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Gabrielle Nogueira – Med UniFG PMSUS – Epidemiologia dos Transtornos Mentais Objetivos 1 – Entender a reforma psiquiátrica 2 – Contextualizar a saúde psiquiátrica antes da reforma psiquiátrica (História da loucura). 3 – Abordar a epidemiologia das principais doenças psiquiátricas 4 – Discutir as políticas públicas voltadas à saúde mental no SUS História da Loucura Ministério da Saúde: substituiu loucura por pessoa em sofrimento mental e psíquico. No fim da Idade Média e na Renascença, a loucura é uma expressividade do sujeito envolta em mistério, muitas vezes associada a forças místicas de uma radiância sobrenatural, na qual o louco se apresenta como o revelador das contradições e hipocrisias sociais e na qual, mesmo expulso das cidades em naves que deslizavam pelos rios da Renânia e nos canais flamengos, ainda reside nessa expressividade, singularidades e descontinuidades que impediriam a plena objetivação de seus discursos e a definição precisa de seus sujeitos, de acordo com parâmetros de uma medicina ainda bem rudimentar, do ponto de vista científico e que a ele ainda não se remetia, nos moldes da Modernidade. Um longo percurso foi necessário para que a disciplina psiquiátrica detivesse o saber sobre a loucura. A bem dizer, a psiquiatria nasce no início do século XIX, justamente no momento em que passa a deter o conhecimento da loucura, emitindo enunciados sobre a doença mental, exercendo domínio e incidindo sobre novas práticas sociais. Para o autor, a loucura atravessa, na tradição ocidental, um processo de desqualificação de sua potencialidade de dizer a verdade. Tal depreciação da loucura está articulada a um processo amplo na história do Ocidente, marcado pela oposição radical dos registros da razão e da desrazão. Neste sentido, a desqualificação da loucura - a qual ocupava posição estratégica neste embate (BIRMAN, 2000) - é marca incontestável do triunfo da razão sobre a desrazão que se operou no Ocidente. Uma vez expulsa a loucura do registro da razão, o único reconhecido como Gabrielle Nogueira – Med UniFG detentor da verdade na modernidade, aquela perde, instantaneamente, a possibilidade de ser escutada. - Nos primórdios do século XVII a loucura passa por uma restrição/exclusão da cena social, sendo confinada junto a outras figuras da marginalidade nos hospitais gerais. Este processo de tentativa de expulsão da loucura não só do registro razão-verdade como também de toda cena social possível, culmina na criação, pela nascente psiquiatria do século XIX, dos ASILOS PARA OS ALIENADOS. Assim, a "virtude inalienável é ao mesmo tempo verdade e resolução da loucura. É por isso que, se ela impera, deverá imperar ainda mais. O asilo reduzirá as diferenças, reprimirá os vícios, extinguirá as irregularidades" (FOUCAULT, 1978, p. 537). Além disso, o asilo produz efeitos na sociedade, isto é, permite afirmar que existe "uma classe da sociedade que vive na desordem, na negligência e quase na ilegalidade". Portanto, para Foucault, o asilo é ao mesmo tempo um "instrumento de uniformização moral e de denúncia social" "Antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo (utopia); podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas. Nestas condições compreende-se a impossibilidade do espaço artificial do hospital em ser um lugar privilegiado, onde a loucura podia e devia explodir sua verdade. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza, pois que era a forma visível da verdade; tinha nela mesma o poder de dissipar o erro, de fazer sumir as quimeras. As prescrições dadas pelo médico eram de preferência a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade. Esquirol (psiquiatra frânces) ainda considerou isto quando, ao fazer os planos de um hospital psiquiátrico, recomendava que cada cela fosse aberta para a vista de um jardim." (FOUCAULT, 2001, p.120-121) +INFORMAÇÃO! Segundo o autor, na Renascença a loucura era "livre", existia a prática de embarcar os loucos e deixá-los navegar sem rumo pelos rios; pelo lado prático, embarcar o louco é uma forma eficaz de evitar que fique perambulando nas cidades e, pelo lado simbólico, a água significa a purificação e a navegação errante significa a entrega do louco ao seu próprio destino (FOUCAULT, 1978, p. 16). A "nau dos loucos" repercutiu na iconografia e na escrita da Renascença e, até o final do século XV, a loucura torna-se o tema central em uma substituição/inversão com a morte. - Com o internamento do doente mental no século XIX, a loucura passou a ser distinguida como "desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões, de ser livre" (2001, p.121). O que estava em questão era menos o julgamento perturbado do que uma conduta irregular; menos o erro da razão. Neste cenário, o asilo se aproximou do hospital do século XVIII, ou seja, nele a loucura deveria se desenvolver em toda a sua plenitude. Mas não bastava desmascarar a doença mental, era preciso que o asilo fosse o local de confrontação de duas vontades. De um lado, o doente, cuja vontade e conduta se (des)caracterizavam pela perturbação e pela irregularidade; por outro, o médico, cuja retidão da índole deveria prevalecer ao término do embate. Tratava-se de sobrepujar os arroubos loucos e colocar "no devido lugar" o caráter do paciente. Imposição de uma vontade sobre a outra num embate travado no solo da ordem moral. "Assim se estabelece a função muito curiosa do hospital psiquiátrico do século XIX: lugar de diagnóstico e de classificação, retângulo botânico onde as espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas também espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e submissão. O grande médico do asilo - seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin - é ao mesmo tempo Gabrielle Nogueira – Med UniFG aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente." (FOUCAULT, 2001, p.122) Segundo Foucault, diversos prédios são construídos ou reformados para "recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentam de espontânea vontade, ou aqueles que para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária" (FOUCAULT, 1978, p. 56); ou seja, uma pluralidade de indivíduos como mendigos, desordeiros, doentes, loucos, miseráveis, prostitutas, etc. Estes locais possuíam uma administração própria dotada também de poderes policiais, judiciários, de correção e de castigo. Foi a solução encontrada para a crise econômica que assolou a Europa no século XVII, ou seja, tinha por função controlar o desemprego e, nos momentos de prosperidade econômica, podia deslocar sua função: "A alternativa é clara: mão de obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas" Apesar de possuírem médicos como funcionários, as instituições de internamento não eram instituições propriamente médicas, eram instâncias da "ordem monárquica e burguesa", preocupados em pôr ordem no mundo da miséria, que misturava o desejo de ajudar e a necessidade de reprimir, o dever de caridade e a vontade de punir. Nesse sentido, a nova sensibilidade da época clássica a respeito da miséria, oriunda da Reforma, reforça esses procedimentos. Pois, segundo Foucault, a pobreza deixa deser entendida como uma provação, um caminho para a salvação e se torna ao mesmo tempo "efeito da desordem e um obstáculo à ordem. Portanto, não se trata mais de exaltar a miséria no gesto que a alivia mas, simplesmente, de suprimi-la" (FOUCAULT, 1978, p. 66) e, consequentemente, a caridade já não é a "correta" forma de lidar com a miséria e sim a internação que "encerra" a desordem. A loucura segue o mesmo caminho, pois na Idade Média era entendida como uma forma de miséria, com a dessacralização do pobre e seu internamento, o louco também ganha uma "morada" que não perturba a ordem do espaço social, "seu lugar é entre os pobres, os miseráveis, os vagabundos" (FOUCAULT, 1978, p. 72). BRASIL ---------------------------------------------------------------- Primeiros asilos para alienados do Brasil foram construídos em meados do século XIX no Rio de Janeiro e em São Paulo. Era quase impossível andar pelas ruas do Rio de Janeiro no início da década de 1830 sem se deparar com alienados vagando por becos e vielas. Em geral, eram recolhidos às enfermarias da Santa Casa de Misericórdia ou à cadeia pública, de onde não saíam senão mortos. Encarcerados em cubículos fétidos e estreitos, muitos passavam os dias acorrentados. Já os submetidos à tutela de instituições religiosas, não raro, sofriam sanções físicas punitivas. O estado de abandono em que se encontravam os doentes mentais chamou a atenção de alguns membros da Academia Imperial de Medicina e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que se engajaram em campanhas pela criação de um estabelecimento para o tratamento dos alienados. O argumento era de que a Santa Casa não estava organizada para promover a cura desses indivíduos. O apelo foi atendido pelo Império com a construção do Hospício de Alienados Pedro II (Palácio dos loucos), primeiro asilo brasileiro para essa categoria de doentes. O tratamento de pacientes com problemas mentais por médicos especializados, no entanto, só começaria nos primeiros anos do século XX. “A alienação era para os psiquiatras da época a manifestação das afeições morais, sendo as paixões da alma consideradas a causa da Gabrielle Nogueira – Med UniFG loucura. Desse modo, os excessos relativos ao amor e à ordem social deveriam ser regulados pela razão”, explica o historiador Ewerton Moura da Silva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM- USP). “Diante desses excessos, buscava-se restaurar o domínio racional dos indivíduos por meios morais e físicos, que variavam desde métodos persuasivos às tradicionais camisas de força e duchas de água fria.” CRONOLOGIA • Pré-história: as pessoas com transtornos mentais eram tratadas de acordo com os ritos tribais. Se esses fracassavam, deixava-se que os indivíduos morressem de inanição ou fossem atacados por feras. Loucura associada ao trabalho, capacidade de realizar tarefas. • Grécia Antiga: Doentes mentais eram pessoas agraciadas por deuses ou punidas por eles. • Idade Média (idade das trevas): Atribuíam os TM a demônios, o indivíduo era considerado possuído. - Padres realizavam exorcismo para expulsar maus espíritos. Quando não funcionava, realizavam o encarceramento em calabouços, com açoites e inanição. - Os loucos inofensivos viviam soltos, faziam parte das paisagens da cidade. Os lunáticos mais perigosos eram lançados em prisões, acorrentados e submetidos a inanição; eram isolados da sociedade e não conseguiam a cura com exorcismo, elas eram tratadas até a morte. - Criação dos Asilos ou leprosários: Louco devia ser isolado assim como os leprosos (Pessoas que eram consideradas pecadores, ou possuídas por demônios como castigo de divino – contaminação espirital/ espírito sujo e impuro). É uma instituição de isolamento e não de tratamento, uma vez que não eram considerados doentes. - A grande internação: O capitalismo começa a surgir e ter maior destaque, fazendo com que não só os loucos fossem internados, mas também a população considerada “inútil”: medigos, paralíticos, homossexuais e prostitutas. • Século XVII e XVIII: Iluminismo - Phinel (pai da psiquiatria) marco histórico: Dar status de doença a loucura,” isolar para tratar”; Ele visita os asilos e liberta os loucos, pois acredita que loucura é uma doença e precisa de tratamento em hospitais e não reclusão em asilos. Trouxe também a medicalização dos loucos como forma de tratamento. loucos = alienados - O asilo era por excelência o lugar do tratamento moral; era antes de tudo, a ordem da moralidade reduzida à esquemas de leis, obrigações e constrições e que levariam a cura do alienado. - Phinel separa os loucos dos ”normais”, libertando-os dos asilos, criando os Manicômios. - História dos Manicômios (por mais 100 anos): Medicações e formas de tratamento, como lobotomia (cirurgia no cérebro – tira uma parte dos lobos), eletroconvulsioterapia, camisa de forma, solitária, contenções, agressões físicas, afogamentos. (métodos de tortura duraram mais de mil séculos). - Nesses manicômios, muitos não tinha capacitação para trabalhar nesses locais, eram pessoas comuns que eram levar para conter esses pacientes. Poderia e havia agressão dos profissionais com os pacientes. • Século XIX e início do XX Emil Kraepelin: iniciou a classificação dos transtornos mentais; Eugene Bleuler: Nomeou a ”Esquizofrenia” Gabrielle Nogueira – Med UniFG Sigmund Freud transforma a assistência psiquiátrica com a Psicanálise. Surge a visão do homem como um todo e a história de vida deste homem como o fator preponderante nos transtornos mentais. 1950 – Psicofarmacologia Farmacos Psicotrópicos: Antipsicóticos – CLORPROMAZINA – Antimaníaco – Lítio • Década de 80 O ponto mais importante da história da Saúde Mental no Brasil: Movimento antimanicomial: luta pelo fim dos maus tratos nos manicômios, inspiração no movimento italiano de Basaglia. Exemplo de representante no Brasil: Nise da Silveira (Psiquiatria que trabalhou no Manicômio do Engenho de dentro), cria uma ala de Terapia Comportamental com a Arte. Criação do primeiro CAPS: centro de São Paulo 1992 – II C.N.S. Mental, com participação de usuários e familiares. 1993 – 1999: redução de leitos, ampliação do movimento dos usuários. Ela era contra eletroconvulsioterapia e lobotomia. Com os CAPS: não é preciso isolar o paciente, pode-se tratar esse paciente em casa. Marco histórico brasileiro: Manicômio de Barbacena. Supostas escórias sociais (maioria dos internos era de alcoólatras, homossexuais, mães solteiras) que suas famílias ou a polícia enviavam em trens a esta cidade de Minas Gerais. Cerca de 60.000 internos morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento nos anos noventa. Viviam mal, nus, forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou em celas Reforma psiquiátrica Reforma Psiquiátrica no Mundo Diante da realidade encontrada nos manicômios começaram a surgir críticas ao modelo asilar e ao saber psiquiátrico tradicional. Essas, inicialmente, não se dirigiam a existência da instituição, mas sim ao: • modo como ela funcionava; • a forma de tratamento; • a conduta dos profissionais e • o caráter de privação de liberdade. As críticas aos manicômios resultaram em várias tentativas de reforma, entre elas: • as Comunidades Terapêuticas Psiquiátricas (Inglaterra), • a Psicoterapia Institucional e Psiquiatria de Setor (França) e • a Psiquiatria Comunitária (Estados Unidos). Comunidades Terapêuticas Psiquiátricas Na metade da década de 1940 foi desenvolvida por Maxwell Jones a ideia de comunidade terapêutica psiquiátrica na Unidade de Neurose Industrial, no Hospital Belmont (depois chamada, de Unidade de Recuperação Social). Posteriormente em 1959, como unidade independente, veio a ser o Hospital Henderson. Nesse espaço, quecontinha cerca de 100 leitos, buscava-se que a instituição se configurasse como uma comunidade. Havia reuniões frequentes com os profissionais e internos para discutir questões sobre o tratamento e utilizava-se de técnicas educativas para propósitos construtivos. A proposta de Maxwell Jones, realmente revolucionária, era a de democratizar essa estrutura diminuindo drasticamente a separação entre os diferentes níveis, estimulando a comunicação entre todos os membros, Gabrielle Nogueira – Med UniFG incluindo todos (inclusive o ambiente) no processo terapêutico, fazendo com que os internos participassem da condução do dia-a-dia da Comunidade. As Assembleias Gerais com a participação dos internos, todos com o direito de perguntar e de expor suas ideias, garantiam a manutenção dos objetivos propostos. Maxwell Jones havia ressaltado a participação ativa dos internos na própria terapia, a comunicação social democrática e igualitária, o envolvimento de sentimentos, permitindo a redução de tensões sociais. Apesar da tentativa de mudança da instituição que asilava, essas comunidades não questionavam o modelo asilar, ao contrário, criavam uma “bolha” ao redor daqueles que estavam internados não os preparando para uma reinserção na sociedade. Psicoterapia Institucional e Psiquiatria de Setor Já Psicoterapia Institucional foi um movimento liderado por François Tosquelles iniciado no hospital psiquiátrico de Saint-Alban. Para ir à feira os camponeses precisavam passar dentro do hospital e com isto, os pacientes usavam esse momento para tentar vender o que produziam. Tosquelles aproveitou e incentivou esse espaço aberto que já existia, estabelecendo um bar na instituição, que funcionava como um ambiente de psicoterapia. A Psicoterapia Institucional configurou-se, então, como uma tentativa de superação da segregação, porém, seu líder considerava que a instituição era necessária. Ele propunha assim, uma socialização do asilo, mas não necessariamente do asilado. Posterior ao movimento da Psicoterapia Institucional e após a Segunda Guerra Mundial, baseadas nas ideias do psiquiatra francês Lucien Bonnafé, surge a Psiquiatria de Setor, que propunha: • transformações nas condições asilares; • resgatar o caráter terapêutico da psiquiatria e • contestar a instituição asilar como espaço terapêutico. A ideia deste movimento era levar a psiquiatria para as comunidades, os setores, criando serviços extra-hospitalares, tornando a assistência não mais exclusiva dos hospitais e possibilitando a reinserção do paciente depois da internação. Contudo, apesar dessa mobilização dos setores, a Psiquiatria de Setor manteve o hospital no mesmo lugar. Psiquiatria Comunitária Além das experiências europeias, nos Estados Unidos, deu-se a Psicoterapia Comunitária (Psicoterapia Preventiva), tendo como seu principal teórico Gerald Caplan. Esta se constituiu como uma estratégia de programas de saúde na década de 1960 que mudava o foco do tratamento das doenças mentais, para a prevenção destas. Sendo que, para sua efetivação a ideia era buscar esforços para criação de modelos alternativos às instituições hospitalares e incentivo a esses novos serviços, como também a redução dos gastos com internações. No entanto, o que foi percebido é que mesmo direcionando o foco para a prevenção e não a cura, não ocorreu uma ruptura com o modelo manicomial. Assim, não houve diminuição de internações nos hospitais americanos, ao contrário, observou-se um aumento da internação de psicóticos. As experiências das Comunidades Terapêuticas, da Psicoterapia Institucional, Psiquiatria de Setor e Comunitária ofereceram contribuições a história da Reforma Psiquiátrica, mas, foi na Itália que surgiram críticas a respeito da existência da instituição asilar e um movimento de mudança. Antipsiquiatria e desinstitucionalização Na década de 1960, a crítica ao paradigma asilar teve, em Gorizia (Itália) a sua primeira grande ruptura em relação à constituição da psiquiatria como saber sobre a loucura. Essa ruptura teve como sustentação teórica a Antipsiquiatria inglesa, que tinha como pressuposto básico o questionamento crítico da ciência psiquiátrica como única detentora do saber sobre a doença mental, mais propriamente sobre a esquizofrenia Gabrielle Nogueira – Med UniFG A compreensão sobre a loucura não poderia se dar por intermédio das análises reducionistas da psiquiatria, ao mesmo tempo que suas práticas, essencialmente manicomiais, eram vistas como violentas. Franco Basaglia, psiquiatra, nomeado diretor do Hospital de Goriza, transformou-o primeiramente em uma comunidade terapêutica, tendo como referência o modelo de Jones e, junto com outros psiquiatras, propôs a desarticulação do manicômio. Basaglia acabou com medidas institucionais de repressão, buscou devolver a cidadania aos doentes mentais e criou condições para trocas entre os profissionais e os pacientes. Contudo, foi no Hospital de Trieste (1971) que se iniciou de fato o processo de desinstitucionalização, ocorrendo a abertura deste a comunidade e a reinvenção do espaço como local de convivência social e de experiências culturais e educativas. A vivência em Trieste demonstrou como era possível a desmontagem do manicômio e como esta é uma forma muito mais ética e humana para tentativa de compreensão da loucura. Dessa forma, em 1978 na Itália é constituída a lei 180 que estabeleceu a abolição do estatuto de periculosidade do doente mental e a proibição da construção de novos hospitais psiquiátricos e novas internações. Reforma Psiquiátrica no Brasil. Em 1808, ocorreu a chegada da família real portuguesa e seus súditos na cidade do Rio de Janeiro. Com esse desembarque e instalação dos portugueses na cidade brasileira, mudanças começaram a ocorrer no cenário, na economia e na cultura da região para se adequar a corte. Visando a modernização e a consolidação da nação como um país independente, os ditos “loucos” passaram a ser vistos como a escória da sociedade, representando uma ameaça à ordem pública. Sendo assim, não era bem visto para o país aqueles que eram pobres ou apresentavam comportamentos agressivos e vagavam pelas ruas. Portanto, como não havia tratamento para os doentes mentais no país, os ricos eram mantidos escondidos nas casas e os pobres que perambulavam pelas ruas passaram a ser trancafiados nos porões das Santas Casas de Misericórdia, onde viviam em condições degradantes. Em 1830, a recém-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia lança uma nova palavra de ordem: “aos loucos, o hospício”, protestando contra as condições dos pacientes nas Santas Casas. E em 1841, Dom Pedro II assina, o decreto de criação do primeiro hospício brasileiro, que recebeu seu nome e foi inaugurado em 1852. Os pacientes que se encontravam até então, nas Santas Casas de Misericórdia são transferidos para a primeira instituição psiquiátrica brasileira que tinha como base a ideia do tratamento moral. O Hospício Dom Pedro II, manteve-se vinculado a Santa Casa até 1890 (depois da desvinculação renomeado Hospital Nacional dos Alienados). E logo nos primeiros anos após a Proclamação da República ocorreu a implantação das primeiras Colônias de Alienados, destinadas especificamente a pacientes homens indigentes. As colônias de São Bento e Conde de Mesquita se constituíram como uma estratégia para amenizar a superlotação do Hospital, e em uma tentativa de buscar, nas práticas agrícolas, uma aceleração no processo de recuperação dos doentes. Gabrielle Nogueira – Med UniFG Depois de irregularidades administrativas e orçamentárias nas colônias e no hospital, Juliano Moreira, psiquiatra brasileiro, foi nomeado em 1903, diretor do serviço sanitário do Hospício Nacional de Alienados e da então Assistência Médico-Legal de Alienado. Ao assumir seu novo cargo,o psiquiatra iniciou algumas mudanças à instituição como: • a ampliação dos pavilhões • aquisição de novos equipamentos • instalou o laboratório de análises clínicas • implantou a técnica de punções lombares para elucidação diagnóstica • retirou as grades e aboliu a camisa-de-força. Juliano Moreira, assim, atraiu vários jovens profissionais e fez do hospital uma verdadeira escola de psiquiatria. Porém, as colônias e o hospital continuavam com sua prática excludente. Em 1923, a Fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental tornou ainda mais forte o movimento de higiene mental. “As palavras de ordem da Liga eram “controlar, tratar e curar” e os fenômenos psíquicos eram vistos como produtos da raça ou do meio, decorrentes de obscuros fatores biológicos ou orgânicos” (FONTE, 2013). Somente em 1970, no contexto de reforma sanitária, que se teve início aqui no Brasil discussões sobre a necessidade de humanizar o tratamento das pessoas com transtornos mentais. Nesse momento, diversos setores da sociedade estavam mobilizados em torno da redemocratização do país (período da ditadura militar). Devido às péssimas condições de trabalho, inadequação do quadro de recursos humanos, baixos salários e persistência do modelo manicomial, ocorre, em 1978, uma crise na Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), órgão do Ministério da Saúde então responsável pelas políticas de saúde mental e assim, surgiu o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental reivindicando mudanças: • denunciava as condições de tratamento dos hospitais • criticava o modelo manicomial e • inspirava-se nas ideias de Basaglia. Em 1987, aconteceu o I e II Congresso do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental, sendo que, este último foi marcado pelo início da Articulação Nacional da Luta Antimanicomial e adoção do lema: “Por uma sociedade sem manicômios”. Nesse mesmo período, houve a criação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial no país, na cidade de São Paulo, o CAPS Prof. Luiz da Rocha Cerqueira. Diante do cenário de tentativa de mudanças na saúde mental, em 1989, o Deputado Paulo Delgado apresentou no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.657/89 (dispunha sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamentava a internação psiquiátrica compulsória – proposta principal: substituição do modelo manicomial), o qual tramitou por 12 anos até ser aprovado, sendo que durante a tramitação sofreu alterações, que culminaram na pouca clareza sobre como se daria a criação das estratégias extra-hospitalares. A Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei 10.216 foi promulgada em 06 de abril de 2001 – dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais redireciona o modelo assistencial à saúde mental. (Essa diferença das propostas do PL e das do texto lei demonstra a decisiva influencia do empresariado psiquiátrico, contrário à reforma psiquiátrica. Um marco histórico para o setor de saúde mental, possibilitador de mudanças ao nível do Ministério da Saúde, foi a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas, Gabrielle Nogueira – Med UniFG em 1990. Neste encontro, no qual o Brasil foi representado e signatário, foi promulgado o documento final intitulado ”Declaração de Caracas”. Na Declaração de Caracas, os países da América Latina comprometeram-se a: • promover a reestruturação da assistência psiquiátrica; • rever criticamente o papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico; • salvaguardar os direitos civis, a dignidade pessoal, os direitos humanos dos usuários e • propiciar a sua permanência no meio comunitário. Epidemiologia das Doenças Psiquiátricas A conscientização de que os transtornos mentais representam um sério problema de saúde pública é relativamente recente, ocorrendo a partir de publicação realizada pela Organização Mundial da Saúde e por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, em 1994 (Lopez e Murray, 1998). Utilizando como medida uma combinação do número de anos vividos com incapacidade, e consequente deterioração da qualidade de vida, e do número de anos perdidos por morte prematura causada pela doença (medidos pela unidade Disability Adjusted Life Years – DALYs), verificou-se que doenças como transtornos depressivos e transtornos cardiovasculares estão rapidamente substituindo a desnutrição, complicações perinatais e doenças infectocontagiosas em países subdesenvolvidos, onde vivem quatro quintos da população do mundo Embora os transtornos mentais causem pouco mais de 1% da mortalidade, são responsáveis por mais de 12% da incapacitação decorrente de doenças. Esse porcentual aumenta para 23% em países desenvolvidos. Das dez principais causas de incapacitação, cinco delas são transtornos psiquiátricos, sendo a depressão responsável por 13% das incapacitações, alcoolismo por 7,1%, esquizofrenia por 4%, transtorno bipolar por 3,3% e transtorno obsessivo-compulsivo por 2,8%. Na idade adulta emergem grandes diferenças entre homens e mulheres em relação aos transtornos mentais. A mulher apresenta vulnerabilidade marcante a sintomas ansiosos e depressivos, especialmente associados ao período reprodutivo. A depressão é, comprovadamente, a doença que mais causa incapacitação em mulheres, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. No mundo, a morte por suicídio é a segunda causa de morte para mulheres na faixa de 15 a 44 anos de idade, sendo precedida somente por tuberculose. Os estudos de base populacional realizados em países ocidentais têm mostrado que cerca de 35% da população geral adulta não institucionalizada apresenta algum transtorno mental ao longo da vida. Gabrielle Nogueira – Med UniFG Essa taxa chega a atingir cerca de 50% quando se considera também o diagnóstico de dependência de nicotina. Nesse estudo, as mulheres apresentaram maior freqüência de transtornos afetivos (com exceção de episódios psicóticos de exaltação maníaca e distimia), transtornos ansiosos (exceto transtorno obsessivo-compulsivo, ansiedade generalizada e fobia social), transtornos dissociativos (transes e perdas de consciência) e transtornos alimentares. Os homens apresentaram maiores taxas de uso nocivo ou dependência de drogas, incluindo tabaco e álcool. Excluindo a dependência de tabaco, o risco de sofrer um transtorno mental durante a vida foi 1,5 vez maior para as mulheres que para os homens. Diferenças entre os gêneros foram encontradas em estudos prospectivos para se determinar incidência de transtornos mentais. No estudo NEMESIS, uso de substâncias, particularmente abuso de álcool, foi o transtorno com maior incidência em homens (incidência de 4,09), seguido por depressão (1,72), fobia simples (1,34) e dependência ao álcool (0,82). Para mulheres, o transtorno com maior incidência foi depressão (3,9), seguida por fobia simples (3,17). A razão entre as incidências para mulheres e homens (controlada para idade), fornecendo uma medida do risco das mulheres em relação aos homens, foi de 1,54 para qualquer transtorno mental. Essa razão foi maior para transtornos ansiosos (2,58), particularmente para transtorno de pânico (4,17), seguido pelos transtornos do humor (2,39). A razão se inverte para transtornos relacionados ao uso de substâncias, sendo maior o risco para homens (3,7). Mortes por suicídio são mais freqüentes em homens do que em mulheres, com a razão de 3,6 homens para 1 mulher no mundo e 3,5:1 no Brasil, em 1995. A única exceção ocorre na China, com semelhantes taxas nas áreas urbanas e maior freqüência entre as mulheres nas áreas rurais. Embora as estatísticas de tentativas de suicídio sejam pouco fidedignas, estas parecem ocorrer com maior freqüênciaem mulheres que em homens, e entre 10 a 20 vezes mais freqüentemente do que as mortes por suicídio (World Mental Health, 1999). Gabrielle Nogueira – Med UniFG
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