistas chegaram ao con- ceito de morfema, que definiremos provisoriamente como "a menor unidade significativa da palavra". Na palavra infeliz temos duas unida- 27 des mfnima s, in + feliz; em salmista, salm + ista; em saltitar, salt + it + d + r, e assim por diante. No item que se segue (1.1.4), bem como no decorrer deste trabalho, veremos que uma morfologia baseada exclusi- vamente na depreensio e classificaEso dos morfemas (como queriam os estruturalistas) 6 algo inadmissivel em morfologia gerativa(nasir,ro, 1980, p. 42; ANDERSON, 1992, p. 69). Por esse motivo, ndo vemos ne- cessidade de desenvolver tal questdo. Para o que nos interessa no mo- mento, podemos dizer que a vis5o estruturalista desenvolveu com bas- tante rigor as t6cnicas de depreensSo dos morfemas e essa foi a sua preocupaEso bdsica como movimento lingiiistico. Em sintese, o estru- turalismo preocupou-se em: a) fazer a segmentaEso dos morfemas; b) proceder h classificaEso dos morfemas. Para um estudo mais profundo do morfema, consulte-se especialmente: Gleason (1955), Hochett (1958), Elson e Pickett (1973) e C6mara fr. (1964b). O modelo do pe- riodo estruturalista ficou conhecido como "Elemento e Arranjo". Um balanqo do estruturalismo poderd ressaltar os seguintes asPec- tos positivos da "escola": a) o carSter cientifico do movimento, que partiu para um trabalho experimental, com gravag6es nos diversos campi de pesquisa, resultando dai uma atitude destituida de preconceitos, em que uma lingua indige- na - e mais tarde qualquer modalidade de lingua - Passava a adquirir o mesmo status ou o mesmo interesse cientifico de linguas cl6ssicas ou oficiais, como o latim e o ingl€s, por exemplo; b) como decorr6ncia do item a, chegou-se h conclusSo de que a lin- gua 6 um sistema de valores, de oposiE6es e de elementos que formam uma estrutura, e que essa estrutu ra 6 vilida em si mesma, ou se ja, pode se constituir em um objeto da ciOncia independentemente de sua ori- gem, de sua hist6ria e mesmo de seus suieitos falantes. Desse modo, o sincronismo lingii(stico, ou seja, o estudo da lingua num momento dado, em vez de destronar o diacronismo, passou a ter exist€ncia para- lela a ele e independente dele, permitindo que as linguas sejam estu- dadas por duas perspectivas autdnomas: a descritiva e a hist6rica; c) com relaEso ao nosso campo de interesse, pode-se dizer que a morfologia alcanqou um progresso notdvel no estruturalismo. Preocu- pados com a segmentaqdo e a classificag5o dos morfemas, os lingiiistas americanos levaram essa t6cnica ao extremo, o que, sem d(vida, ape- sar dos exageros, veio beneficiar o estudo da morfologia. A preocuPa- ZB gao com essa t6cnica era tao grande, que outros comPonentes lingtifs- ticos, como a sintaxe e a semAntica, foram deixados de lado, tendo sido pouco estudados nesse periodo. Como sempre acontece com a evolugSo do pensamento humano, no final da d6cada de 1950 a "escola", ou "t6cnica", ou "modelo" estru- turalista jd demonstrava sinais de esgotamento, quando o lingtiista nor- te-americano Noam Chomsky lanqou as bases da Gramdtica Gerativo- Transformacional, com o livro Syntatic Structures (1957). Sobre essa nova visSo dos estudos da linguagem, falaremos no item que se segue. 1.1.4 GsnarNISMo O gerativismo introduziu uma nova concepqSo nos estudos da lin- guagem, muito diferente, por exemplo, da "escola" anterior, o estrutu- ralismo. A vertente bloomfieldiana do estruturalismo estava compro- metida com uma postura essencialmente procedimental, desdenhan- do postulaq6es mais profundas sobre a lingua. Poder-se-ia dizer,6,ver- dade que com um certo exagero, que para o movimento estruturalista "estudar uma lfngua seria descrev6-1a". Thl postura era, evidentemen- te, muito superficial, tendo Chomsky chegado a afirmar: "LJma teoria lingiiistica ndo deve ser confundida com um manual de procedimen- tos dteis, nem se deve esperar que ela assegure m6todos mecAnicos paraa descoberta de gramdticas" (LYONS, 1973,p.40). Para Chomsky, a lingua 6 algo muito mais profundo, inerente ) condiEso humana, re- lacionado .o- " capacidade criadora de um ser pensant.. E o que se deduz de suas palavras (cHotlvtsrv, 1972, p. 23): "1...] , linguagem humana 6 livre de controle de estimulos e ndo serve a uma funE5o meramente comunicativa, mas 6 antes um instrumento para a livre expressSo do pensamento e para a resposta apropriada bs novas situa- E6es. Estas observaq6es referentes ao que temos chamado o aspecto criador do uso da linguagem [...]" Mais adiante, na pAgina 29, o lin- giiista conclui: "O resultado 6 uma linguagem humana que serve pri- mordialmente como 6195o do pensamento, como meio de chegar ao pensamento reflexo e s6 secundariamente serve ) finalidade de comu- nicagSo social." Se nos for perguntado por que adotamos as concepg6es da gramdti- ca gerativa como base de sustentagfio Para as posiE6es assumidas neste trabalho, diremos que um dos motivos 6 o fato de a lingilistica choms- kyana considerar a linguagem ndo como um simples meio de comuni- caq5o, mas como uma projeEso ou um apandgio do pr6prio homem. Ao considerarmos que a compet€ncia lingiiistica do falante deve ser o parAmetro para o estudo das relag6es lexicais, estamos reconhecendo a devida importdncia da linguagem humana, que deixa de ser um mero instrumento de comunicaqdo, Para se confundir com a ess6ncia do pr5prio homem. O primeiro parlgrafo de Estruturas lexicais do portuguAs: uma abor- dagem gerativa, de Margarida Basilio (1980, p. 7), parece resumir com precisdo o "espirito" da abordagem gerativa em face da abordagem es- truturalista, no campo da morfologia: Na gram6tica tradicional, assim como no estruturalismo, a morfologia de- rivacional 6 definida como a parte da gram6tica de uma l(ngua que des- creve a formagdo e estrutura das palavras. Numa abordagem gerativa, po- demos dizer que a morfologia derivacional 6 a parte da gramdtica que dd conta da compet6ncia do falante nativo no l6xico de sua lingua. Na morfologia tradicional, a preocupaEio residia em descrever as linguas, o que consistia em separar os morfemas da lingua e classifica- los. Era uma operag5o "de fora para dentro", em que o obieto lingua era dissecado numa mesa de operaESo. |d na perspectiva gerativista, h6 uma preocupaqdo dos lingiiistas em explicitar a capacidade ou a com- pet€ncia que um falante nativo tem com relaEso ao l6xico de sua lfngua, ou seja, a sua capacidade de formar novas palavras, de reieitar outras, de estabelecer relaq6es entre itens lexicais, de reconhecer a estrutura de um vocdbulo, etc. Como afirma Katamba (1997, p. 99): O l6xico nio 6 uma lista passiva de palavras e de seus significados. N5o 6 simplesmente como um laborat6rio de anatomia, onde palavras i5 existen- tes sdo dissecadas em morfemas constituintes e examinadas num micros- c6pio. N5o, nessa teoria o l6xico 6 muito mais do que isso. E tamb6m um lugar cheio de viialidade, em que as regras sdo usadas ativamente para criar novas palavras. 30 A morfologia gerativa chegou mesmo a questionar o interesse da morfologia em identificar e classificar os morfemas de uma lingua. Ba- silio (1980, p.42) afirma que "o estabelecimento de morfemas como entidades lingtifsticas ndo 6 necess5rio numa abordagem gerativa da morfologia derivacional". Mais adiante, na mesma plgina, a autora si- tua a condigdo de exist€ncia dos morfemas na perspectiva da morfologia gerativa: "Dentro de uma abordagem gerativa, palavras sao formadas po, ,.gr"r e/ou analisadas por regras, de modo que o estabelecimento de entidades como morfemas ou afixos, como elementos separados de regras e bases, constitui uma repetiEso desnecessdria e, provavelmente, indesejdvel." De fato, como afirma Anderson (1992, P' 56), "[..'] ot princ(pios que sustentam a nog6o estruturalista de morfema devem ser pelo me- nos reformulados, se nao abandonados". A alternativa que o autor pro- p6e "trata o material morfol6gico como relaq6es (entre formas lexi- cais) ou processos (atrav6s dos quais uma forma lexical pode ser cons- tru(da a partir de outra)" (p. 62).Anderson conclui a sua posiqao sobre o assunto: "Em vez de um l6xico de afixos, a morfologia de uma lingua deveria consistir em um coniunto de regras, que descreveriam as mo- dificaqOes das formas existentes que estariam relacionadas com outras formas" (p. 69) Esse modelo de andlise lingiiistica da morfologia ficou conhecido na literaturacomo "Elemento e Processo". Segundo a "teoria padrSo" da gram6tica gerativa, apresentada so- bretudo a partir de Aspects of the Theory of Syntax, de Chomsky (1965), uma lfngua natural apresenta dois tipos de estrutura: a profun- da e a superficial. Na estrutura profunda estariam as construq6es fixas, regulares e constantes, como sujeito + predicado, verbo transitivo dire- to + objeto direto, determinado + determinante, etc. As estruturas su- perficiais seriam realizaE6es ou manifestaq6es dessa estrutura profun- da. Assim, a estrutura profunda Ronaldo saboreia um abacate em companhia do irmlo corresponde a vfrias estruturas superficiais, como: Em companhia do irm5o, Ronaldo saboreia um abacate. 31 Um abacate Ronaldo saboreia em companhia do irm5o. Ronaldo n3o saboreia um abacate em companhia do irmio. Ronaldo saboreia um abacate em comPanhia do irm6o? Um abacate 6 saboreado por Ronaldo em companhia do irm5o' Os exemplos dados ndo esgotam todas as possibilidades de manifes- taqSo da estrutura profunda na estrutura superficial. A passagem da pri- meira para a segunda 6 feita atrav6s de regras de transformaqSo. Diz-se tamb6m que a estrutura profunda gera estruturas superficiais, dai o nome de gramdtic a ger ativ o -tr ansform ac iondl, o:u, simplesmen te, gr a- mdtica gerativa. Na chamada teoria padr6o, as regras de transformagSo eram todas sintdticas e fonol6gicas. Assim, a explicaEso para a geraEio de uma pa- lavra como transbordamento, por exemplo, era dada atrav6s de regras sintdticas. Logo, por6m, os gerativistas se deram conta de que certas explicitaq6es s6 poderiam ser feitas se se levasse em consideragio a existencia de um componente morfol5gico autonomo. como afirma Miranda (1979,p. i l), "1...] ,o tentar restringir o poder da sintaxe e da fonologia, os gerativistas se deram conta de que certos fen6menos que ofereciam resistOncia a uma descriq5o adequada em um desses niveis, poderiam ser descritos dentro de um n(vel morfol6gico". E it t.t.ttrttte observar que foi o pr6prio Chomsky quem primeiro chamou a atengSo para a possibilidade de independ€ncia da morfolo- gia em face da sintaxe, com o artigo "Remarks on Nominalization" (cHousrcv,1970). Ao estabelecer disting6es sintSticas, semAnticas e de estruturaq5o interna entre "gerundive nominals" e "derived nomi- nals", Chomsky, segundo Scalise (1984, p 19), "1...] conclui que no- minais derivados nio podem ser criados atrav6s de transformaq6es a partir de um verbo na estrutura profunda e prop6e, em vez disso, um tratamento 'lexical' para tais verbos, isto 6, atrav6s de regras morfol6gi- cas que operam dentro do componente lexical". Para termos uma id6ia "visualizada" da quest5o, reproduzimos a se- guir o esquema do modelo cldssico da gram6tica gerativa, apresentado por Spencer (1991). )L Regras de estrutura da frase J L6xico -+ Estruturas profundas -+ interpretagdo semAntica Regras transformacionais J Estruturas superficiais J Fonologia Essa posiEso de Chomsky, que passou a ser conhecida na literatura como H ip6tese Lexic alista, trouxe al gumas conseqii€ncias importantes para o esfudo da teoria lingtiistica em geral e, mais especificamente, para o desenvolvimento da morfologia lexical. Segundo Scalise (1984, p. 20), as principais conseqii6ncias s5o: a) costuma-se dizer que "Remarks..." n6o foi revoluciondrio em si mes- mo, mas desencadeou uma s6rie de revoluE6es: de fato, n5o s6 o compo- nente de base foi afetado, mas tamb6m o componente transformacional sofreu modificag6es; b) em "Remarks..." Chomsky sugeriu, pela primeira vez, que o "poder" da gramdtica nio precisa estar concentrado necessariamente no compo- nente transformacional; c) finalmente, "Remarks..." criou um espago t6cnico para um compo- nente morfol6gico aut6nomo, uma possibilidade que foi excluida explici- tamente dos primeiros trabalhos da gramdtica gerativa transformacional. A partir da Hip6tese Lexicalista, vdrios estudiosos trabalharam no desenvolvimento da morfologia lexical, como Halle (1973), fackendoff (I975) e principalmente Aronotr (I976). Para o portugu6s, foi de capi- tal importdncia a publicaq5o do livro Estruturas lexicais do portuguAs: uma abordagem gerativa, de Margarida Basilio (1980). Para posteriores desdobramentos da morfologia lexicalista, consultem-se especialmen- te Scalise (1984) e Spencer (1991). 77 1.2 CONCEITOS BASICOS DA MORF'OLOGIA GERATIVA Desde o aparecimento de "Remarks. .." at6 os mais recentes trata- dos de morfologia, varios conceitos foram sendo fixados com o tempo e se tornaram indispensdveis Para o estudo da morfologia gerativa. Para uma melhor compreensSo dos,capitulos que se seguem, vamos apresentar alguns desses conceitos. E preciso salientar que a esta altu- ra dos estudos morfol6gicos, estamos longe dos rigorismos e dos for- malismos da gramdtica gerativa. Aqui interessam-nos aqueles pressu- postos basicos do gerativismo que permanecem indispens6veis no es- tudo da morfologia. 1.2. t Gnar,tArca SUBIACENTE Quando se fala em gramdtica, as pessoas lembram-se logo dos ma- nuais ou compendios gramaticais que existem em nossa lingua, como os de Cunha e Cintra (19S5) e Bechara (1972), por exemplo' A"gra' m6tica" contida nesses compendios tem uma preocupaqdo com a norma culta, ou seja, hd nesses livros uma preocupaEao em ensinar a chama- da "lingua correta" ou lingua-padrao. Trata-se de gramdticas prescriti- vas ou normativas. H5, por6m, outros tipos de gram6tica. Al6m da gram6tica hist6rica, que se preocupa com a evoluEso de uma lingua atrav6s dos tempos, existem tamb6m as gramdticas descritivas, que se preocuPam em des- crever as linguas, sem nenhuma intenEso normativa. E o que faziam, por exemplo, os estruturalistas. A lingtiistica gerativa se preocuPa com a gram6tica subjacente. Que vem a ser isso? Sabemos que pessoas analfabetas podem se comunicar normalmen- te, sem nunca terem passado por uma escola ou sem nunca terem lido um livro. Uma lingua possui as suas estruturas e h6 algumas regras que devem ser seguidas se algu6m quer se comunicar nessa lingua. Sendo as- sim, um analfabeto - ou qualquer falante - rejeitar6 uma frase do tipo oOntem ) tarde eu fui passear meus amigos com 34 porque, para compor essa frase, foi desrespeitada uma regra sintdtica de ordem dos termos, que diz que a preposiqSo deve encabegar o ad- junto adverbial. De acordo com a regra, a frase deve ser: Ontem ) tarde eu fui passear com meus amigos. N6s, usudrios de uma lingua, possuimos, portanto, uma gramdtica internalizada, implicita, subjacente, que sabemos maneiar adequada- mente, intuitivamente, mas que n5o sabemos descrever, ou, melhor ainda, explicitar. Compete ) lingiiistica gerativa explicitar essa gram6- tica subjacente, e esse serd o objetivo deste trabalho no Ambito da mor- fologia lexical. Esse objetivo foi traEado por Chomsky em 1968, como se pode verificar por estas palavras extraidas de seu c6lebre artigo "A linguagem e a mente" (cHol,tsrv,I970b, p. 35): A gramdtica gerativa, portanto, representa o conhecimento que o falante- ouvinte tem de sua lingua. Podemos empregar o termo gramdtica de uma lingua ambiguamente, com refer6ncia nio apenas ao conhecimento inter- nalizado e subconsciente do falante mas tamb6m ) representaqdo que o lingr-iista profissional faz desse sistema de regras internalizado e intuitivo. I .2.2 CoTTaPETENCIA LEXICAL "A noE5o de competdncia, isto 6, o conhecimento que o falante tem de sua lingua enquanto falante nativo, 6 um dos conceitos mais bdsicos na teoria gerativa" (nasilro, 1980, p. 8). Por compet6ncia lexical en- tende-se o conhecimento que o falante tem do l6xico da sua lingua. Conhecer uma lingua 6 saber usd-la, tanto para produzi-la quanto para entend6la. Conhecer o l6xico significa saber usar os itens lexicais e poder estabelecer relaE6es entre eles. Segundo Basilio (1980, p. 9), a compet6ncialexical de um falante nativo compreende: a) o conhecimento de uma lista de entradas lexicais; b) o conhecimento da estrutura interna dos itens lexicais, assim como relaqOes entre os v6rios itens; c) o conhecimento subjacente ) capacidade de formar entradas lexi- cais gramaticais novas (e, naturalmente, rejeitar as agramaticais). ?q Este trabalho pretende desenvolver com rigor o item c no terceiro capftulo e os itens b e c apartir do quarto. Por ora, 6 importante estabe- lecer o que se entende por lista de entradas lexicais, como ficou expres- so no item a da transcrigSo de Basilio. IJm item ou uma entrada lexical6 uma forma lingtiistica que o fa- lante conhece ou utiliza. A relaEso das entradas lexicais constitui o l6xi- co de uma lingua. As palavras, as formas Presas do tipo geo-, antropo- e bio- e os afixos - dentre outros elementos - constituem a lista de entra- das lexicais da lingua (esta questSo ser6 discutida no terceiro capitulo). Devemos frisar, por6m, com Basilio, que a competencia lexical nao se resume ao conhecimento de uma lista de itens lexicais. Al6m desse conhecimento, o falante pode identificar a estrutura interna de um vo- cribulo e criar palavras novas. Essas quest6es, como dissemos' serSo dis- cutidas a partir do quarto capitulo. Neste trabalho, tomaremos como parAmetro para as nossas discus- s6es a competencia lexical m6dia dos alunos da Faculdade de Letras da UFMG. Sendo assim, em vez de nos basearmos em um falante ideal, como preconizava Chomsky (196r, P. 83)' preferimos tomar como refer6ncia a compet6ncia lexical de um gruPo de falantes. 1.2.3 Rpcnns MoRFoLoclcAS E REGR{s sINTATICAS o conhecimento que o falante tem do l6xico de sua lingua facultar- lhe-6 fazer uma s6rie de generalizag6es a respeito desse l6xico. A gra- mdtica subiacente de um individuo registrard, por exemplo, relaq6es paradigmdticas do tipo: pescar -+ pescador criar -+ criador paquerar -+ paquerador Com base nessa relaqdo paradigmAtica, o falante poderd criar pala- vras novas, como (?)fabricador e (?)apelidador, apresentadas no inicio deste capitulo. N5o 6 dificil imaginar certas formaq6es possiveis na lin- gua, como (?)conse guidor, (?) apertador, (?) desculp ador, (?)xingador, etc. Observe-se que o ponto de interrogagdo entre par6nteses, colocado antes de uma palavra, indica um item lexical possivel (segundo as regras mor- 36 fol6gicas da lingua), mas n5o-existente como palavra real na comunida- de lingiiistica que serve de base para este trabalho (cf. item anterior). Quer se trate de formaE6es antigas da lingua, quer se trate de novos itens lexicais, todas as palavras citadas foram formadas a partir de ver- bos.lA palavras em -eiro s5o sempre formadas a partir de substantivos, como se verifica pela relaq5o paradigmiitica: leite -+ leiteiro sucata -+ sucateiro manola -> manoteiro Com base em relaq6es paradigm6ticas como as apresentadas, 6 pos- sivel formalizar regras morfol6gicas para os dois casos, como: V(verbo) -+ S(substantivo)-4o, e S -+ S-.i,o E claro que a formalizagdo apresentada ndo expressa toda a "verda- de" a respeito da regra morfol6gica. A base () esquerda da seta), que ser6 estudada com mais rigor no terceiro capftulo, n5o poderd ser qual- quer verbo, como no primeiro caso (omonedor, *falidor, ointeressddor, " comportador, o chegador, o ficador, o partidor, o cdnsddor, etc. ), nem poderii ser qualquer substantivo, como no segundo caso (\obrinheiro, o sogreiro, a preparaqdoeiro, o condominio-fechadeiro , etc .) . E preciso es- pecificar que tipo de base poderii receber o sufixo -dor ot o sufixo -elro. Essa especificaqdo poderS ser fon6tica, morfol6gica, sint6tica, semAnti- ca, etc. Feita a caracterizaqdo da base e do produto (i direita da seta), ter-se-d a regrd morfol6gica. Constitui uma das tarefas da morfologia gerativa a explicitaEso das regras morfol6gicas do portugu€s. Observe- se que o asterisco, como em sintaxe, 6 empregado para indicar que se trata de uma formag5o agramatical, ou seja, que contraria as regras morfol6gicas da lingua (cf. o item c do conceito de compet6ncia lexi- cal, no item 1.2.2 deste trabalho). Uma pergunta que se poderd fazer com relaqdo )s regras morfol6gi- cas 6 se elas possuem a mesma natureza das regras sintdticas. Em principio, dir-se-ia que, da mesma maneira como pode criar sentenEas novas, um falante poder6 tamb6m formar palavras novas. Ora, como veremos adiante, as regras morfol6gicas diferem nitidamen- 37 te das regras sint6ticas. Desde o surgimento de "Remarks..." de Chomsky (cf. item i.1.4), hd autores que separam a teoria da morfolo- gia derivacional da teoria das transformaE6es sintdticas, como se cons- tata por estas palavras de Spencer (199i, p. 69): "A importdncia prima- cial desse artigo para a morfologia foi que ele apontou para a necessi- dade de uma teoria da morfologia derivacional, distinta da teoria das transformaE6es sini6ticas." Essa constataqSo tamb6m pode ser feita por estas palavras de Anderson (1982, p. 591): A ess6ncia da Hip6tese Lexicalista e da maioria dos mais recentes traba- lhos em sintaxe se baseia na hip6tese de que a estrutura interna das pala- vras n5o 6 estabelecida por principios sint6ticos, nem mesmo acessivel a esses principios. 1...1 Do ponto de vista da sintaxe, as estruturas produzi- das no l6xico sdo essencialmente opacas: elas podem ter estrutura interna, mas essa estrutura n5o estd sujeita ) manipulaEso ou compet6ncia das re- gras da sintaxe, que tratam os itens lexicais como unidades integrais, at6- micas. A ess6ncia da Hip6tese Lexicalista, sob esse aspecto, estd represen- tada pela separag5o entre os componentes sint6ticos e lexicais. Essa posiqSo jd tinha sido fixada com clareza por Arono{f (1976, p. 46): | . . . ] Regras de Formagdo de Palavras s5o regras do l6xico e como tais ope- ram totalmente dentro do l6xico. Seo totalmente separadas de outras re- gras da gramdtica, embora n5o o sejam de outros componentes da gramd- tica. Uma Regra de Formagio de Palavras pode fazer refer6ncias a proprie- dades sintriticas, semAnticas e fonol6gicas das palavras, mas nio a regras sintdticas, semAnticas ou fonol6gicas. Uma conseqiiOncia importante dessa distingSo apontada por Spen- cer estaria naquilo que Bauer (1983, p. 7l) chama de probabilidade de oconAncia. Uma vez acionada a regra sint6tica, urna sentenEa serd cria- da. A exist6ncia da sentenEa serd, por6m, efemera, ou seja, uma vez criada, ela desaparece, servindo apenas para uma comunicaEso especi- fica e imediata. Com a regra morfol6gica d6-se um fen6meno interes- sante: para usarmos uma met6fora muito conhecida em televisio, dire- mos que um produto poderd ficar congelado, ol seja, uma palavra, l8 uma vez criada, poderS ser perenizada. como afirma Anderson (1992, p.I97), "1...] uma vez registrada como palavra, ela toma, pelo menos potencialmente, uma exist€ncia lexical concomitantemente indepen- dente". E pot isso que toda lingua possui um dicion6rio, que, al6m de registrar palavras antigas, acolhe tamb6m as novas formag6es que se "congelam" em um idioma, como resultado do acionamento das re- gras morfol6gicas. E verdade que nem toda formagdo nova se torna ins- titucionalizada, ou seia, conhecida de uma comunidade lingiifstica. Hd certas criaE6es, que chamaremos de formaq\es esporddicas (cf. item 4.Z.D,que nascem de uma discussSo com um amigo, por exemplo, ou da pena de um escritor. l)naformaqdo esporddicatem uma existencia efemera. Mas 6 inegdvel que o l6xico de uma comunidade lingiiistica estS constantemente se renovando, como comProvam certas palavras da lingua que se "congelaram" recentemente, como: imextvel,fum6dro- mo, doleiro, cdrreatd, antena parab6lica, condominio fechado, hipermer- cado,mega-star, etc. Sob esse aspecto, Bauer (i983, P. 7l) lembra mui- to judiciosamente que as linguas possuem diciondrios de palavras, mas n6o possuem diciondriosde sentengas: "Nao h6 diciondrios de freqii€n- cia de sentenEas, ou teorias a respeito de mudangas fon6ticas em sen- tenEas mais freqiientes. Os dicion6rios registram os lexemas de uma lingua (nao exaustivamente, 6 verdade), mas qualquer tentativa de re- gistrar as sentengas de uma lingua ser6 algo ridiculo." Como decorrencia do que foi dito at6 aqui, fica fdcil entender por que a pergunta "VocO conhece tal palavra?" 6 perfeitamente aceitdvel, ao passo que "Voc6 conhece tal sentenEa?" 6 inaceitSvel entre os falan- tes de uma l(ngua. O resultado natural desse "congelamento" 6 que as palavras Passam a ter uma existencia aut6noma, ou seja, elas passam a ser repetidas Pe- los usudrios independentemente do acionamento da regra. Uma das conseqtiencias dessa autonomia mais embaraqosa para o estudo da morfologia 6 que o signo lingtifstico poderd adquirir um sentido novo, imprevisivel, como 6 o caso do vociibulo palavrdo, que nao significa simplesmente "palavra grande", mas "palavra inconveniente". A ques- tAo da extens5o de sentido serd discutida no item 3.4. Com relagSo ao "congelamento" dos produtos das regras morfol6gi- cas, conv6m lembrar a conhecida express5o de Aronoff (I976, p.ZZ), once-only rules, qtse define bem o que estamos estudando: 79 Uma importante peculiaridade da concepg5o de regras de formaqdo de palavras que estou esboEando aqui 6 que ndo considero que essas regras estejam sendo aplicadas sempre que algu6m fale. SAo regras para consti- tuirem novas palavras, que podem ser anexadas ao l6xico do falante. Pode- mos chamd-las de "regras que se utilizam uma s6 vez" fonce-only ilesl. Sio muito diferentes das regras de sintaxe e de morfologia que se aplicam na gerag5o de cada sentenEa. 1.2.4 Recnns DE ANALISE EsrRurunal (RAEs) s RscRAs DE FoRMAeAo DE Par.qvRAs (RFPs) At6 agora temos empregado indistintamente a expressSo regrd mor- folSgica para nos referirmos tanto i estrutura de uma palavra existente na lingua quanto ) produgdo de um novo item lexical. Suponhamos que seja feita a gravagio de uma conversa de adoles- centes. A grande maioria das palavras serd de formas institucionaliza- das, isto 6, i6 lamiliares aos falantes, como cdrro, colega, mde, escold, nadar, correr, prep araq do, fingimento, semdndl, super-ico, dedo-duro, etc. Nessa conversa poderSo aparecer tamb6m palavras novas, ndo-ins- titucionalizadas, nunca ouvidas antes, surgidas no calor das discuss6es, como o vocdbulo apelidador, citado no infcio deste capitulo. Um ado- lescente, por exemplo, poderd tamb6m dizer que vai dar :uma mochila- da na cabega do colega, simplesmente porque este o xingou. Com relaqSo aos itens complexos institucionalizados, 6 possivel ao falante reconhecer a estrutura das palavras. Pelo fato de saber que pre- paragdo "vem de" preparar. qlue fingimento "vem de" fingir e que se- manal "vem de" semdnd, esse conhecimento nos leva a concluir que o falante 6 capaz de analisar a estrutura das palavras derivadas. Ao fazer isso, o usu6rio estard empregando uma Regra de Andlise Estrutural, ou seja, uma RAE (nasir,Io, 1980, p 49). Essa andlise da estrutura das pa- lavras que o falante tem a capacidade de fazer pode ser formalizada da seguinte maneira: lIx],lYlb A RAE de preparaqdo ser6'. 40 [[preparar]"-g5o], Ao produzir novos iiens lexicais, como apelidador, mochilada e mu- treteiro, o falante estard fazendo uso de uma RFP, ou seja, de uma Re- gra de Formag5o de Palavras (easilto, 1980, p. 49), que pode ser for- malizada assim: IX]a-+lIx]aYlb A RFP de apelidador ser6: Iapelidar ] " -+ [ lapelidar ] u-dor L Uma RFP 6 estabalecida com base em relaq6es paradigmdticas, como vimos no item 1.2.3. Assim, a RFP que explica a formaEso de um item lexical novo como taxista 6.: lXl,-+[[X],-istal, que pode ser reescrita da seguinte forma: I t6xi ], -+ [ [ taxi ],-ista l, Essa RFP, que pode ser acionada a qualquer momento (cf. encon- trista, palestrista, parecerista, zapatista, minastenista, iinglista - de iin- gle -, fumpista - de FUMP, etc.), 6 estabelecida com base em uma relaq do p ar adi gmdtic a: flor -+ florista mdquina -+ maquinista arte -+ artista hap6zio -+ trapezista roteiro -+ roteirista dente -+ dentista, etc. A formalizaEso de uma RFP, do modo como temos apresentado at6 aqui (S e S-do,, por exemplo), 6 apenas a "ponta de um iceberg". De fato, n5o basta que se determine a categoria lexical da base e do produto. 4t E necess6rio tamb6m que se subcategorizem a base e o produto' Con- v6m transcrever estas prlrur", de Aronoff (L976,p.47), a prop6sito das RFPs (ou WFRs - Word Formation Rules - no original): A base 6 sempre especificada sintaticamente' Assim' por exemplo ' a regra com o sufixo # nur, 1rudnu", porousness) opera apenas com adietivos' Ou- tras disting6es sint6ticas al6m da mera distinEso categorial s6o possiveis e tipos de subcategorizaEdo sdo citados' Assim' o sufixo + ee l" '] 6 anexado "i.n", a verbos transitivos (employee, payee' otravelee)' RFPs tamb6m ptd.- ser sensiveis a restrig6es selecionais da base' Assim' esse mesmo iufixo 6mais restrito a verbos que permitem obietos animados ou obietos indiretos [...] Na pdgina ZZ da obra citada, Aronoff define com clareza o que se entende por uma RFP: As regras regulares a que nos referimos serdo denominadas de Regras de Form"aqdo di Polonror(RFPs)' Uma regra especifica um coniunto de pala- vras sobre o qual ela pode oPerar' Esse conjunto' ou qualquer membro desse coniunto, n6s d."o-i"u"mosbase dessa regra' Toda RFP especifi- ca uma itnica operaqio fonol6gica, que opera sobre a base' Toda RFP tamb6mespecificaor6tulosinljticoeasubcategorizagtrodapalavrare- sultante, bem como a sua interpretagao semAntica' que 6 uma funElo da interpretagSo da base. Toda RFP corresponde a uma RAE' Ao criar uma palavra nova ou ao interpretar um novo item lexical, o falante demonstra conhecer a es- trutura do item rec6m-criado. cumpre dizer que 6 essa transparencia morfossemAntica que permite o surgimento de novas entradas lexicais' pois, antes d. -"i, ,tada' as Pessoas querem entender e ser entendidas' ' A respeito das MEs, tr€s observaq6es devem ser feitas: a) o conceito de ME est6 necessariamente ligado ao estabeleci- mentoderelaq6esparadigmdticas'sendoassim,podemosaplicaruma determinada RAE a momentaneo, uma vez que 6 a mesma RAE que explica a estrutura de instantAneo,Iitordneo, cutdneo' etc' Ao mesmo t.-po, o falante poder6 estabelecer a estrutura de palavras isoladas, como casebre, mogoila, pedestre, sertaneio, andarilho' maruio' sem 47 contudo aplicar a elas nenhuma RAE, uma vez que, por definiq5o, re- gras n5o se aplicam a casos isolados. Esse fen6meno, denominado fos- silizaqdo, ser6 estudado no item 4.5. b) Uma RAE pode ou ndo corresponder a uma RFP. A RAE que permite reconhecer as estruturas de palavras, como florista, maquinis- ta e artista, corresponde i RFP que permite criar itens novos, como en- contrista, palestrista e zapatista. fd RAEs que estabelecem as estruturas de palavras como momentdneo, celeste, campestre, rdseo e natalicio ndo correspondem a RFPs, uma vez que na lingua atual n5o se criam no- vas palavras com os sufixos -dneo, -este, -estre, -eo e -icio. c) As vezes o reconhecimento de estruturas de determinadas pala- vras, como agredir, conceder, carpintaria, moroso e malabarismo, 6 mais dificil, sendo necessdrio langar m5o de outros expedientes que nos ofe- rece o l6xico. O que se quer dizer com isso 6 que a tarefa de fixaqSo das RAEs difere em vdrios aspectos da fixaqSo das RFPs, como veremos a partir do Capitulo 5. Com relaqdo )s RFPs cabe ainda uma observaEso: se existe uma re- gra que permite a formaEso de novos itens, como encontrista, palestris- ta e cruzadisfa, por que na lfngua n5o existem palavras como o postista, oanelista, omesistd, oescadista e omeninisfa? Esse 6 um dos pontos maiscontrovertidos da morfologia derivacional, para o qual Aronoff (I976, p. l8) jd havia chamado a atenEdo: A maior diferenga entre a sintaxe e a morfologi, [ ] 6 que na morfologia derivacional hd uma distinq5o para ser feita entre as classes de palavras possiveis e as realmente existentes [ . ] hA muitas palavras que uma gra- mdtica pode gerar em uma lingua que, acidentalmente ou assistematica- mente, nunca aparecem. Thl problema constitui-se realmente em um desafio para os estudiosos da quest5o. Vamos tratar desse assunto com profundidade no Capftulo 6. 1.2. 5 PnoourrvrDADE LEXTcAL Uma das mais embaraEosas perguntas que se pode fazer a um pro- fessor de portuguOs 6 "Tal palavra existe?". E claro que essa pergunta 43 Podeserfacilmenterespondida,seseadotarComocrit6riode..exist6n- ii",, d" palavra o fato dL ela estar ou ndo registrada em dicion6rio. Ve- remos, no entanto, que esse crit6rio apresenta problemas (cf item a,6).Defato,osdiclonariosdeixamdeassinalarvdriostermosfamilia- res a uma comunidade lingiiistica, como manota (gafe' mancada)' muito comum em Belo Horizonte - do mesmo modo como registram palavras que n5o se usam mais - como algibeira (arcaismo)' Sob o ;;il d. uirt, exclusivamente cientifico, 6 dificil definir se uma pala- vra existe ou nio em uma lingua' Nlo estamos nos referindo a lexemas simplesouatermosdefinitivamenteincorporadosdlingua,comoos q.r. "rtao sendo utilizados na construqlo deste periodo' por exemplo' Referimo-nos especialmente )s formaq6es complexas, aos produtos de RFPs ainda ndo incorporados ao l6xico mas que podem ser criados a qualquer momento. Para tentar responder ) pergunta, vamos estender um Pouco a res- posta e dividi-la em seis Partes' ' E- primeiro lugar, pode-se faiar em palavras impossiveis' como olrzdor, o gizdor, "lloriiitodo, ot o alegredor' 56o impossfveis' porque s6 se criam palavras novas com o sufixo -dor se a base 6 um verbo' Nao 6 o caso das formaq6es citadas, em que as bases s6o substantivos (/uz e giz) eadjetivos (ionito e alegre)' Neste caso d6-se o que se chama de Transgressao sufixal (cf item 6'4)' Ei-t segundo l.tgr,, existem as palavras poss(veis' sob o ponto de vis- ta da RFP, -", qt-tl sdo rejeitadas pelos falantes por algum motivo es- pecial, como fabricador,citada na situaEdo 2' Essa palavra 6 bloqueada por fabricanre. Esse tipo de restriqSo-) produgSo de determinadas pala- uras serd estudado no subitem 6'7'I'2' Em terceiro lugar, existem as palavras possiveis' sob o ponto de vis- ta da RFP, e que podem ser acionadas a qualquer momento' numa conversa, numa proprg,"d', em textos jornalisticos' literdrios ou cien- tificos. Para essas p"i"u"' nlo h6 nenhum tipo de restrigSo' mas dd-se o fen6meno d"a indrcia morfol6gica (cf item 6'2'3): as Pessoas ndo uti- lizam esses itens simplesmente porque eles nlo existem' mas nada im- pede que seiam acionados a qualquer momento' Trata-se de formaq6es do tipo, (?)c:'aiuada, (?)maracuiada, (?)atingimento' (?)efetuaqdo' (?)per' dur amento, (? )esp alhamento, (?) c amal' etc' 44 Em quarto lugar, existem as palavras reais, institucionalizadas, fami- liares a uma comunidade lingiiistica mas ndo-dicionarizadas, por se- rem rec6m-criadas. E claro que essas palavras t€m exist€ncia real para o grupo de falantes em que 6 utilizada. Seo itens do tipo: faficheiro, fu- mddromo, malufar, croc odileiro, p ainelista, bicicle ata, etc. Em quinto lugar, existem palavras que, apesar de dicionarizadas, n5o s5o conhecidas de uma comunidade lingii(stica, ou por serem ar- caismos, ou por serem regionalismos, ou por serem palavras restritas a um grupo de falantes ou a uma profissSo, por exemplo. Por fim, existem as palavras reais, que fazem parte efetiva de uma comunidade lingiiistica, ou seja, da sua lista de entradas lexicais, inde- pendentemente de constar de diciondrio ou ndo. Voltando i pergunta inicial deste item - se determinada palavra existe ou n5o -, muitas vezes dizemos que ela n5o existe, ou seia, que n5o a reconhecemos como tal, mas que 6 perfeitamente poss(vel crid- la, como seqiiestrdvel ou mochilada, por exemplo. Voltamos, desse modo, ) observaq5o de Aronoff citada algumas linhas atrds: "Hd uma distinEso para ser feita entre as classes de palavras possiveis e as real- mente existentes." Mas essa 6 uma questSo que ser6 discutida com mais profundidade nos capitulos seguintes. Aqui interessa focalizar que na lingua freqtientemente aparecem novas formaE6es, ou seia, na linguagem coloquial, formal, jornalistica, liter6ria, cientifica, enfim, em qualquer modalidade de linguagem 6 possivel deparar com forma- E6es n5o-ouvidas ou escritas antes. Trata-se de itens ndo-familiares, para usar a expressSo de Meys (citado por BAUER, 1983, p. 48). A essa possibilidade de surgimento de novos itens lexicais na lfngua dd-se o nome de produtividade. Se observarmos as falas das pessoas que nos cercam ou os textos que habitualmente lemos, veremos que em sua grande maioria as palavras s5o "congeladas" ou familiares. Nada impede, por6m, que novas pala- vras sejam formadas. Com relaEso aos termos criados recentemente e aos termos possiveis de serem criados, o que se observa 6 uma regulari- dade quase absoluta. De fato, formaq6es como seqilestrdtel, taxista, do- leiro, samb6dromo, malufar, cdrredtct, buzinago, etc. s5o transparentes, sob o ponto de vista morfol6gico e semAntico. Como afirma Scalise (1988, p. 563), "1...] tanto a flex5o quanto a derivaEso s5o sincronica- mente 'regulares' e semanticamente prediziveis. As irregularidades 45 aparecem atrav6s da'perman6ncia no l6xico' (aRoxonn, 1976), e isso 6 verdadeiro tanto para a derivagfio quanto Para a flexdo". Ao mesmo tempo, itens cristalizados podem ser regulares, como leiteiro, pianista, peregrinaqdo e pescador, ou podem ser irregulares (cf. o conceito de /e- xicalizagdo, no item 4.4). Essa irregularidade pode ser morfol6gica ou semantica. Como exemplos de irregularidade morfol6gica temos: expulsar -+ eleger -+ confundir -+ corromper -) editar -+ imprimir -+ milho -+ cana -+ (?)expulsaEso ( i )elegeqao (?)confundigso (7)corrompeqSo (?)editador (?)imprimidor (?)milhal (?)canal -+ expulsdo + eleiglo -+ confusdo -+ corrupgdo -+ editor -) impressor -+ milharal -+ canavial Como exemplos de irregularidade semdntica temos: palavra -> palavrSo (n1o 6 uma "palavra grande", mas uma "palavra in- conveniente") estudar -+ estudante (nio 6 "aquele que estuda", mas "quem freqiienta uma escola ou curso") amar -+ amante (n5o 6 "aquele que ama", mas "quem tem um par- ceiro clandestino") refrigerar -+ refrigerante (n5o 6 "aquilo que refrigera", mas "um tipo de bebida") tratar -+ tratante (n5o 6 "aquele que trata" a respeito de um assunto, mas "quem n5o cumpre um trato") As irregularidades a que estamos nos referindo estSo presentes em um ndmero muito elevado de formaEbes cristalizadas da lfngua. Tal anomalia tem levado alguns estudiosos a declararem a impossibilidade de se fazer um estudo regular e sistemdtico do l6xico, tendo chegado alguns lingiiistas ao extremo de levar a derivaEso Para o camPo da es- colha pessoal do falante, como fez Robins (1981, p.247): [...] a possibilidade de usar determinados afixos derivacionais ou outras formag6es varia de acordo com os membros lexicalmente diferentes de 46 uma classe, e pode variar de pessoa para pessoa [ .]Ao derivar um subs- tantivo de comical, c6mico, pode-se hesitar ente comicality e comicalness, comicidade, uma pessoa preferindo um e uma segunda o outro, enquanto em outros aspectos falam o mesmo tipo de ingl€s. Essa faceta irregular e idiossincrdtica do l6xico seria, portanto, in- compativel com as regras morfol6gicas, j6 que estas s5o inhinsecamente regulares e previsiveis. Chegariamos assim a uma situagSo de impasse, se ndo tiv6ssemos em mente que 6 precisofazer a distinEso entre as formas jA crislalizadas e a possibilidade que os falantes t6m de criar novas pala- vras. E o que, em outras palavras,lembra Basilio (1987,p.24): No entanto, se estabelecermos de in(cio e por princfpio uma diferenEa en- tre formas j6 feitas e processos de formaEdo, ai passaremos a ter alguma possibilidade de estudar com mais detalhes os processos, observar suas particularidades e observar que muito do que era considerado imprevisivel constitui, na realidade, possibilidades previstas por padr6es morfol6gicos vigentes. No item 4.4, tentaremos explicar com mais rigor a diferenEa entre formas irregulares - ou lexicalizadas - e formas regulares. De qualquer maneira, 6 preciso deixar claro que este trabalho vai se preocupar basi- camente com a possibilidade que o falante tem de formar novas pala- vras, ou seja, com a produtividade. Podemos dizer, em resumo, Que tal opE6o estd baseada nos seguintes pressupostos te6ricos: a) Segundo Chomsky (1972, p. 27): 1...1 a lingua humana 6livre de controle de estimulos e nio serve a uma funESo meramente comunicativa, mas 6 antes um instrumento para a livre expressio do pensamento e para a resposta apropriada ds novas situagdes. b) Segundo Bauer (1983, p.292): [. . . ] a rinica maneira reahstica de se obter uma compreens5o adequada de como funciona a formaEdo de palavras 6 ignorando-se as formas lexicaliza- das e concentrando-se nos processos produtivos. 47 c) Segundo Basilio (1987, P. 25): l. . . ] como o l6xico 6 um dep6sito de signos construidos, temos na lista vir- tualmente tudo o que aconteceu. E, muitas vezes, o que aconteceu nio pode mais acontecer. Dai a fundamental importAncia de se distinguir as formas i6 feitas dos processos de formaglo. I.3 RESUMO Neste capftulo, ap6s fixar os obietivos de uma teoria morfol6gica, defendemos a posiqao de que a morfologia deve constituir-se em um ramo aut6nomo da Lingiiistica. Em seguida, apresentamos algumas "escolas" que trabalharam com a morfologia, com anfase especial para o estruturalismo. Depois de um r6pido hist6rico do gerativismo, Procu- ramos justificaru opEao pela teoria gerativista como fundamento dos nossos estudos. Finalmente, apresentamos alguns dos conceitos bdsi- cos da morfologia gerativa, indispensdveis para a comPreensSo dos ca- pitulos que se seguem. 48
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