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FEBRE REUMÁTICA Dr. Victor L.S. Marques Pediatria I 2022.2 INTRODUÇÃO Definição: trata-se de uma doença do tecido conectivo secundária a uma infecção de orofaringe causada pelo Streptococcus beta-hemolítico do grupo A de Lancefield, que pode comprometer o coração, assim como o sistema nervoso central, articular, cutâneo e subcutâneo. Epidemiologia: · Prevalência de 3-5% em crianças e adolescentes · Predomínio entre 5 a 15 anos · Raro antes dos 3 anos · Isso porque não existe reação de reconhecimento da bactéria pelo local para desenvolvimento de infecção. As afecções de orofaringe começam a ocorrer a partir dos 03 anos com o amadurecimento do sistema imune. · Sem predileção por raça ou sexo · Responsável por 40% das cirurgias cardíacas no país. CRITÉRIOS DE JONES MODIFICADOS PARA O DIAGNÓSTICO DE FEBRE REUMÁTICA Atenção! · Considera-se grupo de baixo risco, crianças pertencentes a locais com incidência de FR por ano < 2/100.000 escolares entre 5 - 14 anos OU prevalência de cardite reumática crônica por ano ≤ a 1/1000 (qualquer faixa etária) → moradoras de países desenvolvidos. · Grupo de Moderado/Alto Risco: crianças pertencentes a comunidades com níveis superiores a estes → moradoras de países em desenvolvimento. Diagnóstico: · Primeiro Surto: 02 critérios maiores ou 1 critério maior + 2 menores (em ambos os casos, há necessidade da presença de evidência de infecção) · Recidiva: 02 critérios maiores ou 1 critério maior + 2 menores ou 3 menores (em ambos os casos, há necessidade da presença de evidência de infecção) CARACTERÍSTICAS DA CARDITE · Pode ser isolada ou associada a outros sinais maiores e menores · Nódulos e eritema marginado geralmente estão associados a cardite · Pode ser uma pancardite, mas o mais importante é a endocardite · As válvulas mais afetadas são a mitral e a aórtica (no ECO veremos regurgitação) · É uma cardiopatia reumática crônica que ocorre em 30% dos casos (sequela) CARACTERÍSTICAS DA ARTRITE · Início precoce e agudo · Geralmente envolve geralmente grandes articulações, mas também pode ocorrer envolvimento axial (coluna vertebral) · Dor geralmente intensa (é mais intensa que a dor da AIJ) · Edema geralmente pequeno · Caráter migratório da artrite (a dor migra de uma articulação para a outra, com melhora da anterior) · Por exemplo: o paciente vai referir que tinha envolvimento do joelho direito, que melhorou e passou para o cotovelo esquerdo… · Geralmente, envolvimento assimétrico (articulações pares são acometidas unilateralmente) · Duração de dias a 1 semana em cada articulação e surto total inferior a 1 mês. · A resposta aos AINH é excelente nos pacientes com artrite na febre reumática CARACTERÍSTICAS DA COREIA (COREIA DE SYDENHAM) · Pode ser manifestação tardia, com período de latência de 1 a 6 meses · Pode vir como única manifestação dos critérios de Jones, desde que descartados os diagnósticos diferenciais (coreia familiar benigna e coreia desencadeada por drogas). · Pode ser unilateral (hemicoreia) · É autolimitada (na maioria das vezes) · Se coreia persistente (> 6 meses) → Síndrome de Pandas · Não deixa sequelas · Pode recorrer mesmo em pacientes com profilaxia · Transtornos obsessivos compulsivos podem ser manifestação tardia da própria doença Clinicamente a coreia caracteriza-se por: · Distúrbios de comportamento (principalmente labilidade emocional) · Movimentos involuntários, arrítmicos e incoordenados (principalmente em face e nas extremidades - faz caretas); · Hipotonia (coreia mole) A coreia, assim como a própria FR, vem sendo cada vez mais difícil de ser vista em consequência do uso indiscriminado de antibióticos Movimentos Coreicos: · Caretas (eleva sobrancelha e canto de boca) · Disartria (dificuldade na fala) · Movimentos vermiformes da língua · Disfagia · Extremidades: · Sinal da colher: ao estender as mãos para frente, a criança flexiona o punho e hiperestende as metacarpofalangianas e interfalangianas (lembra uma concha) · Sinal da pronação: ao elevar os braços no alto da cabeça, involuntariamente os braços fazem pronação · Sinal da ordenha: quando pedir para o paciente apertar nossa mão, sente movimentos que se assemelham a ordenha (como se estivesse dando vários apertos). · Movimentos incontrolados dos dedos dos pés e das mãos · Movimentos mais amplos e incontrolados de membros superiores e inferiores Diagnósticos diferenciais: · Coreia benigna familiar · Coreia ligada a drogas CARACTERÍSTICAS DO ERITEMA MARGINADO · Raro, ocorre em 1 a 3% dos pacientes · Máculas róseas com bordas serpiginosas, centro hipocrômico, indolores e não pruriginosas · Localizadas em em tronco e raiz de membros, principalmente, e também em abdome, porção proximal dos membros inferiores e superiores, não ultrapassando cotovelos e joelhos e ausentes em face. · Duração de dias, podendo ser recorrentes · Forte associação com a cardite → portanto, sempre que estivermos diante de um paciente com eritema marginado, precisamos investigar se há cardite. CARACTERÍSTICAS DOS NÓDULOS SUBCUTÂNEOS · Presentes em 2-5% dos casos · Nódulos duros, indolores, número variável, distração simétrica, diferentes tamanhos, variando de 0,5 a 2 cm. · Localizados em superfícies extensoras das articulações como cotovelos, joelhos, metacarpofalangeanas, interfalangeanas, couro cabeludo, escápula e coluna. · Duração de dias a até 01 mês · Forte associação com a cardite · Portanto, sempre que estivermos diante de um paciente com nódulos subcutâneos, precisamos investigar se há cardite. EXAMES COMPLEMENTARES · Hemograma → anemia e leucocitose · Provas de fase aguda → aumento de VHS e PCR, aumento de alfa-1 glicoproteína ácida, alfa-2 e gama-globulina na eletroforese de hemoglobina · RX de tórax → importante avaliar a área cardíaca · ECG → observar intervalo PR, quando aumentado é indicativo de erro de condução · Ecocardiograma → avaliar comprometimento valvar, função miocárdica e pericardite · Exames de evidência Estreptocócica: · Cultura de orofaringe → altamente sensível nas primeiras duas semanas, depois disso já perde a sensibilidade, por isso não é melhor exame. · ASLO → anticorpo anti-estreptolisina O, é o exame de maior sensibilidade (80%), principalmente entre a terceira e a quarta semana. O ASLO é mais sensível para a FR porque esta se manifesta cerca de 3-4 semanas após a infecção de orofaringe. Ou seja, a cultura já perdeu muito da sensibilidade no momento em que a FR se manifesta. Além disso, o ASLO também serve para acompanhamento, tem que ir abaixando conforme é feita a profilaxia. RECOMENDAÇÕES PARA PROFILAXIA PRIMÁRIA A profilaxia primária é feita quando existe suspeita de FR em pacientes com infecção de orofaringe, ou seja, tratamento na fase aguda da doença. Penicilinas: · Penicilina G Benzatina: dose única, via intramuscular · P < 20 kg → 600.000 UI · P > 20 kg → 1.200.000 UI · Penicilina V: 10 dias, via oral · Criança: 25-50.000 U/kg/dia 8/8h ou 12/12h · Adulto: 500.000 U 8/8h · Amoxicilina: 10 dias, via oral · 30 – 50mg/kg/dia VO de 8/8h ou 12/12h · Adulto: 500mg de 8/8h Em caso de alergia à Penicilina: · Estearato de Eritromicina: 10 dias, via oral · 40mg/kg/dia VO de 8/8h ou 12/12h · Dose máxima: 1g/dia · Clindamicina: 10 dias, via oral · 15 - 25mg/kg/dia de 8/8h · Dose máxima: 1800mg/dia · Azitromicina: 03 dias, via oral · 20mg/kg/dia, 1x ao dia · Dose máxima: 500mg/dia TRATAMENTO DA CARDITE Prednisona: 1 a 2 mg/kg/dia (máx 60mg/dia) por 03 semanas · Depois desse período, deve ser feita uma redução gradual de 20% a cada semana. · A retirada do medicamento é feita: · Com 12 semanas de tratamento nos casos graves, associados a normalização das provas de fase aguda · Após 4 a 8 semanas de tratamento nos casos leves, associados a normalização das provas de fase aguda · Para retirada do medicamento, é necessária, além da normalização das provas de fase aguda, a normalização da regurgitação no ecocardiograma. Em caso de complicações: · Insuficiência Cardíaca: · Furosemida: 1 a 6 mg/kg/dia · Espironolactona: 1 a 3 mg/kg/dia· Captopril: 1 a 2 mg/kg/dia (insuficiência aórtica) · Enalapril: 0,5mg/kg/dia (insuficiência aórtica) · Digoxina: 7,5 a 10 mcg/kg/dia (disfunção ventricular, mas é preciso ter cuidado porque as crianças possuem maior facilidade em desenvolver intoxicação por digitálicos) · Cardite refratária ou lesão valvar grave: · Cirurgia TRATAMENTO DA ARTRITE Naproxeno: 10 a 20 mg/kg/dia → boa resposta à anti-inflamatório · Duração: 01 a 04 semanas · Geralmente é a droga de escolha Outras opções: · AAS 100 mg/kg/dia (dose anti-agregante é 3-5mg, essa dose de 100mg é anti-inflamatória) · Ibuprofeno 20 a 40 mg/kg/dia TRATAMENTO DA CORÉIA Opções: qualquer uma das seguintes, com duração de 2 a 3 meses · Haloperidol: 1 mg/dia 2x ao dia (máximo 5mg/dia) · Ácido Valpróico: 10 a 30 mg/kg/dia 3 a 4x por dia · Carbamazepina: 20mg/kg/dia Coreia Moderada/Intensa: · Prednisona 1 mg/kg/dia 3x/dia por 01 semana, seguida de 1 mg/kg/dia 1x/dia por 01 semana e, por fim, redução em 02 semanas (usa 01 mês e reduz em 4 semanas) RECOMENDAÇÕES PARA PROFILAXIA SECUNDÁRIA Objetivo: prevenir a recorrência da FR em locais onde esta é endêmica. · Risco de recorrência de febre reumática em região endêmica: 1-3% · O risco de recorrência no primeiro ano é de 50% e após 5 anos ou mais é de 10% Esquema de Profilaxia: · Penicilina G Benzatina: · Peso < 20kg: 600.000 UI IM · Peso ≥ 20kg: 1.200.000 UI IM · Intervalo: 21/21 dias · Penicilina V (via oral) · 250mg VO · Intervalo: 12/12h · Sulfadiazina → é a opção em caso de alergia a penicilina: · Peso < 30kg 500mg VO · Peso ≥ 30kg 1g VO · Intervalo: 1x ao dia · Eritromicina → é a opção em caso de alergia a penicilina e sulfa: · 250mg VO · Intervalo: 12/12h Duração da Profilaxia Secundária: !!! · FR sem cardite prévia: até 21 anos de idade ou 5 anos após o último surto (valendo o que cobrir maior período) · Por exemplo, se o paciente recebeu diagnóstico aos 18 anos, vou fazer profilaxia por 05 anos, ou seja, até os 23 anos, porque a cobertura é maior do que até os 21. · Febre reumática com cardite prévia ou insuficiência mitral leve residual da lesão valvar: até 25 anos ou 10 anos após o último surto (valendo o que cobrir maior período) · Lesão valvar residual moderada a grave: até 40 anos ou por toda a vida · Após cirurgia valvar: por toda a vida Obs: preferencia sempre para a Penicilina G Benzatina, porque as administrações são controladas pela enfermagem. Quando o paciente começa a tomar Benzetacil, ele recebe uma carteirinha onde fica registrada quando foi feita a administrada, e o paciente te mostra isso em todas as consultas, então fica monitorado se está fazendo a profilaxia adequadamente. As demais opções abrem possibilidade de vieses, não tem como controlar, e a adesão inadequada ao tratamento, facilita a existência de recorrências. CASO CLÍNICO Menina de 10 anos apresenta febre, artrite iniciada em joelho direito seguindo para tornozelo esquerdo, tornozelo direito e punho esquerdo, com 15 dias de evolução. Há dois dias surgiram lesões na pele caracterizadas por lesões eritematosas em tronco e porção proximal dos membros, não pruriginosas. Na ausculta cardíaca há taquicardia e sopro sistólico em foco mitral, grau III - IV, irradiando para a axila. HIPÓTESE DIAGNÓSTICA Febre Reumática! · Critérios maiores: artrite, eritema marginado e ausculta compatível com cardite · Critérios menores: febre EXAMES COMPLEMENTARES · ASLO · Hemograma e eletroforese de Hb · PCR e VHS · ECG e ECO · RX de tórax CONDUTA · Acometimento cardíaco moderado → profilaxia secundária com Benzetacil até os 40 anos · Prednisona 1-2 mg/kg/dia (máx 60mg/dia) por 03 semanas → trata a cardite e a artrite
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