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DA MERCADORIA INDIVIDUAL À MERCADORIA ENQUANTO PRODUTO DO CAPITAL: introdução à diferença entre o valor e o preço das mercadorias no capitalismo.1 Wendell Magalhães2 A mercadoria individual, tal qual apresentada no Livro I d’O capital, não é a mesma que a mercadoria que é produto do capital e que, portanto, contêm o mais-valor dentro de si. Com a passagem de uma para outra, nos encontramos num nível de abstração menor em que somos obrigados a identificar novas determinações concretas para que se possa fazer sua análise. Esse novo nível de análise, por sua vez, nos possibilita apreender o caráter cíclico do capital na medida em que a realização da mercadoria como produto do capital, e não mais como mercadoria individual autônoma e isolada, é também a reprodução da relação capital. Se antes, as metamorfoses da mercadoria implicava a apreensão desta como unidade de valor de uso e valor, agora a realização da mercadoria como produto do capital, ou seja, como capital mercadoria, implica apreendê-la duplamente como unidade de valor de uso total e valor total (c+v+m)3. Dessa maneira, podemos dizer que, enquanto no Livro I d’O Capital, o ponto de partida era a mercadoria individual como artigo autônomo no qual se objetiva determinado quantum de tempo de trabalho e, por isso, tem um valor de troca de grandeza determinada; no Livro II, o ponto de partida é a mercadoria como produto da relação capital e, por isso, ela se apresenta como, em parte, tempo de trabalho social pago e, por outro lado, tempo de trabalho social não pago. Ambos compõem seu valor, mas o segundo, mais especificamente, lhe confere o caráter de ser produto de uma relação de valorização, e, portanto, aparece, mais propriamente, como sendo responsável por lhe incutir um valor a mais, ou melhor, um mais- valor. Para além disso, na qualidade de valor de uso total, a mercadoria não é mais uma mercadoria individual autônoma (o que lhe imporia ter que ser produto de um trabalho autônomo), ou seja, um produto isolado; ela passa a ser parte alíquota do que Marx chama 1 Este escrito é parte adaptada de minha dissertação de mestrado, intitulada Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de mediação de análise (2019), em especial de seu capítulo “2.2.5 Da mercadoria individual à mercadoria enquanto produto do capital”. 2 Bacharel e Mestre em Economia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). 3 A soma c+v+m é como Marx estabelece o valor total da mercadoria, o que simboliza a soma de capital constante, capital variável e mais-valor despendido na produção de determinada mercadoria. “massa de mercadorias” produzidas sob as mesmas condições que ela. Com isso, pode se evidenciar mais diretamente a determinação social do valor e do preço das mercadorias. Estas não podem mais ter o preço, assim como também não incorporam o valor, que o seu produtor autônomo, isolado, lhe impõe ou deposita. No lugar disso, elas terão o preço ou o valor médio de outras tantas mercadorias iguais a ela que são frutos de um mesmo capital. Além do mais, nos diz Marx que, enquanto produto do capital, a mercadoria mostra-se agora no volume e nas dimensões da venda que tem que operar-se para que se realizem o valor primitivo do capital [c+v] e o da mais-valia [ou mais-valor = m] por ele produzida, o que nenhum modo sucede se venderem as mercadorias singulares ou uma parte das mesmas pelo seu valor. (MARX, 2004, p. 147). O que quer dizer que a mercadoria no processo de venda, mais uma vez, não pode se ver como produto isolado contendo massa de valor individual. Ela é produto, antes de tudo, de um capital adiantado sob a forma dinheiro que precisa ser recuperado e valorizado, o que, a depender das condições de venda, pode fazer com que as mercadorias individualmente não sejam vendidas pelos seus valores individuais. Por isso, Marx diz que a mercadoria como produto do capital se diferencia da mercadoria singular, considerada na sua autonomia, e […] esta diferença se tornará cada vez mais clara e afetará também tanto mais a real determinação de preços das mercadorias etc., quanto mais de perto tenhamos seguido os processos capitalistas de produção e circulação (MARX, [1863] 2004, p. 162). Ou seja, conforme descemos o nível de abstração com que se costuma trabalhar no Livro I d’O Capital, o qual diz respeito ao processo de produção do capital, para trabalharmos com um nível de abstração que incorpore a circulação do capital, um maior número de determinações da realidade emerge para análise; determinações estas que podem, inclusive, contradizer, aparentemente, aquilo que foi dito quando trabalhamos com um maior nível de abstração. Esse é o caso aqui da relação preço-valor individual das mercadorias. No Livro II, Marx ainda está operando com o pressuposto de que as mercadorias são trocadas pelos seus valores, ou seja, que o capital se movimenta através da troca de equivalentes. Mas a mudança operada no conceito de mercadoria, neste terreno, impõe que se precise melhor o que é a troca de equivalentes entre mercadorias que não mais são consideradas individualmente, mas como produtos do capital. Como vimos, o valor das mercadorias que passa a se considerar a partir de então, não é mais um valor individual, produto de um trabalhador isolado, mas um valor médio estabelecido por um capital que trabalha com condições sociais médias de produção. A mercadoria, por sua vez, não é mais também uma mercadoria isolada autônoma, mas uma mercadoria que é produto de um capital que produz tantas outras mercadorias como ela para serem vendidas no mercado. Ela é, portanto, a parte de um todo, sendo que, o que importa para o capital é reproduzir-se como um todo. Ele faz isso recuperando seu valor adiantado sob a forma dinheiro somado de um acréscimo a que chamamos mais-valor. As mercadorias individuais, nesse processo, se submeterão, no que tange à adequação de seus valores individuais no mercado, às necessidades de valorização deste capital, o que, eventualmente, pode fazer com que se troquem, individualmente, por valores não exatamente iguais aos seus. Mas como parte do capital investido, elas contribuirão para que este, na forma de uma massa de mercadorias, se troque por seu valor, o que inclui o mais-valor obtido no processo de produção. Portanto, o pressuposto da troca de equivalentes aqui continua operando, apesar de que, agora, mais rico em determinações. Assim, referindo-se a esse processo de passagem de nível de abstração figurado na análise da mercadoria e na sua atualização categorial, diz Marx: No tocante às puras mudanças formais – a conversão destas mercadorias em dinheiro e a sua reconversão em mercadorias – já analisamos o processo no que denominamos circulação simples, na circulação das mercadorias enquanto tais. Porém, estas mercadorias são agora simultaneamente portadoras de capital: são o capital valorizado, grávido de mais-valia [ou mais-valor]. E a esse respeito a sua circulação, que é agora simultaneamente processo de reprodução do capital, inclui novas determinações que eram alheias à consideração abstrata da circulação mercantil. Por conseguinte, agora temos que considerar a circulação das mercadorias enquanto processo de circulação do capital. (MARX, [1863-66] 2004, p. 169). Os pressupostos aqui explicitados para o trato em particular do processo de circulação do capital se referem, substancialmente, à transformação da concepção de mercadoria, deixando de tratá-la pela ótica individual, simples, isolada e autônoma, para tratá-la como produto do capital, enriquecida assim por determinações que dizem respeito à realização das mercadorias – ou seja, sua conversão na forma-dinheiro do capital – como reprodução do próprio capital. Este ponto de virada da análise, noentanto, se fundamenta não inteiramente no Livro II d’O capital, mas no manuscrito concebido por volta de 1863-66, o qual comporia, a princípio, no plano original da obra, o Livro I d’O capital, como o capítulo sexto deste, intitulando-se Resultados do Processo de Produção Imediato. Como é sabido, Marx mudou muitas vezes o plano da estrutura de O capital e o capítulo sexto, em questão, acabou ficando de fora da primeira edição do Livro I, publicada em 1867. Somente em 1933, o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscou, então, torna público tal manuscrito. A partir daí, o texto ficou conhecido como Capítulo VI inédito de O capital. O capítulo As mercadorias como produto do capital desse manuscrito, por sua vez, é para Marx (2004 [1863-66], p. 37), tal como diz na abertura deste documento, “a passagem para o segundo livro [d’O capital] – o processo de circulação do capital”. REFERÊNCIAS MAGALHÃES, W. C. Do padrão de reprodução do capital nas economias dependentes: a Teoria Marxista da Dependência e a construção de uma categoria de mediação de análise. 2019. 182 f. Dissertação (Mestrado em Economia) – Programa de Pós-Graduação em Economia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019. MARX, Karl. Capítulo VI inédito de O capital [1863-66]. 2 ed. São Paulo: Centauro, 2004. MARX, K. [1867]. O Capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, K. [1885]. O Capital: crítica da economia política, Livro II: o processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.
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