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PUC-SP Reitor: Antonio Carlos Caruso Ronca Vice-Reitora Acadêmica: Sueli Cristina Marquesi EDUC - Editora da PUC-SP Conselho Editorial: Ana Maria Rapassi, Bernardete A. Gatti, Dino Preti, José Roberto Pretel Pereira Job, Maria do Carmo Guedes Maura Pardini B' d , ' teu o Veras, Onésimo de Oliveira Cardoso, Scipione Di Pierro Netto Sueli Cristina Marquesi (Presidente) . ' 1 i Desigualdade e a questão social Lucia Bógus Maria Carmelita Yazbek Mariangela Belfiore-Wanderley organizadoras eclu~ São Paulo 2000 As transformações da questão social1 Robert Gastei Tradução: Mariangela Belfiore-Wanderley Irúcialmente, quero agradecer à PUC e aos organizadores deste Seminário pela honra do convite e, também, desculpar-me por ser incapaz de falar português. Sei o quanto é desagradável para a platéia uma exposição em língua estrangeira, mas esta é uma defi- ciência que não consegui superar e que es- pero não seja tão incômoda, em razão da tradução simultânea. Quero, ainda, desculpar-me de uma ou- tra incapacidade, a de construir uma exposi- 1 Palestra proferida por ocasião do Seminário Internacional "A questão social no contexto da globalização", realiz.ado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no período de 14 a 17 de outubro de 1996. ção a partir da realidade brasileira. Já estive algumas vezes no Brasil. Tenho um pequeno conhecimento dos problemas e das dificulda- des por já ter discutido a respeito, mas não posso ter a pretensão de falar diretamente. Serei, pois, obrigado a tomar como referência a situação que conheço melhor, ou seja, a situação na Europa Ocidental e, particular- mente, na França. No entanto, não gostaria de intervir como um representante do primei- ro mundo, como vocês dizem aqui. Creio que o que vou dizer não é completamente estra- nho ao que se passa aqui e sinto-me mesmo, muito próximo dos propósitos expostos, on- tem à noite, pelo professor Luiz Eduardo Wanderley. Assim, proponho uma análise próxima àquela desenvolvida por Karl Polanyi sobre o início do capitalismo industrial, ou seja, que as sociedades atuais se confrontam com um novo desafio que podemos chamar, se qui- sermos, de globalização, quer dizer a mun- dialização da economia e o retorno forçado do mercado auto-regulado, estando a compe- titividade e a concorrência aguerridas, ao mesmo tempo, no seio de cada Estado e en- tre diferentes Estados. A esse importante de- safio, diferentes sociedades respondem dife- rentemente, mobilizando diferentes recursos 236 com base em suas próprias tradições. Poder- se-ia sem dúvida dizer que, até agora, socie- dades, como as da Europa Ocidental, conse- guiram se defender melhor porque, simulta- neamente, as pressões externas foram menos fortes e, principalmente, porque construíram defesas mais sólidas contra o mercado, pro- teções e direitos que estão enraizados há mais longo tempo. Creio que a partir disso pode- remos discutir. O que vou tentar dizer, muito esquema- ticamente, é como essas proteções se desen- volveram na Europa Ocidental, que tipo de equilíbrio atingiram até o início dos anos 70 e como se degradam atualmente. Creio, então que, desse ponto de vista, com relação a es- ses problemas a América Latina e o Brasil não estão em outro planeta. Seguramente as proteções não atingiram aqui essa mesma sis- tematização e, sem dúvida, degradam-se mais rapidamente. Incontestavelmente a situação é mais grave aqui mas me parece que é mais uma diferença de grau do que de natureza. Essa é, em todo caso, uma hipótese que gos- taria de pôr em discussão. Assim, se vou par- tir da situação da Europa e da França, desejo menos falar dessas situações nelas mesmas, mas propor uma matriz de leitura para tentar 237 1 • ., interpretar o que se passa também aqui numa sociedade que foi, embora não completamen- te, uma sociedade salarial. Deram à minha intervenção um título muito abrangente - as metamorfoses da ques- tão social - , que retoma o título que dei a meu livro escrito recentemente sobre esse as- sunto. Certamente não teria tempo de tratar do conjunto dessas metamorfoses. Tomarei os últimos episódios dessas transformações da questão social que originam a situação atual. Luiz Eduardo Wanderley referiu-se, on- tem, à minha proposta de caracterização da questão social: é como uma aporia fundamen- tal, uma dificuldade central, a partir da qual uma sociedade se interroga sobre sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É, em resumo, um desafio que questiona a capaci- dade de uma sociedade de existir como um todo, como um conjunto ligado por relações de interdependência. É uma definição que pode parecer um pouco abstrata, mas que é perfeitamente ilustrada pela situação do início do século XIX, nos primórdios da industria- lização, quando a questão social foi explici- tamente colocad~ pela primeira vez, por volta dos anos 1830. E a ameaça de fratura repre- sentada pelos pro letários das primeiras con- 238 centrações industriais que, como dizia Augus- to Comte, acampam na sociedade industrial sem estarem nela encaixados, integrados. São essas populações flutuantes, miseráveis, não socializadas, cortadas de seus vínculos rurais e que ameaçam a ordem social, seja pela vi- olência revolucionária, seja como uma gan- grena. Aliás, essa é uma palavra utilizada no vocabulário da época, uma espécie de con- taminação da miséria, da desgraça que infec- taria progressivamente todo o corpo social. Então, é essa a questão social na primeira metade do século XIX, descrita pela maior parte dos observadores sociais da época, sob a forma de pauperismo. Não é mais a questão social de hoje, porque essa ameaça foi afas- tada, porque esse primeiro proletariado mi- serável e subversivo passou a ser uma classe operária relativamente integrada, após um conjunto de processos, ao qual farei rápida referência . A nova questão social hoje parece ser o questionan1ento desta função integradora do trabalho na sociedade. Uma desmontagem desse sistema de proteções e garantias que foram vinculadas ao emprego e uma deses- tabilização, primeiramente da ordem do tra- balho, que repercute como uma espécie de 239 choque em diferentes setores da vida social ' para além do mundo do trabalho propria- mente dito. Esta é, em todo caso, a hipótese que gostaria de submeter a vocês, à qual jun- taria algumas idéias. Primeiramente, se falei de desagregação ou de degradação, é indispensável se per- guntar o que é que se desagrega, o que é que se degrada. Ou seja, lembrar no que con- sistia esse regime, que foi sacudido há apro- ximadamente 20 anos, depois que começa- mos a falar da crise, no início dos anos 70, mas que se mostra como muito mais do que uma crise, pois de uma crise é possível se sair, enquanto que desta vez não parece tão evidente que haja uma saída ou, em todo caso, qual seria a saída. Então, em primeiro lugar, abordarei essa estrutura que vinculava proteções fortes ao trabalho, assegurando ,< uma estabilidade ao conjunto da sociedade, no quadro do que podemos chamar de uma sociedade salarial. Em seguida, falarei rapida- mente do que me parece ter profundamente mudado com relação a essa estrutura. Insis- tirei, então, no processo da precarização, que me parece o grande fenômeno que atinge as situações do trabalho, no sentido da sua re- mercantilização e de soluções na ordem do 240 mercado, como efeito particular da globaliza- ção. Enfim, poderíamos considerar algumas aplicações desse tipo de abordagem da ques- tão social e talvez, também, aquilo que é pos- sível de ser feito face a essa situação, mas para tanto conto muito com o debate entre nós, pois , sinceramente, não tenho receitas a propor. 1. O primeiro ponto que gostaria de apre- sentar é o que poderíamos chamar de processo de transformação do trabalho em emprego, em emprego protegido ou emprego com status, o que me parece ter sido a grande inovação que se desenvolveu a partirdo fim do século XIX, conduzindo a uma forma de compro- misso social, como se dizia no início dos anos 70, da qual, aliás, precisamos conhecer os dados. Temos tendência de esquecer, pelo menos em países como a França, em países europeus, a que ponto o trabalho, e em par- ticular o trabalho assalariado, foi sempre uma condição, ao mesmo tempo, íntima e miserá- vel, indispensável, sem dúvida - "você ga- nhará seu pão com o suor do seu rosto ·: está na Bíblia - mas também, miserável e indigna. Pois, no fundo, quem trabalha? É o escravo quando há escravos, é o servo quando há servos, é o camponês curvado sobre a sua 241 terra. Quer dizer, as pessoas de bem não trabalham, em todo caso não trabalham com seus próprios braços . Não cabe aqui explicar como o trabalho saiu dessa época, que foi o início do salariado. Porque o que é , antes de tudo, um assalariado? É alguém que não tem nada , que não tem propriedade, que tem apenas a força de seus braços para vender e que o faz geralmente de forma frágil e miserável. É o proletário, por exemplo, do início da industrialização, que evoquei há pouco, mas essa situação se prolonga até quase o início do século XX, onde o salariado é sempre pensado a partir do salariado ope- rário, quer dizer da condição social a mais ingrata, a mais penosa e também a mais des- prezada. Eu poderia citar uma série de exem- plos que se prolongam até mais ou menos os anos 1920 e 1930. Não posso descrever em detalhes como o salariado saiu dessa si- tuação, mas houve um processo que se afir- ma sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, e que passa por todo um con- junto d~ ; _onflitos e lutas e que convergem para a ideia de que o salariado não é mais uma situação provisória, como se acreditou por longo tempo, uma condição tão miserável que se busca sair dela o mais rápido possível como o pe / · ' o rano que tão logo possa comprar 242 l 1 duas ferramentas passa a trabalhar por conta própria. Mas, com o desenvolvimento da in- dustrialização, da urbanização, o salariado se instala, passa a ser um estado permanente e, então, é preferível aceitar sua consolidação, do que ver se desenvolver no coração da sociedade industrial massas atingidas pelo pauperismo generalizado, conforme evoquei há pouco. Então, qual foi esse movimento que, no início dos anos 70, nos deu o direito de falar em sociedade salarial? E o que é uma soci- edade salarial? Não é somente uma sociedade na qual a maioria da população é assalariada, ainda que seja verdade. Na França, por exem- plo, nos anos 70, havia, e há ainda, perto de 82% da população ativa que é assalariada. Mas, uma sociedade salarial é sobretudo uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos so- ciais têm sua inserção social relacionada ao lugar que ocupam no salariado, ou seja, não somente sua renda mas , também, seu status, sua proteção, sua identidade. Poder-se-ia di- zer que a sociedade salarial inventou um novo tipo de seguridade ligada ao trabalho, e não somente à propriedade, ao patrimônio. Porque, antes do estabelecimento dessa socie- dade salarial ser protegido era ter bens; so- 243 mente quando se era proprie~ri~ é_ qu_e se estava garantido contra os principais nsc~s da existência social, que são a doença, o aci- dente, a velhice sem pecúlio. Ora se estando fora da propriedade, se está à mercê da as- sistência social. Essa era, justamente, a situa- ção da maioria dos trabalhadores que viviam de seu trabalho e que, quando não podiam mais trabalhar, viviam um drama . E era ainda pior no hospital, e morrer num hospício sem- pre foi para o povo uma espécie de vergonha e de desgraça. É justamente desta situação do trabalho sem proteção que nasceu o novo status do trabalho na sociedade salarial. Pode-se dizer, efetivamente, que esse tipo de_proteção, de regulação, ou seja, direito do trabalho, segu- ridade social, foi , inicialmente, ligada ao sa- lariado, e mesmo, ao pequeno salariado, e que se difundiu no conjunto da estrutura so- cial . O sala ria do se consolidou e se dignifi- cou, se ouso dizer, e passou mesmo a ter um gapel de atração, em torno do qual o c~~jun,to da sociedade moderna se organizou. Alias, e o que se vê, por exemplo, na posição de _trabalhadores independentes que durante muito tempo desprezaram o salariado e aca- baram invejando-o, imitando-o, quere~do be- 244 neficiar-se das mesmas vantagens sociais, o que por sinal conseguiram. É verdade, tam- bém, que no alto da escala social, numa so- ciedade salarial, não são muitos que vivem de renda. E os representantes da grande bur- guesia, as fortunas, os representantes do pa- trimônio acabaram colocando seus filhos no mercado do salariado, por meio das grandes escolas, de diplomas, etc., (o que, por exem- plo, Pierre Bourdieu chama de nobreza de - Estado). Assim, no fim desse processo, o sa- lariado pode ser a fonte de renda confortável e mesmo de posições de prestígio e de poder. ) Mas é sobretudo a fonte de uma forma nova de seguridade, o que chamamos preci- samente de seguridade social, a possibilidade de controlar o futuro porque o presente é 1 estável. E, então, uma sociedade salarial é uma sociedade que continua fortemente hie- rarquizada. Não é uma sociedade de igualda- de, permanecem injustiças, permanece mes- mo a exploração. É, também, uma sociedade conflituosa na qual os diferentes grupos so- ciais são concorrentes, mas é uma sociedade na qual cada indivíduo desfruta de um míni- mo de garantias e de direitos. Espera-se mes- mo ter vantagens no futuro, o que chamamos de progresso social, que se desenvolve a par- 245 tir da negociação conflituosa entre diferentes parceiros sociais . Durante o período de cres- cimento vivido após a Segunda Guerra Mun- dial, quando cada grupo social lutava pela partilha dos lucros do crescimento, mesmo achando que nunca obteria o suficiente cada grupo pensava que em seis meses poderia obter mais , o que lhe permitia desenvolver estratégias de longo prazo, e mesmo estraté- gias transgeracionais: o que eu não tenho tempo de obter, os meus filhos obterão, pois eles vão à escola, diplomam-se, etc. - é a mobilidade ascendente - e então amanhã será melhor que hoje. Bem, esquematizando muito pois tenho que me apressar, é o que poderíamos chamar de trajetória ascendente da sociedade salarial, a qual penso não de- vemos mistificar, não é o paraíso, pois, como eu dizia, permaneceram as desigualdades, a injustiça, os bolsões de pobreza, que pensá- vamos que iriam ser reduzidos. Era essa a crença no progresso social, uma espécie de idea l social-democrata , de que haveria possi- bilidade de uma queda progressiva das desi- ~alda~es e ampliação das vantagens da jus- uça s_oc1al. Parece-me ser essa a tra jetó ria que culrrunou na Europa no início dos anos 70 que se quebrou e que faz com que, hoje, ~ futuro pareça mais sombrio. 246 2. A segunda questão que gostaria de abordar, é como essa configuração da socie- dade salarial, rodeada e atravessada de pro- teções, direito do trabalho, seguridade social , etc. vem sendo condicionada por processos tais como a internacionalização do mercado, a mundialização, as exigências crescentes da concorrência e da competitividade, passando o trabalho a ser o a lvo principal de dois tipos de redução de custos . Trata-se de minimizar o preço da força de trabalho e , ao mesmo tempo, maximiza r su a eficácia produtiva . E a flexibilização é a palav ra-chave que traduz essas exigências, flexibilidade interna à em- presa que impõe a adaptabilidade da mão- de-obra a essas situações novas e que, evi- dentemente, expulsa os que não são capazes de se prestar a essas novas regras do jogo. É, também, a flexibilidade externa que con- duz a subcontratar fora da grande empresa uma parte das tarefas mas, em geral, sob con- dições mais precárias, menos protegidas e com 1nenos direitos. Certamente aqui não é o lugar para se fazer uma discussão técnica sobre a flex ib ilização.Podemos compreender que a crescente crise tem sem dúvida exigências econômicas ' ' e tecno lógicas sérias . Mas, ao mesmo tempo, 247 é preciso reconhecer que a maneira como foi conduzida, particularmente pelo patronato europeu, teve efeitos bastante devastadores . Creio que aqui não deve ser melhor, e talvez seja até pior. Citarei um único testemunho de quem tem autoridade, pois trata-se do pre- sidente da CNPF (Confederação Nacional do Patronato Francês) que declarou em 1993 - e foi sobretudo a partir dos anos 90 que essa política foi implantada - na Assembléia Geral do patronato francês : "1993 será o ano da luta contra as p(_essões introduzidas na legis- lação no decorrer dos 30 gloriosos, o ano da luta pela flexibilização" (são assim chamados os anos que se seguem à Segunda Guerra Mundial , até o início os anos 70, que aliás nem sempre foram assim tão gloriosos, mas que em todo caso foi um período de cresci- mento). E a promoção da flexibilidade, da leveza na busca do mercado de trabalho é ' pensada contra o que chamamos, aliás às ve- zes com um certo desprezo, de aquisições sociais, mas que são de fato direitos sociais que, freqüentemente, foram conquistados, e que estavam na legislação. Esse aspecto das proteções, dos direitos vinculados ao trabalho - e que foram por eles desmercantilizados 248 T • .. ' -- 1 • é que fez com que o trabalho não fosse ape- nas a retribuição pontual de uma tarefa, mas que a ele fossem vinculados direitos. É exatamente isso que está sendo ques- tionado e que está sendo desestabilizado pela aplicação dessa nova política também na Eu- ropa. Efetivamente, em relativamente pouco tempo pois isto data de menos de 20 anos, os resultados são já espetaculares. Tomarei aqui, por falta de tempo, um só indicador. No início dos anos 70, no momento mais abundante da sociedade salarial, o contrato de tempo indeterminado era praticamente he- gemônico, ou seja, um tipo de contrato que em situações de pleno emprego assegurava a estabilidade das condições de trabalho. Hoje, em termos de "estoque" como dizem os economistas, ele é ainda majoritário. Mas, por outro lado, 70% aproximadamente das novas admissões na França se fazem sob for- mas ditas atípicas, ou seja, contratos de tem- po detern1inado, contratos de interinos, tem- po parcial, diferentes formas de empregabili- dade, o que quer dizer, no fundo, que a médio prazo, nesse ritmo, em 10 anos talvez, a instabilidade do emprego vai substituir a estabilidade do emprego como regime domi- 249 4 / I ' -· __J nante da organização do trabalho. Na minha opinião este é , sem dúvida, o desafi~ mais grave que se apresenta hoje. Talvez mais gra- ve que o desemprego. Não digo isto para subestimar o drama do desemprego, na Fran- ça há mais de três milhões de desemprega- dos, o que representa mais de 10% da po- pulação ativa , dado que é considerável so- bretudo após o período de pleno emprego ao qual estávamos habituados. Mas creio que a precarização do trabalho seja talvez mais importante ainda pois é ela que alimenta o desemprego e que faz com que essa situação do trabalho, tornando-se cada vez mais frágil , force as pessoas a se encontrarem numa con- dição de vulnerabilidade, condição essa que tiveram a sorte de desconhecer até então, o que representa um privilégio com relação a situações de países como o Brasil. Esse processo de precarização do traba- lho toca de f arma desigual as diferentes ca- tegorias sociais. Afeta principalmente os tra- balhadores, e dentre eles os poucos qualifi- cados, mais do que os executivos por exem- plo, mas é preciso dizer que há também um d~semprego para os quadros superiores , quer dizer que ninguém escapa a essa reestabili- zação das situações de trabalho. Foi por isso 250 ' ,,. 1 :..' A '"'f~, ( • • • que evoquei anteriormente essa espec1e de choque que atravessa o conjunto da socieda- de salarial e que a desestabiliza. Evidente- mente não se deve caricaturar, risco que cor- remos quando falamos rapidamente sobre uma temática, como sou obrigado a fazer aqui. Há quem diga que esta situação nova não é totalmente negativa, que, particular- mente, há uma reindividualização das rela- ções de trabalho e que as antigas formas de organização coletiva do trabalho taylorista es- tão sendo ultrapassadas , que a relação salarial se individualiza e nessa individualização al- guns podem se mobilizar, vender-se, no sen- tido mesmo da palavra, num mercado de tra- balho que está se tornando cada vez mais competitivo. Então, não é todo mundo que perde nesse jogo, mas é preciso acrescentar também que aqueles que se "viram" nessa nova situação são os que podem mobilizar recursos, capitais , que têm melhor formação e que podem se sair melhor, e algumas vezes muito bem, nessa situação cada vez mais competitiva . Mas outros, e temo que sejam os mais numerosos, encontram-se perdidos, quer dizer, desmembrados dos conjuntos co- letivos, das regulações coletivas de proteção e de direito do trabalho. Passam, então, a ser indivíduos isolados de seus antigos pertenci- 251 ' 1 ,,t- \.~ n"-~ ~>y-~ -J . 1 . / mentas coletivos, ivres sim, mas sem vmcu- los, sem socorro, um pouco como os prole- tários do início da industrialização, que eram "livres", ou seja podiam estabelecer livremen- te seus contratos de trabalho, mas que, no entanto, pagaram muito caro por essa liber- dade. E como é que se saíram dessa situação ~j que Marx, dentre outros, descreveu e denun- ciou? Exatamente, inscrevendo-se em coleti- vos protetores. É isto que falta atualmente, e que nos permitiria refletir sobre um parado- / xo, que não é apenas filosófico, o de que um indivíduo só pode ser assim considerado, na essência positiva da palavra, se puder dis- por de um suporte de proteção, de partici- pação em solidariedades coletivas. Porém, quando se é um indivíduo só, não ouso dizer, arrisca-se a estar completamente desmunido. E temo, também, que essas transformações em curso estejam impelindo um número cres- cente de pessoas a uma espécie de individu- alismo negativo, por carência, pois perdem tão rapidamente o suporte de uma condição salarial que acabam por perder também a possibilidade de controlar o futuro. Sem pretender fazer um balanço com- ~leto da situação atual, parece-me que pode- namos esboçar pelo menos três constatações que caracterizam três planos de cristalização 252 ~ 0J~ TV~ üc A~Ó~ importantes da questão social, como é colo- cada hoje num país como a França. Uma primeira constatação é O que se pode chamar de desestabilização dos estáveis Ou seja, trabalhadores que ocupavam um; posição sólida na divisão do trabalho clássica e que se encontram ejetados dos circuitos produtivos. É o caso particular de uma parte dos operários das indústrias que, aos 45 anos por exemplo, se vêem considerados muitos velhos para serem reciclados. E, então, po- demos nos perguntar o que será deles. Há uma segunda constatação, a da ins- talação na precariedade. É algo que vocês conhecem muito bem aqui, mas que é um fenômeno relativamente novo na Europa, pelo menos nos últimos cinqüenta anos e que atinge freqüentemente os jovens, com alter- nâncias de períodos de atividades, de desem- prego, de trabalho temporário, de ajuda so- cia l, da qual falaremos um pouco se houver tempo. E, o desenvolvimento do que se po- deria chamar de cultura do aleatório, as pes- soas vivem o dia-a-dia, como aliás se dizia no século XIX frente a condição de vida da maioria do povo, mas que foi exatamente ul- trapassada pela instalação da sociedade sala- rial. É um fenômeno ainda mais inquietante 253 quando se considera que as pessoas que se encontram nessa situação são, com freqüên- cia, jovens que até pouco tempo atrás não estariam expostos a essa situação. Isto nos conduz à terceira constatação, talvez a mais inquietante para as sociedades que haviam se habituado ao quase pleno em- prego, sociedades da Europa Ocidentalque estão talvez redescobrindo um perfil de pes- soas que poderiam ser chamadas de sobran- tes, pessoas que não têm lugar na sociedade, que não são integrados, e talvez não sejam integráveis no sentido forte da palavra a ela atribuído por exemplo por Durkheim, ou seja, estar integrado é estar inserido em re- lações de utilidade social, relações de inter- dependência com o conjunto da sociedade. Creio ser esse um perfil de população bem diferente daquele que poderíamos observar nas sociedades industriais, onde havia pesso- as exploradas, como por exemplo o operário especializado das grandes lutas operárias. Bem, ele era explorado mas era, ao mesmo tempo, ~ndispensável. E era exatamente por essa razao que ele podia reivindicar, organi- za_r-se e, por vezes, obter ganho de causa . E fo1 f .. requentemente por meio dessas lutas que foram conseguidas as proteções e garan~ 254 tias aqui evocadas. Poder-se-ia dizer que es- ses que estou denominando de "sobrant " - - 1 d es nao sao exp ora os. Estão lá como inúte· inúteis ao mundo como se costumava fal:; dos vagabundos nas sociedades pré-industri- ais, no sentido de que não encontram um lugar na sociedade, com um mínimo de es- tabilida_de. ~ão pessoas, poder-se-ia dizer, que foram 1nvahdadas pela nova conjuntura eco- n?~ca e social ~os últimos 20 anos. Porque ha vinte anos atras essas pessoas teriam sido integradas nos circuitos produtivos, e hoje elas estão quase como fracassadas. Isto nos faz compreender como um fenômeno massi- vo como o desemprego - são mais de 3 mi- lhões de desempregados - não deu lugar a movi;11entos reivindicativos de certa amplitu- de. E possível compreendê-los, pois são in- divíduos que estão completamente atomiza- ~ dos, rejeitados de circuitos que lhes poderiam atribuir uma utilidade social. Desculpem-me de ter sido ao mesmo tempo esquemático e longo. Busquei traçar um tipo de diagnóstico que poderia ser feito sobre a questão social atual em países como a França e, sem dúvidas, com nuances, em países como a Inglaterra e a Alemanha, que constituíram sociedades salariais e que se en- 255 tram em dificuldades causadas por esse con d l r processo de globalização ~razi ~ o . pe ~ n~o- i- beralismo. Esse tipo de diagnostico e discu- tível, eu apenas puxei um fio e não pretendo ter esgotado a análise. 3. Gostaria de esquematizar um terceiro ponto que anunciei. J?iante _ desses nov~s da- dos a essa nova configuraçao da questao so- cial: que futuro poderemos pr~ver? Serei pru- dente, pois evidenteme~te nao tenho .. solu- ções a propor. Desconfio mes~~ dos !aze- dares de projetos", como se dizia no seculo XVIII, pessoas que tiram as soluções_ do cha- péu. É lógico que a situação é muito_ com- plexa e o futuro continua largamente ~pre- visível. Mas ele será trabalhado a partir das heranças de hoje. Se é impossível se predizer o futuro, é possível se desenhar algumas eventualidades e tentar avaliar os riscos e as oportunidades que podem nos levar a esco- lher com maior conhecimento de causa. A primeira eventualidade, no pior cená- rio, é a continuidade da ruptura entre traba- lho e proteção, a remercantilização completa do trabalho ou o triunfo completo do mer- cado, ou seja, o surgimento não apenas de uma sociedade do mercado, pois estamos numa sociedade de mercado, mas de uma 256 sociedade que se torna mercado, inteiramente atravessada pelas leis do mercado, o que se- ria, creio eu, o triunfo da globalização. Isto abre uma perspectiva terrível, e sem dúvida inédita, pois a humanidade nunca viveu isto. O que Karl Polanyi chamou de mercado "auto-regulado", mas que nunca se impôs completamente, porque o capitalismo do sé- culo XIX, o capitalismo industrial chegou numa sociedade que tinha forte assento rural, solidariedades e proximidades, relações infor- mais entre as pessoas, que não passavam pelo mercado. É o que chamamos por vezes de sociedade civil. Parece-me que nas socie- dades salariais, com a industrialização e a ur- banização massivas, essas formas de solida- riedades foram se enfraquecendo progressi- vamente. É por isso que as proteções cons- truídas pelo Estado, as proteções sociais, ga- rantidas pela lei, têm tanta importância, por- que, se o Estado se retira, há o risco do quase vazio, da anomia generalizada do mer- cado, pois este não comporta nenhum d_os elementos necessários à coesão social, muito pelo contrário, funcio1;a pela concorrênc~a, "não faz sociedade". E talvez essa a razao pela qual as sociedades salariais de tipo ~i- dental são mais frágeis, porque sua coesao depende fortemente dessas proteções que fo- ram construídas pelos movimentos que tentei aqui desenhar. Talvez essa situaçâ? seja me- nos grave em países como o Brasil, que me parece criam mais situa~õ~s de tipo infoi:rnal - solidariedades por proXllllldade - as quais po- deriam oferecer proteções fora do mercado. Este é , sem dúvida, um ponto a ser discutido. Uma segunda eventualidade consiste em tentar controlar, na margem, o processo de desagregação da sociedade salarial que dese- nhei há pouco. É o que está sendo feito na França sobretudo desde o início dos anos 80, e que chamamos de tratamento social do de- semprego, ou de políticas de inserção, quer dizer, tentativas para a tenuar certos efeitos devastadores das transformações em curso, ajudando as vítimas, aquelas já atingidas ou que estão ameaçadas de serem atingidas . Re- tomarei este ponto no próximo texto, quando tratar da exclusão, pois estas medidas estão inscritas nas ações de luta contra a exclusão . Não contesto a utilidade dessas práticas - o tratamento social do desemprego, as políticas de inserção - porque sem elas a situação seria ainda pior. Porém não atingem o de- s,:_mprego em massa que, apesar dessas po- ht1cas, aumenta em vez de diminuir. Essas iniciativas não me parecem estar na medida 258 da gravidade d a crise , e a gente se resigna com a situação que fica desse jeito, e torce para que não se agrave e não apodreça to- talmente, pois uma sociedade que tem taxas de 10, 12 ou 15% de desempregados é uma sociedade doente . E isto não seria a negação dos fundamentos de uma sociedade demo- crática? Do ponto de vista da evolução polí- tica é sinal bastante inquietante. A terceira eventualidade ou tentativa de resposta: o que disse há pouco, situando o n ó d a questão social atual, pode ser interpre- tado como um enfraquecimento do suporte sa larial. Entendo por suporte salarial não apenas o salário m as as pro teções ligadas ao trab alho. Daí a idéia de se procurar alterna- tivas a esse suporte salarial, alternativas ao campo clássico do emprego assalariado. Há várias tentativas que não terei tempo de de- talhar tentativas de economia não mercantis. ' Fala-se do terceiro seto r, de economias soli- d á rias , de atividades que estão mais ou me- nos à 1nargem do setor mercantil e das exi- gê ncias d a competitividade e que não entra- rian1 no processo de globalização. Fala-se, também de novas fontes de emprego, ou seja , no~as atividades , diferentes das ativida- 259 • des clássicas que corresponderiam a novas necessidades que não são atualmente satis- feitas pelo mercado. Creio que algumas des- sas tentativas são interessantes mas parece que se tomam marginais e que não repre- sentam alternativas globais ao enfraquecimen- to do suporte salarial. Pode-se mesmo temer que tenham efeitos perversos . Num país como a França, vemos se desenvolver uma espécie de mercado paralelo de trabalho, abaixo do trabalho protegido, o que chama- mos de SMIC.2 São pequenas atividades sub- pagas e subprotegidas e que vão no sentido da remercantilização à qual me referi antes . Você quer um trabalho? Bom, eu tenho uma parede que deve ser construída, que deve lhe ocupar uns quatro dias, eu posso lhe pagar um 2 SMIC = o salário mínimo interprofissional de cresci- me~to que substituiu o salário mínimo interprofissional ga- rantido (SMIG), que continua sendo uma denominaçãocorrente. Trata-se de um piso mínimo (por hora) de remu- ner~~o de um assalariado. Seu montante é objeto de uma decJSao anual do governo que fixa seu aumento em função do · cresc11Tiento, mas pode ultrapassar a taxa de crescimento para dar " - " ' . . um empurrao ou nos baixos salários. É muito dJSCUtido por todos os · • • . parrelfos soc1a1s pois seu aun1ento f repercute no conjunto dos salários. (Nota da tradutora con- orme Madec e Mur d c·t - ' Do . ar , 1 oyenneJe e/ politiques sociales mmos/Flammarion, 1995. . 260 \ Á) pouco, e só. Isso não tem nada a ver com prer teção social, direito do trabalho, etc. A quarta perspectiva diz respeito às pes- soas que se acham mais espertas ou mais audaciosas, e que acreditam ser capazes de antecipar o futuro, que consideram o trabalho ultrapassado. O trabalho estaria em vias de desaparecimento, o fim do trabalho, o fim da sociedade salarial. Esse é um discurso que se ouve cada vez mais insistentemente e , poder- se-ia dizer mesmo, que é o discurso da moda hoje em Paris . Creio que esse discurso é ali- mentado por duas constatações. Há de fato uma diminuição do tempo de trabalho soci- almente útil. O proletário do irúcio da indus- trialização estava completamente imerso no trabalho. Ele perdia sua vida tentando ganhá- la. Hoje trabalha-se muito menos e com as transformações tecnológicas, a robótica e a informática , poder-se-ia pensar que em al- guns anos 10 horas de trabalho por semana, senão menos, seriam suficientes. É o discurso sobre o tempo livre. Quanto mais nos libe- rarmos da obsessão do trabalho mais livre seremos. Eu não estou absolutamente con- vencido desse tipo de discurso. De um lado porque a redução do tempo de trabalho so- cialmente útil não reduz absolutamente a ne- cessidade do trabalho. Isso nos convida a re- 261 fletir sobre a relatividade da noção de jornada de trabalho: ele foi de 60 horas no século passado, é hoje de 40 horas, poderá ser de 20 horas amanhã , o que é bom pois o tra- balho nem sempre é um prazer, mas pode ser que as pessoas, se as coisas forem bem no futuro, poderão ser empregadas numa pe- quena parte de seu tempo e, ao mesmo tem- po, estar livres para fazer outra coisa. Com a condição que se continue a tirar do traba- lho a utilidade social essencial, pois é final- mente essa forma de organização do trabalho que libera o trabalho. E creio que isso pode ser generalizado. Na história do trabalho foi o trabalho que libertou o trabalho, foi quando as situações de trabalho se consolidaram e foram reduzidas que o homem pôde fazer outra coisa que passar sua vida a trabalhar, investir em outros campos, outras atividades. Tomemos, por exemplo, as férias, elas libe- ram mas- sempre sobre a base de um trabalh_o estável. Creio que poderíamos dizer que no discurso e na utopia sobre a ultrapassagem e a substituição do trabalho faltam realizações convincentes, práticas capazes de fundar essa nova cidadania social, falada por alguns. Parece-me que a saída da civilização do trabalho é uma hipótese razoável nenhuma formação social é eterna, mas sai~ da civili- 262 - - 1 I • zação do trabalho seria uma verdadeira r.evo- lução cultural, pois, há pelo menos dois sé- culos, toda a nossa organização social gravita f em torno do trabalho. Ora tenho constatado .1 que, até agora, fizemos pesar essa saída da civilização do trabalho sobre os mais vulne- ráveis: os desempregados, os jovens que não encontram trabalho. Se os interrogarmos dirão que o trabalho é ainda mais necessário pois está faltando e que trazem em seu desespero, em sua infelicidade, seu sofrimento, o peso da ausência do trabalho. A falta de trabalho n ão significa que o trabalho não é importan- te, mas sim que precisa ser compartilhado, para que um máximo de pessoas possam se vincular a um mínimo de trabalho, às prote- · çõ es que até agora estiveram vinculadas ao trabalho. Não vejo nada que hoje possa subs- tituí-lo. Pode ser que daqui a dez ou vinte anos inventemos alguma outra coisa que não o trabalho para construir uma identidade so- cial. Porém, é no hoje que precisamos pensar, e a situação está apodrecendo. E é por isso que d e fe ndo a posição de que não podemos abandonar a questão do trabalho e devemos continuar questionando se é possível conu:o- lar esse processo de desagregação da soci:- dade salarial. Sei que não é fácil, i:nas ~reio que não é impossível. Podemos discutir al- gumas possibilidades como por exemplo a ampliação do direito do trabalho. Será que a flexibilidade deve ser paga a qualquer custo, pela precarização ou ausência de status? Não poderiam ser acordadas às situações mais frá- geis um máximo de proteções? Parece-me que o caminho é o direito do trabalho, esse foi sempre o papel do direito do trabalho, conseguindo estabilizar um certo número de situações de trabalho. São essas algumas das eventualidades que podemos pensar e discutir. Coloco uma última questão: estas obser- vações que pude construir com base na si- tuação européia podem ou não clarear os problemas que são colocados aqui. Em que medida, por exemplo, esse modelo da soci- edade salarial e de sua desagregação permite precisar, mais por diferença do que por se- melhança, a situação do emprego e do de- --:" semprego no Brasil, o lugar do trabalho in- '--J formal em relação ao trabalho assalariado, a ) importância das regulações que afetam tam- 1- bém aqui, creio, o mundo do trabalho? 264
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