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Por dentro e ao redor da arte africana 
Salum, Marta Heloísa Leuba (Lisy) 
 
 
 
Marta Heloísa Leuba Salum (Lisy) 
Artigo baseado no texto de apoio do Caderno de Leituras da Ação Educativa 
(Monitoria) da exposição “Arte da África: obras-primas do Museu Etnológico de 
Berlin” no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo. 
Revisto e adaptado em 6 de abril de 2004 para publicação no site Arte Africana. 
 
 
Ao dizermos "artes da África" (no plural), em vez de "arte africana", podemos estar 
enfatizando: a África tem Arte. Isso de certa forma minimiza o modo como tem sido 
tratada a produção estética dos africanos até nossos dias: como objeto científico. Sob o 
lema “conhecer para melhor dominar”, dizia-se que ela servia a “rituais e sacrifícios 
selvagens” e que era feita apenas de “ídolos toscos e disformes” — de “fetiches”. Mas, 
se todas as sociedades - antigas ou atuais - têm sua arte, então por que a necessidade 
dessa ênfase? Antes de mais nada, é importante percebemos é que, mesmo 
indiscriminada nos depósitos dos museus da Europa, essa - que se convencionou um dia 
chamar de arte africana - nunca deixou de resplandecer sua vitalidade eloqüente. Apesar 
da depreciação e preconceito com que foi antes julgada, ela é, hoje, procurada pelos 
grandes colecionadores e apreciadores internacionais de arte. Além da produção dos 
artistas modernos e contemporâneos da África (aliás, muito pouco difundidos entre nós) 
são muitas as artes desse grande continente, entre elas, as chamadas “tradicionais”. É a 
essas criações, vindas de centenas de culturas que se dá o nome de “arte africana” — 
como se fosse uma só! Atualmente são reconhecidas suas técnicas milenares, suas 
formas sofisticadas e suas “mãos-de-artistas”. A recente exposição das obras-primas da 
África trazida ao Brasil pelo Museu Etnológico de Berlim tentou mostrar que não há 
máscaras sem música nem dança, e que há um design digno de nota desde tempos 
imemoriais na África. Pois, de fato, a arte africana é plural e multidimensional. Mas 
exposição nenhuma jamais poderia recuperar a força das rochas, fontes e matas que 
abrigavam estátuas, nem o ambiente dos palácios, templos, altares em que se situavam. 
Formavam conjunto com outras peças e seu entorno: eram arquiteturais e espaciais, 
porém muitas não podiam ser tocadas, nem ao menos vistas. E daí tirarmos: nem toda 
produção plástica da África era visual. 
 
A arte africana não é primitiva nem estática. Há peças datadas desde o século V a.C. 
atestando uma história da arte africana, mesmo que ainda não escrita por palavras. É 
certo que muitos dados estão irremediavelmente perdidos: objetos foram destruídos, 
queimados ou fragmentados ao gosto ocidental e moral cristã; ateliês renomados foram 
extintos e muitas produções interrompidas durante o período colonial na África (1894-
c.1960). Mesmo assim, as peças dessa arte africana remanescente “falam” de dentro de 
si e por si mesmas através de volumes, texturas e materiais; veiculam um discurso 
estruturado reservado aos anciãos, sábios e sacerdotes. Alguns artistas, como os do 
Reino de Benim, exerciam função de escriba, descrevendo a história do reino por meio 
de ícones figurativos em placas de latão que teriam recoberto as pilastras do palácio 
real. 
 
O desenho de jóias e as texturas entalhadas na superfície de certos objetos da arte 
africana também constituem uma linguagem gráfica particular. São padrões e modelos 
sinalizando origem e identidade que aparecem também na arquitetura, na tecelagem ou 
na arte corporal. A arte africana é multivocal. 
 
Por exemplo, o tratamento do penteado dado a estátuas e estatuetas pelos escultores 
revela, muitas vezes, o elaborado trançado do cabelo das pessoas, e, mesmo, a prática 
cultural, em algumas sociedades, da modelagem paulatina do crânio dos que tinham 
status (caso dos mangbetu, do ex-Congo Belga, atual República Democrática do Congo-
RDC). É, para eles, ao mesmo tempo, expressão do belo. Atribuia-se significado até às 
matérias-primas empregadas na criação estética — elas davam “força” à obra, acrescida, 
por fim, quando ela ganhava um nome, uma destinação. Tornava-se, então, parte 
integrante da vida coletiva. Por isso, diz-se que a arte africana é uma "arte funcional". 
 
A arte africana, porém, não é apenas “religiosa” como se diz, mas sobretudo filosófica. 
A evocação dos mitos nas artes da África é um tributo às origens — ao passado —, com 
vistas à perpetuação — no futuro — da cultura, da sociedade, do território. E, assim, 
essas artes “relatam” o tempo transcorrido; tocam no problema da espacialidade e da 
oralidade. 
 
Muitas esculturas, como a máscara kpelié dos senufo que introduz este site, não é feita 
apenas para dançar, mas para celebrar mitos. A estatueta feminina que vai no alto do 
crânio da face esculpida de que se constitui essa máscara, parece estar gestando, prestes 
a dar à luz a um filho. O interessante é que, em muitos exemplares similares, essa forma 
superior da máscara kpeliénão é o de uma mulher, mas de um pássaro associado à 
origem dessa cultura. Ela, assim como outras criações estéticas da África, constela 
aspectos da existência e do cosmo, ou seja, tudo o que envolve a humanidade — o 
Homem em sua interioridade sensorial e na sua relação com o mundo ao redor. E nisso, 
vemos também que a arte africana é dual. 
 
Algumas peças da arte africana, como as impressionantes estátuas “de pregos” dos 
bakongo, ou as dos basonge (ou ba-songye (ambas sociedades da R.D.Congo), são, na 
verdade, um conglomerado composto por uma figura humana de madeira e uma 
parafernália de outros materiais vegetais, minerais e animais. É uma clara alusão à 
consciência do Homem sobre a magnitude da Natureza e de sua relação intrínseca com 
ela. 
 
Podemos dizer que vem desse diálogo entre continente-conteúdo, matéria-pensamento, 
espaço-energia - diálogo que caracteriza a arte na África - o sopro que renova a Arte 
Mundial.

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