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Cirrose A cirrose hepática é o estágio final de todas as doenças hepatocelulares. Ela ocorre após a morte celular e a deposição de tecido fibroso no parênquima hepático, com consequente perda da arquitetura lobular e vascular normal e a formação de nódulos de degeneração. Isso gera diminuição do tamanho e aumento da consistência do fígado, além das bordas se tornarem rombas e a superfície adquirir um formato irregular. Dessa forma, as funções do fígado são diminuídas, causando diversos achados clínicos, como perda de massa magra, desnutrição, ginecomastia, etc. Etiologia A cirrose pode ter diversas causas. Entre elas, a causa metabólica advém de erros congênitos ou adquiridos do metabolismo. Uma delas é a tirosemia, que é um distúrbio primário do metabolismo da tirosina e da metionina. Outra possibilidade é por conta da galactosemia, onde há um erro inato do metabolismo de hidratos de carbono, como a lactose e a galactose. Também pode ser causada pelas glicogenoses, doenças que causam acúmulo excessivo de glicogênio em vários tecidos humanos, pela doença de Wilson, a qual gera um acúmulo de cobre nos tecidos, a hemocromatose, onde há um acúmulo de ferro no organismo, deficiência de alfa- 1-antitripsina e pela esteatose hepática não alcoólica, onde ocorre um processo inflamatório no fígado advindo de causas metabólicas, como hipertensão, diabetes ou síndrome metabólica. Outra grande causa de cirrose é a viral. É considerada como a principal causa de cirrose, sendo a hepatite C a principal delas. A hepatite A não causa cirrose, mas a hepatite B pode causar também, bem como o vírus delta que coinfecta o paciente com hepatite B. A causa alcoólica também é importante. Sua ocorrência surge, em geral, após 10 anos de consumo de álcool. As mulheres são mais susceptíveis que os homens, além de haver susceptibilidade genética, porém, a quantidade de álcool ingerida apresenta o maior grau de importância para seu surgimento. Outra possibilidade é a causa biliar, como ocorre na atresia congênita das vias biliares extra-hepáticas, a qual é a principal causa de cirrose entre crianças, e as estenoses adquiridas, como a colangite, cirrose biliar primária e a estenose cicatricial das vias biliares. Por fim, cita-se a possibilidade de ser causada como resultado de toxinas e fármacos, como o metotrexato, alfametildopa, isoniazida, etc., como causa autoimune, por obstrução do fluxo venoso, como ocorre na síndrome de Budd-Chiari, na doença hepática veno-oclusiva e na pericardite constritiva, e pela criptogênica, a qual apresenta origem desconhecida, de modo que seu diagnóstico é feito na ausência de etiologia determinada. Quadro Clínico A cirrose pode se manifestar de diversas formas, como sintomas inespecíficos, como astenia, assim como de forma emergencial, como as hemorragias digestivas. Tudo depende da etiologia da doença, presença de complicações e da gravidade. As primeiras manifestações costumam ser as alterações nas provas de função hepática ou citopenias em indivíduos assintomáticos. Em seguida, há o início da perda de função hepática, onde iniciam sintomas de perda de peso, cansaço, déficit neurológico de concentração e memória, alterações do ciclo menstrual e da libido. Com a progressão da doença, inicia-se o surgimento de ginecomastia, spiders/aranhas vasculares, eritema palmar, asterix (flapping) e hálito hepático. Já as manifestações mais graves costumam se manifestar por hipertensão portal, hemorragia digestiva, retenção de líquidos, edema, ascite, insuficiência renal e encefalopatia hepática. Porém, é válido ressaltar que tais manifestações também podem abrir o quadro clínico. Classificação A classificação pode ser feita de forma morfológica ou funcional. A graduação da fibrose hepática pode ser feita pela elastografia hepática, que é o exame com maior sensibilidade e especificidade para tal fim, apesar de não ser mais acurado que a biópsia. Para sua realização, é utilizada a ultrassonografia (menos comum) ou a ressonância magnética (mais comum). Na classificação morfológica, há a cirrose micronodular, ou cirrose de Laènnec, formada pela presença de nódulos de regeneração pequenos (0,1 a 0,3 cm de diâmetro). Sua forma está presente nas manifestações iniciais da cirrose alcoólica e posteriormente evolui para a forma macronodular. Já a cirrose macronodular é aquela cujo nódulos são maiores, atingindo até 0,5 cm. Também é possível que haja um misto entre as duas, chamada de cirrose mista, a qual é a forma mais comum. Na presença de nódulos maiores que atingem até 1 cm, classifica-se como cirrose septal incompleta, a qual apresenta fibrose portal proeminente. Já para a classificação funcional são utilizadas duas classificações com base nos critérios clínicos e laboratoriais para determinar a gravidade do caso: classificação de Child-Pugh e o MELD. A classificação de Child-Pugh avalia os seguintes parâmetros, os quais devem ser somados: Conforme a pontuação somada, o paciente é classificado em A, B ou C A classificação de MELD utiliza os valores de bilirrubina sérica, creatinina e INR (mnemônico BIC). Para seu cálculo, usa-se a fórmula: Recentemente, houve uma atualização que acrescenta a dosagem de sódio na classificação de MELD, chamada de MELD-Na: Na interpretação da escala MELD em pacientes hospitalizados, a mortalidade em 3 meses é: • 40 ou mais — 100% de mortalidade. • 30 - 39 — 83% de mortalidade. • 20 - 29 — 76% de mortalidade. • 10 - 19 — 27% de mortalidade. • < 10 — 4% de mortalidade. Diagnóstico O diagnóstico deve basear-se nos 3 aspectos utilizados para classificar a doença: aspectos clínicos, etiologia da doença e pelo padrão histológico, determinado por exame anatomopatológico de fragmento de biópsia hepática. Complicações: Ascite A ascite é o acúmulo anormal de líquido seroso na cavidade peritoneal, cuja composição é semelhante à do plasma ou diluído. É a principal complicação na cirrose (30%) e representa um mau prognóstico, cuja mortalidade é de 50% em 2 anos. Sua ocorrência se dá pela má perfusão dos hepatócitos devido a hipertensão portal, levando a maior absorção de água e sódio, o que eleva ainda mais o fluxo portal, causando um ciclo sem fim que é agravado pela albuminemia plasmática, o que causa queda da pressão oncótica do plasma, levando ao extravasamento do líquido dos vasos da circulação portal, causando o edema. Clinicamente, pode-se perceber a ascite à percussão pelos sinais de macicez móvel, círculo de Skoda e o sinal de Piparote. A macicez dos flancos só é observada na presença de mais de 1500 ml de líquido ascítico (LA), enquanto a ultrassonografia já é capaz de perceber a partir de 100 ml. As medidas diárias de peso e circunferência abdominal podem ser úteis no diagnóstico e na avaliação da resposta ao tratamento. A paracentese abdominal deve ser realizada para o diagnóstico da ascite. Nela, são retirados 30 ml de LA para análise dos valores de proteína total e albumina, além da citologia para contagem diferencial e total de células, bem como pesquisa de células neoplásicas, bacteriologia com Gram, cultura com antibiograma, glicose, amilase, bilirrubinas, lipídios, adenosina deaminase e desidrogenase láctica. A ultrassonografia e a tomografia devem ser reservadas para os casos onde há dúvida do diagnóstico. A laparoscopia é feita em caso de MELD = 3,8[Log bilirrubina sérica (mg/dL)] + 11,2[Log INR] + 9,6[Log creatinina sérica (mg/dL)] + 6,6 (0 [se etiologia biliar ou alcoólica] ou 1 [se outras etiologias]. MELD-Na = MELD + 1,32 x (137 – Na) – [0,033 x MELD x (137 – Na) suspeita de neoplasia ou tuberculose, com exames de punção negativos. A classificação de exsudato e transudato pela proteína total está desatualizado, devendo-seutilizar o GASA, o qual é determinado pela seguinte equação: 𝐺𝐴𝑆𝐴 = 𝐴𝑙𝑏𝑢𝑚𝑖𝑛𝑎 𝑆é𝑟𝑖𝑐𝑎 − 𝐴𝑙𝑏𝑢𝑚𝑖𝑛𝑎 𝑑𝑜 𝐿𝐴 ∗ Valores de GASA ≥ 1,1 (transudato) têm 97% de chance de a etiologia ser a hipertensão portal. Caso as proteínas sejam < 2,5 g/dl, fala a favor de cirrose. Já caso as proteínas forem > 2,5 g/dl fala a favor de insuficiência cardíaca ou síndrome de Budd-Chiari. Já valores de GASA < 1,1 falam a favor de ausência de hipertensão portal. Caso as proteínas sejam < 2,5 g/dl, fala a favor de síndrome nefrótica. Já caso as proteínas > 2,5 g/dl fala a favor de neoplasias, tuberculose ou doenças pancreáticas. Como diagnóstico diferencial, cita-se os “5 F e o 1 T”: Feto, Flatos, Fezes, Fat, Fluidos e Tumor. Vale ressaltar que a presença de ascite contraindica a biópsia percutânea do fígado pelo risco de contaminação e sangramento. O tratamento da ascite depende da etiologia. Vale ressaltar que sua realização não aumenta a sobrevida do paciente, apenas melhora sua qualidade de vida. Um aspecto fundamental do seu tratamento é o balanço negativo de sódio, de modo que a dieta deve ser moderadamente hipossódica, enquanto a ingestão de líquidos deve ser normal, com exceção dos casos onde o nível de sódio sérico for menor que 120 mEq/L (apesar de hiponatremicos, os cirróticos possuem maior quantidade total de sódio do que uma pessoa normal). Em seguida, deve-se fazer o uso de diuréticos, com exceção de pacientes com disfunção renal. O objetivo é a perda de 0,5 a 1 L por dia, para o qual devem ser elencados os diuréticos poupadores de potássio como primeira escolha. Comumente, faz-se uso de espironolactona 100 mg pela manhã, podendo-se aumentar para até 400 mg. Caso aja necessidade de combinação de diuréticos, pode-se acrescentar um diurético de alça ao esquema, preferencialmente a furosemida na proporção de 40 mg de furosemida para 100 mg de espironolactona, com máximo de 160 mg da primeira e 400 mg da segunda. Em caso de falência do tratamento ou complicações do tratamento (ocorre em 10 a 20% dos casos), deve-se considerar tratamentos alternativos, como a paracentese de alívio. Durante a paracentese, deve-se realizar a infusão concomitante de albumina para prevenir a depleção volêmica e melhorar o fluxo renal. Na retirada de LA menor que 5 litros, a conduta pode ser dispensada, mas caso seja maior que 5 litros, deve-se repor 8 g de albumina para cada litro retirado. Outra possibilidade de tratamento é a descompressão portal com TIPS (Transjugular intrahepatic portosystemic shunt), o qual é uma alternativa para os casos refratários. Sua utilização consiste em criar comunicação artificial entre a veia hepática e a veia porta dentro do fígado. Seu uso é contraindicado nos casos de encefalopatia hepática, uma vez que o procedimento aumenta o risco para essa complicação. A realização de derivações, como a de LeVeen está em desuso pelos altos índices de complicações, como infecção e obstrução dos cateteres a longo prazo. Vale ressaltar que alguns pacientes podem desenvolver derrame pleural sem comprometimento das funções cardíacas e pulmonar, o qual ocorre possivelmente pela ocorrência de ascite volumosa. Eles desenvolvem sintomas típicos de derrame pleural, como tosse, dispneia e dor torácica. Seu manejo deve ser feito pelas medidas previamente citadas. Complicações: Peritonite Bacteriana Espontânea É a condição que consiste na infecção da LA por bactérias do próprio organismo, sem perfuração de vísceras ou contaminação direta. Trata-se de uma condição grave, com mortalidade de 60% e recidiva de 70% em 1 ano. Sua ocorrência se dá pela translocação de bactérias intestinais para o LA com baixa quantidade de proteína (e baixo poder bactericida, consequentemente). Dessa forma, os pacientes considerados como alto risco são os que possuem gradiente proteína do LA-proteína plasmática < 1 g/dl ou com níveis baixos de proteína total no LA. Clinicamente, deve-se suspeitar da PBE em todo paciente com ascite que apresente dor abdominal e febre. Dessa forma, sua pesquisa deve ser realizada em todos os pacientes com piora clínica e se caracteriza apenas pela contagem de polimorfonucleares ≥ 250 células/ml. As principais bactérias causadoras são a E. coli, pneumococo e a Klebsiella. Como diagnóstico diferencial, cita-se a peritonite secundária, a qual pode ser causada por processos intraperitoneais, como a apendicite ou diverticulite, ou por contaminação externa, como as hérnias umbilicais perfuradas. Nela, a cultura do LA é polimicrobiana, há um gradiente LA-soro > 1, desidrogenase láctica do LA maior que a do soro, glicose da LA < 50 mg/dl e, geralmente, contagem elevada de PMN no LA > 5.000/ml. Vale ressaltar que o termo “peritonite terciária” também pode ser encontrado, o qual consiste em uma peritonite resultante de bactérias resistentes aos antibióticos depois do tratamento de uma peritonite secundária, ou de outras situações, como infecções associadas a cateter peritoneal. O tratamento da peritonite bacteriana espontânea é realizado por antibioticoterapia e infusão de albumina intravenosa. Para isso, deve-se utilizar cefalosporina de 3ª geração, onde a cefotaxima na dose de 2g a cada 8 horas a primeira escolha. Já a albumina deve ser infundida na dose de 1,5 g/kg no momento do diagnóstico e 1 g/kg no terceiro dia. O controle do tratamento pode ser feito por paracentese a cada 48 horas. Após a primeira ocorrência ou nos casos de alto risco, deve-se instituir profilaxia com norfloxacino 400 mg/d por via oral ou ciprofloxacino 400 mg/d IV. Deve-se indicar profilaxia para os seguintes casos: • Passado de PBE. • Proteínas totais do LA < 1 mg/dl. • Descompensação hepática (uso por 7 dias) com HDA, encefalopatia ou síndrome hepatorrenal. Complicações: Encefalopatia Hepática Essa síndrome ocorre em pacientes com insuficiência hepática ou com shunt portossistêmico, nos quais ocorrem alterações neuropsíquicas, como déficit de memória e atenção, deterioração neuropsíquica, alteração da personalidade, etc. O adejo (asterix ou flapping) e o hálito hepático são as 2 manifestações clínicas mais específicas da síndrome. Sua fisiopatologia ainda é discutida, mas acredita- se que ocorre por acúmulo de metabólicos e toxinas bacterianas que não são depuradas por deficiência hepática e que caem na circulação sistêmica, como a amônia, falsos neurotransmissores, etc. Clinicamente, pelos critérios de West Haven, é classificada em 5 estágios (grau 0 a 4): • Assintomático. • Discretas alterações do sono e da atenção. • Sonolência, alterações da memória e asterix. • Confusão mental, delírio, incontinência, asterix e reflexos anormais. • Coma hepático. Os fatores desencadeantes mais comuns são a depleção volêmica (diuréticos e desidratação), HDA, infecções, uso de benzodiazepínicos, constipação, entre outros. O tratamento, inicialmente, consiste na retirada do fator desencadeador. A dieta deve ser hipoproteica inicialmente nos casos agudos, com sua reintrodução gradual até a normalidade. Além disso, deve-se realizar limpeza intestinal com enemas e lactulose para diminuir a flora, acidificar o meio intestinal e prevenir a constipação. O uso de antibióticos também deve ser feito de forma profilática para prevenir a peritonite bacteriana. O uso de benzodiazepínicos é proscrito nesses pacientes. Complicações: Síndrome Hepatorrenal Consiste em uma situação que ocorre insuficiência renal e alterações da circulação arterial, com vasoconstrição renal, em pacientes com cirrose avançada. Sua ocorrência denota grave disfunção orgânica, além de mau prognóstico, com mortalidade em poucas semanas para a maioria, além de poucos pacientes responderem à terapia implementada. Sua ocorrência se dá por uma alteraçãofuncional renal sem a evidência de alteração morfológica associada. Pode acontecer devido a episódios de depleção volêmica, uso de medicações que causem vasoconstrição arterial renal, entre outras, mas na maioria das vezes, não há fator etiológico conhecido. De toda forma, há uma vasodilatação esplâncnica (mesentério/sistema porta), enquanto há vasoconstrição dos principais vasos arteriais, incluindo as artérias renais, causado pela liberação e estímulo dos sistemas vasoconstritores. Na prática, é muito difícil de diferenciar a síndrome hepatorrenal de uma depleção volêmica (lesão pré- renal), mas sabe que a síndrome não apresenta resposta à suspensão de diuréticos e à reposição volêmica, processo que é utilizado como critério para diagnóstico. Ainda, pode-se classificar a doença em tipo 1, quando a lesão é rapidamente progressiva, ou tipo 2, quando o desenvolvimento é lento, demorando semanas a meses para sua deterioração completa. O tratamento mais efetivo é o transplante de fígado, o qual normaliza o quadro hemodinâmico. Até lá, a correção da hipovolemia, infusão de albumina (1,5 mg/kg até o diagnóstico) e a utilização de análogos da somatostatina e vasoconstritores esplâncnicos, como a terlipressina são as medidas mais eficazes. Tratamento da Cirrose A cirrose não possui tratamento definitivo, exceto pelo transplante hepático. Dessa forma, consiste na correção do fator etiológico ou no controle das complicações.
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