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A cavidade bucal é banhada por um fluido chamado saliva, produzido pelas glândulas salivares, cuja função principal é manter a saúde bucal. Indivíduos com deficiência de secreção salivar experimentam dificuldade para comer, falar e deglutir, tornando-se propensos a infecções de mucosa e lesões de cárie rampante. Glândulas maiores e menores As glândulas maiores são responsáveis por 90% da saliva total e englobam as glândulas parótida, submandibular e sublingual. A parótida é a maior glândula salivar, localizada na frente da orelha, abaixo do processo zigomático e atrás dos ramos da mandíbula, bilateralmente. Seu ducto, com 5 cm de comprimento, emerge na borda anterior da glândula sobre a superfície do masseter, e sua abertura se localiza na altura do segundo molar superior. Sua secreção é predominantemente do tipo seroso. A glândula submandibular tem metade do tamanho da parótida. É localizada entre o corpo da mandíbula e o músculo mieloide, no assoalho da boca. A abertura de seus ductos se localiza no assoalho bucal, abaixo da parte anterior da língua, sobre o cume da papila sublingual e lateralmente ao freio lingual. Sua secreção é serosa e mucosa. A glândula sublingual tem 1/5 do tamanho da submandibular, situando-se no assoalho de boca, abaixo da dobra da membrana mucosa sublingual. O ducto principal e numerosos ductos pequenos emergem no cume da dobra sublingual. Essa glândula é predominantemente do tipo mucoso. As glândulas menores se localizam na borda lateral da língua, na parte posterior do palato e nas mucosas labial e bucal. Secretam basicamente saliva mucosa, à exceção das glândulas serosas linguais (glândulas de Ebner), e são responsáveis por aproximadamente 10% da saliva total. Além da secreção das glândulas maiores e menores, a saliva total é composta por fluido gengival e células descamadas. Estrutura das glândulas salivares As glândulas são formadas por ácinos (80%) e um sistema de ductos ramificados (20%). Os ácinos podem conter células com características serosas, mucosas ou ambos os tipos (glândulas mistas). Nas glândulas mistas, as células mucosas são cercadas por células serosas. As células serosas são arranjadas em forma esférica; já as células mucosas tendem a apresentar configuração tubular. Em ambos os tipos de ácinos, as células se organizam de modo a formar um lúmen. As células serosas liberam principalmente íons e glicoproteínas com funções enzimáticas, antimicrobianas, quelantes de cálcio, entre outros; já as células mucosas são ricas em mucina. A mucina também é glicoproteína, mas difere da glicoproteína serosa na estrutura do centro da proteína, na natureza e extensão da glicolisação, e na função. Tem função lubrificante, antimicrobiana e participa da formação da película adquirida. A distinção entre células serosas e mucosas tem se tornado difícil, já que agora se sabe que algumas células serosas produzem certas mucinas, assim como células mucosas produzem certas proteínas não glicosiladas. Avanços no procedimento de preservação de tecido têm demonstrado, por meio de análises histológicas, que as estruturas das células serosas e mucosas são similares. Há três tipos de ductos que ligam os ácinos à cavidade bucal: intercalado, estriado e excretório. O fluido produzido pelas células dos ácinos passa pelo ducto intercalado, que apresenta um epitélio cuboidal e um pequeno espaço no lúmen. Na sequência, o fluido entra no ducto estriado, que é cercado por células colunares com muitas mitocôndrias, e importante para a determinação da composição final da saliva. Por fim, a saliva passa pelo ducto excretório, que apresenta células cuboidais, até chegar à parte terminal, que é cercada por epitélio escamoso estratificado. Os três ductos nas glândulas parótida e submandibular são grandes; já nas glândulas sublinguais e glândulas menores são pequenos, esparsamente distribuídos ou mesmo ausentes. As células mioepiteliais ao redor dos ácinos, entre células dos ácinos e a lâmina basal, auxiliam na propagação do líquido pelos ductos. Além disso, as células mioepiteliais proveem força isométrica e suportam o parênquima glandular durante a resposta secretória. Acredita-se que essas células provejam sinais necessários para a manutenção de polaridade das células e estrutura organizacional. Evidências sugerem ainda que elas produzam proteínas com atividade supressora de tumores (inibidores de proteases) e fatores antiangiogênese, instaurando uma barreira contra a invasão de neoplasias epiteliais. Característica histológica da glândula salivar: A glândula e os suprimentos sanguíneo e nervoso são sustentados por um estroma de tecido conjuntivo. Este apresenta cápsulas e septos que se estendem internamente, dividindo a glândula em lobos e lóbulos e levando vasos sanguíneos e nervos ao parênquima da glândula. O tecido conjuntivo apresenta várias células (fibroblastos, macrófagos, células dendríticas, plasmáticas, granulócitos e linfócitos). O colágeno e as fibras elásticas associadas às glicoproteínas e proteoglicanas constituem a matriz extracelular do tecido conjuntivo. Mecanismos de secreção salivar; Estimulação e controle neural da salivação O principal estímulo salivar é de ordem química (sabor), por meio de quimiorreceptores encontrados nos botões gustativos, mas também pode ser provocado mecanicamente (mastigação), por mecanorreceptores integrantes do ligamento periodontal. O impulso aferente é direcionado ao núcleo solitário da medula via nervos facial e glossofaríngeo. A informação é transmitida por nervos autônomos, que são fibras parassimpáticas do nervo facial e do glossofaríngeo, e fibras simpáticas que seguem os vasos sanguíneos. A estimulação parassimpática produz saliva mais aquosa (água e eletrólitos), com alto fluxo e baixa concentração proteica; já a estimulação simpática produz saliva com baixo fluxo, altamente viscosa e rica em mucina. As fibras eferentes, que retornam a mensagem do sistema nervoso para as glândulas submandibular e sublingual, são originadas no nervo facial/lingual; já as que retornam a mensagem para as glândulas parótidas são oriundas do nervo glossofaríngeo/auriculotemporal. Estes nervos liberam neurotransmissores nas superfícies dos ácinos, como acetilcolina, norepinefrina e peptídios (substância P, polipeptídio intestinal vasoativo). A acetilcolina, neurotransmissor parassimpático, liga-se ao receptor muscarínico da membrana dos ácinos, regulando a secreção do fluido; já a norepinefrina, neurotransmissor simpático, regula a secreção de macromoléculas pela ligação a receptores adrenérgicos. A ligação a estes receptores causa a ativação da proteína G pela substituição de GDP por GTP. A ativação da subunidade a da proteína G ativa a enzima- alvo encontrada na membrana, sendo esta a fosfolipase C, para estimulação parassimpática, e a adenilato-ciclase, para a simpática. Além da ação das inervações simpática e parassimpática sobre as células dos ácinos, esses nervos também controlam o fluxo sanguíneo, que é o maior fator na regulação da taxa de fluxo salivar. O IP3 é produto da quebra de um lipídio de membrana sob atuação da fosfolipase C (PLC, enzima-alvo da estimulação parassimpática). O IP3 se liga aos receptores do retículo endoplasmático, liberando cálcio armazenado nessa organela. Os receptores de IP3 são canais de cálcio que se abrem quando ligados ao IP3. O sinal de cálcio pode ser ainda amplificado pela liberação de cálcio através de receptores rianodine (segundo canal de cálcio). Além da mobilização do cálcio armazenado, o processo secretório pode também utilizar cálcio extracelular, que é estimulado quando há depleção dos reservatórios de cálcio intracelular. Mecanismo de secreção de eletrólitos e água: estímulo parassimpático: Mecanismo de secreção de proteínas: estímulo simpático: A adenilato ciclase (enzima-alvoda estimulação simpática) converte o ATP em cAMP (segundo mensageiro). Todas as atividades do cAMP são mediadas pela proteinoquinase A (PKA), que se torna ativada e fosforila proteínas celulares responsáveis pela síntese e secreção de saliva. É importante saber que quando a saliva passa pelo ducto estriado se torna hipotônica, uma vez que o ducto reabsorve os eletrólitos da saliva primária (sódio e cloro), assim como secreta outros íons (potássio e bicarbonato). No entanto, o ducto não é permeável à água. A saliva hipotônica (segunda modificação) é importante, porque facilita a diferenciação entre sabores (paladar). Se a saliva permanecesse isotônica seria difícil distinguir sabores cuja concentração iônica é menor que a do plasma. A gustatina, proteína salivar, auxilia esse processo, já que é necessária para o crescimento e a maturação das papilas gustativas. O processo secretório do fluido nas células dos ácinos tem maior capacidade que o processo reabsortivo eletrolítico nos ductos. Quando o fluxo salivar é lento (fluxo não estimulado, FNE), os ductos conseguem modificar a saliva substancialmente. Já quando o fluxo é rápido (fluxo estimulado, FE), o ducto tem pouca capacidade de modificar a saliva, sendo esta liberada com composição semelhante à saliva liberada no lúmen (menos hipotônica), com concentração de sódio e cloro maior do que a saliva não estimulada. Portanto, há diferenças de composição entre saliva estimulada e não estimulada. O bicarbonato (HCO3–) salivar é derivado do CO2 devido à ação da anidrase carbônica encontrada nos tecidos glandulares salivares. O processo de secreção do bicarbonato é dependente das mudanças de Na+/H+ e do gradiente de sódio. Os canais de cloro regulam a concentração de bicarbonato na saliva. O bicarbonato pode se mover livremente através do epitélio, na forma de CO2, e pode ser reabsorvido no ducto estriado, fato intimamente relacionado à reabsorção de cloro. Quando o fluxo salivar é rápido (FE), há pouca reabsorção de bicarbonato, aumentando a capacidade tampão salivar. O fluxo salivar é sempre unidirecional, devido à função da barreira (junções nas membranas apicais e basolaterais) e à polaridade das células do ducto e dos ácinos. Os principais eventos de secreção ocorrem na membrana apical em direção ao lúmen. Fatores que influenciam o fluxo e a composição salivar A composição da saliva varia conforme a glândula, sendo fortemente influenciada pelo ritmo circadiano, assim como pelo fluxo (se estimulado ou não). A taxa de FNE varia normalmente entre 0,3 e 0,6 mℓ/min, sendo oriundo em 25% da parótida, 60% da submandibular, 7 a 8% da sublingual e 7 a 8% das glândulas menores. Somente quando a taxa é menor que 0,1 mℓ/min pode-se considerar o indivíduo com hipossalivação. No entanto, indivíduos com baixo fluxo salivar só podem ser considerados xerostômicos quando apresentam sintomas associados. A viscosidade da saliva não estimulada é 2 a 3 vezes maior que a saliva estimulada. Já a saliva estimulada tem fluxo variando de 1 a 2 mℓ/min, sendo constituída em 50% pela saliva oriunda da parótida, 35% da submandibular, 7 a 8% da sublingual e 7 a 8% das glândulas menores. A saliva estimulada é produzida em aproximadamente 1 h por dia, sendo o restante saliva não estimulada, o que totaliza 0,5 a 0,6 ℓ de saliva produzida por dia. Portanto, o FNE é mais importante que o FE, porém o FE tem papel na limpeza da boca durante as refeições. Em função da localização das glândulas e do fluxo salivar, sítios da boca não são expostos à saliva de modo similar. A mensuração do fluxo salivar deve ser feita de 1 a 2 h após a refeição, em ambiente tranquilo e refrigerado, no qual o paciente coletará a saliva por tempo determinado (5 a 10 min), sob estímulo ou não da mastigação, em recipiente volumétrico ou pesado antes e após a coleta (conversão de peso em volume considerando a densidade de 1 mg/mℓ). Fluxo salivar não estimulado O grau de hidratação afeta o FNE, já que quanto menor o volume de água corporal, menor o fluxo. Quando o conteúdo corporal de água é reduzido em 8%, o fluxo salivar se reduz a zero aproximadamente. Já a hiper-hidratação pode aumentá-lo. A postura corporal, as condições de iluminação e o fumo também têm influência. Pessoas em pé têm maior FNE; pessoas deitadas apresentam menor fluxo em comparação a pessoas sentadas. Há diminuição em 30 a 40% quando o indivíduo está no escuro. Estimulações por olfato causam aumento temporário de FNE. O uso de medicamentos reduz o FNE, assim como bebidas alcoólicas. A temperatura e o fluxo salivar sofrem influência dos ritmos circadianos. A temperatura e o FNE aumentam durante a tarde, sendo que o fluxo se reduz próximo a zero durante a noite. Quando o fluxo salivar é baixo, o paciente apresenta quadro clínico de hipossalivação (hipoptialismo). Há também casos mais raros de hipersalivação (ptialismo ou sialorreia). A hipossalivação é de comum ocorrência em pacientes polimedicados, com enfermidades sistêmicas e em pacientes irradiados. Já a hipersalivação é achado frequente durante a irrupção dentária e em pacientes com problemas mentais, devido à dificuldade de deglutição. Coleta de saliva para medição do fluxo salivar sob estímulo mecânico (mastigação de parafilm): Fluxo salivar estimulado O fluxo salivar pode ser estimulado principalmente por agentes químicos (ácidos > sal ~ amargo ~ doce), mas também por agentes mecânicos (mastigação). Os picos de fluxo salivar ocorrem nos horários de refeição. Episódios de vômito aumentam o fluxo salivar momentos antes e durante o ato. Indivíduos que usam medicamentos apresentam diminuição expressiva da salivação, independentemente da idade. É comum encontrarmos hipossalivação em idosos, porém uma revisão sistemática recente aponta que esta redução do fluxo salivar com o envelhecimento independe do uso de medicamentos. Também há diferença entre gêneros com relação ao fluxo salivar; de modo geral, mulheres produzem menor volume de saliva em comparação aos homens. O estímulo também pode ser unilateral, quando a mastigação é mais intensa de um lado. É importante lembrar que se há alteração no fluxo salivar, há também modificações na composição da saliva. Composição salivar A saliva é composta por 99% de água e 1% de uma variedade de eletrólitos (sódio, potássio, cálcio, cloro, magnésio, bicarbonato e fosfato), proteínas (enzimas, imunoglobulinas, glicoproteínas, traços de albumina, polipeptídios e oligopeptídios), glicose e produtos nitrogenados, como ureia e amônia. Há também células, microrganismos, leucócitos provenientes da mucosa e fluido gengival. Vários fatores podem influenciar a composição salivar, como o tipo de glândula, a natureza de estímulo (gustativo e mastigatório) e a sua duração. O tipo de glândula tem influência na composição salivar (p. ex., a maior parte da amilase é secretada pela parótida; substâncias provenientes do sangue e mucina vêm principalmente das glândulas menores). As glândulas menores têm secreção altamente viscosa e com baixa capacidade tampão. O tipo de fluxo também determina a composição, sendo que, com o aumento do fluxo, há aumento nas concentrações de proteínas, sódio, cloro e bicarbonato, bem como diminuição de magnésio e fosfato. O pH varia entre 6,5 e 7,4, sendo mais alto em secreções estimuladas, que apresentam alta renovação metabólica do tecido granular. A saliva não estimulada contém alta concentração de mucina tipo I (com alto peso molecular, MGI), enquanto a saliva estimulada apresenta alta concentração de mucina tipo II (baixo peso molecular, MGII). A MGI é responsável pela lubrificação e aglutinação bacteriana; a MGII também facilita a remoção bacteriana da cavidade oral e participa da formação da película adquirida. A duração do estímulo também é determinante. A concentração de bicarbonato aumenta com o prolongamentona duração do estímulo; já a concentração de cloro diminui com o aumento da duração do estímulo. A natureza do estímulo tem efeito na composição salivar, principalmente quando o sal é utilizado, pois há maior liberação de proteínas em comparação aos outros estímulos por sabor. O estímulo ácido, por sua vez, leva à produção de saliva mais alcalina. De acordo com o ritmo circadiano, a concentração de sódio e cloro tem pico no início da manhã, a concentração de potássio no meio da tarde e a concentração de proteína aumenta no final da tarde. A atividade física altera a composição salivar, havendo aumento nos níveis de amilase e eletrólitos (principalmente o sódio). Algumas enfermidades, como pancreatite, diabetes, insuficiência renal, anorexia, bulimia e doença celíaca, estão associadas ao aumento do nível de amilase. Outras condições, como obesidade, paralisia cerebral, síndrome de Down, também parecem estar associadas às alterações na composição da saliva. Alterações emocionais e deficiências nutricionais estão relacionadas a alterações na composição da saliva. Saliva | Efeitos protetores A saliva tem várias funções importantes na cavidade bucal, como: efeito de lavagem; solubilização de substâncias (sabor); formação de bolo alimentar; limpeza; lubrificação de tecidos moles; mastigação, deglutição e fonação; capacidade tampão; manutenção da concentração de cálcio e fosfato; formação da película adquirida; defesa antimicrobiana; e funções digestivas. Capacidade tampão da saliva A saliva apresenta pH neutro e tem capacidade de manter o pH em contato com ácidos ou bases, devido à ação de sistemas tampões, como proteínas, fosfato e bicarbonato. As proteínas apresentam-se em baixa concentração na saliva (equivalente a 1/3 de plasma) e, por isso, têm pouco efeito tampão, sendo mais importantes na formação da película. O fosfato também é encontrado em baixa concentração na saliva e, além disso, seu valor de pKa é menor que o valor do pH da saliva, tendo também pouco efeito tampão. Sua importância está relacionada com a supersaturação da apatita e a manutenção da estrutura dentária. Já o bicarbonato é o sistema-tampão mais importante na saliva, sobretudo quando o fluxo salivar é estimulado, apresentando aumento razoável de concentração (1 mM no FNE e 60 mM no FE). Portanto, o sistema bicarbonato é o mais importante tampão da saliva estimulada. Já na saliva não estimulada, tanto o sistema bicarbonato como o fosfato agem na neutralização do pH. Além do bicarbonato, ureia (conversão em amônia) e sialina na saliva podem aumentar o pH salivar. Formação da película adquirida A saliva é responsável pela formação de uma película rica em glicoproteínas sobre a superfície dentária. Essa película é responsável pela proteção da superfície dentária contra agentes químicos e mecânicos. Sua espessura varia conforme a superfície e é proporcional ao contato com o fluido salivar. O entendimento da composição da película em diferentes sítios dentários será de grande valia na elaboração de estratégias de modificação da película visando à proteção dos dentes contra a erosão dentária e outras doenças relacionadas à colonização microbiana da película. Efeito antimicrobiano Importante papel da saliva é fazer a aglutinação microbiana e a limpeza da boca, mantendo o equilíbrio entre potencial patógeno e cavidade bucal. Pelo contato salivar, é possível transmitir bactérias, em especial aquelas encontradas em grande número, o que é relevante na fase de janela de infectividade, na qual a mãe pode transmitir microrganismos ao filho nos primeiros anos de vida. No entanto, a transmissão de microrganismos não quer dizer que há doença. A saliva tanto inibe como suporta seletivamente o crescimento de certos tipos de bactérias (provê nutrientes, como carboidratos e aminoácidos, às bactérias). Quando não há oferta de açúcar da dieta, aminoácidos na saliva selecionam bactérias não cariogênicas (menos patógenas). Adicionalmente, a maioria das proteínas tem certo efeito antimicrobiano, controlando aderência dos microrganismos ao tecido dentário, crescimento e virulência. A qualidade da película adquirida formada pelas proteínas salivares também influencia a composição do biofilme dentário, formado pela aderência de bactérias à película, constituindo massa rica em microrganismos embebidos em uma matriz extracelular. Papel das proteínas salivares Mucinas As mucinas são secretadas principalmente pelas glândulas menores e a lingual, apresentando grande heterogeneidade no padrão de glicosilação. São moléculas assimétricas e hidrofílicas (lubrificação) que representam 20 a 30% das proteínas salivares. Apreendem algumas bactérias e inibem a adesão de células bacterianas a tecidos moles por bloqueio das adesinas na superfície bacteriana, protegendo a mucosa de infecção. As mucinas também interagem com tecido duro, mediando a adesão de bactérias à superfície dos dentes. São responsáveis por lubrificação, proteção contra desidratação e manutenção da viscoelasticidade. A lubrificação tem importante papel na mastigação, fala e deglutição. Lisozimas A lisozima é secretada pelas glândulas salivares (maiores e menores), pelo fluido gengival e pelos leucócitos desde o nascimento. Apresenta atividade muramidase através da hidrólise da ligação β (1 → 4) entre ácido N-acetilmurâmico e N-acetilglucosamina na camada peptidoglicana da parede celular bacteriana. A lisozima pode ativar autolisinas bacterianas, que destroem paredes celulares. As bactérias gram-negativas são mais resistentes à ação da lisozima por apresentarem uma camada de lipopolissacarídeos. Já as bactérias gram-positivas podem ser protegidas pela produção de polissacarídeos extracelulares. Lactoferrina A lactoferrina é proteína não enzimática produzida por glândulas salivares (maiores e menores) e leucócitos. Tem alta afinidade por íons Fe+3, sendo que sua ligação aos íons ferro provoca a privação desse metal essencial em microrganismos patogênicos. O efeito antibacteriano continua até a lactoferrina se tornar saturada. A apo-lactoferrina (sem ferro) também pode ter efeito bactericida irreversível, pela ligação direta às bactérias. Peroxidase A peroxidase na saliva (sialoperoxidase) é proveniente das glândulas parótida e submandibular. Já a mieloperoxidase é proveniente dos leucócitos. Ambos os tipos de peroxidase catalisam a seguinte reação: H2O2 + SCN– → OSCN– + H2O (peróxido de hidrogênio)(íons tiocionato) (hipotiocianato) A atividade antimicrobiana se dá pela produção de hipotiocianato. Esta enzima ainda protege proteínas e células da toxicidade promovida pelo peróxido de hidrogênio. α-Amilase e lipase A amilase corresponde a 40 a 50% das proteínas produzidas pelas glândulas salivares, sendo oriunda em 80% da parótida e 20% da submandibular. É responsável pela degradação do amido, produzindo maltose, maltotriose e dextrina, e pela limpeza de restos alimentares, além de modular a ligação de bactérias à película, sendo inativada no estômago quando deglutida. Proteínas ricas em prolina e estaterina Estas proteínas se ligam ao cálcio, mantendo o estado supersaturado sem precipitação, prevenindo a formação de cálculo. A proteína rica em prolina (PRP) corresponde a 25 a 30% das proteínas salivares. A PRP também adere à película salivar, tem importante papel na lubrificação e promove a adesão seletiva de algumas bactérias. Além disso, liga-se ao tanino, polifenol oriundo de alimentos como vinho tinto, chá, morango, reduzindo sua toxicidade em animais. O tanino inibe várias enzimas digestivas (tripsina) e precipita várias proteínas. Cistatina e histatina A cistatina é fosfoproteína rica em cisteína encontrada na saliva e na película adquirida. Inibe a proteólise pela ação bacteriana e de leucócitos. Além das atividades antibacteriana e antiviral (controleda proteólise), também afeta a precipitação de fosfato de cálcio. A histatina pertence a uma família de peptídios ricos em histidina, com atividade antimicrobiana (antifúngica), Participa da formação da película, e inibe a liberação de histamina dos mastócitos, sugerindo um papel no controle da inflamação. Lipídios Os lipídios são produzidos por glândulas salivares. Em torno de 75% dos lipídios estão na forma de ácido graxo, colesterol e triacilglicerol; 20 a 30% são glicolipídios e 2 a 5%, fosfolipídios. Os lipídios ligados à mucina modificam a aderência bacteriana. Ureia A concentração de ureia na saliva varia de 2 a 4 mM, dependendo da quantidade de proteína ingerida ou degradada. Nas glândulas menores pode chegar a 5 mM. A ureia pode ser quebrada pela urease bacteriana, formando amônia e CO2, aumentando o pH do biofilme. Cálcio, fosfato e fluoreto O cálcio e o fosfato são importantes íons encontrados na saliva, e são responsáveis pela manutenção da estrutura dentária, bem como pela formação de cálculo. A saliva tem menor concentração de cálcio e maior concentração de fosfato inorgânico que o plasma. A concentração de cálcio salivar varia entre 1 e 3 mmol/ℓ, sendo fortemente influenciada pelo fluxo salivar e o ritmo circadiano. A concentração de cálcio é maior na saliva derivada das glândulas submandibular e sublingual (2 vezes maior do que a parótida). O cálcio salivar pode estar ionizado ou ligado, dependendo do pH. Quanto menor o pH, mais cálcio iônico, sendo este responsável pelo equilíbrio de des-remineralização. O cálcio não ionizado está ligado a compostos inorgânicos, como fosfato, bicarbonato (10 a 20%) e citrato (< 10%), e também a macromoléculas (10 a 30%), como por exemplo estaterina, histidina e proteínas ricas em prolina, inibindo a precipitação de fosfato de cálcio. O cálcio também atua como cofator para a amilase. A concentração de cálcio é maior no biofilme dentário do que na saliva, devido à maior concentração de sítios de ligação para cálcio e à precipitação de sais de cálcio. O fosfato inorgânico pode ser encontrado na saliva na forma de ácido fosfórico (H3PO4), íons fosfato inorgânico primário (H2PO4–), secundário (HPO4–2) e terciário (PO4–3). A concentração de fosfato inorgânico total diminui com o aumento no fluxo, com exceção do terciário. A concentração de fosfato terciário diminui com a redução do pH. A concentração de fosfato na saliva oriunda da glândula submandibular corresponde a apenas 1/3 da saliva da parótida, mas é cerca de seis vezes mais alta que nas glândulas mucosas menores. O ritmo circadiano não é importante para o fosfato. Cerca de 10 a 25% do fosfato inorgânico estão complexados ao cálcio ou aderidos a proteínas, enquanto 10% estão na forma de ácido pirofosfórico (H4P2O7), o qual inibe a precipitação e a formação de cálculo. O fosfato tem importante papel na manutenção dos dentes e como nutriente da microbiota bucal. O fluoreto é secretado pelas glândulas e pelo fluido gengival em concentração basal de 0,02 ppm. Também pode ser encontrado na saliva por causa da contaminação com aplicações tópicas (água, dentifrício), as quais são determinantes para sua concentração. O fluoreto pode ser armazenado em reservatórios, sendo o mais importante o biofilme, pela ligação a bactérias e ao cálcio. O fluoreto pode ainda ter efeito antimicrobiano, por meio da ligação com o magnésio, evitando que a enzima enolase participe da via glicolítica. Saliva | Limpeza bucal e controle de pH A saliva faz a autolimpeza bucal, reduzindo a concentração de substâncias exógenas. Segundo modelo Dawes, quando se ingere alguma substância, a saliva é estimulada até que se acumule o volume máximo para a deglutição. O restante da substância permanece na saliva residual até que se acumule novamente o volume máximo de deglutição. Dessa maneira, o processo continua até que toda a substância seja eliminada. Portanto, o fluxo salivar é importante para determinar o tempo de limpeza da substância. Fatores que afetam a limpeza bucal Há vários fatores que afetam a capacidade de a saliva realizar a limpeza bucal, como o fluxo salivar e o volume de saliva na boca antes e após a deglutição. Quando abaixo dos valores normais, o fluxo salivar, tanto estimulado quanto não estimulado, reduz a taxa de limpeza das substâncias na boca. A limpeza pela saliva varia conforme o tipo de substância (consistência) e os sítios bucais. A limpeza é mais rápida na superfície lingual do que na bucal, com exceção da vestibular dos segundos molares superiores. A limpeza bucal devido ao açúcar proveniente de uma bebida é mais rápida do que de açúcar proveniente de uma bolacha, pelo fato de a última aderir à superfície dentária, dificultando sua remoção. A limpeza de açúcar e ácidos presentes no biofilme dentário determina menor desmineralização da superfície dentária e, por isso, regiões onde a limpeza é mais rápida apresentam menor incidência de cárie dentária. Quando se ingere o açúcar, há queda do pH salivar/biofilme por alguns minutos, e após um período, o pH retorna à neutralidade. Isto ocorre pelo efeito benéfico da limpeza salivar devido ao aumento na concentração de bicarbonato na saliva estimulada. Diferentemente do açúcar, em que a limpeza salivar deve ser rápida e eficiente, quando se aplica um agente cariostático, como o fluoreto, é interessante reduzir a velocidade de limpeza salivar, para prolongar o efeito e aumentar a taxa de retenção nos sítios bucais. Controle de pH A saliva é responsável pela formação de uma película adquirida rica em glicoproteínas sobre a superfície dentária. As bactérias iniciam a colonização sobre a película adquirida com o auxílio de adesinas e de proteínas salivares. A colonização inicial ocorre nas primeiras 24 h, com microrganismos aeróbicos. Já a segunda colonização ocorre em um prazo de 1 a 14 dias, com a agregação de múltiplas bactérias. As características do biofilme dentário são determinantes para a suscetibilidade do indivíduo à formação de lesões dentárias cariosas. O fluxo salivar, o pH e a capacidade de limpeza salivar podem ser determinantes da qualidade e quantidade de biofilme dentário. Saliva | Equilíbrio mineral A cárie e a erosão dentária são relacionadas com a desmineralização provocada por ácidos de origem microbiana (presentes no biofilme) e por ácidos não bacterianos, como refrigerantes e suco gástrico (presentes na saliva), respectivamente. A saliva tem importante papel nesses dois processos, porque além de banhar a superfície dentária, também determina a composição da película e, consequentemente, do biofilme dentário, no caso da cárie dentária. Portanto, baixa capacidade tampão e diferenças no grau de saturação de íons do biofilme dentário têm sido observadas em indivíduos com alto risco de cárie dentária. Características da saliva e da película adquirida por sua vez, estão relacionadas à suscetibilidade a erosão dentária. O cálculo dentário, diferentemente da cárie e da erosão dentárias, é resultado da precipitação de minerais no biofilme dentário, causando sua calcificação. O cálculo dentário supragengival é mais comum próximo à saída de glândulas salivares (superfície vestibular do segundo molar superior e superfície lingual dos incisivos inferiores). Já o cálculo subgengival é formado pela atuação do exsudado do sulco gengival, não sofrendo influência direta da saliva. As bactérias mortas servem como nucleadoras de precipitação. Um valor de pH mais alcalino do biofilme é requisito para a formação de cálculo. A alta atividade proteolítica e, consequentemente, o alto teor de ureia facilitam a deposição de cálcio e fosfato no biofilme dentário. Xerostomia e hipossalivação Há duas condições bucais comuns principalmente em idosos (30% da população com idade acima de 65 anos), em indivíduos que utilizam medicamentos cronicamente, em pacientescom síndrome de Sjögren (100%) e irradiados (25 Gy, 100%): a hipossalivação e a xerostomia (síndrome da boca seca). Ambas são distintas, já que a hipossalivação é característica em indivíduos que apresentam FNE abaixo de 0,1 mℓ/min e FE abaixo de 0,5 a 0,7 mℓ/min, com alteração na composição salivar. A hipossalivação pode ser assintomática. Já a xerostomia, também chamada de síndrome da boca seca, é caracterizada pela presença de sintomas como boca seca, ardência e halitose, e nem sempre é causada apenas por hipossalivação, mas por haver áreas na boca com pouco contato com saliva, as quais se tornam ressecadas. É definida como impressão subjetiva de sensação de secura na boca, o que pode significar danos às funções orais e qualidade de vida. Diagnóstico O diagnóstico é feito por meio de questionários e respostas subjetivas envolvendo: relato de ardência; alteração de paladar; necessidade de beber água frequentemente; dificuldade para alimentação, deglutição e uso de próteses; sensação de queimação; halitose; intolerância a ácidos e comidas apimentadas; e estomatodinia (dor na boca). Ao exame clínico é comum a constatação de lábios ressecados; candidíases (queilite angular); aumento volumétrico da glândula; superfície da mucosa seca e friável; perda de papilas linguais; língua seca e eritematosa; mucosa dorsal irritada; aumento de incidência de lesões cariosas; e baixa retenção de dentadura. O diagnóstico pode ainda ser complementado por testes salivares, sendo diagnosticados com hipossalivação indivíduos que apresentam fluxo salivar não estimulado menor que 0,1 mℓ/min e fluxo salivar estimulado menor que 0,6 mℓ/min. Outros exames, como histopatológico, por imagem e sorologia, podem ser feitos. Implicações clínicas Em pacientes com xerostomia, há aumento na incidência de cárie dentária e gengivite. Também é comum constatar aumento em infecções fungícas (candidíase), prejuízo na retenção de próteses removíveis, alteração de paladar (disgeusia), mastigação e deglutição (disfagia), e prejuízo da qualidade de vida. Tratamento Para evitar problemas decorrentes da hipossalivação, os pacientes podem receber as seguintes orientações e tratamentos preventivos e paliativos: •Dieta com baixo nível de açúcar; aplicação tópica de fluoreto; bochechos com antimicrobianos para evitar infecções e lesões cariosas. •Mastigação de chicletes após as refeições, para aumentar o fluxo salivar. •Uso de saliva artificial e lubrificantes para melhorar a fala, deglutição e reduzir a ardência, sendo a marca mais testada a Biotène. •Restaurações com cimento de ionômero de vidro, para reduzir as recidivas de cárie. •Estimulação farmacológica (uso de cloridrato de pilocarpina ou hidrocloreto de cevimelina). •Substituição de medicamentos (quando a causa envolve seu uso e quando for possível). O uso de estimulação parassimpaticomimética (uso de cloridrato de pilocarpina) em pacientes sofrendo irradiação de cabeça e pescoço apresenta baixa evidência científica. Metade dos pacientes responde à terapia, mas o risco de efeitos colaterais é alto. Portanto, é importante controlar a dose utilizada e ficar atento às contraindicações. Conclusões A saliva apresenta um importante papel na manutenção da saúde bucal e pode ser usada para avaliar o risco de doenças bucais como a cárie dentária, por intermédio da contagem de bactérias, da mensuração da capacidade tampão (CT), do fluxo salivar (NE e E) e da concentração de cálcio, fluoreto e fosfato. No entanto, os parâmetros salivares, por sofrerem influência de vários fatores e apresentarem grandes variações, não são os melhores preditores de risco de cárie dentária. A saliva também pode ser usada em estudos de farmacocinética, monitoramento farmacológico e metabolismo. É usada também para estudos endocrinológicos e imunológicos. No entanto, há necessidade de validação da saliva para ser usada em substituição ao plasma. A grande vantagem do seu uso para diagnóstico é a fácil coleta, sendo método não invasivo. REFERÊNCIA: MAGALHÃES, Ana C.; OLIVEIRA, Rodrigo Cardoso D.; BUZALAF, Marília Afonso R. Bioquímica Básica e Bucal. São Paulo: Grupo GEN, 2017. 9788527731089. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788527731089/.Acesso em: 13 set. 2022. https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788527731089/
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