Prévia do material em texto
Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO Disciplina: Linguagem Jurídica è Professora: Karla Sampaio è E-mail: aulas@karlasampaio.adv.br è Materiais de Apoio: www.karlasampaio.adv.br >> Academia >> Aulas e Trabalhos >> Linguagem Jurídica LINGUAGEM E DISCURSO JURÍDICO Acreditamos que linguagem não é somente um veículo de comunicação ou de transmissão de informações, como muitos defendem, ela é muito mais do que isso: é por meio dela que interagimos com o outro, agimos sobre o outro, levando-o a aceitar o que está sendo dito e a fazer o que está sendo proposto. Ou seja, falar é sinônimo de agir, é pragmático. Isso porque, por trás da linguagem, há sempre uma intenção: quem fala o faz para alcançar um determinado objetivo. É o que podemos chamar de “Teoria da Intencionalidade da Linguagem” (KOCH, 2002). Tendo essa consciência, de que quando falamos (ou escrevemos) não estamos somente transmitindo mensagens, mas estamos tentando atuar sobre o outro para conseguir algo dele (o objetivo precípuo do ato de comunicação naquele momento), passamos a elaborar melhor o nosso discurso, procurando meios para deixá-lo mais acessível e claro, bem como utilizando estratégias e recursos por intermédios dos quais torná-lo mais convincente. Nesse sentido, “a interação social por intermédio da língua caracteriza-se, fundamentalmente, pela argumentatividade” (KOCH, 2000, p.19). Isso quer dizer que, independentemente do contexto, o discurso é sempre dotado de argumentatividade: para convencer e persuadir o outro. Mas, alguns discursos são essencialmente argumentativos, quais sejam: os discursos político, religioso, publicitário e, mormente, o jurídico. É praticamente um axioma defender a idéia de que a argumentação é a ferramenta de trabalho do operador de direito. Isso porque, “uma questão é clara quanto ao discurso jurídico, quer se trate de elaboração, de interpretação ou aplicação do direito: trata-se de um discurso argumentado, organizado tendo em vista um propósito diante de uma audiência particular ou geral, [...]. É um discurso constituído de estratégias, tornando a aparência de lógico, tendo em vista induzir ou regular o julgamento coletivo sobre uma situação ou objeto” (PETRI, 1997, p.95). Sendo assim, estudar a arte da retórica e conhecer as estratégias de convencimento e persuasão é um passo fundamental na vida profissional daquele que lida com o universo do Direito. Partindo dessas premissas, propomos o curso denominado “A argumentação no discurso jurídico”, que tem como escopo Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 precípuo o estudo da Teoria da Argumentação, também conhecida como “Nova Retórica”, focalizando as estratégias argumentativas mais utilizadas no discurso jurídico. 1 CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM SEGUNDO A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO Lingüística: ciência que tem como objeto de estudo o fenômeno da linguagem. Teoria da Comunicação: concebe linguagem como sendo um veículo de comunicação, um meio de transmitir uma mensagem de um emissor a um receptor. EMISSOR RECEPTOR Lingüística Teoria da Enunciação1: mais do que uma forma de se levar uma informação (ou mensagem) a um receptor, a linguagem é concebida como espaço de interação: por meio dela, interagimos com o outro, atuamos sobre ele, levando-o a aceitar o que está sendo dito e a fazer o que está sendo proposto. Falar é agir. Através da linguagem alteramos a realidade que nos circunda. LOCUTOR INTERLOCUTOR Quando adotamos a Teoria da Comunicação como forma de elucidar o fenômeno da linguagem, assumimos uma visão míope e alijada. Isso porque, se concebemos linguagem como sendo meramente um instrumento de comunicação, ignoramos um fato de suma importância: ninguém fala por falar. Ou seja, quem fala, não o faz somente para transmitir uma informação, mas para alcançar um determinado propósito: o objetivo do ato de comunicação não se encerra em si mesmo. Quando adotamos a Teoria da Comunicação2 como forma de se conceber e explicar o fenômeno lingüístico, estamos nos esquecendo de que, por trás do discurso, há sempre uma intenção. Já, quando somos adeptos da Teoria da Enunciação, passamos a assumir uma outra postura diante da linguagem, pois não a concebemos como sendo meramente um veículo de comunicação, mas também como um instrumento eficaz de interação social. Passamos a percebê-la e analisá-la como um fenômeno social3, como instrumento de dominação. Como conseqüência dessa consciência, tornamo-nos mais “maliciosos” com o discurso do outro, pois passamos a questionar e a buscar qual é o verdadeiro objetivo do sujeito produtor de um discurso, por mais prosaico ou insignificante que ele aparente ser. Buscamos o que nele está subjacente, o que está “por trás das linhas”. Além disso, somos mais criteriosos 1 A Teoria da Enunciação teve como precursor o pensador russo M. Bakhttin, e ganhou impulso na França com a obra do lingüista Émile Benveniste. 2 Infelizmente, a concepção de linguagem adotada nas salas de aula do segundo grau e pela gramática normativa é a defendida pela Teoria da Comunicação. 3 Daí surgiu a Sócio-lingüística, ramo da Lingüística que estuda a linguagem à luz da Sociologia. MENSAGEM DISCURSO Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 e cuidadosos com o nosso próprio discurso, seja oral ou escrito. Passamos a nos preocupar em utilizar mecanismo não só para deixá-lo acessível e compreensível (fazer ser compreendido), mas para torná-lo convincente, persuasivo. É quando utilizamos a linguagem de forma consciente, concebendo-a como um “instrumento em nossas mãos”. “Dessa forma, a linguagem passa a ser encarada como forma de ação, ação sobre o mundo dotada de intencionalidade, veiculadora de ideologia, caracterizando-se, portanto, pela argumentatividade” (KOCH, 2000, p.17, grifo da autora). 2 A RETÓRICA ORIGEM: século V a. C. LOCAL: Grécia, em Siracusa PRIMEIRO PROFESSOR: Corax SURGIMENTO: Hieron, tirano da Sicília, no intuito de povoar Siracusa, transferiu populações inteiras, deportando-as de suas terras, que foram distribuídas a mercenários. O povo se revoltou e deu-se, então, a instauração de vários processos. Os processos eram levados a efeito diante de grandes júris populares, que deveriam ser convencidos da justiça do pedido. Assim, surgiram os discursos retóricos, com o fim de convencer e persuadir. PRIMEIROS OBJETIVOS: a busca da eficácia nas técnicas de persuasão na defesa de bens materiais. Caráter pragmático: convencer o outro da justeza de sua causa. A RETÓRICA E ARISTÓTELES: “A faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão” (ARISTÓTELES, apud PETRI, p. 15) Ou seja, para Aristóteles, a Retórica tinha por escopo descobrir o que há de persuasivo em cada situação. A NOVA RETÓRICA: Chaim Perelman, filósofo e jurista belga, a partir do estudo da Retórica antiga e das reflexões suscitadas pela Lingüística moderna propõe uma Teoria da Argumentação4. A Retórica, durante muitas décadas, foi alijada, deturpada. Isso porque, nesse período, ela foi concebida como sendo meramente a “arte de falar bonito”, ou seja, foi reduzida a uma categoria estética, perdeu o seu caráter funcional e pragmático. Como vimos, para Aristóteles, a Retórica era muito mais do que isso: era o estudo das técnicas e estratégias argumentativaspor intermédio das quais tornar o discurso mais persuasivo. 3 A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO Conceito: é o estudo das técnicas e estratégias de argumentação que permitem promover ou intensificar a adesão do público alvo à tese apresentada e defendida. Texto dissertativo argumentativo: dissertar é discutir, tecer opiniões, delimitando um tema dentro de uma questão ampla e defendendo um ponto de vista (TESE), por meio de argumentos convincentes. O texto dissertativo argumentativo é aquele no qual defendemos uma tese, por intermédio de argumentos e de estratégias argumentativas. TESE: é o nosso ponto de vista ou opinião acerca de algo. ARGUMENTO: todo mecanismo lingüístico por meio do qual levamos o outro a aceitar o que está sendo dito (TESE) e a fazer que está sendo proposto. 4 A Teoria da Argumentação é também conhecida como Nova Retórica. Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 Por meio de argumentos, sustentamos uma tese. Para cada TESE, existe uma ANTÍTESE, ou seja, uma tese contrária, antitética. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------- CONVENCER ¹ PERSUADIR CONVENCER: é um raciocínio lógico, que implica, sobretudo, um intercâmbio intelectual. Para convencer utilizamos a demonstração, que é um cálculo em que, dadas certas premissas somos obrigados a aceitar uma conclusão. Dirige-se à razão, através de um raciocínio lógico e por meio de provas objetivas. DEMONSTRAÇÃO “ARTE DE PROVAR” PERSUADIR: é um raciocínio retórico, que implica mobilização de emoções e de valores ideológicos. Envolve sentimentos e subjetividade. Está relacionado, também, à forma, à estrutura lingüística do discurso. INDUÇÃO “ARTE DE SEDUZIR” TESE ARGUMENTOS Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 TIPOS DE ARGUMENTOS MAIS UTILIZADOS NO DISCURSO JURÍDICO a) Argumento de autoridade: é quando fazemos uma citação (direta ou indireta). Ou seja, quando nos “apropriamos” da opinião e/ou palavras de um especialista, uma pessoa que possui respaldo e credibilidade, um estudioso, uma autoridade em uma determinada área científica. Ao tomarmos emprestado a sua opinião e/ou suas palavras, tomamos também emprestado o respaldo que possui. Assim, ganhamos credibilidade em nosso discurso, que se torna mais persuasivo. Argumento de credibilidade, não-comprobatório Citação direta: com as palavras do autor (ipsis verbis, in verbis). Citação indireta ou paráfrase: com nossas palavras. b) Argumento baseado em aforismos: é quando nos baseamos em “máximas” para defender uma determinada opinião (TESE), ou seja, em verdades consideradas inquestionáveis em uma determinada cultura, em um determinado contexto histórico. Devemos ter o cuidado em não conceber o aforismo como um dogma, como uma verdade inquestionável, pois não podemos admitir que, nas ciências humanas e sociais, existam “verdades absolutas”, os conceitos e concepções variam de uma cultura para a outra, e de um contexto histórico para o outro. Devemos assumir uma postura crítica diante “das nossas verdades inquestionáveis”, de nossos aforismos. Assim, devemos utilizá-los de forma inteligente, quando nos é conveniente, quando estão a nosso favor; mas devemos ser críticos no momento em que contra-argumentamos. Os principais aforismos utilizados no Direito: · os princípios constitucionais · a lei · os costumes (consuetos) · o discurso religioso (cada cultura possui seu próprio discurso religioso: Bíblia, Alcorão, Torá etc) · provérbios · valores éticos e morais Assim, devemos ter o cuidado em não conceber os princípios e as leis como sendo um dogma. Sabemos que a lei deve ser aplicada enquanto está em vigor, mas isso não impede que a questionemos, que tenhamos uma postura crítica diante dela. Será que toda lei é “legal”? A lei é uma categoria histórica, presa a concepções ideológicas, “fruto” de um determinado contexto. Lembremo-nos: o profissional do Direito não é um mero “aplicador” de leis, mas é, sobretudo, alguém que reflete sobre as leis. Até mesmo porque a legislação precisa ser sempre atualizada: a lei se torna caduca (ou obsoleta). c) Argumentos baseados em conceitos, concepções e teorias (valores ideológicos e políticos): é quando nos baseamos em conceitos, em concepções e teorias. As palavras (ou signos) não possuem um significado único. Os conceitos, as concepções são “verdades relativas”, presas a uma cultura e a um determinado momento histórico. A concepção de família, por exemplo, não é único ou absoluto: muda de uma cultura para a outra, de um momento para o outro. Não podemos afirmar que a concepção que temos de família é a mesma de há cinqüenta anos. Não podemos afirmar que a concepção atual de homossexualismo é a mesma de há cinqüenta anos. Como também não podemos afirmar que a concepção de família por nós adotada é a mesma em todas as culturas: os aborígenes, os pigmeus, os orientais, os islâmicos... cada cultura possui uma forma peculiar de conceber família. Dessa forma, o significado das palavras não é único ou absoluto. Talvez, por isso, uma determinada lei dê margens a mais de uma interpretação. No Direito, utilizamos com freqüência argumentos baseados em conceitos e concepções, até mesmo porque a lei é feita de signos cujas significações estão em processo contínuo de ressignificação, permitindo, por conseguinte, uma reinterpretação, uma nova possibilidade de leitura a partir de um novo conceito ou concepção. Significante: parte material do signo (gráfica e acústica). Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 Signo Significação: parte imaterial do signo, a idéia ou imagem que o significante evoca no falante (dinâmica, em processo contínuo de ressignificação). Exemplo de argumento baseado em concepções: Teorias e valores ideológicos: quando utilizamos vertentes teóricas, correntes sociológicas e filosóficas. Quando utilizamos, por exemplo, a Teoria Marxista1 para elucidar a relação de trabalho, ou mesmo para explicar o Direito: Ex: Vysinskij definiu o Direito como o conjunto de regras de conduta que exprimem a vontade da classe dominante, legislativamente estabelecidas, além dos costumes e das regras de convivência, sancionadas pelo poder estatal, cuja aplicação é garantida pela força coercitiva do Estado, a fim de tutelar, sansionar e desenvolver as relações sociais e os ordenamentos, vantajosos e convenientes para a classe dominante (apud HERKENHOFF, 1996, p.31). Observamos que a definição de Direito supracitada é alicerçada nas Teorias Marxistas. Assim, podemos utilizar argumentos baseados em conceitos e concepções (correntes teóricas) e, concomitantemente, de autoridade. d) Argumentos baseados em fatos: é quando nos baseamos em fatos. FATO: um acontecimento que foi registrado e documentado. Para analisar como no Direito utilizamos os argumentos baseados em fatos, devemos observar dois contextos diferentes: 1) na praxes jurídica, 2) fora da praxes jurídica. 1) Na praxes jurídica: em uma ação ou processo judicial, em uma audiência (pragmática do Direito) Nesse caso, todo fato precisa ser comprovado. Precisamos apresentar provas que tenham relação direta com os fatos alegados. FATO PROVAS (um registro do fato – relação direta): documentais, periciais, testemunhais etc. 2) Fora da praxes jurídica: é quando o profissional não está inserido na pragmática do Direito, mas simplesmente está defendendouma opinião acerca de um assunto ou uma questão de interesse social e jurídico. O profissional do Direito está sempre envolvido em temas polêmicos, que fomentam divergências e controvérsias. Questões como pena de morte, legalização dos jogos de azar, desarmamento, são exemplos disso. E o profissional do Direito não pode ficar alheio a essas questões, cabe a ele discuti-las e sobre elas apresentar suas opiniões. Nesse sentido, o profissional do Direito é alguém que está freqüentemente defendendo suas opiniões (TESES) por meio de argumentos, seja em discursos orais ou escritos. Nessas situações, também utilizamos argumentos baseados em fatos, mas não há necessidade de apresentar provas que possuam relação direta com os fatos alegados, é preciso somente mencionar a fonte, ou seja, de onde retiramos tais informações: jornais, telejornais, revistas, artigos etc (relação indireta com o fato). Vejamos um exemplo: 1 Nesse momento, utilizamos dois tipos de argumentos ao mesmo tempo: argumento de autoridade e argumento baseado em conceitos, concepções e teorias. Linguagem Jurídica – Professora Karla da Costa Sampaio – Karla@karlasampaio.adv.br – 2008/02 TESE: sou a favor da maioridade aos 16 anos. ARGUMENTO: Nos últimos anos, o índice de criminalidade juvenil aumentou 60%2. É um aumento bastante significativo. Adolescentes andam armados, à espera de uma vítima. e) Processo de inversão do lugar: no discurso jurídico, utilizamos com freqüência o “processo de inversão do lugar”. O que seria isso? De uma forma simples, podemos dizer que é o processo por meio do qual levamos o interlocutor a se colocar no lugar de uma outra pessoa. Esse recurso é utilizado, sobretudo, em situações que envolvem uma conduta reprovável (um erro, infração ou delito). Nesse caso, encontramos dois contextos: 1) ou levamos o outro a se colocar no lugar da pessoa que cometeu a conduta reprovável; 2) ou no lugar da vítima, a pessoa que sofreu as conseqüências negativas da conduta. f) Argumento baseado na relação de causa e conseqüência: é quando defendemos uma tese apontando as conseqüências possíveis que uma determinada ação pode fomentar, destacando seus efeitos positivos e/ou negativos; ou quando defendemos a nossa tese recorrendo às causas de um determinado fato ou fenômeno. Um exemplo seria em relação à implantação ou não da pena morte no Brasil. Muitas pessoas que se posicionam de forma contrária levam o interlocutor a refletir sobre as conseqüências que isso traria nos casos em que o réu foi condenado injustamente. Obviamente, para dar mais sustentação ao seu argumento, faz-se necessário, inicialmente, mostrar, se possível por meio de dados estatísticos, o alto índice de erros cometidos pelo judiciário brasileiro. 2 Para que esse argumento tenha credibilidade, é necessário apresentar a fonte na qual se extraiu as informações.