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TEXTO 2 Maquiavel

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Prévia do material em texto

sentado por Maria Tereza Sadek, Hobbes por Renato Janine Ribei-
ro, Locke por Leonel Itaussu Almeida Mello, Montesquieu por J 0-
se Augusto Guilhon Albuquerque, Rousseau por Milton Meira do
Nascimento e os autores de "0 Federalista" por Fernando Papater-
ra Limongi. Todos os apresentadores san professores da Universida-
de de Sao Paulo.
Os capftulos deste volume constam, portanto, de duas partes,
a primeira contendo 0 texto do apresentador (ou apresentadora) e
a segunda trechos do pensador cl<issico de que se trate. Para 0 ca-
so de Hobbes, porem, 0 Professor Renato J anine entendeu mais
adequada a formula de urn texto unico, transcrevendo no curso de
sua apresenta~ao longos trechos do pensador ingles. Com pequena
varia~ao de forma, cumpre-se, assim, 0 objetivo comum de ofere-
cer ao leitor 0 contato direto com 0 texto classico e a ajuda do co-
mentador.
2
Nicolau Maquiavel:
o cidadao semfortuna,
o intelectual de virtu
M ais de. qu atro seculos nos separam daepoca em que viveuMaqUlav~l. Muitos leram e comentaram sua obra, mas urn
numero consider'avelmente maior de pessoas evoca seu nome ou pe-
10 menos os terl1\os que ai tern sua origem. Maquiavelico e maquia-
velismo sac adje1tivo e substantivo que estao tanto no discurso eru-
dito, no debate I\olitico, quanta na fala do dia-a-dia. Seu uso extra-
pola 0 mundo d"a politica e habita sem nenhuma cerim6nia 0 uni-
verso das relal;oe~s privadas. Em qualquer de suas acepl;oes, porem,
o maquiavelismo esui associ ado a ideia de perfidia, a urn procedi-
mento astucioso, velhaco, trail;oeiro. Estas expressoes pejorativas
sobreviveram de Icerta forma incolumes no tempo e no espal;o, ape-
nas alastrando-se~ da luta politica para as desavenl;as do cotidiano.
Assim, a acusal;a.o que recai hoje sobre Maquiavel nao difere subs-
tancialmente daqluela que the impingiu Shakespeare ao chama-Io
de "The MurderC)us" ou de sua identifical;ao com 0 diabo - "the
old Nick" - na ~i:a vitoriana, ou mesmo da incriminal;ao que os je-
suitas faziam aos protestantes na epoca da Reforma, considerando-
os disdpulos de ~aquiavel. Como assinala Claude Lefort, em sua
analise sobre 0 uSso abrangente e multidirecional de tais acusal;oes,
o maquiavelismo serve a todos os odios, metamorfoseia-se de acor-
do com os aconteecimentos, ja que pode ser apropriado por todos
os envolvidos em disputa. E uma forma de desqualificar 0 inimigo,
apresentando-o sempre como a encarna~ao do mal. 1 Personifican-
do a imoralidade, 0 jogo sujo e sem escrupulos, 0 "maquiavelis-
mo", ou melhor, 0 "antimaquiavelismo" tornou-se mais forte do
que Maquiavel. E urn mito que sobrevive independente do conheci-
mento do autor ou da obra onde teve origem.
A contraface da versao expressa no "autor maldito", respon-
sabilizado por massacres e por toda sorte de sordidez - nao ha tira-
no que nao tenha sido visto como inspirado por Maquiavel -, e
sua reabilita~ao. Para a constru~ao deste retrato acorreram fil6so-
fos da estatura de urn Rousseau, de urn Spinoza, de urn Hegel, pa-
ra citarmos apenas os primeiros. Nesta interpreta~ao sustenta-se en-
faticamente que Maquiavel discorreu sobre a liberdade, ao oferecer
preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda. Rousseau,
por exemplo, opondo-se aos interpretes "superficiais ou corrompi-
dos" do autor florentino, que 0 qualificaram como mestre da tira-
nia e da perversidade, afirma: "Maquiavel, fingindo dar li~oes aos
Prfncipes, deu grandes li~oes ao povo" (Do contrato social, livro
3, cap. IV).
Ora apresentado como mestre da maldade, ora como 0 conse-
Iheiro que alerta os dominados contra a tirania, quem era este ho-
mem capaz de provocar tanto 6dio, mas tambem tanto amor? Que
ideias elaborou que 0 torn am 0 mais citado entre os pensadores po-
liticos, a ponto de suscitar as mais dispares interpreta~oes, e de sair
das paginas dos livros eruditos para ocupar urn lugar na fala mais
vulgar? Por que incitou tamanho temor, sendo sua obra mais co-
nhecida colocada no Index da Igreja, e por que continua a dar ense-
jo a tao fundos preconceitos?
As desventuras
de um florentino
Maquiavel nasceu em Floren~a em 3 de
maio de 1469, numa Italia "esplendorosa
mas infeliz", no dizer do historiador Garin.
A peninsula era entao constituida por uma serie de pequenos Esta-
dos, com regimes politicos, desenvolvimento econ6mico e cultura
variados. Tratava-se, a rigor, de urn verdadeiro mosaico, sujeito a
conflitos continuos e alvo de constantes invasoes por parte de estran-
geiros. Ate 1494, gra~as aos esfor~os de Louren~o, 0 Magnifico, a
peninsula experimentou uma certa tranqiiilidade. Cinco grandes Es-
tados dominavam 0 mapa politico: ao suI, 0 reino de Napoles, nas
maos dos Aragao; no centro, os Estados papais controlados pel a
1i',1 c.ia e a republica de Floren~a, presidida pelos Medicis; ao norte,
II d ucado de Milao e a republica de Veneza.
Nos ultimos anos do seculo, entretanto, a desordem e a insta-
11ilidade eram incontrolaveis. As dissens6es internas e entre regioes
',Olilaram-se as invasoes das poderosas na~6es vizinhas, Fran~a e Es-
Il:tllha. Assim, os Medicis sac expulsos de Floren~a; acirram-se as
disc6rdias entre Milao e Napoles; os dominios da Igreja passam a
l'I' governados por Alexandre VI, urn papa espanhol da familia
Ilorgia, guiado por ambi~6es sem limites; 0 rei Carlos VIII, da Fran-
,'(I, invade a peninsula e consegue domina-Ia de Norte a SuI. Pou-
'0 tempo depois, com a morte do papa Alexandre VI, 0 trono e
11'upado por Julio II, que se alia primeiro aos franceses contra Ve-
IICI.ae em seguida, em 1512, funda a Santa Liga contra a Franp.
Neste cenario conturbado, no qual a maior parte dos gover-
11~lI1tesnao conseguia se manter no poder por urn perfodo superior
:1 dois meses, Maquiavel passou sua infancia e adolescencia. Sua fa-
Inilia nao era nem aristocratica, nem rica. Seu pai, advogado, co-
Ino urn tipico renascentista, era urn estudioso das humanidades, ten-
do se empenhado em transmitir uma aprimorada educar;ao classica
para seu filho. Dessa forma, com orgulho, noticiava a urn amigo
que Nicolau, com apenas 12 anos, ja redigia no melhor estilo em la-
I im, dominando a ret6rica greco-romana. Apesar daavaliar;ao pa-
Icrna, apenas em 1498, quando ja tinha 29 anos, tem-se a primeira
Iloticia de Nicolau exercendo urn cargo de destaque na. vida publi-
ca. Neste ano, Savonarola, que substituira os Medicis, e deposto,
enforcado e queimado, Acompanham sua queda todosos detento-
res de cargos importantes na republica florentina. Maquiavel passa
entao a ocupar a Segunda Chancelaria, posi~ao de consideravel res-
ponsabilidade na administra~ao do Estado. Nessa atividade, cum-
priu uma serie de missoes, tanto fora da Italia como internamente,
destacando-se sua diligencia em instituir uma milicia nacional.
Suas tarefas diplomaticas sofreram, no entanto, uma brusca
interrup~ao quando os Medicis recuperaram 0 poder e voltaram pa-
ra Florenr;a. 0 govern ante Soderini vai para 0 exilio e e dissolvida
a republica. Era 0 ana de 1512. Maquiavel foi demitido, proibido
de abandonar 0 territ6rio florentino pelo espa~o de urn ano, e fica-
va-lhe vedado 0 acesso a qualquer predio publico. Mas 0 pior ain-
da estaria por acontecer: em fevereiro de 1513 foi considerado sus-
peito, acusado de tomar parte na fracassada conspira~ao contra 0
governo dos Medicis. Foi por isso torturado, condenado a prisao e
a pagar uma pesada multa.
Mas 0 sol parecia brilhar para os Medicis. Em 1513, a familia
consegue uma nova vitoria e esta sem precedentes: 0 cardeal Gio-
vanni de Medicis transforrria-se no papa Leao X - 0 primeiro flo-
rentino a conquistar tamanha homaria. Com isso, a cidade, anteriar-
mente hostil a familia que derrubara a republica, passa a celebrar
os novos chefes. Maquiavel, par sua vez, tenta, com a ajuda de seu
arpigo Vettori, embaixador em Roma, ligado aos Medicis, a liberta-
l;ao e, posteriarmente, recuperar seu antigoemprego. Sai da prisao,
mas san inuteis suas repetidas gestoes para voltar para a vida publi-
ca. Exilado em sua propria terra, impedido de exercer sua profissao,
passa a morar na propriedade que herdara de seu pai e avos em
Sao Casciano. Ali inicia uma nova fase, vivendo modestamente e
estudando os c1<issicos.Ele assim descreve seu dia-a-dia:
De manha, eu acordo com 0 sol e you para 0 bosque fazer le-
nha; ali permanego por duas horas verificando 0 trabalho dQ dia ante-
rior e ocupo meu tempo com os lenhadores, que sempre tem desaven-
gas, seja entre si, seja com os vizinhos [...1. Deixando 0 bosque, yOU
a fonte e de la para a caga. Trago um livro comigo, ou Dante, ou Pe-
trarca, ou um destes poetas menores, como Tibulo, Ovidio ou outros:
leio suas paixoes, seus amores e recordo-me dos meus, delicio-me
neste pensamento. Depois, you a hospedaria, na estrada, converso
com os que passam, 'indago sobre as notlcias de seus parses, ougo
uma porgao de coisas e obSNvO a variedade de gostos e de caracte-
risticas humanas. Enquanto isso, aproxima-se a hora do almogo e,
com os meus, como aquiloque me permitem meu pobre sitio e meu
pequeno patrim6nio. Finda a refeigao, retorno a hospedaria [...1 la
me entretenho jogando cartas ou tric-trac [ ...1. Assim desafogo a ma-
lignidade de meu destino [.. .]. Chegando a noite, volto a minha casa
e entro no meu gabinete de trabalho. Tiro as minhas roupas cobertas
de sujeira e po e visto as minhas vestes dignas das cortes reais e
pontiffcias. Assim, convenientemente trajado, visito as cortes prine i-
pescas dos gregos e romanos antigos. Sou afetuosamente recebido
por eles e me nutro do unico alimento a mim apropriado e para 0
qual nasci. Nao me acanho ao falar-Ihes e pergunto das razoes de
suas agoes; e eles, com toda sua humanidade, me respondem. Entao,
durante 4 horas nao sinto sofrimentos, esquego todos os desgostos,
nao me lembro da pobreza e nem a morte me atemoriza [...1.
(Carta a F. Vettori, de 10/12/1513.)
Deste retiro forl;ado nasceram as obras do analista politico.
Como 0 proprio Maquiavel afirmava san text os que resultam de
sua experiencia pnitica e do convivio com os c1<issicos.0 principe
data dos anos de 1512 a 1513; Os discursos sobre a primeira deca~
da de Tito Llvio, de 1513 a 1519; 0 livro sobre A arte da guerra,
de 1519 a 1520; e, por ultimo, sua Hist6ria de Florem;a, de 1520 a
1525. Ao lado destas publical;oes, escreveu a comedia A mandrdgo-
m, consider ada obra-prima do teatro italiano; uma biografia sobre
Castruccio Castracani e uma colel;ao de poesias e ensaios literarios.
Depois da redal;ao de 0 principe, a vida de Maquiavel e mar-
cada por uma continua alternfmcia de' esperanl;as e decepl;oes, Bus-
ca incessantemente voltar as funl;oes publicas. Para conseguir os fa-
vores dos Medicis dedica-Ihes seu livro e pede a intervenl;ao de ami-
'os. Os governantes san pouco sensiveis aos apelos - para os tira-
110S ele e urn republicano. Finalmente,em 1520, a Universidade de
(,'larenl;a, presidida pelo cardea1 Juno de Medicis, encarrega-o de es-
crever sobre Florenl;a. Desta incumbencia nasce sua ultima obra e
Lambem sua ultima frustral;ao. Pois, com a queda dos Medicis em
1527e a restaural;ao da republica, Maquiavel, que imaginara terem
assim findados seus infortunios, ve-se identificado pelos jovens re-
publicanos como alguem que possuia ligal;oes com os tiranos depos-
lOS, ja que deles recebera a tarefa de escrever sobre sua cidade. Des-
Lavez, viu-se vencido. Esgotaram-se suas forl;as. A republica consi-
derou-o seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em junho.
o destino determinou que eu nao saiba discutir sobre a sed a,
nem sobre ala; tampouco sobre questoes de lucro ou de perda. Mi-
nha missao e falar sobre 0 Estado. Sera precise submeter-me a pro-
messa de emudecer, ou terei que falar sobre ele.
(Carta a F. Vettori, de 13/03/1513.)
Este trecho de uma carta escrita par Maquiavel revela sua "pre-
destirial;ao" inarredavel: falar sobre 0 Estado. De fato, sua preocu-
pal;ao em todas as suas obras e 0 Estado. Nao 0 melhar Estado,
aquele tantas vezes imaginado, mas que nunc a existiu. Mas 0 Esta-
do real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradil;ao idea-
lista de Platao, Aristotelese Santo Tomas de Aquino e segue a tri-
Iha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tacito, Polibio,
Tucidides e Tito Livio. Seu ponto de partida e de chegada e a reali-
dade concreta. Dai a enfase na verita effettuale - a verdade efeti-
va das coisas. Esta e sua regr~ metodologica: ver e 'examinar a reali-
dade tal como ela e e nao como se gostaria que ela fosse. A substi-
tuil;ao do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo
reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fa-
zer reinar a ordem, como instaurar urn Estado estavel? 0 proble-
ma central de sua analise polltica e descobrir como pode ser resolvi-
do 0 inevitavel ciclo de estabilidade e caos.
Ao formular e buscar resolver esta questao, Maquiavel provo-
ca uma ruptura com 0 saber repetido pelos seculos. Trata-se de
uma indaga<;ao radical e de uma nova articula<;ao sobre 0 pensar e
fazer polltica, que poe fim a ideia de uma ordem natural e eterna.
A ordem, produto necessario da polltica, nao e natural, nem a ma-
terializa<;ao de uma vontade extraterrena, e tampouco result a do jo-
go de dados do acaso. Ao contrario, a ordem tern urn imperativo:
deve ser construida pelos homens para se evitar 0 caos e a barbarie,
e, uma vez alcan<;ada, ela nao sera definitiva, pois ha sempre, em
germe, 0 seu trabalho em rregativo, isto e, a amea<;a de que seja desfeita.
"Enveredando por urn caminho ainda nao trilhado" , como re-
conhece explicitamente nos Discursos, 0 autor florentino reinterpre-
ta a questao da polltica. Ela e 0 resultado de feixes de for<;as, pro-
veniente das a<;oes concretas dos homens em sociedade, ainda que
nem todas as suas facetas venham do rei no da racionalidade e sejam
de imediato reconheciveis. Ao perceber 0 que ha de transit6rio e cir-
cunstancial no arranjo estabelecido em uma determinada ordem,
monta urn enigma para seus contemporaneos. Enigma que se recolo-
ca incessantemente e que a cada significado encontrado remete a ou-
tra significa<;ao para alem de si. Este pensamento em constante trans-
muta<;ao e fluxo, que determina seu curso pelo movimento da reali-
dade, transformara Maquiavel num classico da filosofia polltica,
atraindo a aten<;ao e esfor<;os de compreensao de seus lei to res de to-
dos os tempos.
Tem-se sempre a sensa<;ao de que e necessario ler, reler, e vol-
tar a ler a obra e que saD infindaveis as suas possibilidades de for-
maliza<;ao. Sua armadilha e atraente - fala do poder que todos sen-
tem, mas nao conhecem. Porem, para conhece-lo e preciso supor-
tar a ideia da incerteza, da contingencia, de que nada e estavel e
que 0 espa<;o da polltica se constitui e e regido por mecanismos dis-
tintos dos que norteiam a vida privada. E mais ainda: 0 mundo da
polltica nao leva ao ceu, mas sua ausencia e 0 pior dos infernos.
Por outro lado, a forma que usa para expor suas ideias exige aten-
<;ao. Nao s6 porque recoloca e problematiza velhos temas, mas so-
bretudo porque rediscute-os incessantemente, obrigando 0 lei tor a
par sempre em xeque a primeira compreensao. Por isso, qualquer
III IliV:I dc sistematizar os escritos de Maquiavel e sempre provis6-
11I1 " ~11.i~ilaa novas interpreta<;oes. Vale assim, para os seus escri-
111',_ I l\l~sma metodologia que usava para ler a realidade e, afinal,
.II' 11:'1Illuito sua obra deixou de ser apenas uma referencia de erudi-
•• 1111 iIllst rada. Pelo que significa e tem significado nas prMicas hist6-
,11m "da pr6pria simultaneamente um monumento e um instrumen-
III politico, retornando sempre como urn enigma complexo que s6
III Ilk scr decifrado pela analise de sua presen<;a concreta e sua veri-
{II 1:!!l'l!uale.
Islo posto, ocupemo-nos do exame de algunstemas vitais pa-
III :1compreensao da intrincada constru<;ao do pensamento de Ma-
Ii"i:lvcl. :E. claro que este e apenas urn angulo possivel num prism a
1111 ill iI'acetado.
Natureza humana Guiado pela busca da "verdade efetiva",
o historia Maquiavel estuda a hist6ria e reavalia
sua experiencia como funcionario do Es-
1:ldo. Seu "dialogo" com os homens da antiguidade classica e sua
PI':'11ica levam-no a concluir que por toda parte, e em todos os tem-
pos, pode-se observar: a presen<;a de tra<;os humanos imutaveis. Dai
:i1'irmar, os homens "sao ingratos, voluveis, simuladores, covardes
:llllC os perigos, avidos de lucro" (0 pn'ncipe, cap. XVII). Estes atri-
hulOS negativos compoem a natureza humana e mostram que 0 con-
l'Iito e a anarquia saD desdobramentos necessarios dessas paixoes e
illstintos malevolos. Por outro lado, sua reiterada permanencia em
lodas as epocas e sociedades transformam a hist6ria numa privile-
giada fonte de ensinamentos. Por isso, 0 estudo do passado nao e
11mexercicio de mera erudi<;ao, nem a hist6ria urn suceder de even-
los em conformidade com os designios divinos ate que chegue 0 dia
do juizo final, mas sim urn desfile de fatos dos quais se deve extrair
as causas e os meios utilizados para enfrentar 0 caos resultante da
cxpressao da natureza humana. Desta forma, sustenta 0 pensador
florentino,
aquele que est udal' euidadosamente 0 passado pode prever os aeon-
teeimentos que se produzirao em eada Estado e utilizar os mesmos
meios que os empregados pelos antigos. Ou entao, se nao ha mais
os remedios que ja foram empregados, imaginal' outros novos, segun-
do a semelhanga dos aeonteeimentos.
(DisGursos, livro I, cap. XXXIX,)
A historia e ciclica, repete-se indefinidamente, ja que nao ha
meios abs01utos para "domesticar" a natureza humana. Assim, a
ordem sucede a desordem e esta, por sua vez, clama por'uma no-
va ordem. Como, no entanto, e impossivel extinguir as paixoes e
os instintos humanos, 0 ciclo se repete. 0 que pode variar - e nes-
ta varial;ao encontra-se 0 amago da capacidade criadora humana e,
portanto, da politic a - sao os tempOS de dural;ao das formas de
convivio entre os homens.
o poder politico tem,pois, uma origem mundana. Nasce da
,propria "malignidade" que e intrinseca a naturez,a humana. Alem
disso, 0 poder aparece como a unica possibilidade de enfrentar 0
conflito, ainda que qualquer forma de "domestical;ao" seja preca-
ria e transitoria. Nao ha garantias de sua permanencia. A perversi-
dade das paixoes human as' sempre volta a se manifestar, mesmo
que tenha-permaneCido oculta por algurh tempo.
A desordem proveniente da imuta-
vel natureza humana, Maquiavel
acresce urn importante fator so-
cial de instabilidade: a presenl;a inevitavel, em todas as sociedades,
de duas forl;as opostas, "uma das quais provem de nao desejar 0
povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quere-
rem os grandes dominar e oprimir 0 povo" (0 prtncipe, cap. IX).
Note-se que uma das for~as quer dominar, enquanto a outra nao
quer ser dominada. Se todos quisessem 0 dominio, a oposil;ao seria
resolvida pelo goveino dos vitoriosos. Co,ntudo, os vitoriosos nao
sufocam definitivamente os vencidos, pois estes permanecem nao
querendo 0 dominio. 0 problema politico e entao encontrar meca-
nismos que imponham a ~stabilidade aas relal;oes, que sustentem
uma determinada correlal;ao de forl;as.
Maquiavel sugere que ha basicamente dtias respostas ,a anar-
quia d~corrente da natureza humana e do confronto entre os gru-
pos sociais:. 9 Principado e a Republica. A escolha de uma ou de
outra forma, institucional nao depende de urn mero ate de vontade
ou de consideral;oes abstratas e idealistassbbre 0 regime, mas da si-
tual;ao concreta. Assim, quando a nal;ao em:ontra-se ameal;ada de
deterioral;ao, quando a corrUPl;ao alastrou-se, e necessario urn go-
verno forte, que crie e cologue seus instrumentos de poder para ini-
bir a vitalidade das forl;as desagregadoras e centrifugas. 0 principe
Anarquia X Principado
e Republica
11:10e urn ditador; e, mais propriamente, urn fundador do Estado,
11111agente da transil;ao numa fase em que anal;ao se acha ameat;:a-
d:! de decomposil;ao. Quando; ao contrario, a sociedade ja encon-
II (HI for~as de equilibrio, 0 poder politico' cumpriu sua funl;ao re-
Ii, '1lcradora e "educadora", eia esta preparada para a Republica.
N 'sle regime, que por vezes 0 pensador florentino chama de liberda-
dc, 0 povo e virtuoso, as instituil;oes sao estaveis econtemplam a
dillamica das reIal;oes sociais. Os conflitossao, fonte de vigor, sinal
d . Limacidadania ativa, e portanto sao desejaveis.
Face a Italia de sua epoca :....-dividida, corrompida, sujeita as
IIlvasoes externas - Maquiavel nao tinha duvidas: er,a nece~sario
\I1~1L1rtifical;aoe regeneral;ao. Tais tarefas tornavam imprescindivel
I) sLirgimento de urn homem virtuoso capaz de fundar urn Estado.
1':1':1preciso, enfim, urn principe.
Virtu X fortuna A crenl;a na predestinal;ao dominava ha lon-
go tempo. Este era urn dogma que Maquia-
wi teria que enfrentar, por mais fortes que fossem os rancores que
Ii rafsse contra si. Afinal, a atividade politica, tal como arquitetara,
l'I':1Limapratica do homem livre de freios extraterrenos, do homem
II icito da historia. Esta prarica exigia virtu, 0 dominie sobre afortuna.
. Para pensar a virtu e a fortuna mais uma vez Maquiavel recor-
I • aos ensinamentos dos historiadores classiCos, bus~ando contra-
p()-Ios aos preceitos dominantes na Italia seiscentista. (para os anti-
I',OS, a Fortuna nao'era uma forl;a maligna inexoravel. Ao contrario,
Iia imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja sini-
palia era importante atrair. Esta deus a possuia os bens que todos
llS homens desejavam: a homa, a riqueza,a gloria, 0 poder. Mas
'01110fazer para que a de\lsa Fortuna nos favorecesse e nao a ou-
i ros, perguntavam-se os homens da antiguidade classica? Era impres-
'illdfvel seduzi-Ia, respondiam. Como se tratava de uma deusa que
l'I'<l tambem mulher, para atrair suas gral;as era necessario mostrar-
.' . vir, urn homem de verdadeira virilidade, de inquestioI).avel cora-
1',CIll. Assim, 0 homem que possuisse virtu no mais alto gqm seria
h 'l1eficiado com os presentes da cornucopia da Fortuna.)
Esta visao foi inteiramente derrotada com 0 triunfo do cristia-
Ilismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituida por
11111"poder cego", iQabalavel, fechado a qualquer influencia, que
t1istribui seus bens de forma indiscriminada. A Fortuna nao tern
mais como simbolo a cornucopia, mas a roda do tempo, que gira in-
definidamente sem que se possa descobrir 0 seu movimento. Nessa
visao, os bens valorizados no periodo classico nada sao. 0 poder,
a honra, a riqueza ou a gloria nao significam felicidade. Esta nao
se realiza no mundo terreno. 0 destino e uma for<;:a da providencia
divina e 0 homem sua vitima impotente.
Maquiavel inicia 0 penultimo capitulo de 0 principe referin-
do-se a est a cren<;:ana fatalidade e a impossibilidade dos homens al-
terarem 0 seu curso. Chega, inclusive, com certa ironia, a afirmar
que se inclinou a concordar com essa opiniao. No entanto, 0 des en-
rolar de sua exposi<;:ao mostra-nos, com toda clareza, que se trata
de uma concordancia meramente estrategica .. Concorda para poder
desenvolver os argumentos da discordancia.(Assim, apos admitir 0
imperio absoluto da Fortuna, reserva, poucas linhas a seguir, ao li-
vre-arbitrio pelo menos 0 dominio da metade das a<;:oes humanas.
E termina 0 capitulo demonstrando a possibilidade da virtu conquis-
tar a fortuna. Assim, Maquiavel monta urn cenario no qual a liber-
dade do homem e capaz de amortecer 0 suposto poder incontrasta-
vel da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a possibili-
dade de se fazer uma alian<;:a com a Fortuna, esta nao e mais uma
for<;:aimpiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pe-
los antigos.Ela e mulher, deseja ser seduzida e est a sempre pronta
a entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demons-
tram tel' virtu)
LNao cabe nesta imagem a ideia da virtude crista que prega
uma bondade angelical alcan<;:ada pela liberta<;:ao das tenta<;:oes terre-
nas, sempre a espera de recompensas no ceu. Ao contrario, 0 po-
del', a honra e a gloria, tipicas tenta<;:oes mundanas, sao bens perse-
guidos e valorizados. 0 homem de virtu pode consegui-Ios e pOl'
eles luta.
Dessa forma, 0 poder que nasce da propria natureza humana
~e encontra seu fundamento na for<;:a e redefinido. Nao se trata
~ mais apenas da for<;:a bruta, da violencia, mas da sabedoria no usa
JtI" da for<;:a, da utiliza<;:ao virtuosa da for<;:a.0 governante nao e, pois,
J'" simplesmente 0 mais forte - ja que este tern condi<;:oes de conquis-
tar mas nao de se manter no poder -, mas sobretudo 0 que demons-
V:-. tra possuir virtu, sendo assim capaz de manter 0 dominio adquiri-
do e se nao 0 amor, pelo menos 0 respeito dos governados.
A partir destas variaveis pode-se retornar, mais uma vez, ao
inieio de 0 principe e dar urn novo significado a distin<;:ao aparente-
mente formal entre os principados hereditarios e os novos. Maquiavel
Ilblinha que 0 poder se funda na for<;:a mas e necessario virtu pa-
1:\ se manter no poder; mais nos dominios recem-adquiridos do que
II:lqueles ha longo tempo acostumados ao go verno de urn principe
l' sua familia. No entanto, nem mesmo 0 principado hereditario e
\cguro. Sua advertencia - nao ha garantias de que 0 dominio per-
111::me<;:a- vale para todas as formas de organiza<;:ao do poder.
I) m governante virtuoso procurara criar institui<;:oes que "facilitem"
() dominio. Conseqiientemente, sem virtu, sem boas leis, geradoras
dc boas institui<;:oes, e sem boas armas, urn poder rival pod era im-
l1or-se. Destes constrangimentos nao escapam nem mesmo os princi-
l1adOShereditarios que pareciam a principio tao seguros. Afora is-
10, como sustentar a radical distin<;:ao entre os principados antigos
c os novos, se ambos tern igual origem - a for<;:a?
A for<;:a explica 0 fundamento do poder, porem e a posse de
I'irtu a chave POI' excelencia do sucesso do principe. Sucesso este
que tern uma medida politica: a manuten<;:ao da conquista. 0 gover-
Ilante tern que se mostrar capaz de resistir aos inimigos e aos gol-
pes da sorte, "construindo diques para que 0 rio nao inunde a pla-
Ilicie, arrasando tudo 0 que encontra em seu caminho". 0 homem
de virtu deve atrair os favores da cornucopia, conseguindo, assim,
a faina, a honra e a gloria para si e a seguran<;:a para seus governados.
E desta perspectiva que ganha urn novo sentido a discussao so-
hre as qualidades do principe. Este deveria ser born, honesto, libe-
I'al, cumpridor de suas promessas, conforme rezam os mandamen-
10Sda virtude crista? Maquiavel e incisivo: ha vieios que sao virtu-
des. Nao tema pois 0 principe que deseje se manter no poder "in-
correr no oprobrio dos defeitos mencionados, se tal for indispensa-
vel para salvaI' 0 Estado". (0 principe, cap. XV). Os ditames da
moralidade convencional podem significar sua mina. Urn principe
sabio deve guiar-se pela necessidade - "aprender os meios de nao
ser born e a fazer usa ou nao deles, conforme as necessidades". As-
sim, a qualidade exigida do principe que deseja se manter no poder
C sobretudo a sabedoria de agir conforme as circunstancias. Deven-
clo, contudo, aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos go-
vernados. 0 jogo entre a aparencia e a essencia sobrepoe-se a distin-
Gao tradicional entre virtudes e vieios. A virtu politica exige tambem
os vieios, assim como exige 0 reenquadramento da for<;:a.0 agir vir-
tuoso e urn agir como homem e como animal. Resulta de uma astu-
ciosa combina<;:ao da virilidade e da natureza animal. QueI' como
homem, quer como leao (para amedrontar os lobos), quer como ra-
po sa (para conhecer os lobos), 0 que conta e "0 triunfo das dificul-
dades e a manutenl;ao do Estado. Os meios para isso nunca deixa-
rao de ser julgados homosos, e todos os aplaudirao " (0 prInCipe,
cap. XVIII).
A politica tern uma etica e uma logica proprias. Maquiavel
descortina urn horizonte para se pensar e fazer politica que nao se
enquadra no tradicional moralismo piedoso. A resistencia a aceita-
~ao da radicalidade de suas proposil;oes e seguramente 0 que da ori-
gem ao "maquiavelico". A evidencia fulgurante deste adjetivo aca-
ba velando a riqueza das descobertas substantivas.
o mito, uma constante em sua obra, e falado para ser desmis-
tificado. Maquiavel nao 0 aceita como quer a tradil;ao - algonatu-
ralizado e eterno. Recupera no mito as questoes que ai jaziam ador-
mecidas e pacificadas. E, ao fazer isto, subverte as concepl;oes aco-
modadas, de ha muito estabelecidas, instaurando a modernidade
no pensar a politica. Ora, desmistificar tern sempre urn alto risco.
o cidadao florentino pagou-o em vida e sua morte nao the trouxe
o descanso do esquecimento. Transformado em mito, e novamente
vitimizado.
Opensamento politico moderno e critico, para decifrar 0 enig-
ma propos to em sua cibra, precis a resgata-Io sem preconceitos e
em sua verita effettuale. E 0 que $e deve a Nicolau Maquiavel, 0 ci-
dadao sem fortuna, 0 intelectual de virtu.
1 Claude Lefort, em Le travail de I'ceuvre de Machiavel (Paris, Gallimard,
1972), apresenta uma das analises mais sofisticadas sobre a representa~ao
coletiva expressa no maquiavelismo e discorre sobre algumas das mais im-
portantes interpreta~6es feitas sobre a obra de Maquiavel. Trata-se de lei-
tura obrigat6ria para todos' os que pretend em desvendar os meandros da
obra do autor seiscentista.
I)E QUANTAS ESPECIES sAo OS PRINCIPADOS,
E DE QUE MODO SE ADQUIREM
Todos os Estados, todos os domini os que exerceram e exercem
11uL!crsobre os homens, foram e sao ou republicas ou principados.
( )s principados sao ou hereditarios, quando a estirpe do seu senhor
dcscle longo tempo os rege, ou novos. Estes, ou sao totalmente no-
I'()S, como foi 0 de Milao para Francisco Sforza, ou sao como mem-
bras acrescidos ao Estado hereditario do principe que os adquire,
\,\lIno e 0 reino de Napoles para 0 rei da Espanha. Os domini os as-
i III obtidos ou estao acostumados a viver sob 0 governo de urn prin-
"ipc, ou habituados a liberdade, e ganham-se ou com as armas de
\llit rem ou com as proprias, por obra da fortuna ou por virtu de [virtu].
[00 .]
[00 .]
Nos Estados hereditarios e acostumados aver reinar a familia
do seu principe, .ha dificuldades muito menores para mante-Ios, do
que nos novos; porque basta apenas conservar neles a ordem estabe-
Iccida por seus antepassados, e em seguida contemporizar com os
acontecimentos. [00']
• Trechos ext raid as de MAQUIAVEl, Nicolau, 0 principe. Trad. de Mario e Celestino
da Silva. 3. ed. Rio de Janeiro, Ed, Vecchi, 1955. p. 10-167.
E, porem, no principado novo que estao as dificuldades. Em
primeiro lugar, se ele nao for inteiramente novo, mas uma especie
de membro que no seu conjunto se pode chamar quase misto, as
suas perturba<;oes nascem de uma dificuldade natural, peculiar a to-
dos os principados novos. E que os homens gostam de mudar de se-
nhor, julgando melhorar, e esta cren<;a os induz a pegar em armas
contra quem os governa: cren<;a ilus6ria, pois mais tarde a experien-
cia lhes mostra que pioraram. Isto por sua vez deriva da natural e
comum necessidade de ofender aqueles de quem nos tornamos prin-'
cipe novo, com homem d'armas e muitos outros vexames que a no-
va aquisi<;ao exige. Passamos, entao, a ter por inimigos todos aque-
les a quem prejudicamos ao ocupar 0 principado, e ao mesmo tem-
po nao podemos conservar amigos os que la nos puseram, porque,
nem nos e licito satisfaze-Ios pel a forma que imaginaram, nem a
nossa gratidao para com eles nos consente trata-los com dureza. E
deve-se ter presente que, ainda quando disponhamos de exercitosfortissimos, sempre nos e indispensavel 0 favor dos habitantes de
uma provincia para entrar nesta.
[...]
Os Estados que ao se adquirirem vao aumentar urn Estado an-
tigo do adquirente, ou pertencem a mesma provincia e falam a mes-
ma lingua, ou nao. No primeiro caso, grande facilidade ha em man-
te-Ios, sobretudo se nao estao habituados a viver livres, e para os
possuir com seguran<;a basta ter extinguido a linhagem do principe
que os dominava. Quanto ao mais, nao existindo ai diversidade de
costumes, des de que Ihes nao modifiquemos as antigas condi<;oes,
os seus habitantes permanecem tranquilos, como se viu ter aconteci-
do na Bretanha, na Borgonha, na Gasconha e na Normandia, que
por tanto tempo ficaram com a Fran<;a. Mas, ainda quando haja
neles alguma diferenp de lingua, semelhantes sao, contudo, os cos-
tumes, e pod em facilmente harmonizar-se entre si. Quem adquire
tais territ6rios, desejando conserva-los, deve tomar em considera<;ao
duas coisas: uma, que a estirpe do seu antigo principe desapare<;a;
a outra, nao alterar as suas leis, nem os seus impostos. Assim, den-
tro de brevissimo tempo formam urn corpo s6 com 0 principado
vizinho. Mas quando se adquirem Estados numa provincia de lin-
gua, costumes e institui<;oes diversas, ai e que come<;am as dificulda-
des e que se faz necessario ter fortuna propicia e grande industria
para conserva-los. Urn dos melhores e mais eficazes meios de tor-
liar mais segura e duradoura a posse seria, em tal caso, ir 0 adqui-
rente neles residir. Haja vista 0 que fez 0 sultao com a Grecia, ao
qual nao teria side possivel reter 0 novo dominio, apesar de todas
;ISmedidas que tomou, se nao houvesse ido la residir. E que, estan-
do no principado, vimos nascer as desordens e podemos prontamen-
Ie dar-Ihes remectio; nao estando, vimos a eonheee-las quando ja to-
Illaram vulto e nao ha mais como atalha-Ias. Demais, a provincia
Ileste easo nao e pasta da cobi<;a dos funcionarios governamentais:
os suditos ficam satisfeitos com poderem recorrer ao principe que
Illes esta pr6ximo, e, por consequencia, tern maior motive para
ama-Io, se desejam ser bons, e de recea-Io, se desejam ser outra coi-
.sa. Por outro lade, qualquer pais estrangeiro que pretendesse ata-
car esse Estado passa a respeita-lo mais. Eis, em suma, por que re-
sidindo no seu dominie s6 muito dificilmente acontece vir 0 princi-
pe a perde-Io.
o outro meio igualmente eficaz consiste em mandar colonizar
algumas regioes que sejam como chaves do novo Estado. Nao se fa-
zendo isto, sera for<;oso manter muita gente armada e infantes. Nao
sac muito dispendiosas as col6nias. Com pequena ou nenhuma des-
pesa, 0 principe manda os colonos para os lug ares designados e ai
os conserva, prejudicando somente aqueles de quem tira os campos
para da-los aos novos habitantes, que sac uma particula minima
do territ6rio conquistado. Os lesados, por ficarem dispersos e po-
bres, nunca poderao acarretar-Ihe embara<;os. Todos os demais,
nao tendo, por urn lade, motivos de queixa, se acalmam facilmen-
te, e por outro lado; receosos de virem a sofrer 0 mesmo que aque-
les, evitam suscitar as iras do novo senhor. Em conclusao: essas co-
[anias nada custam, sac mais fibs, prejudicam menos, e os prejudi-
cados, reduzidos que foram a pobreza e dispersos, nao estao, co-
mo ja disse, em condi<;oes de criar dificuldades.
Note-se que os homens devem ser lisonjeados ou suprimidos,
pois se vingam das of ens as leves, mas nao podem faze-Io das gra-
ves. Por conseguinte, a of en sa. que se faz ao homem deve ser tal,
que 0 impossibilite de tirar desagravo.
Se em lugar de col6nias tivermos tropas no novo territ6rio,
nao s6 gastaremos muito mais, visto exigir a sua manuten<;ao 0
emprego de todas as rendas do novo Estado, de modo que a aquisi-
<;aose torna passiva, mas tambem aumentaremos 0 numero de pre-
judicados, dada a necessidade dealojarmos tao grande copia de ho-
mens d'armas nas residencias particulares. 0 vexame' dai result ante
e sentido por todos o~ cidadaos, cad a urn dos quais se transforma
em inimigo: 0 inimigo capaz de nos estorvar, pois esta batido e~
sua propria casa. Tudo isso demonstra, portanto, que os exercitos
sao tao inuteis, quanto uteis sac as colonias.
Deve, outrossim, quem esta numa provincia diferente da sua
na lingua e ;:;ostumes, tornar-se, conforme ficou dito, chefe e defen>
sor dos vizinhos de menor tamanho e for<;a, por todo 0 seu afinco
em debilitar os mais poderosos, e cuidar que, de ill'odo nenhum, en-
tre nela urn estrangeiro tao poderoso como ele. 0 advena intervira
todas as vezes que 0 chamarem os ai descontentes por desmedida
ambi<;ao ou por temor. [... ]
POR QUE MOTIVO 0 REINO DE DARIO
QUE FOI OCUPADO POR ALEXANDRE, NAO
SE REBELOU CONTRA OS SUCESSORES
DO MACEDONIO APOS A MORTE DESTE
[... ] os principados dos quais se tern memoria foram governa-
dos de duas formas distintas: ou por urn principe, de quem todos
os dema!s sac servidores que, como ministros por merce e conces-
sao sua, 0 ajudam a governar 'aquele reino; ou por urn principe, e
por bar6es cujos titulos nobiliarios derivam da sua ascendencia e
nao da gra<;ado senhor, bar6es e~tes com Estados e suditos proprios,
que os reconhecem por amos e lhes votam natural afei<;ao. Nos Es-
tados da primeira categoria, a suprema autoridade reune-se na pes-
soa do principe, pois, assim 0 entendem os habitantes de todas as
provincias, os quais, embora possam obedecer a Qutros, 0 fazem
por ser este minist'ro ou funcionario; e nenhuma estima particular
lhe tem. Os exemplos destas duas especies de governo sao, nos nos-
sos tempos, 0 da Turquia e 0 da Fran<;a. A monarquia turca e regi-
da por urn tinico chefe, de quem os outros sac servidores, e este
'here, dividindo 0 reino em sandjaques, para ai manda diversos ad-
Illinistradores e muda-os a seu alvedrio. Na Fran<;a, porerh, ao la-
do do soberhno ha uma grande quantidade de senhores de antiga li-
IIliagem reconhecidos por seus sudit()s epor estes amados, e cujos
I"'jvilegios nao pode 0 rei destruir sem perigo para si proprio.
[...]
COMO SE DEVEM:GOVERNAR AS CIDADES
OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DE S~REM
OCUPADOS, SE REGIAM PQR LEIS PROPRIAS
Quando se conquista um pais acostumado a viver segundo as
01111\ proprias leis eem liberdade, tres maneiras ha de proceder pa-
III l'l\ilserva-lo: ou destrui-Io; ou ir nele morar; ou deixa-Io viver
111111 ;IS suas leis, exigindo-Ihe urn tributo e estabelecendo 'nele urn
/III nllo de poucas pessoas que 0 mantenham fiel ao conquistador. [... ]
DOS PRINCIPADOS NOV,oS QUE SE
'ONQUISTARAM COM AS PRQPRIAS ARMAS E
VALOR [VIRTU]
Ninguem se admire se, ao que VQU dizer ~cerca dos Estados
III ill Iii 'ipe e institui<;6es novas, eu aduzir exemplos celebres. Segun-
1111 11'1 lioll1cns, quase sempre, as vias trilhadas por outros, proceden-
till 1'111 SU£lS a<;6espor' imita<;ao, e nao lhes sendo possivel conservar-
i11'1 kilCill1entedentro das raias representadas pela trajetoria de ou-
II I , II '111 acrcscentar algo as qualidades [virtu], daqueles a quem
1111111111, cleve urn individuo prudente enveredar sempre pelos cami-
111111 Ii i1lllilhados par grandes vultos e tomarcomo exemplo os 9ue
III I II\\i ncs foram, a fim de que, ainda quando nao chegue a igua-
la-los, possa ao menos aproximar-se-Ihes; fazer, em suma, como
os archeiros precavidos, os quais achando demasiado longe 0 pon-
to quequerem atingir e conhecendo 0 alcance do seu arco, fazem
pontaria para urn lugar muito mais alto que 0 visado, nao para a
sua flecha ir a tamanha altura, mas para assim acertarem no verda-
deiro alvo.
Devo, pois, dizer que nos principados inteiramente novos, on-
de haja urn novo principe, se encontra dificuldade maior ou menor
para mante-Ios, conforme tenha mais ou menos predicados [virtu]
aquele que os conquista. E como 0 fato de passar alguem de parti-
cular a principe pressup6e valor [virtu] ou fortuna, e de crer que
uma ou outradessas duas coisas atenue em parte muitas dificulda-
des. Apesar disso, quem menos confiou na fortuna, por mais tem-
po reteve a sua conquista. Mais facil ainda e a posse do novo Esta-
do quando 0 principe se ve constrangido, por nao ter outros, a vir
morar nele pessoalmente.
[00. ]
IIII 'diatamente preparar-se para conservar 0 que a fortuna lhes con-
I l'(i<.;u e lancem depois alicerces identicos aos que os demais princi-
II\' construiram antes de tal se tornarem.
[00 .]
DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR
MEIO DE CRIMES
Havendo ainda dois meios de chegar urn simples cidadao ao
principado, para os quais nao contribui inteiramente a fortuna ou
:1 virtude [virtu], nao me parece conveniente omiti-Ios, [. 00]' Esses
Illcios sac a pratica de at;6es celeradas e nefandas ou 0 favor dos
()utros concidadaos. [00']
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM
COM AS ARMAS E A FORTUNA DE OUTREM
Os que de particulares chegam a condit;ao de principes impeli-
dos unicamente pelo destino, com pouco esfon;o a alcant;am, mas
com muito a retem. Nenhum obstaculo encontram no seu caminho,
porque voam nas as as da fortuna. £. depois de terem subido ao po-
der que veem surgir as dificuldades. [00'] nao sabem nem podem
sustentar-se ai. Nao sabem, porque, salvo se forem homens de gran-
de engenho e virtu de [virtu], nao e de crer que, apos uma vida ex-
clusivamente privada, possuam aptid6es para governar; nao podem,
porque carecem de fort;a em cuja dedica~ao e fidelidade lhes seja H-
cito confiar. Demais, os Estados rapidamente surgidos, como todas
as outras coisas da natureza que nascem e crescem depressa, nao po-
dem ter raizes e as aderencias necessarias para a sua consolida~ao.
Extingui-Ios-a a primeira borrasca, a menos que, como se disse aci-
ma, os seus fundadores sejam tao virtuosos [virtuosi], que saibam
[00'] vejamos 0 que ocorre quando urn cidadao se torna princi-
pe de sua parria, nao por meio de crime ou de outra intoleravel vio-
lencia, mas com a ajuda dos seus compatriotas. 0 principado assim
constituido podemo-Io chamar civil, e para alguem chegar a govet-
na-Io nao precisa de ter ou exclusivamente virtude [virtu] ou exclu-
sivamente fortuna, mas, antes, uma astucia afortunada. Pois bern,
a ajuda nesse caso e prestada pelo povo ou pelos proceres locais.
£. que em qualquer cidade se encontram estas duas for~as contra-
rias, uma das quais provem de nao desejar 0 povo ser dominado
nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os gran des do-
minar e oprimir 0 povo. Destas tendencias opostas surge nas cida-
des, ou 0 principado ou a liberdade ou a anarquia.
o principado origina-se da vontade do povo ou da dos gran-
des, conforme a oportunidade se apresente a uma ou outra dessas
duas categorias de individuos: os grandes, certos de nao poderem
resistir ao povo, come<;:am a dar for<;:a a urn de seus pares, fazem-
no principe, para, a sombra dele, terem ensejo de dar largas aos
seus apetites; 0 povo, por sua vez, venda que nao pode fazer fren-
te aos grandes, pro cede pela mesma forma em rela<;:ao a urn deles
para que esse 0 proteja com a sua autoridade.
Quem chega a condi<;:ao de principe com 0 auxilio dos magna-
tas conserva-a com maiores dificuldades do que quem chega com
o auxilio do vulgo, porque no seu cargo esta rodeado de muitos
que se julgam da sua iguala, e aos quais, por isso, nao pode mane-
jar a seu talante. Aquele, porem, que sobe aopoder com 0 favor
popular nao encontra em tomo de si ninguem ou quase ninguem
que nao esteja disposto a obedecer-Ihe. Demais, nao se pode hones-
tamente satisfazer os poderosos sem lesar os outros, mas pode-se fa-
zer isso em rela<;:ao aos pequenos; porque 0 intento dos pequenos
e mais honesto que 0 dos grandes; enquanto estes desejam oprimir.
aqueles nao querem ser oprimidos. Acresc'e ainda que diante de
urn povo hostil jamais urn principe podera sentir-se em seguran<;:a,
por serem os inimigos demasiado numerosos. 0 inverso acontece
com os grandes, pelo motivo meS)1lOde serem poucos. De uma ple-
be adversa, 0 maximo que urn principe pode esperar e ser por ela
abandonado. Dos magnatas, porem, deve recear nao s6 0 abando-
no, senao tambem a revolta. E que eles, sendo mais perspicazes e
astutos, ao pressentirem a tempestade, tern semgre tempo de se por
a salvo, lisonjeando aquele que julgam venha'il'triunfar. Por outro
lado, 0 principe e obrigado a viver sempre com 0 mesmo povo;
mas pode muito bem prescindir dos poderosos do momento, dada
a faculdade que tern de fazer outros novos e desfaze-los todos os
dias, de tirar-lhes ou dar,-lhes autoridade conforme as suas pr6prias
conveniencias.
Para melhor esclarecer esta parte, direi que temos de conside-
rar os poderosos sob do is aspectos principais: ou procedem de for-
ma que por suas a<;:6es ficam completamente ligados ao destino do
principe, ou nao. Os primeiros, des de que nao sejam rapaces, deve-
mo'-Ios homar e amar: Quanto aos segundos, cumpre-nos distinguir:
ha os que assim procedem por pusilanimidade e defeito natural de
animo, e neste caso devemos servir-nos deles, sobretudo quando
sac bons conselheiros, para que nos queiram bem na prosperidade
e nao tenhamos de recea-los na adversidade; mas ha tambem os
que, nao ligando 0 seu destino ao do principe, 0 fazem por calcli-
10 e por ambi<;:ao, sinal de que pensam mais em si do que nele. Con-
1111 '"Ies, 0 principe que se acautele. Tema-os como se fossem inimi-
Ii I' dcclarados, porque no infortunio contribuirao sempre para cau-
III Ille a ruina.
Quem, portanto, se tomar principe com 0 favor do povo de-
I I' 'onserva-Io seu amigo; e isto nao Ihe sera difkil, ja que 0 povo
d I dcseja estar livre da opressao. Mas quem chegar a essa altura
1\1111 0 bafejo dos poderosos, e contra a vontade do povo, busque,
1IIIIcSde mais nada, captar as simpatias deste, 0 que the sera facil
'1llando 0 puser sob a sua prote<;:ao. Os homens, quando recebem
\1 hcm de quem julgavam receber 0 mal, mais agradecidos se mos-
II :1111 ao benfeitor. Por isso, 0 principe que protege 0 seu povo tor-
11:1-0 mais afei<;:oado a si do que se tivesse chegado ao poder com
II favor dele. Muitos modos existem de granjear tal afeto. Contu-
do, variam tanto de povo para povo que nao e possivel estabelecer-
Illes regra segura, e sobre eles guardarei silencio. Limitar-me-ei a di-
Icr que a urn principe e for<;:oso ter a amizade do seu povo. Sem ela,
I'~io encontrara salva<;:ao na hora da desdita.
Nabis, principe dos espartanos, aguentou 0 assedio de toda a
(irecia e de urn exercito romano cheio de vit6rias, defendendo con-
Ira eles a sua patria e 0 seu Estado, e, para tanto, bastou-Ihe, ao
chegar 0 momento de perigo, manter vigilancia sobre poucos indivi-
duos. Isto teria sido insuficiente, caso 0 povo the fosse inimigo. Se
alguem pretender refutar esta minha opiniao citando aquele mau
proverbio, segundo 0 qual quem canstr6i sabre a pava, canstr6i sa-
bre lama, eu responderei que tal proverbio s6 e verdadeiro quando
urn simples cidadao julga poder estribar-se no povo e espera ser
por ele salvo quando se ve oprimido pelos inimigos ou pelos magis-
trados. Em tal eventualidade, e muito comum esse individuo enga-
nar-se, como aconteceu em Roma aos Gracos e em Floren<;:a a Jor-
ge Scali. Quando, ao contrario, quem se arrima no povo e urn prin-
cipe capaz de comandar, urn homem resoluto, que nao se atemori-
za ante a desventura e sabe com 0 seu valor e as suas leis incutir co-
ragem em todos, nunca sera por ele enganado e vera ter construi-
do sobre fundamentos s6lidos.
Por via de regra, 0 govemo de urn desses Estados come<;:a a
vacilar quando da ordem civil passa a monarquia absoluta. 0 prin-
cipe ai, exercendo a soberania de modo direto ou por meio de ma-
gistrados, encontra-se, no ultimo caso, em situa<;:ao mais debil e pe-
rigosa. Depende destes funcionarios, os quais, sobretudo nos mo-
mentos de adversidade, podem facilmertte retirar-Ihe 0 poder, colo-
cando-secontra ele ou desobedecendo-lhe. Nos momentos de perigo
ja nao tern 0 principe tempo para assumir autoridade absoluta, por-
que os cidadaos e os suditos, acostumados a receber as ordens dos
magistrados, nao estao propensos em tais circunstancias a obedecer
as dele. Nas situac;oes duvidosas faltar-Ihe-ao sempre, pois, indivi-
duos que Ihe inspirem confianc;a. 0 principe nao pode, com efeito,
estribar-se no que ve em tempos tranquilos, quando os cidadaos pre-
cis am do Estado: ai todos se mostram pressurosos, todos prometem
e, estando a morte longe, querem morrer por ele. A maioria, porem,
desaparece ao chegar a tempestade, justamente quando 0 Estado pre-
cisa dos cidadaos. 0 risco desta experiencia consiste, sobretudo, em
nao a podermos fazer senao uma vez. Por isso, urn principe avisa-
do deve proceder de tal forma que os seus sliditos ten ham sempre ne-
cessidade do Estado e dele. Assim, nunca deixarao de Ihe ser fieis.
COMO SE DEVEM MEDIR AS FORc;AS DE
TODOS OS PRINCIPADOS
Ao examinar esses principados, cumpre nao esquecer outra
considerac;ao; isto e, saber se urn principe pode, em caso de agres-
sao, defender sozinho 0 seu Estado ou se deve recorrer sempre a
ajuda alheia. Esclarec;amos bem este ponto. Entendo estarem no
primeiro caso os principes que tern homens e dinheiro suficientes pa-
ra organizar urn born exercito e dar batalha a quem quer que os ve-
nha atacar, e no segundo os que nao estao em condi<;oes de afron-
tar 0 inimigo em campanha, sendo forc;ados a refugiar-se dentro
dos muros da sua cidade e a defender estes. [Oo.]
DOS PRINCIPADOS ECLESIAsTICOS
Agora so nos resta falar dos principados eclesiasticos. Nesses,
todas as dificuldades consistem em adquirir-Ihes a posse; porque,
NICOLAU MAQUIAVEL: 0 CIDADAo SD'I FORTUNA, 0 INTELECTUAL DE VIRTU
11111:1 isso, cumpre ter virtude [virtu] ou b~a sorte. Pa:a conserv~-
1m, porem, nem de uma nem de outra cOlsa se nec_essl:a. ~s, antl-
I'II~iIlstituic;oes religiosas que Ihes servem de base saD tao sohdas e
ill' 1:11natureza, que permit em aos principes manterem-se no po~er
"'1:1 qual for 0 modo como procedam e vivem. Os chefes destes pr:n-
I Ipaclos sao os unicos que tern Estados e nao os defe~dem, que t~m
'illditos e nao os governam. Os seus Estados, embora mdefesos, nm-
I'I10m Ihos tira, e os seus suditos, conquanto livres da tutela gover-
1IIIIllentai nao se preocupam com isso, nem buscam ou podem sub-
111Ii r-se a ~oberania deles. Tais prim:ipados sao, pois, os unicos segu-
111\ c felizes. Mas, sendo eles regidos por causas superi~res.' impen~-
II ;'Iveis a mente humana, deixarei de fazer-Ihes referenclas. Sena
IIlister de homem presunc;oso e temerario 0 discorrer sobre Estados
Illslituidos e sustentados por Deus.
[Oo .]
DOS SOLDADOS MERCENARIOS E DAS
ESPECIES DE MILICIAS
[Oo.] • " • . 'I'd
Dissemos, ja antes, que a urn pnnclpe e necessano ter so I os
:llicerces, porque, senao, fatalmente ruira. Os principais alicerces
de qualquer Estado, seja ele novo, velho ou misto, consiste~ nas
hoas leis e nos bons exercitos. E como nao pode haver boas leIS on-
de nao ha bons exercitos, e onde ha bons exercitos e forc;oso haver
boas leis, eu deixarei de iado 0 assunto relativo as leis para falar
c10s exercitos.
As tropas com que urn principe defende 0 seu Estado saD ou
proprias ou mercenarias ou auxiliares ou, ainda, mistas. As merce-
narias e auxiliares sao inuteis e perigosas. Se alguem toma por sus-
tentaculo do seu Estado as tropas mercenarias, nunca tera tranquili-
dade nem seguranc;a, porque elas saD desunidas, ambiciosas, sem
disciplina, infieis, corajosas diante dos amigos, covardes dian~e ~os
inimigos e sem temor de Deus. Com semelhantes trop~s, urn pnnclpe
so podera evitar a propria ruina enquanto puder evttar urn ataque
36 OS CLAsSICOS DA POLiTiCA
contra si. Sera pilhado por elas em tempo de paz, e pelo inimigo
em ~empo de guerra. A causa disso e que tais tropas nao tern outro
sentm~e~to ~em outro motivo que as fa<;a lutar a nao ser urn peque-
no estlpendlO, e este nao basta para lhes incutir a vontade de mor-
rer por ~uem lho paga. Querem ser soldados do seu patrao quan-
~o ele nao faz a guerra; mas, ao romper esta, querem fugir ou des-
lIgar-se do seu compromisso.
[Oo .]
DOS DEVERES DE UM PRINCIPE
NO TOCANTE A MILICIA
[Oo.] u~ principe nao deve ter outro fito ou outro pensamen-
to, nem cultIvar outra arte, a nao ser a da guerra, juntamente com
as regras e a disciplina que ela requer; porque so esta arte se espe-
ra de, q~em manda,. e e tao uti! que, alem de conservar no poder
os pnnclpes de nascImento, com freqiiencia eleva a tal altura sim-
ples cidadaos. Em contraste, os principes que cuidaram mais das de-
licias da vida do que das arm as perderam os seus Estados. E como
o desprezo da arte da guerra determina esta perda, assim 0 estar ne-
la bem adestrado determina aquela ascensao.
[...]
DAS COISAS PELAS QUAIS OS HOMENS
E MORMENTE OS PRINCIPES, sAo LOUV ADOS
OU CENSURADOS
Resta-nos agora ver de que forma deve urn principe pro ceder
p~ra com os amigos e suditos. Como nao ignoro terem muitos es-
cnto a esse respeito, receio que, ao faze-Io tambem, me tachem de
presun<;oso, por eu divergir, especialmente nesta materia, das opi-
IIi6es dos outros. Em todo 0 caso, sendo minha inten<;ao escrever
l'oisa util para quem saiba entende-Ia, julguei mais conveniente ir
:11 ras da verdade efetiva do que das suas aparencias, como fizeram
Illuitos imaginando republicas e principados que nunca se viram
Ilem existiram. Entre como se vive e como se devia viver ha tam a-
Ilha diferen<;a, que aquele que despreza 0 que se faz pelo que se de-
veria fazer aprende antes a trabalhar em prol da sua ruina do que
da sua conserva<;ao. Na verdade, quem num mundo cheio de per-
versos pretende seguir em tudo os ditames da bondade, caminha
inevitavelmente para a propria perdi<;ao. Dai se infere que urn prin-
cipe desejoso de conservar-se no poder tern de aprender os meios
de nao ser born e a fazer usa ou nao deles, conforme as necessidades.
Deixando, pois, de lado as coisas imaginarias para so falar
das verdadeiras, tenho a dizer que 0 julgamento dos homens, sobre-
ludo dos principes, pela sua mais elevada condi<;ao, se faz de acor-
do "com algumas dessas qualidades que lhes valem ou censura ou
louvor. A urn chamam liberal, a outro mesquinho (empregando 0
Lermo no sentido toscano, porque, na lingua nossa, avarento e tam-
bem 0 que deseja enriquecer por meio de rapina, e mesquinho uni-
camente 0 que evita em demasia gastar os seus haveres), a urn repu-
lam-no dadivoso, a outro rapace, a este cruel, aquele piedoso, a es-
Loutro desleal, aqueloutro fiel, a urn efeminado e pusilanime, a ou-
tro feroz e destemido, a urn modesto, a outro soberbo, a urn lasci-
vo, a outro casto, a urn integro, a outro astuto, a urn inflexivel, a
outro brando, a urn austero, a outro leviano, a urn religioso, a ou-
tro impio, e assim por diante. Todos hao de achar, bem sei, que se-
ria muito louvavel possuisse urn principe, dentre as qualidades men-
cionadas, somente as boas. Nao sendo, porem, possivel te-Ias todas
oem observa-las integralmente, porque nao 0 permitem as condi-
<;6es humanas, cumpre-lhe ser bastante cauteloso para saber furtar-
se a vergonha das que the ocasionariam a perda do Estado e, em
certos casos, tambem a daquelas que nao lha ocasionariam, embo-
ra estas menos receio the devam inspirar. Releva, outrossim, que
nao tema incorrer no oprobrio dos defeitos mencionados, se tal for
indispensavel para salvaI' 0 Estado. E que, ponderando bern, encon-
trara algo com aparencias de virtude [virtil], cuja ado<;ao the trara
a mina, e algo com aparencia de defeito, que 0 conduzira a uma si-
tua<;ao de seguran<;a e de bem-estar.
38 ,as CLAsSICOS DA POLiTIC\
DE QUE MANEIRA OS PRINCIPES DEVEM
CUMPRIR AS SUAS PROMESSAS
[...]
Saiba-se que existem dois modos de combater: urn com as leis
cutro ~om.a f~r~a. 0 primeiro e pr6prio do homem, 0 segund~
dos anlIl~aIS. Nao sendo, porem, muitas vezes suficiente 0 primei-
ro.' convem reCOrrer ao segundo. Por conseguinte, a urn principe e
mIster saber comportar-se como homem e como animal. Isto ensina-
ram vela?amente os autores da antiguidade, ao escreverem que Aqui-
les e mU1~OSoutros principes daquela era foram confiados ao cen-
t~u.ro Chl~on para que os educasse e criasse. Esta parabola nao sig-
lllflca sen~o qu.e e necessario ter-se por perceptor urn ser meio ho-
mem e mew alllmal; ou, por outras palavras, que a urn principe in-
cumbe saber usar dessas duas naturezas, nenhuma das quais subsis-
te sem a outra.
~en.do, portanto, necessidade de proceder como animal, deve
urn prmclpe ado tar a indole ao mesmo tempo do leao e da .
Po I - - raposa,rque 0 eao nao sabe fugir das armadilhas e a raposa nao sabe
defend.er-se dos lobos. Assim, cumpre ser raposa para conhecer as
arma~llhas e leao para amedrontar os lobos. Quem se contenta de
ser lean demonstra nao conhecer 0 assunto.
. Urn principe sabio nao pode, pois, nem deve manter-se fiel
as suas ~romessas quando, extinta a causa que 0 levou a faze-las,
o cumpnmento delas the traz prejuizo. Este preceito nao seria born
se os homens fossem todos bons. Como, porem, sac maus e por is-
so mesmo, falt~riam a palavra que acaso nos dessem, nad~ impe-
de v~nhamo~ nos a f~lta~ tarr;bem a nossa. Raz6es legitimas para en-
c~bnr esta mo?serVancla, te-Ias-a sempre 0 principe, e de sobra.
Dlsto se podenam dar infinitos exemplos modernos para mostrar
quantos trat~dos de paz, quantas promessas se tornaram nulas e
sem valor ulllcame~te yela deslealdade dos principes. 0 que dentre
e~tes melhor soube ImItar a raposa, mais proveito tirou. Mas e pre-
CISOsaber mascarar bem esta indole astuciosa, e ser grande dissimu-
lad~r. Os homens sac tao simpl6rios e obedecem de tal forma as ne-
cessldades .presentes, que aquele que engana encontrara sempre
quem se delxe enganar.
Dos exemplos recentes, urn existe sobre 0 qual nao quero guar-
d.\1" silencio. Alexandre VI durante a sua vida s6 fez enganar os ho-
IIIVIIS, s6 pensou nos meios de os induzir em erro, e sempre achou
i1IHlrtllnidades para isso. Nunca houve quem com maior eficacia e
111;lissolenes juramentos soubesse afirmar uma coisa e que menos
I ohservasse do que ele. Apesar disso, as suas tram6ias sempre sur-
III ;1111efeito, porque ele conhecia bem aquele aspecto dahumanidade.
Nao e necessario a urn principe ter todas as qualidades mencio-
Ililclas, mas e indispensavel que pare~a te-Ias. Direi, ate, que, se as
IHlssllir, 0 uso constante delas resultara em detrimento seu, e que,
II() contrario, se nao as possuir, mas afetar posslli-Ias, colhera bene-
I( ·ios. Dai a conveniencia de parecer clemente, leal, humano, reli-
I,io.so, integro e, ainda de ser tudo isso, contanto que, em caso de
11'cessidade, saiba tornar-se 0 inverso. Tenha-se presente que sen-
do freqiientemente for~oso, para manter urn Estado, quebrar a pala-
I'l"a empenhada e infringir os preceitos da caridade, da clemencia,
da religiao, nao pode urn principe, maxime, urn principe novo, res-
Ilcitar tudo quanta da aos homens a reputa~ao de bons. Por isso,
" mister que ele tenha urn espirito pronto a se adaptar as varia~6es
das circunstancias e da fortuna e, como disse antes, a manter-se tan-
10 quanto possivel no caminho do bern, mas pronto igualrnente a
cilveredar pelo do mal, quando for necessario.
Urn principe deve ser extrema mente cuidadoso em s6 pronun-
ciar palavras bem repassadas das cinco qualidades referidas, para
que todos, ouvindo-o e vendo-o, 0 creiam a personifica~ao da cle-
mencia, da lealdade, da brandura, da retidao e da religiosidade. Na-
cia ha que mais devamos dar a impressao de possuir do que esta ul-
lima. Os homens em geral formam as suas opini6es guiando-se an-
tes pela vista do que pelo tato; pois todos sabem ver, mas poucos
sentiI'. Cada qual ve.o que parecemos ser; poucos sentenJ 0 que
I"ealmente somos. E estes poucos nao ousam opor-se a opiniao dos
muitos que, atras de si, tern a defende-Ios a majestade do poder.
Quando nao ha possibilidade de alterar 0 curso das a~6es dos ho-
mens e, sobretudo, dos principes, procura-se distinguir sempre 0 fim
a que elas tendem.
Busque, pois, urn principe triunfar das dificuldades e manter
o Estado, que os meios para isso nunca deixarao de ser ju..Ilgados
honrosos, e todos os aplaudirao. Na verdade 0 vulgo sempre se dei-
xa seduzir pelas aparencias e pelos resultados. Ora, no mun,do nao
existe senao vulgo, ja que as poucas inteligencias esclarecidas s6 tern
influencia quando a multidao falta urn arrimo onde se apoiar. [... ]
[... j 0 principe deve em geral abster-se de praticar 0 que quer
que 0 torne malquisto ou desprezivel. Assim fazendo, cumprini a sua
missao e eliminani 0 risco porventura resultante dos seus outros defeitos.
o que acima de tudo acarreta odio ao principe e, como disse,
ser ele rapace, e usurpar os bens e as mulheres dos suditos. Como
a maioria dos horn ens vive contente enquanto ninguem lhes toca
nos haveres e na homa, 0 principe que de tal se abstiver so teni de
arrostar a ambic;ao de poucos, e esta ele reprimini facilmente e de
muitos modos. No desprezo incorre quando os seus governados 0
julgam inconstante, leviano, pusilanime, irresoluto. Ponha 0 maxi-
mo cuidado, .pois, em preservar-se de semelhante reputa~ao, extre-
mamente pengosa, e em proceder de forma que as suas ac;oes se re-
vistam de grandeza, de coragem, de austeridade e vigor.
No tocante aos assuntos particulares dos suditos cumpre-lhe
dar as suas decisoes 0 carater de irrevogaveis. E-lhe mister, tambem,
incuti: no ~nimo do povo uma tal opiniao a respeito da sua pessoa,
que mnguem tenha 0 pensamento de 0 enganar ou embair. Isto lhe
trara grande autoridade, e esta aut~ridade, pOl' sua vez, se estiver
acompanhada da venerac;ao e amor dos suditos, fara com que difi-
cilmente alguem conspire contra ele ou venha ataca-lo.
Dois perigos, com efeito, devem merecer a atenc;ao de urn prin-
cipe: 0 perigo interior, nascido dos suditos, e 0 externo, oriundo
dos potentados estrangeiros. Destes se defendera por meio das boas
armas, assim como por meio dos bons aliados, os quais nunca lhe
faltarao, desde que possua aquelas. Permanecendo in alter ad a a si-
tuac;ao exterior, igualmente permanecera a interior, salvo se ja esti-
ver perturbada por alguma conspirac;ao. Mas ainda quando surjam
complicac;oes exteriores, se 0 principe for homem previdente, se ti-
ver sempre vivido em conformidade com as regras por mim explica-
das, e nao perder 0 animo, resistira vantajosamente a toda a acome-
tida, tal como eu ja disse que fez Nabis, 0 tirano de Esparta. No
concernente, porem, aos suditos, ha que temer-lhes as conspirac;oes,
mesmo em plena situac;ao de tranqiiilidade exterior. Desse perigo es-
tara, todavia, livre 0 principe que houver sabido, como acima dis-
se, evitar 0 odio e 0 desdem do povo e the tiver captado a amizade.
[ ... j
NICOLAU \l.-\QUIAVEL: 0 CIDAD..\O SE\'I FORTUNA, 0 l:-JTELECTUAL DE 1'/RTrJ ~I
SOBRE A UTILIDADE OU NAo DAS
FORTALEZAS E DE OUTROS MEIOS
FREQDENTEME~TE USADOS PELOS
PRINCIPES
Alguns principes, para manterem com seguranc;a 0 Esta~o.' ~e-
" 1IIIlaram os seus suqitos; alguns trataram de fomentar dlvlsoes
II\I~ lerritorios conquistados; outros favoreceram os seus proprios
Illil1ligos; outros preferiram captar a amizade dos que the eram sus-
II 'ilOS no inicio do seu governo; uns construiram fortalezas; outros
d\'smantelaram as existentes. Se bem que nao seja possivel estabele-
,'\'1' Lima regra fixa a respeito, sem antes examinar particulariza.da-
III 'nte os Estados onde ha mister de adotar qualquer das sobredltas
I\'soluc;oes, falarei, contudo, do assunto da maneira mais ampla
l\IIC ele consente. .
J amais aconteceu que um principe novO desarmasse os seus su-
dilos. Ao contrario: quando os encontrou desarmados,sempre os
,Irmou. Assim fazendo, tornava suas tais armas, conquistava a fide-
lidade dos suspeitos e convertia em partidarios os que apenas s.e
Illostravam submissos. Sendo, porem, impossivel armar todos os Cl-
dadaos, cumpre-nos favorecer os que armamos, para podermos vi-
vcr mais tranqiiilos em relac;ao aos outros. A diversidade de trata-
Illcnto gera a gratidao dos primeiros, sem concomitantemente nos
ll1alquistar com os outros, que atribuirao essa diversidade. ao fato
de terem maiores meritos os que mais obrigac;oes tern e malOres pe-
rigos correm. Se, ao inves, privarmos os cidadaos das suas ~rmas,
ofende-los-emos, mostrando que nao confiamos neles por os Julg~r-
mos ou covardesou pouco leais, e isto nos fara incidir-lhes no 6dlO.
Como, por outro lado, nao podemos ficar desarmados, lanc;amos
mao da milicia mercenaria, cujas qualidades disse ja serem mas.
Boas, todavia, que fossem nao bastariam para nos defender dos ini-
migos poderosos e dos suditos suspeitos.
Eis as razoes pOl' que urn principe novo em urn Estado novo
tratou sempre de organizar 0 exercito. Exemplos disto ha-os de so-
bra na hist6ria.
Quando, porem, urn principe adquire urn Estado novo, que
se vem agregar ao que ja possuia antes, entao devc dcsar~ar os
noVOS suditos, com excec;ao dos que 0 auxiliaram na conqUlsta. E
42, OS CLAsSICOS D,,' POLiTICA
quanto ~ esses mesmos, deve, com 0 correr do tempo e 0 sur ir das
oportullldades, enfraquecer-Ihes 0 animo belicoso e reduzi-Ios ~ iner-
C1aprOceden?o, em suma, de modo que todas as arm as fiquem no
p,oder exclus1VO dos seus proprios soldados is to e d
vlam no antigo Estado. " os que 0 ser-
[ ...]
COMO DEVE PORTAR-SE UM PRINCIPE PARA
SER ESTIMADO
Nada_ faz estimar tanto urn principe quanto as randes
sas e as ac;oes raras e esplendidas. [... ] g empre-
Tambem. se torna estimado quando sabe ser verdadeiro ami-
go ou verdadeJro inim' . t '
f d I' 19O, lS 0 e, quando abertamente se declara a
. avord e a guem contra outrem, Esta resoluc;ao e sempre mais vanta-
Josa 0 que permanecer neutro. [... ]
[... ] A prudencia consiste em saber examinar bem a tdos . '. na urezalllconvelllentes, e ace1tar como born 0 menos ma
A urn principe incumbe, tambem, mostrar-se ar:~nte da virtu-
de ,e ho~rar o.s homens que sobressaiam em cada arte. E, ainda d _
vel seu mcut1r nos suditos a ideia de que poderao " e
os respe t' f' . exerce1 em paz
. d c 1VOS0 IC1OS,seja no comercio, seja na agricultura seja
~~ : em outro qualquer ramo da atividade humana, para n~o vi-
abs~er-se, ou de aformosear as suas propriedades com medo
que Ihas tlre.m, ou de estabelecerem qualquer genera de comercio
~emendo os. Im?~stos. 0 procedimento sabio de urn governante a~
t a c~m os mdlvldu?s dedicados a estes negocios ou para comPos
E
q
ue
dmv~ntem mane~l:as de multi plical' os recurs os da cidade ou do
sta 0 e 0 de premla-Ios.
f Outras obrigac;6es de urn principe sao a de distrair 0 povo com
e~tas durante certas ~pocas do ano, a de tel' na devida conta os gre-
n:.10S,ou ~s corporac;~:s em que se divide a cidade, comparecendo
~.a? I~ro as suas reun1Oes, e a de dar exemplos de bondade e muni
~caeJ,nesCt1aad'em
d
bora mantendo sempre, pOI' ser eia imprescindivel ;
e 0 seucargo. '
Para urn principe nao e de pouca importancia saber escolher
II', seus ministros, os quais sac bons ou nao conforme a sabedoria
iii' que ele usou na escoIha: A primeira opiniao que formamos de
IIIII principe e da sua inteligencia estriba-se na qualidade dos ho-
III 'liS que 0 circundam. Quando estes sac capazes e fieis, podemo-
IiI rcputar sagaz, porque soube conhecer-Ihes as capacidades e man-
Ii' los fieis a si. Mas quando nao 0 sao, 0 fato mesmo de haver ele
1'1 rado na escolha justifica plenamente que 0 tenhamos em ma conta.
1\ INFLUENCIA DA FORTUNA SOBRE AS COISAS
HUMANAS E 0 MODO COMO DEVEMOS
('ONTRASTA-LA QUANDO ELA NOS E ADVERSA
Nao ignoro ser crenc;a antiga e atual de que a fortuna e Deus
l',overnam as coisas deste mundo, e de que nada pode contra isso a
,;Ibedoria dos homens. Por consequencia, seria razoavel nao desper-
lipr esforc;os, mas deixar-se guiar peia sorte. Esta opiniao acha-se
lilais difundida hoje em dia, em virtu de das mudanc;as que, escapan-
do POI' completo ao entendimento humane, se operaram e conti-
Iluam a operaI' ainda. Foi apos refletir no assunto algumas vezes
que eu tambem me inclinei em parte a concordar com essa opiniao.
I'odavia, para que nao se anule 0 nosso livre arbitrio, eu, admitin-
do embora que a fortuna seja dona da metade das nossas ac;6es,
vlTio que, ainda assim, ela nos deixa senhores da outra metade au
pouco menos. Comparo a fortuna a urn daqueles rios, que quando
,;: enfurecem, inundam as planicies, derrubam arvores e casas, ar-
ra. tam terra de urn ponto para p6-la em outro: diante deles nao
!lL't quem nao fuja, quem nao ceda ao seu impeto, sem meio algum
de the obstar. Mas, apesar de ser isso inevitavel, nada impediria
que os homens, nas epocas tranqiiilas, construissem diques e canais,
de modo que as aguas, ao transbordarem do seu leito, corressem
por estes canais ou, ao menos, viessem com furia atenuada, produ-
zindo men ores estragos. Fato analogo sucede com a fortuna, a
qual demonstra to do 0 seu poderio quando nao encontra animo
[virtu] preparado para resistir-Ihe e, portanto, volve os seus impe-
tos para os pontos onde nao foram feitos diques para conte-Ia. Se
observarmos a Italia, origem e teatro de tais mudanc,;as, veremos
ser ela uma campina sem diques e sem nenhuma protec,;ao. Houve-
ra sido ela protegida por valor [virtu] conveniente, como a Alema-
nha, a Espanha e a Franc,;a, e essa enxurrada (a invasao estrangei-
ra) ou nao the teria trazido as grandes mudanc,;as que trouxe ou nem
sequer a teria alcanc,;ado. Creio que isto e suficiente para demons-
trar, em tese, a possibilidade de nos opormos a fortuna.
Como deseje, porem, ser mais minucioso, chamarei a atenc,;ao
para 0 fato assaz comum de urn principe prosperar hoje e ruir am a-
nha, sem que a indole ou 0 pro ceder se the hajam modificado. Na
minha opiniao, tal se deve as causas ja longamente explanadas ao
referir-se aos principes que se estribam totalmente na fortuna, os
quais, disse eu entao, caem quando esta varia. Creio ainda que se-
ra venturoso aquele cujo procedimento se adaptar a natureza dos
tempos, e que, ao contrario, sera desditoso aquele cujas ac,;6es esti-
verem em discordancia com ela.
[... ] os homens prosperam quando a sua imutavel maneira de
proceder e as variac,;6es da fortuna se harmonizam, e caem quando
ambas as coisas divergem. Julgo, todavia, que e preferivel ser arre-
batado a cauteloso, porque a fortuna e mulher e convem, se a que-
remos subjugar, bate-Ia e humilha-Ia. A experiencia ensina que ela
se deixa mais facilmente vencer pelos individuos impetuosos do que
pelos frios. Como mulher que e, ama os jovens, porque sao menos
cautelosos, mais arrojados e sabem domina-Ia com mais audacia.
EXORTA\=AO A LJBERTAR A ITALIA DOS
BAR BAROS
Depois de haver refletido em tudo 0 que se disse nos anterio-
res capitulos; apos ter perguntado a mim mesmo se os tempos
atuais da Italia sao de molde a permitir que urn novo principe ad-
--- -~- -
I
Ni( 01 AU MAQUIAVEL: 0 ClDADAO SEM FORTUNA, 0 INTELECTUAL DE VIRTU
. urn homem sabio e virtuoso podera.en-
11111 I 11\.:lacelebndade e se, d ova forma que constltua
. t" a susceptiVel e tomar n . .
tlill 1111~lqUIma en b f" para a totalidade dos lta1la-
I I" ara ele e urn ene lClO ,
1111111\ I) ( Cg,ona p ha existido outra epoca tao propl-
1111'"'(lllc\Ul que talvez nunca.ten d h' [ 1
' lpe como a e Ole. . ..
II 1\ villela de urn novo ~nnc . t ocasiao para que a Halia
1: pOl'tanto, essencml aproveltar es a [1
, \11,:I'I~OStanto tempo, aparecer 0 seu redentor. . ..
Discursos sobre a P!i-:n~iraDecada
de Tito Llvlo
d d Roma foi a causa da
A desuniao entre 0 povo e 0 sena 0 egrandeza e da liberdade da Republica. .
. b s desordens que remaram
Nao quero deixar de :lsc~r::~~~i~~ :te 0 estabelecimento dos
I III Roma desde a morte os . tra as asserc,;oes daqueles
I'd' 0 levantar-me-el con
1Ilh1l110S,e, a em lSS , f . u'blica tumultuosa e desor-
d· e Roma 01 uma reptI"I' 4uerem lzer qu . f' a todos os outros gover-. . 1 ada bem m enor
III'll: Iela, e que sena l.Ug b f t na de suas virtudes militares
eCle se a oa or u -\1\)\ da mesma esp , . la encerrava no seu seio. Nao ne-
II:\Ulivesse suprido aos VlCl.os.que e h contribuido para 0 poder
. disclplma ten am
, 1'.11'(;1que a sorte ea. " ter prestado aten<;ao a este fato:
lips romanos; m~s ~er~a ne~essan~e a conseqiiencia necessaria das
\lIlla excelente dlsclplma e. s~mp . sorte por sua vez, nao tar-
o ' I' _ onde esta condl<;ao rema, a ,!h),IS els 'f
. b 'lho dos seus avores. .
11:1a dlspensar 0 n" ticularidades dessa cidade. Dl-
Voltemos, porem, as out.ras pa! ntl'nuas dos grandes e do
am as dlssensoes co .
I',p que os que censur , rias causas que conservaram a 11-
l)t)VO parecem desaprovar as proP
t
mal's atenr3.0 aos grit os e aos
d R e que eles pres am .,. .hcrdade e oma, f' scer do que aos efeltos salu-d' ensoes aZlam na ,11I1110reSque essas lSS _ uer notar que existe em cada
1~lresque produziam. Essa gente nao q
'/' Trad de Antonio Piccarolo e Leonor
. d P nsadares I/a tanas. .
I'rechos extraldos e e, W M Jackson, 1952. p. 110-62.
de Aguiar. RlO de J anell o. . '
governo duas fontes de oposi~ao: os interesses do povo e os interes-
ses dos grandes; que todas as leis que se fazem a favor da liberda-
de nascem dessa desuniao, como 0 pro va tudo quanto se passoLi
em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que decorreram
entre os Tarquinios e os Gracos, as desordens que irromperam en-
tre os muros de Roma produziram poucos exilios e ainda menos
derramamentos de sangue. Nao se pode, pois, julgar essas dissen-
soes como funestas, nem 0 Estado como inteiramente dividido, quan-
do, durante urn Uio longo decorrer de anos, essas dissensoes nao
causaram exilio senao de oito ou dez individuos, condena~oes a
multa de poucos cidadaos e a morte dum numero menOr ainda.
Nao se pode, de modo algum, chamar de desordenada uma republi-
ca onde brilharam tantos exemplos de virtude; pois os bons exem-
plos nascem da boa educa~ao, a boa educa~ao das boas leis, e as
boas leis dessas mesmas desordens, que a maior parte condena in-
consideradamente. Na verdade, se examinarmos com aten~ao a ma-
neira pela qual terminaram, ver-se-a que nunca produziram nem
exilios, nem violencias funestas ao bem publico, mas, pelo contra-
rio, essas desordens fizeram nascer leis e regras favoraveis a liberda-de de todos.
e· .. J
A quem se pode confiar mais seguramente a guarda da liberda-
de, aos grandes ou ao povo? Quais SaD aqueles que tem mais moti-
vos para excitar as perturbaC;;6es,os que desejam adquirir ou os quepreferem conservar?
Aqueles que, no estabelecimento de urn Estado, fizeram valer
maior sabedoria, colocaram no numero das institui~oes mais essen-
ciais a salvaguarda da liberdade; e, segundo a souberam colocar me-
lhor, os cidadaos viveram, mais ou menos tempo, livres. Como
em todos os Estados ha grandes e plebeus, pergunta-se em que
maos estava mais seguro 0 dep6sito da liberdade. e ... J
e ... J direi que se deve confiar sempre urn tesouro aqueles que
saG menos avidos de se apropriarem dele. Na verdade, se conside-
rarmos 0 alvo dos grandes e do povo, veremos nos primeiros a se-
de da domina~ao e no povo 0 desejo de nao ser rebaixado e, por
o INTELECTUAL DE VIRTU 47DADAO SEM FORTUNA,NICOLAU ~'IAQUIAVEL: 0 CI
dais firme de viver livre; pois 0 po~o,
1I11'.l'uinte, lima vonta e sm ode esperar usurpar 0 poder. AssI~
IIIIII IIlenos que os .grande r~: ados de velar pela salvaguarda da ~I_
I lido, os plebeus saG enca g I faraD com maior zelo; nao' 'I pensar que e es 0
IlIld:lde e e razoave 'd d nao permitirao que outros a111111'lido apoderar-se da auton a e
1111I11'm.
[ ... J
o direito de acusar, atribuido aos tribunos.
da liberdade de urn Estado urn
Nao se pode dar a~s ,guardas de poder acusar, seja diante
di '~ito mais uti I e necessano do ,quedo
o
ou tribunal qualquer, os ci-
. d' t de urn maglstra d'
do povo, seJa Ian e d !'to contra essa liberdade, Essa me 1-
l!;ldaos que comet~ss~m udm. ee~eitos extremamente importantes: 0
d:l tern numa republIca OlS d acusados nada ousam em-
., 'd d - stemen 0 ser, I
primelro e que os CI a aOn' a do Estado ou que, se tentarem qua-
prcender contra a segura ~ t'd receberao imediatamente, e sem
d· nto nesse sen I 0 'd f
quer empreen lme , 0 delito cometido; 0 outro e e orne-
Sl.:rempoupados, 0 castlgo d d afoguem de urn modo ou de' 'f om que se es ,
l'~r urn melO que a~a c . cessantemente no Estado con-. - e fermentam m f
outro, essas pmxoes qU, d as pal'xo-es nao se podem desa 0-
'd d- s Quan 0 ess d' ,Ira algum dos CI a ao" . d tomam vias extraor ma-
"l'r de urn modo legalmente a~tonzaf o'damentos Nada a fortale-
< ublica ate seus un .
rias que abalam a rep . , la de maneira que a fermen-' . mo orgamza- ,
ce tanto, pelo contrano, co , har para se libertar, uma
'- que a agltam possa ac ,Ia~ao das palxoes ;'
saida autorizada pelas lel~,. [, .. ] as leis de uma republica deem a
[.,.] e util, e necessano que 'f tar a c61era que sente con-
'0 legal de mam es . ,
massa do povo urn mel . ordimirios nao existem mms, e
tra urn cidadao: quando os m~lO,s. e' fora de duvida que estas
. extraordmanas, e fPreciso recorrer a ViaS , d todas as outras. De ato,I s malOres 0 que
ultimas produzem ma e • d' 'I 'as mesmo que 0 fosse., .d nas formas or mar , " .
se urn cidadao e pum 0 , _ . Ita desordem ou esta e mSlg-
PublIca nao resu . 'finjustamente, para a re _ I ar sem que se recorra a or~a
nificante, po is essa opressao te~ ug ordinarias da ruina da
particular ou a for~a estrangelra, causas
liberdade: ela nao se serve senao da f .
ca, das quais se conhecem os r' or<;:a,da.lel e da ordem publi-
ca e de tal modo violenta lmltes partl~ulares ~ cuja a<;:aonun-
[ J que possa destrUlr a republica.
[ J todas as vezes que se ve u d .
uma cidade implorar 0 socorro d f m os partl.dos que dividem
buir isso aos vicios de sua consti~ui o:~as estr~ngelf.as: deve-se atri-
nenhuma instituir'ao que . <;:, e a nao eXIStlr no seu seio
". permlta 0 desafo I
mentos que tao frequentem t' go regu ar dos ressenti-
en e agltam os h Tconvenientes seriam prevenid omens. odos esses in-
saz numeroso para receber os se se estabelecesse urn tribunal as-
porUincia. [... J as acusa<;:6es e lhes dar uma grande im-
. [ ... J todo legislador sabio e animad . . .
VIr, nao seus interesses pessoais mas oso pelo .U~ICOdesejo de ser-
nao para seus proprios herdeiros' do p~bhco, de trabalhar,
ve poupar, para ser ele 0 unico' mas pe~a patna comum, nada de-
nunca urn espirito esclarecido re r~t~ss~lr completa au~oridade. E
uma a<;:ao,mesmo iIegal para f p d n era a.quele que haja cometido
publica. E justo, quand~ as a<;:6~;d:r urn remo ou constituir uma re-
sultado 0 justifiquem e quand urn homem 0 acusam, que 0 re-
tra 0 exemplo de Rom'ul' h 0 esse re.s~ltado e feliz, como 0 mos-
0,0 omem sera just'f d S'
preen del' as a<;:6escuja violencia t I lCa 0.. 0 se devem re-
[ ... J em POI' meta destrUlr e nao reparar.
[ ... J
De fato, jamais nenhum Ie ' I d
da ordem comum sem fazeI" t gl~ a or deu a seu povo leis fora
, In erVlf a Di . d d .
as teria aceito. E certo que ha uma v~n a e, POlS 0 povo nao
~uais urn homem sabio e prudente qu~ntldade de, Ava~tagens, das
ja evidencia nao e, entretanto b t prevfe as consequencIas, mas cu-
, as ante orte para convencer imedia-
I 1IIIcilte todos os espiritos. Para resolver essa dificuldade 0 sabio re-
1111 r' aos deuses. [... j
[oo.j Onde nao existe 0 temor de Deus, e preciso que 0 imperio
dl\'lllnba

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