Prévia do material em texto
AULA 1 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 CONTEXTUALIZANDO Nesta aula, vamos estudar o conceito de política externa e, em primeiro lugar, o modelo de análise de política externa, que busca incluir outros atores na análise dos comportamentos externos dos Estados. Depois, entenderemos como cada uma das principais teorias de relações internacionais (RI) entende a política externa, iniciando pelas teorias clássicas, o liberalismo – que entende a política externa baseada na cooperação e nas instituições – e a teoria realista, que aponta a política externa como uma luta pelo poder. Na sequência, serão apresentados os elementos centrais das teorias neoliberal, da interdependência complexa e neorrealista das relações internacionais para entender a política externa. TEMA 1 – ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA As Relações Internacionais se tornaram disciplina autônoma no começo do século XX, separando-se da área da ciência política, de quem era dependente. Nesse sentido, é fundamental diferenciar a política internacional da política externa, contudo deve-se compreender que ambas são objetos centrais das Relações Internacionais. A política internacional se refere às ações que ocorrem na ordem global, diferente da política doméstica. É importante definir a política externa, que é uma política pública executada pelo Estado – como as demais – a qual representa os interesses do Estado na arena internacional. O objeto das Relações Internacionais é o sistema internacional, constituído por uma série de atores, entre os quais os mais importantes são os Estados, dos quais parte a ideia de política externa. Os paradigmas clássicos das Relações Internacionais as entendiam como estadocêntricas, ou seja, centradas no comportamento dos Estados para entender as RI. As teorias contemporâneas mais importantes das RI, que se consolidaram ao longo do século XX, colocam ênfase na análise sistêmica e nos impactos dos fatores externos ou sistêmicos nas relações entre os Estados e sua política externa. As teorias mais emblemáticas dessa questão são a neorrealista e a neoinstitucionalista. A crítica do Estado como unitário ocorre na década de 1970, fortalecendo- se após o fim da Guerra Fria, quando ocorre a emergência de novos atores e 3 temas na agenda das RI, o que é melhor explicitado pela teoria da interdependência complexa. Nesse âmbito, a análise de política externa (APE) surge como arena que pode ter utilidade para preencher uma das lacunas deixadas pelas teorias clássicas ao apresentar uma investigação que prioriza a política doméstica na explicação dos comportamentos dos países no nível internacional. Assim, sob esse paradigma, para entender a política externa de um país, é preciso entender as varáveis da política interna e os interesses domésticos que podem ser impactos com as ações internacionais. A análise de política externa é entendida como um subcampo das RI que apareceu após a Segunda Guerra Mundial, contestando a ideia de Estado como ator unitário. De acordo com Kuss (2018, p. 3): “Neste período, pressupostos da APE como a centralidade do indivíduo e o foco nos processos ao invés dos resultados, passaram a ocupar lugar central nas RI. A principal característica da APE é o exame de como as decisões dos Estados com relação a política externa são tomadas.” Conforme Hudson e Vore (1995, citados por Kuss, 2018, p. 3), os pressupostos desse campo de análise são: i) Foco nos indivíduos e unidades que compõem o Estado; ii) Visão do interesse nacional como interesse de vários atores; iii) Premissa de que os atores não necessariamente agem racionalmente porque a ação depende também da interpretação, de “agendas ocultas” (tais como a busca por consenso) e de motivações emocionais e ideológicas. De acordo com Hudson (2005), a APE enfatiza os processos e resultados das decisões e tem o propósito de construir uma explicação mais adequada do comportamento do Estado. Já para Pinheiro (2009), a APE é vista como uma subárea para entender os agentes formuladores da política exterior e a maneira como a dinâmica entre eles impacta o resultado final da política externa. TEMA 2 – TEORIA LIBERAL E A POLÍTICA EXTERNA A teoria liberal é uma das correntes dominantes na teoria das relações internacionais que explica vários fenômenos das RI e se tornou uma base central para a análise da política internacional e da política externa. O liberalismo nasceu na Idade Moderna, depois do fim do Iluminismo, e defendia que os indivíduos, baseados na razão, podiam conduzir suas ações sem interferência de agentes externos, a exemplo do Estado. Deste modo, na 4 economia, essa visão argumenta pela não interferência do Estado na economia, considerando uma suposta lei natural do equilíbrio entre oferta e demanda de bens, o que impediria as crises econômicas (Silva; Culpi, 2017). No âmbito da política externa, o liberalismo preconizaria a cooperação entre os atores estatais, com base nas regras determinadas e fiscalizadas por organismos internacionais, como as Nações Unidas, a OMC, entre outros. O liberalismo clássico apareceu como teoria das relações internacionais após a Primeira Guerra Mundial, quando floresceu um cenário de crença nas instituições e na racionalidade dos atores. A teoria liberal se consagrou como resultado de um discurso do presidente norte-americano Woodrow Wilson ao Congresso, inspirado nas ideias da “paz perpétua” de Kant, e se alicerçava na necessidade e na crença de que uma Segunda Guerra Mundial poderia ser evitada. Woodrow Wilson apresentou a proposta do rompimento de princípios que estabeleciam as relações entre os Estados europeus. De acordo com o ex- presidente, os princípios que deveriam prevalecer eram a autodeterminação dos povos (estabilidade do sistema) e a segurança coletiva, que previa uma reação automática e conjunta dos Estados em caso de surgimento de uma ameaça à paz internacional. Nesse sentido, os Estados deveriam agir em sua política externa baseados na multilateralidade, com respeito às instituições internacionais, e não na unilateralidade, como muitos Estados atuam. O discurso de Wilson ao congresso norte-americano forneceu as bases para o pensamento liberal, e o pensador apresentou o que considerava os 14 pontos que assegurariam a paz. O último deles preconizava a criação de uma associação geral de nações, de acordo com convenções específicas, com objetivo de oferecer garantias mútuas de independência política e de integridade territorial aos grandes e pequenos Estados. Esse argumento deu suporte à criação da Liga das Nações, fundada em 1919 pelo Tratado de Versalhes. Nessa organização, o sistema de segurança coletiva tomaria o do balanço de poder, em que os Estados se ameaçam constantemente realizando acordos para expandir suas alianças e equilibrar poder (Nogueira; Messari, 2005). Com a construção da Liga das Nações, a concepção universalista manifestada pelo ex-presidente Wilson apresentou resultados concretos. Porém, havia pontos controversos, como o de que a Carta da Liga das Nações não demonstrava a igualdade entre todos. Ademais, considera-se que a liga 5 fracassou, pois sua existência não evitou o conflito (a Segunda Guerra Mundial) e a corrida armamentista entre as potências. Argumenta-se que o que levou ao seu insucesso foi que os países só cumpriam os tratados à risca quando consideravam mais benéficos para si em sua política externa e o fato de os Estados Unidos, os idealizadores da liga, não terem aderido à Sociedade das Nações. O sistema também não foi universal: 63 países fizeram parte, e 17 deixaram a organização. A decisão de punir com o uso da força, em caso de ameaça à paz, nunca foi adotada (Nogueira; Messari, 2005). Mesmo com o fracasso da liga e seu encerramento em 1939 com a eclosão da Segunda Guerra Mundial,ela deu as bases para a ideia de organização universal voltada à paz e foi o embrião da Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945. A ONU é um ponto importante para o pensamento liberal, pois, com o insucesso da liga, o pensamento liberal demonstrou sinais de desgaste e gradativamente foi sendo substituído pelo paradigma realista, durante a Guerra Fria (Sarfati, 2005). Como conclusão, podemos observar que liberalismo defende uma política externa cooperativa, com ênfase forte na confiança nas instituições domésticas e internacionais, com predomínio do direito internacional e de certos valores morais na conduta dos Estados. Ademais, o liberalismo argumentava por uma atuação mais restrita dos Estados na economia e no âmbito internacional, para evitar um mau funcionamento do mercado, as chamadas falhas de mercado. TEMA 3 – TEORIA REALISTA E A POLÍTICA EXTERNA A teoria realista das relações internacionais ganhou força no pós-Segunda Guerra Mundial com o objetivo de analisar as guerras cada vez mais frequentes entre os Estados. Existem diferenças entre os autores da escola, porém o realismo clássico apresenta algumas concepções gerais, como a ideia de o Estado definir seus interesses em termos de poder, a do Estado como o único ator das RI e a da inexistência de preceitos morais nas relações entre Estados. Os autores realistas surgem baseados em seu posicionamento científico, com o objetivo de mostrar a política internacional como ela realmente é, e não como deveria ser, como faz a teoria liberal. Para Edward Hallett Carr (2001), que fundou a disciplina, nenhuma utopia política alcançará êxito, desde que seja resultado da realidade política. 6 Os autores clássicos, como Hobbes e Maquiavel, forneceram elementos teóricos importantes para se pensar a ideia de luta pelo poder. Ambos acreditavam que a natureza humana é egoísta e que, por isso, os Estados agem em sua política externa fundamentados em cálculos de custo-benefício. Carr apresentou importante crítica ao pensamento liberal, considerado ingênuo por ele e distante da realidade, pois, na política internacional, reinam a anarquia e o conflito, e a cooperação na Política externa é autointeressada e não baseada na racionalidade ou nos valores morais dos Estados. Carr contribuiu para a construção teórica do realismo, a partir da elaboração de seu livro Vinte anos de crise: 1919-1939. O autor apresentou uma crítica profunda ao pensamento teórico anterior, o liberal, desenvolvendo, junto com Morgenthau, uma nova forma de compreender a política internacional e as ações de política externa do Estado. Morgenthau (2003) concebeu os seis princípios que deram fundamentos ao pensamento realista, e Aron (2002) defendeu que o conflito é uma constante na política internacional, devido à anarquia, ou seja, em função da ausência de uma autoridade superior aos Estados que possa organizar o sistema internacional. Os seis princípios são: 1. a ação do Estado deve analisada pelos atos políticos e impactos no sistema; 2. o interesse deve ser compreendido em termos de poder; 3. o interesse definido em termos de poder é uma categoria universalmente válida, mas não tem significado permanente; 4. há uma tensão entre os valores morais e a necessidade de uma ação política efetiva; 5. os valores morais de um Estado não devem ser definidos como padrões morais universais; 6. existe uma diferença entre o realismo político e as demais escolas de RI. Carr (2001) indicou os erros da visão baseada na universalidade dos valores, em uma lei moral natural e na criação de uma autoridade superior aos Estados para administrar as RI. Segundo o autor, a Liga das Nações representou os equívocos do pensamento liberal, pois foi a primeira tentativa de padronizar os problemas internacionais pelo prisma da racionalidade, e ela falhou nessa tarefa (Carr, 2001). O mecanismo de segurança coletiva, no qual se sustentava a organização, fracassou, o que foi comprovado pelo número crescente de acordos bilaterais. Portanto, Carr (2001) constatou que o desenrolar dos fatos demonstrou o fim da liga como instrumento de estabilização e ordem política. Carr (2001) finalizou sua obra apontando que era preciso rejeitar a visão de embasar a moral internacional em uma harmonia de interesses, que é irreal. A adoção desse paradigma só foi possível no século XIX pela prosperidade 7 econômica. Contudo, na prática, constatava-se apenas uma harmonia de interesses na política externa entre os Estados aptos. A política externa é vista pelo realismo como um meio para assegurar a realização dos interesses dos Estados. Para tanto, o Estado deve assegurar o seu poder e, assim, garantir sua sobrevivência no cenário internacional. Essa teoria preconiza também a política internacional e a externa como belicosa e com tendência constante à guerra, ou seja, a ausência da paz e a existência de um processo de equilíbrio de poder que evita processos contínuos de guerra. Nesse sentido, os Estados agem em sua política externa com base na defesa de seus interesses nacionais e na busca pela sobrevivência, o que levaria a um conflito constante. TEMA 4 – AS TEORIAS NEOLIBERAL E DA INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA E A POLÍTICA EXTERNA A interdependência complexa é a principal teoria de cunho neoliberal nas RI. Os autores da interdependência complexa argumentam que as relações entre os Estados são marcadas pela dependência mútua assimétrica entre as partes. Assim, a política externa não se baseia apenas no interesse do Estado como ator unitário, mas leva em conta os interesses de uma série de atores domésticos. Portanto, é preciso considerar o aparecimento de novos atores com importância e impacto sobre a política externa, como as organizações não governamentais e as empresas transnacionais. Keohane e Nye (2001), principais autores dessa corrente, buscam entender o papel exercido pelas instituições internacionais como facilitadoras da cooperação entre os Estados. Segundo eles, a interdependência complexa envolve episódios com efeitos recíprocos entre Estados e demais atores não estatais, que são produtos das trocas internacionais, de pessoas, serviços, bens e capital. Keohane e Nye (2001) determinam que existe interdependência quando há custos e restrições significativos que são resultados das trocas entre países, mesmo que sejam assimétricos. Essa interdependência promove uma redução do poder do Estado, o que não significa que este vai desaparecer, mas que seu poder e sua autonomia foram limitados pelo surgimento de novos atores com impacto sobre a política externa. Keohane e Nye (2001) apresentam duas concepções de poder: 1. o poder dos meios, que é a capacidade de um ator levar os demais a realizar algo que 8 eles não fariam; e 2. o poder dos resultados, que representa o controle do ator sobre os resultados. Portanto, apesar da dificuldade de calcular e medir o poder, este é entendimento para a teoria da interpendência complexa como o controle dos meios e o potencial para influenciar os resultados. Assim, o poder dos meios e o poder dos resultados de cada Estado definiriam a política externa. Keohane e Nye (2001) formulam um modelo para a construção de um tipo ideal de política, embasado na ideia de interdependência complexa. Para os autores, o cenário que melhor explicaria a realidade internacional apresenta as seguintes características: o Estado não é o único ator das RI; não existe uma hierarquia entre os temas; e a força não é um instrumento eficaz para atingir objetivos. Esse modelo baseia-se em três condições, entendidas como os fundamentos da interdependência, que explicam a política externa. A primeira é a existência de canais múltiplos que vinculam as sociedades, que podem ser interestaduais, transgovernamentais e transnacionais; a segunda relaciona-se à agenda das relações interestaduais,formada por inúmeros temas de política externa, e não somente com a questão militar como prioridade, sem uma hierarquia entre as temáticas; e a terceira é que a força militar não é adotada pelos governos em suas políticas externas quando a interdependência predomina. Conclui-se que o paradigma da interdependência leva em conta os novos atores na elaboração e formulação da política externa e possui grande aplicabilidade para explicar como os interesses de diversos grupos influenciam no processo de tomada de decisão da política externa (Reis; Mansani, 2014). Nesse sentido, os modelos de análise de política externa são vistos como mais sofisticados que a premissa neorrealista, porque levam em conta uma multiplicidade de temas na agenda política externa que ganharam destaque, como meio ambiente, direitos humanos e migrações internacionais (Reis; Mansani, 2014). TEMA 5 – TEORIA NEORREALISTA, TEORIA NEOLIBERAL E A POLÍTICA EXTERNA Kenneth Waltz, criador do pensamento neorrealista nas RI, formulou a teoria para superar as limitações do realismo e do neoliberalismo durante a Guerra Fria. A base dessa teoria é a visão de anarquia no sistema internacional. De acordo com ele, as relações internacionais são compostas por partículas de 9 governos e mescladas por partes de comunidade que agem em um sistema anárquico (Waltz, 2002). Waltz parte da ideia de que é necessário concentrar a análise no nível do sistema, e não no do comportamento dos Estados, como fazia a teoria realista. A teoria neorrealista pode ser considerada sistêmica, pois não analisa a política externa, baseando-se no comportamento individual do Estado. Conforme Waltz (2002), não se entende a política internacional analisando os atributos do Estado (capacidades militares e econômicas); deve-se focar em como as interações entre Estados no sistema impactam as ações de cada um. Assim, não devemos analisar apenas as políticas externas de cada Estado de modo isolado, mas como o sistema internacional exerce influência sobre essas políticas externas (Pereira, 2016). Para essa teoria, a política internacional não é entendida como um somatório dos comportamentos e políticas externas dos Estados. As variáveis domésticas, de acordo com Waltz (2002), não explicam o sistema internacional, e visualizá-lo com base nesses aspectos provoca generalizações inválidas. As características de cada unidade não são relevantes para explicar as RI, porque o que leva os Estados a agirem são as posições das unidades umas em relação às outras no sistema. Nesse sentido, a estrutura só se altera quando há mudanças significativas nas posições de cada Estado, cujos comportamentos são determinados pela estrutura. Conforme Waltz (2002, p. 116), “o conceito de estrutura baseia-se no fato de as unidades justapostas e combinadas de maneira diferente produzirem diferentes resultados”. A ideia de estrutura internacional é compreendida a partir de três princípios: 1. Princípio ordenador sistêmico, que é a ideia da anarquia como algo determinante; 2. As especificações das funções das unidades; 3. A distribuição das capacidades relativas. Sobre o segundo aspecto, há uma diferença entre os Estados, pois a hierarquia gera relações de superioridade e subordinação. Desse modo, a distinção entre os Estados não se relaciona às suas funções, que são sempre as mesmas, porque a anarquia induz à coordenação entre as unidades, o que resulta em uma semelhança em termos de função. Waltz (2002) reconhece que existem outros atores além dos Estados, mas estes são os mais importantes, que compõem a estrutura. Essa estrutura é 10 determinada pelos Estados com mais influência, devido às diferentes distribuições de poder no sistema internacional. Como as funções são as mesmas, as diferenças entre eles emergem, sobretudo, das capacidades variadas, ou seja, da distribuição de capacidades relativas. Deste modo, a comparação das capacidades de um número de unidades possibilita a mensuração do poder, pois o poder representa uma comparação das capacidades das unidades, e os Estados são posicionados de modo diferente na estrutura conforme o poder que possuem (Silva; Culpi, 2017). Deste modo, a configuração do sistema internacional impacta as interações entre os Estados e seus atributos. A autonomia de cada Estado e a relação de determinação mútua entre eles criam uma estrutura na qual os resultados podem ser Estados que se limitam uns aos outros (Silva; Culpi, 2017). Pode-se afirmar que, para investigar a ideia de estrutura, Waltz criou o princípio que orienta a disposição dos atores estatais. A disposição se modifica quando ocorrem alterações nas capacidades relativas dos Estados. As capacidades relativas são, segundo Waltz, os recursos militares e econômicos que cada Estado possui (Pereira, 2016). Os neorrealistas consideram o sistema internacional anárquico como o principal fator determinante para entender as ações de política externa. Assim, se a estrutura se afeta, se surgem novos atores, por exemplo, isso modifica as posições entre os Estados, o que automaticamente impacta na política externa destes. Segundo Alexandre (2006), Waltz destaca que a interação entre os Estados é quem cria a estrutura sistêmica que os constrange a tomar algumas ações e a não tomar outras. Assim, os custos e benefícios calculados são alterados de acordo com as oportunidades e ameaças que o ambiente internacional apresenta. Desse modo, o neorrealismo visualiza o nível sistêmico de análise como o elemento mais importante para compreensão da política externa, ignorando o nível doméstico. Pode-se apontar que os neorrealistas não consideram a política externa como uma política interna. Para eles, a política externa deve ser autônoma, ou seja, não deve sofrer influência de outros atores, sejam eles empresas, ONGs, sindicatos. Nesse sentido, a política externa deveria ficar apenas a cargo do governo. O neorrealismo não aprimorou seu modelo de análise ao entender a política doméstica como algo irrelevante na pesquisa, sem considerar as disputas entre 11 grupos de interesses domésticos nas tomadas de decisões. Portanto, por não reconhecer o cenário de politização da política externa, o prisma realista recebe mais críticas, porque os atores não estatais estão cada vez participando mais das políticas públicas de modo geral (Reis; Mansani, 2014). FINALIZANDO Nesta aula, entendemos o conceito de política externa e conhecemos o modelo de análise de política externa, que inseriu a perspectiva doméstica na análise da atuação externa dos Estados. Pudemos verificar na sequência como as duas teorias centrais de relações internacionais compreendem a política externa, que são o liberalismo, que defende uma política externa calcada na cooperação e na relevância das instituições, e a teoria realista, que analisa a política externa como uma luta pela sobrevivência. Depois, foram apresentados os pressupostos centrais das teorias da interdependência complexa e da teoria neorrealista das relações internacionais para compreender a política externa. 12 REFERÊNCIAS ARON, R. Paz e guerra entre as nações. São Paulo: Funag, 2002. CARR, E. Vinte anos de crise (1919-1939). São Paulo: Funag, 2001. HUDSON, V. Foreign Policy Analysis: Actor – Specific Theory and the Ground of International Relations. Foreign Policy Analysis, v. 1, n. 1, p. 1-30, 2005. KEOHANE, R. O.; NYE, J. S. Power and Interdependence. New York: Longman, 2001. KUSS, L. Análise de política externa e análise de políticas públicas: um caminho para a aproximação entre as RI e a ciência política. Anais... 4° Seminário de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais, Foz de Iguaçu, 27 e 28 de setembro de 2018. MORGENTHAU, H. J. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Brasília:UnB, 2003 NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. PEREIRA, A. E. Teoria das relações internacionais. Curitiba: InterSaberes, 2016. PINHEIRO, L. Autores y actores de la política exterior brasileña. Foreign Affairs Latinoamérica, v. 9, n. 2, p. 14-24, 2009. REIS, R.; MANSANI, R. As teorias das relações internacionais nos estudos de política externa: um breve olhar a partir das perspectivas realista e liberal. Revista Andina de Estudios Políticos, v. IV, n. 1, p. 20-29, 2014. SARFATI, G. Teorias de relações internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005. SILVA, C. C. V.; CULPI, L. A. Teoria de relações internacionais: origens e desenvolvimento. Curitiba: Editora InterSaberes, 2017. WALTZ, K. teoria das relações internacionais. Lisboa: Gradiva, 2002. AULA 2 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Prof.ª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, estudaremos os paradigmas da política externa brasileira. Em um primeiro momento, no primeiro tema, estudaremos os paradigmas do Estado liberal-conservador, que se estabeleceu na década de 1930, no período Vargas, e do Estado desenvolvimentista, que foi adotado no Brasil entre 1930 e 1989. No segundo tema, entenderemos os mais recentes paradigmas do Estado normal, implementado a partir dos anos 1990, e do Estado logístico, que buscou ser adotado no final dos anos 1990. No terceiro tema, conheceremos as características centrais do principal ator da política externa brasileira, o Itamaraty. O quarto tema apresentará as características das relações internacionais durante o período colonial, em que éramos diretamente controlados em nossa política externa por Portugal. Finalmente, no quinto e último tema, descobriremos o impacto da Inglaterra em nossas relações exteriores durante o ciclo do ouro e após a independência do Brasil. TEMA 1 – PARADIGMAS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: ESTADO LIBERAL-CONSERVADOR E ESTADO DESENVOLVIMENTISTA Amado Cervo (2003, p. 6), importante analista da política externa, formulou um pensamento que divide as orientações da política externa brasileira (PEB) em quatro paradigmas: • liberal-conservador, que vai do século XIX a 1930; • desenvolvimentista, ocorrido entre 1930 e 1989; • normal; • logístico. Os dois últimos vêm ocorrendo desde 1990 até os anos atuais, em uma condição de coexistência. Os paradigmas refletem os interesses do período, assim como o modo de formular política externa em cada época, demonstrando as orientações e ideologias dos governos para a PEB em cada momento. O primeiro paradigma, liberal-conservador, do século XIX até 1930, era baseado em ideologia liberal originada na Europa, que guiava as ações da elite 3 política brasileira. Assim, de acordo com Cervo: “Prevalece durante a segunda metade do século XIX e durante a Primeira República na mentalidade do grupo social que detinha o poder econômico e configurava o político o paradigma liberal- conservador” (Cervo, 2003, p. 10). Em termos liberais, os tratados assinados permitiam a abertura de mercado e mantinham o Brasil em posição desigual quanto a trocas comerciais. Já o lado conservador estava associado à negociação rígida em termos de fronteiras do território nacional e de hegemonia na região em relação aos vizinhos que compartilham a Bacia do Prata. Ou seja, em termos econômicos, havia uma inclinação ao liberalismo; já em termos políticos e de defesa da soberania, estavam embasados na visão conservadora. Consequentemente, tivemos um atraso econômico do Brasil, que ficou assentado em uma monocultura latifundiária agroexportadora, o que impediu as chances de industrialização, mantendo o país às margens do desenvolvimento capitalista (Cervo, 2003, p. 7). Ocorreu uma alteração na forma como a PEB era realizada nos anos 1930 e 1940, como resultado do rompimento com a diplomacia de agroexportação, assegurando novas funções e atividades aos Estados. Esse fato foi observado em toda a América Latina. Os elementos comuns a vários países da região em sua política externa – também no Brasil – apresentaram um novo formato de inserção internacional, que incluía: • incorporar a diplomacia econômica nas negociações com outros países; • incentivar a atividades industriais para dar conta das necessidades da população; • exercer a autonomia na tomada de decisão, reduzindo a dependência externa • adotar um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social; • implementar o nacionalismo e o protecionismo econômico, resultado dos efeitos negativos da crise de 1929 (Cervo, 2003). No Estado desenvolvimentista, entre 1930 e 1989, consolidou-se a ideia de satisfazer vários interesses, criando a visão de um interesse nacional múltiplo. A função da diplomacia seria a de equalizar e atender a todos esses interesses segmentados, que às vezes eram divergentes. O desenvolvimento previsto na época incluía garantir dois elementos, industrialização e crescimento econômico, focos das políticas de Getúlio Vargas, 4 que visava substituir o modo de produção agroexportador anterior. A política externa tinha como objetivo garantir esses dois elementos por meio de três aspectos: 1. atração de capital para complementar a poupança nacional; 2. desenvolvimento de ciência e tecnologia; 3. conquista de mercados externos para vender nossos bens exportados. A política que vigorava à época era a de substituição de importações para aquecer o mercado exportador brasileiro e incentivar a industrialização nacional. As fases do Estado desenvolvimentista na PEB foram: 1. implantação de uma grande indústria de transformação, nos anos 1950 e 1960, e do empreendimento estrangeiro; 2. implantação da indústria de base, nos anos 1970, com empreendimentos pioneiros do Estado já existentes; 3. inovação tecnológica em alguns setores, que começou na década de 1970 nos setores público e privado (Cervo, 2003). Os efeitos desse paradigma sobre a nação foram a ruptura com o modelo de dependência associado, conceito criado pelo pensamento cepalino nos anos 1990. Essa estratégia desenvolvimentista foi mantida durante décadas, mas deixou de existir nos anos 1990, quando uma visão liberal retornou ao pensamento paradigmático da PEB. TEMA 2 – PARADIGMAS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: ESTADO NORMAL E ESTADO LOGÍSTICO O Estado normal foi consequência de uma onda neoliberal no mundo e na América Latina, que levou ao poder vários presidentes de ideologia neoliberal. Houve uma grande convergência regional a respeito desse paradigma, baseado na visão positiva da globalização, permitindo abertura de mercados e redução do papel do Estado na economia. A função do Estado seria garantir a estabilidade econômica, limitando-a posteriormente à estabilidade monetária, relegando ao mercado todas as outras obrigações, como a promoção do próprio desenvolvimento (Cervo, 2003). De acordo com Gavioli (2014, p. 8): “O Estado normal buscava aderir à economia internacional por meio de ações subservientes às novas diretrizes 5 mundiais e destrutivas ao patrimônio nacional”. Para o autor, o Estado normal foi uma invenção latino-americana, mais precisamente da Argentina. O modelo neoliberal se difundiu pelo mundo nos anos 1980 e se perpetuou nos anos 1990, saindo de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra, e se espalhando por toda a América Latina, e depois outras regiões do mundo, levando com ele a visão de supremacia do mercado e enfatizando as deficiências do Estado (Eichengreen, 2000). A estratégia de universalização do ideário neoliberal passou pela disseminação das ideias do Consenso de Washington, que era um conjunto de políticas que deveriam ser adotadas pelos governos dos países em desenvolvimento para que alcançassem o êxito econômico e o tão almejado desenvolvimentosocial. Essa visão neoliberal permitiu a criação do Estado normal, que passou a orientar as políticas externas dos países à época (Eichengreen, 2000). No Brasil, foi durante o governo de Fernando Henrique Cardoso que o paradigma do Estado normal foi adotado, com consequências positivas, como a abertura do mercado, que obrigou o empresariado a se adaptar ao mercado global e à modernização da indústria, e negativas, como o aumento do endividamento, da dependência externa e da desigualdade social no país (Gavioli, 2014). O Estado logístico surgiu na América Latina nos anos 1970 e ganhou força no final da década de 1990, tendo sido o Chile o maior modelo de adoção desse paradigma. Cervo (2002, p. 457) apresenta o Estado logístico como aquele “que fortalece o núcleo nacional, transferindo à sociedade responsabilidades empreendedoras e ajudando-a a operar no exterior, para equilibrar os benefícios da interdependência mediante um tipo de inserção madura no mundo globalizado”. De acordo com Cervo (2003, p. 15), o fracasso do modelo neoliberal na América Latina deu lugar ao Estado logístico. De acordo com Machado (2004), esse paradigma tem o objetivo de aproveitar as vantagens da interdependência global, preservando a autonomia e o desenvolvimento nacional, e compartilhando as funções do Estado com a sociedade em termos do desenvolvimento da nação. O Estado logístico tem outra característica marcante, que é a busca da competitividade internacional, reduzindo a dependência externa e oferendo maior protagonismo ao Estado. 6 Segundo Cervo (2000), o governo de Fernando Henrique Cardoso oscilou entre o Estado normal e o logístico, demonstrando a ascensão do primeiro e um esboço do que seria o Estado logístico. Dentro da lógica deste último, a cooperação técnica internacional ganhou espaço (Machado, 2004, p. 54). Para Machado (2004, p. 13), o modelo do Estado logístico poderia ser uma alternativa intermediária entre o “modelo neoliberal do Estado normal e o modelo intervencionista do Estado desenvolvimentista”. No âmbito da política externa, o paradigma logístico buscou reduzir as dependências tecnológica e financeira externas por meio da promoção da inovação produtiva e da redução da escassez de divisas internacionais, restringindo a vulnerabilidade externa da economia brasileira (Cervo, 2003). Em termos de impacto, o paradigma logístico criou a esperança de independência nacional baseado nas “expectativas de viabilidade de grandes empreendimentos nacionais, nas áreas de mineração e siderurgia, energia, indústria aeronáutica, tecnologia espacial e nuclear, indústria alimentícia e outras” (Cervo, 2003, p. 25), que, em muitos casos, foram frustradas e não inseriram o Brasil como Estado autônomo nas Relações Internacionais (RI). Lembrando que esses paradigmas analisaram a política externa brasileira (PEB) antes dos governos de Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. TEMA 3 – PROCESSO DECISÓRIO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA (PEB): O ITAMARATY O Itamaraty é como se denomina o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil, cujo objetivo é oferecer assessoria ao presidente na elaboração e na gestão da política exterior nacional, garantindo sua eficaz execução para assegurar os interesses nacionais e da sociedade brasileira no exterior. Segundo Seitenfus (1994, p 33): “A experiência internacional do Brasil demonstra que um órgão específico do Executivo, o Ministério das Relações Exteriores, pela liberdade com a qual pratica a nossa política externa, tornou-se, de fato seu legislador, executor e controlador”. O Itamaraty foi fundado em 1736 por meio de um alvará assinado pelo rei Dom João V, que estabeleceu a criação da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, a qual foi transferida para o Brasil em 1808. Depois da independência do país, a secretaria foi separada em Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra e Secretaria de Estado dos Negócios do Reino e Estrangeiro. 7 O nome Itamaraty foi usado porque o palácio sede do MRE era de propriedade do Barão do Itamaraty. Em 1970, o MRE foi levado para Brasília, porém o nome foi mantido. O Itamaraty atua, sobretudo, nas áreas de política internacional, relações diplomáticas e serviços consulares, dando apoio aos consulados e embaixadas do Brasil em outros países. Os funcionários, que são secretários e, posteriormente, cônsules e embaixadores, são selecionados por meio de um concurso público de ampla concorrência. Os selecionados passam por um curso de formação para carreira diplomática que dura três anos e os habilita ao cargo de diplomatas brasileiros. O Itamaraty tem como função prestar serviços consulares, dando auxílio a brasileiros no exterior, em especial quanto à presença temporária ou definitiva no exterior. Também oferece serviços de cerimonial, para eventos de promoção do país perante autoridades e representantes de outros Estados, e controla a emissão de passaportes e documentos análogos, além de organizar visitas guiadas para a população em geral ao Palácio Itamaraty. Sobre a atuação do Itamaraty, defende-se um certo isolamento, ou insulamento burocrático; porém, durante a ditadura, o MRE se adequou aos interesses e ações dos governos militares, colaborando, inclusive, na prisão de muitos asilados (Faria, 2012, p. 41). Segundo Nunes (1997, p. 34): [...] o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. Ao núcleo técnico é atribuída a realização de objetivos específicos. O insulamento burocrático significa a redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel Nesse cenário, após a Segunda Guerra Mundial, o MRE passou a ser uma agência estatal insulada, sem levar em conta desejos da população, sendo comandada por um corpo técnico altamente especializado, com muito prestígio. Mais recentemente, no governo de Lula, o Itamaraty teve um período de intensificação de disputas, o que reduziu o isolamento do órgão. Essa redução da coesão interna do Itamaraty é vista como resultado da politização da política externa e da abertura do MRE (Faria, 2012, p. 42). 8 TEMA 4 – A UNILATERALIDADE DA POLÍTICA EXTERNA DURANTE A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA Depois do “descobrimento do Brasil”, em 1500, por Cabral, o território brasileiro passou as primeiras três décadas em abandono. Depois desse período, surgiu uma necessidade de ocupar o território para defendê-lo das invasões externas de Holanda, França, Espanha e Inglaterra, mediante um sistema colonial exploratório (Furtado, 2007). Para tanto, primeiramente o rei Dom Manuel firmou contratos de arrendamento com particulares, os quais exploravam o pau-brasil e produziam algodão. Depois, o rei D. João III enviou Martim Afonso de Sousa em uma expedição desbravadora, que fundou São Vicente e Piratininga e fatiou o território colonial em 15 lotes de 300 quilômetros cada, as famosas capitanias hereditárias, que se dedicaram à produção de cana-de-açúcar, artigo mais importante à época. Esse sistema, segundo Furtado (2007, p. 86), foi desapontador, porque os ataques franceses perduravam e a mão de obra indígena não se adaptou à exploração da indústria açucareira. Observamos, então, que não existia uma política externa autônoma do Brasil, e que fomos um anexo da política externa portuguesa até a independência política em 1822. Nesse sentido, a colônia estava destinada a fornecer produtos ao comércio europeu, tendo a nossa ocupação sido um episódio secundário. Para justificar os gastos com defesa do território e subsidiá-los, foi necessário investir em uma empresa que desse rendimentos altos, que no caso foi a produção açucareira (Furtado, 2007, p. 86). Para o sucesso da indústria açucareira, Portugal usou a expertise obtidanas Ilhas africanas, que produziam café, e buscou apoio na Holanda, que entrou com recursos financeiros e possuía experiência na atividade comercial em função da Companhia das Índias Orientais, o que auxiliou na venda do açúcar na Europa. O fator mais determinante para o sucesso da empresa açucareira foi a mão de obra escrava africana, que substituiu a indígena (Furtado, 2007, p. 86). Um dos fatores que garantiu o monopólio da produção de açúcar no Brasil foi a descoberta precoce, pela Espanha, de metais preciosos em suas colônias, sobretudo no México, no Peru, na Colômbia e na Bolívia, o que gerou um grande afluxo de metais e uma aparência de riqueza. Assim, o império espanhol, 9 concentrando-se apenas nos metais, não se tornou concorrente do Brasil, pois as exportações agrícolas da colônia não se desenvolveram. (Furtado, 2007). Portugal foi anexado ao império espanhol entre 1580 e 1640. Houve uma ruptura da cooperação com a Holanda, que era inimiga da Espanha, que teve consequências, pois os holandeses adquiriram experiência e desenvolveram uma indústria concorrente no Caribe. Essa competição reduziu a posição monopolista do Brasil, que viu seus lucros decorrentes do café gradativamente desaparecerem (Furtado, 2007). TEMA 5 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DEPENDENTE DA INGLATERRA DURANTE OS PERÍODOS COLONIAL E IMPERIAL Portugal, ao recuperar a independência, encontrava-se em posição débil, sem meios de defender as colônias que lhe restavam. Portanto, passou a realizar uma política externa de subserviência e semidependência, firmando acordos com a Inglaterra (1642-1654-1661), os quais asseguravam privilégios aos produtos ingleses e concessões econômicas (Furtado, 2007, p. 93). Essa ação garantiu a sobrevivência de Portugal como potência colonial. Contudo, era possível notar a decadência da colônia e a economia luso-brasileira como uma articulação da economia inglesa em expansão. Em 1703, Portugal assinou um acordo que estabelecia a sua renúncia ao desenvolvimento manufatureiro e por meio do qual transferia para a Inglaterra a produção de ouro no Brasil. Nos anos seguintes, iniciou-se o Ciclo do Ouro no Brasil, que foi bastante curto. Nesse ciclo, Portugal tinha posição secundária de entreposto. Observou-se uma expansão demográfica no Brasil com a imigração europeia, que provocou o povoamento do território (Furtado, 2007, p. 93). No final do século XVIII, a mineração de ouro no Brasil entrou em decadência. Nesse período aconteceu também a Revolução Industrial na Inglaterra, que a colocou em uma posição dominante nas Relações Internacionais. Para a Inglaterra, surgiu então a necessidade de abertura de mercados para os seus produtos, e o país passou a combater as práticas protecionistas para obter fontes de matéria-prima para suas manufaturas, o que foi resolvido mediante conquistas coloniais. Porém, paralelamente a isso, ocorreu uma perda do interesse pelo Brasil, pois tínhamos apenas uma produção pequena de algodão para ser usado na indústria têxtil. Além disso, havia necessidade de priorizar a penetração no mercado francês. 10 Em 1808, a Corte portuguesa foi transferida para o Brasil. A Inglaterra auxiliou Portugal, garantindo proteção no deslocamento, e Portugal, como retribuição, concedeu privilégios à Inglaterra no Brasil, assegurando tarifa preferencial nas importações e a abertura dos portos às nações amigas, que, no caso, era a Inglaterra (Furtado, 2007). Em 1822, o Brasil obteve independência política de Portugal, mas a grande dependência em relação à Inglaterra perdurou, já que a separação de Portugal exigiu esforços diplomáticos, que foram pagos em forma de quitação da dívida de Portugal com a Inglaterra e de uma indenização à Portugal. O Tratado de 1827 reconheceu a situação de potência privilegiada da Inglaterra, o que gerou dificuldades econômicas para o Brasil. A partir dos anos 1930, o café passou a ser inserido nas lavouras brasileiras, no Rio de Janeiro e em São Paulo. O país se tornou, então, um grande produtor, o que ampliou suas relações com os Estados Unidos e reduziu a importância da relação com a Inglaterra, levando ao fim do acordo preferencial com a Inglaterra em 1842 (Furtado, 2007). Com esse rompimento foi liquidado o passivo político do Brasil, que se tornou finalmente independente. Porém, a estrutura econômica permaneceu a mesma dos três séculos anteriores, pois ainda não havia uma indústria nacional. A expansão cafeeira da segunda metade do século XIX modificou as estruturas econômicas. As tensões internas da economia cafeeira, que começou a entrar em declínio após a crise de 1929, geraram um sistema econômico mais autônomo, capaz de gerar seu próprio desenvolvimento (Furtado, 2007). FINALIZANDO Nesta aula, conhecemos os paradigmas da política externa apresentados por Amado Cervo e que demonstram a evolução da orientação da política externa brasileira ao longo do último século. Primeiramente, estudamos o paradigma liberal-conservador, que preconizava uma liberdade na economia e uma posição mais forte dos Estados nos assuntos políticos. O segundo paradigma investigado foi o do Estado desenvolvimentista, que previa uma postura mais nacionalista e protecionista na política externa e de forte atuação do Estado na economia. O terceiro paradigma, o do Estado normal, surgiu nos anos 1990 com a emergência do neoliberalismo, promovendo uma liberalização no comércio e uma abertura às multinacionais e ao capital estrangeiro. O paradigma logístico emanou 11 no Brasil no final dos anos 1990, e buscava uma aliança entre o Estado e o empresariado, mas não obteve muito sucesso. No Tema 4, verificamos a unilateralidade de Portugal na política externa e na política externa brasileira (PEB) como um anexo da política externa portuguesa durante o período colonial. No Tema 5, avaliamos a dependência de nossa política externa em relação à Inglaterra, que se iniciou durante o ciclo do ouro e persistiu mesmo com nossa independência, encerrando-se apenas no final do século XIX. 12 REFERÊNCIAS CERVO, A. L. Política exterior e relações internacionais do Brasil: enfoque paradigmático. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 46, n. 2, p.5-25, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v46n2/v46n2a01.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2020. _____. Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 43, n. 2, p. 5-27, 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v43n2/v43n2a01.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2020. CERVO, A. L.; BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 2. ed. Brasília, DF: Editora UnB, 2002. EICHENGREEN, B. A globalização do capital: uma história do sistema monetário internacional. São Paulo: Editora 34, 2000. FARIA, C. A. P. O Itamaraty e a política externa brasileira: do insulamento à busca de coordenação dos atores governamentais e de cooperação com os agentes societários. Contexto Internacional, v. 34, n. 1, p. 311-355, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cint/v34n1/v34n1a09.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2020. FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GAVIOLI, A. As relações internacionais do Brasil: a dança dos paradigmas, o Estado normal e a política externa na década de 1990. Revista Novas Fronteiras, v. 1, n. 1, mar. 2014. Disponível em: <http://novasfronteiras.espm.br/index.php/RNF/article/view/18/20>. Acesso em: 17 abr. 2020. MACHADO, F. Configuração do Estado logístico na gestão de Fernando Henrique Cardoso de 1995 a 2002: o caso da cooperação técnica internacional recebida. Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 2, n. 2, p. 47-73, jul./dez. 2004. Disponível em: <https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/d ownload/294/261>.Acesso em: 17 abr. 2020. NUNES, E. A gramática política do Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 13 SEITENFUS, R. Haiti: a soberania dos ditadores. Porto Alegre: Solivros, 1994. AULA 3 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 INTRODUÇÃO Nesta aula, vamos estudar os processos relacionados à política externa desde os primórdios do século XX até a instauração do regime militar, em 1964. Primeiro, vamos conhecer as ações do Barão do Rio Branco durante a República Velha. Na segunda parte, discutiremos as políticas do período conhecido como Estado Novo, liderado por Getúlio Vargas, até a Segunda Guerra Mundial, em 1945. O terceiro tópico trata da política externa entre 1945 a 1961, na chamada Nova República, que ficou conhecida pelo lançamento da Operação Pan- Americana. O quarto tópico aborda a conhecida política externa independente, adotada entre 1961 e 1964, antes do golpe militar. Na quinta parte da aula, vamos analisar as evidências do envolvimento dos EUA na instauração da ditadura militar no Brasil em 1964 e os principais traços da política externa no período militar. TEMA 1 – A UNILATERALIDADE SOB A HEGEMONIA NORTE-AMERICANA DURANTE A GESTÃO DE RIO BRANCO E A QUESTÃO PLATINA NA REPÚBLICA VELHA Podemos afirmar que a atuação do Barão do Rio Branco e a transferência do centro diplomático brasileiro de Londres para Washington caracterizaram a PEB durante a República Velha (1889-1930). As atividades externas do Brasil foram orientadas para uma maior inserção do país na política e na economia mundiais, direcionadas essencialmente para garantir os interesses dos cafeicultores e do setor agroexportador. É importante destacar que a participação brasileira na Primeira Guerra Mundial reforçou a nossa posição assumida pela PEB de alinhamento automático com os EUA, por participar ao lado dos aliados contra os alemães. No final da guerra, o Brasil passou a atuar com maior prestígio na Liga das Nações, afirmando seu reconhecimento internacional, mas depois se retirou por ter usado o veto para a entrada da Alemanha na Liga. O maior ícone da política externa brasileira durante a República foi o Barão do Rio Branco, que se tornou um influente diplomata brasileiro e ocupou a posição de Ministro das Relações Exteriores do Brasil em 1902, cargo em que permaneceu por dez anos, até 1912. Rio Branco, como ministro, representou um divisor de águas na política externa brasileira, pois garantiu a modernização dos 3 procedimentos da Secretaria de Estado (Lessa, 2012). Ele detinha amplo conhecimento a respeito dos países platinos, por ter estado em missões diplomáticas na região da Bacia do Prata. Nas relações com os EUA, que são a base da política externa durante a República, Rio Branco determinou que seriam o eixo central da inserção externa do Brasil. Contudo, a estratégia de Rio Branco não possuía um elemento modernizador porque mantinha a aliança do agronegócio exportador com os países importadores dos nossos bens, sem fortalecer a indústria nacional. O alinhamento com os EUA foi o ponto mais forte da nossa política exterior, porém não houve inspiração no modelo industrializador do país (Lessa, 2012). Sob o comando de Rio Branco, o Brasil se inseriu definitivamente no sistema hegemônico recém-consolidado, com os EUA como líder, o que se manteve até os anos 1960, quando se desenvolveu uma nova versão universalista das relações exteriores do Brasil. Durante a gestão de Rio Branco, houve um alinhamento automático, que depois se converteu em um alinhamento pragmático (Lessa, 2012). Um dos objetivos na política externa de Rio Branco era fixar os limites territoriais brasileiros. As vitórias conquistadas nas controvérsias na região das Missões em 1895 e no Amapá em 1900, levadas à arbitragem, deram início a negociações diplomáticas que se concluíram com o Tratado do Uruguai, em 1909 (Burns, 1964). Sobre a questão platina, de acordo com Doratioto (2000, p. 131), O Barão do Rio Branco estabeleceu política coerente, segura e inovadora em relação aos países sul-americanos, particularmente no Rio da Prata. Os dois princípios básicos dessa política passaram a ser o de abstenção nos assuntos internos das nações vizinhas e o de favorecer a estabilidade política regional, prestigiando os Governos constitucionais, quaisquer que fossem eles. Rio Branco adotou uma postura defensiva e pacifista, que esteve associada também à debilidade militar brasileira. Antes de mais nada, o chanceler defendia uma política baseada nas negociações diplomáticas e nos alinhamentos subservientes, não em disputas. Assim, o Brasil criou uma espécie de hegemonia defensiva, assumindo postura hegemônica na América do Sul, mas se adequando aos interesses hegemônicos globais dos EUA. Como o Brasil era mais fraco em termos miliares que a Argentina, a única forma de exercer a hegemonia seria por meio de acordo com o país vizinho. As relações amistosas com Chile e Uruguai e submissas por parte do Paraguai 4 facilitaram o estabelecimento da liderança na região. Nesse sentido, conforme Doratioto (2000, p. 145), “as relações privilegiadas entre o Brasil e os Estados Unidos constituíam outro instrumento em favor da liderança brasileira”. Assim, a cooperação e a amizade com os EUA nesse período foram decisivas para o prestígio adquirido pelo Brasil na região. TEMA 2 – POLÍTICA EXTERNA NO PERÍODO DO ESTADO NOVO DE GETÚLIO VARGAS E A 2ª GUERRA MUNDIAL Getúlio Vargas implementou um plano de industrialização, conhecido como o nacional-desenvolvimentismo, que gerou efeitos significativos para a PEB, a partir dos anos 1930. Nesse sentido, a atuação internacional do Brasil mirou esses objetivos, de garantir a modernização e a industrialização nacional, com maior autonomia, dando prioridade para relações externas com países que contribuíssem na industrialização e no desenvolvimento do país (Moura, 1980). Um dos países que tiveram esse papel foi a Alemanha, de quem importávamos bens manufaturados e material bélico e para quem exportávamos bens agrícolas, como algodão e café. Esse estreitamento de vínculos entre Alemanha e Brasil gerou preocupação nos EUA antes do estopim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Getúlio Vargas passou a negociar com os dois lados, fazendo acordos com a Alemanha nazista e com os EUA, adotando uma PEB pendular, que foi denominada equidistância pragmática, termo usado pelo historiador Gerson Moura (1980). Nesse sentido, o Brasil manteve-se neutro no início da Segunda Guerra, com vistas a não perder laços comerciais nem com a Alemanha, nem com os EUA. No ano de 1942, o Brasil abandonou a neutralidade e passou a apoiar os aliados (Estados Unidos, Inglaterra, China e União Soviética) no conflito, afastando-se da aliança com a Alemanha devido a uma série de razões, entre elas o ataque de navios brasileiros por parte de submarinos alemães. Assim, o Brasil deixou de lado a equidistância pragmática e passou a implementar um alinhamento automático com os EUA. O Brasil começou a atuar diretamente no conflito, enviando material estratégico e militares para combate contra as forças do Eixo em território italiano. Os EUA passaram a enviar recursos financeiros para o Brasil como retribuição ao apoio, sobretudo para assegurar a modernização das Forças Armadas Brasileiras e para criar a primeira usina siderúrgica nacional (Moura, 1980). 5 Nesse sentido, o envolvimento direto do Brasil na Segunda Guerra também demonstrou o esforço de Vargas em ampliar o espaço de atuação internacional brasileiro. Como resultado, o Brasil conquistou um assento rotativo temporário no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945 pela Conferência de São Francisco. Vale destacar que a política externa doperíodo teve impactos diretos na política doméstica, demonstrando uma contradição entre o caráter autoritário e ditatorial do Estado Novo de Getúlio Vargas e o apoio às forças aliadas na Segunda Guerra, que tinham como slogan de luta a liberdade e a democracia. Amado Cervo (2002) e Gerson Moura (1980) colocam os traços da política externa do período do Estado Novo como os seguintes: o pragmatismo, a ambiguidade e a política de barganha. Nesse sentido, Vargas demonstrou ter sido um articulador ávido ao tentar estabelecer laços com os dois poderes do momento, Eixo e Aliados, durante a Segunda Guerra Mundial, com foco na inserção internacional do Brasil, que garantiria um maior desenvolvimento nacional. Assim, os objetivos de Vargas de dar início à industrialização nacional com a instalação da usina siderúrgica de Volta Redonda, com a modernização das Forças Armadas por meio da política de barganha com EUA e Alemanha e o posterior treinamento da FAB pelas forças armadas estadunidenses foram atingidos. Além disso, ao apoiar militarmente os Aliados, assegurou um prestígio internacional, assim como a participação no Conselho de Segurança (Souza, 2010). Desta forma, a PEB durante o Estado Novo, de busca da autonomia com dependência, foi coerente com as necessidades nacionais do governo de assegurar apoio financeiro e militar, projetando-se internacionalmente com ações nacionalistas e pragmáticas (Souza, 2010). TEMA 3 – POLÍTICA EXTERNA NA NOVA REPÚBLICA (1945 A 1961): ALINHAMENTO VERSUS AUTONOMIA – OPERAÇÃO PAN-AMERICANA A PEB da Nova República instaurada após o fim do Estado Novo (1945- 1961) alternou momentos de alinhamento e distanciamento em relação aos Estados Unidos. Logo depois da Segunda Guerra, ocorreu um momento de alinhamento automático com os EUA, iniciado durante o governo Vargas. A 6 Europa estava arrasada pela guerra, e o foco da política externa dos EUA era a reconstrução da Europa. Assim, os EUA buscavam exercer influência sobre o Velho Continente para barrar o avanço comunista da URSS durante a Guerra Fria, relegando a América Latina a uma posição secundária nas preocupações de política externa. A postura da PEB nesse período pós-Segunda Guerra refletia os interesses das elites nacionais e era pautada no anticomunismo. Defendia-se uma orientação de aliança estratégica com os EUA, buscando vantagens econômicas, sobretudo comerciais. Pouca atenção foi dada por parte dos EUA nesse período ao Brasil, e, por isso, alguns governos da época afirmavam a necessidade de expandir as parcerias e ganhar maior autonomia no cenário internacional, sem romper a parceria preferencial com os EUA. Após a derrubada do governo Vargas, ocorreu uma reação conservadora, a qual demonstrou que a visão nacionalista do governo anterior era complexa dada a condição hegemônica dos EUA. Houve uma tentativa inicial de reduzir a subordinação aos EUA, que foi o esboço do que ocorreria entre 1961 e 1964, com a política externa independente (Vizentini, 1999). Porém, essa linha de constituição de uma autonomia em relação aos EUA foi interrompida entre 1954 e 1958, com a retomada de um alinhamento quase automático com a grande potência. Durante o governo de Café Filho, em 1954, ocorreu ampla abertura da economia e completo alinhamento com os EUA, o que foi mantido durante o governo Dutra, baseado no fortalecimento do liberalismo econômico (Vizentini, 1999). De acordo com Vizentini (1999, p. 144): “Tratava-se da afirmação da diplomacia da Escola Superior de Guerra e sua concepção de segurança e desenvolvimento. Com a ascensão de Kubitschek ao poder, em 1956, a situação altera-se em certo sentido”. Deste modo, o Brasil manteve a ideia de alinhamento aos EUA, com abertura de mercado, mas, por outro lado, JK resgatou a ideia de industrialização baseada nos bens de consumo duráveis, promovendo elevação da renda da classe média. O governo de JK nos primeiros anos adotou uma política econômica nacional-desenvolvimentista, com base na influência dos pensamentos da CEPAL (Galerani, 2010). Nesse sentido, a política externa do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) passou por duas fases: a primeira, entre 1956 a 1958, em que ocorre o alinhamento automático aos EUA; e entre 1958 e 1961, com a 7 criação da Operação Pan-Americana, a partir da qual o alinhamento passa a ser revisto (Galerani, 2010). A política externa de JK retomou o projeto de industrialização harmonizando os interesses dos EUA na primeira etapa e um projeto nacional de industrialização adaptado na segunda, o que foi possível em função do retorno da Europa à geopolítica global, garantindo alternativas ao Brasil após o fim do Plano Marshall. Contudo, após 1958, JK resgata a visão de barganha nacionalista de Vargas após a derrocada de seu projeto de desenvolvimento de 50 anos em 5, por meio do lançamento da OPA (Galerani, 2010). Um dos acontecimentos que levou à criação da OPA foi a visita de vice- presidente Nixon, que demonstrou como as relações entre os EUA e a América Latina estavam deterioradas. Assim, o lançamento da OPA teve como objetivo atrair a atenção dos EUA para a região, com vistas a ter maior acesso a crédito. Além de garantir a atração de mais investimentos para a região, a OPA buscava “promover a assistência técnica para melhorar a produtividade e garantir os investimentos realizados, proteger os preços dos produtos primários exportados pela América Latina, bem como ampliar os recursos e liberalizar os estatutos das organizações financeiras internacionais” (Vizentini, 1999, p. 145). A OPA dava prioridade ao uso de recursos públicos e à multilateralidade das relações entre as nações do continente americano. Em relação à esfera socialista de influência, na figura da URSS e de seus aliados, a atuação de JK foi tímida: ele buscou internacionalizar a economia brasileira, porém ocorria um processo de intensificação dos conflitos sociais. A questão do avanço do pensamento socialista no Brasil só vai ser tratada depois, pelos sucessores de JK. Pode-se afirmar que, por mais que não tenha tido resultados concretos, a OPA determinou uma etapa importante na PEB, pois, pela primeira vez, as relações entre o Brasil e os EUA passaram a ser discutidas no âmbito do multilateralismo, com apoio mútuo entre os países da América Latina, tendo como denominador comum a ideia de desenvolvimento regional. Ademais, ela evidenciou uma intenção de construção de uma política externa com maior autonomia em relação a Washington. Esses processos foram ampliados e aprofundados na diplomacia brasileira dos governos seguintes ao de JK (Silva, 2012). 8 TEMA 4 – A MULTILATERALIDADE DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE (1961 A 1964) DE QUADROS E GOULART Entre 1961 e 1964, o Brasil foi governado Quadros e João Goulart, durante um período político bastante conturbado, que culminou no golpe militar em 1964. Foi desenvolvida de forma rápida a chamada política externa independente (PEI), que orientou a PEB brasileira no período e sofreu um enfraquecimento após a instauração do regime militar. Podem ser observados elementos comuns nos governos de Quadros e Goulart, que justificam a ideia de continuidade na PEB. O primeiro elemento comum foi “[...] a existência de um eixo central na inserção internacional do Brasil, a partir da Política Externa Independente, proposta que projetava para o país relações internacionais sem constrangimentos ideológicos em um momento de Guerra Fria” (Manzur, 2014, p. 169). Desta forma, previa-se a ideia de não alinhamento direto ou automático com nenhum dos blocos concorrentes, o capitalista e o comunista, o que se mostrou de difícil alcance. Isso é explicado pois, em um mundo divido em blocos, a adoção de uma política independente parecia irrealizável. O segundo aspecto que aproximou as gestões dos dois presidentes ecaracterizou a PEI foi a participação direta da opinião pública nos assuntos da agenda da política exterior, resultado da evolução de uma política populista inaugurada por Vargas, que perdurou nos governos JK e Jânio Quadros, e também do fortalecimento dos meios de comunicação (Manzur, 2014). É importante destacar que, após o governo de Dutra, Getúlio Vargas retornou ao poder fortalecendo a política populista. Nesse momento, emerge um embate interno entre a opinião pública que não foi bem administrado por Vargas e foi um dos determinantes do enfraquecimento de seu poder, o que o levou ao suicídio. Ambos os lados ficaram insatisfeitos com a política pendular do presidente. Após a morte de Vargas, houve uma reorganização das opiniões sobre os EUA e um fortalecimento de uma visão antiEUA, o que fez JK realizar uma política de reaproximação com os EUA por meio da OPA. A PEI preservou os traços da política externa populista e do projeto nacional-desenvolvimentista de Vargas. Durante toda a implementação da PEI, observou-se a preservação dos princípios do universalismo, do independentismo e do desenvolvimentismo (Manzur, 2014). 9 Quando a PEI foi apresentada por Quadros no Congresso, em 1961, este demonstrou que a PEB era essencial para assegurar o desenvolvimento da nação. Essa proposta considerava que o Brasil podia obter vantagens das relações com Estados com ideologias das mais diversas, propondo um multilateralismo. O objetivo maior da PEI era “favorecer a independência política do Brasil e o desenvolvimento nacional” (Manzur, 2014, p. 183). Vendia-se uma ideia da desideologização da PEB, porém a PEI era bastante ideológica e propunha a ideia de universalismo nas relações comerciais e independência. A PEI era considerada arrojada e inovadora por propor algo novo para a PEB. A PEI no governo Jânio Quadros baseava-se nos seguintes pontos, que foram praticamente mantidos por Jango: i. defendia o respeito aos compromissos internacional do Brasil; ii. observava a ampliação de vínculos internacionais como um traço fundamental para o desenvolvimento econômico; iii. preservava uma posição conciliadora para dirimir os conflitos internacionais; iv. incentivava o crescimento do comércio exterior; v. preconizava o anticolonialismo, o anti- imperialismo e o vínculo com os vizinhos. João Goulart, que assumiu após a renúncia de Jânio Quadros, era tido como um simpatizante do socialismo por visitar alguns países comunistas e defender o não isolamento de Cuba após a Crise dos Mísseis, que foi um dos eventos mais importantes da Guerra Fria. Durante 13 dias, houve uma disputa diplomática entre EUA e URSS, pois esta instalou mísseis em Cuba e ameaçava utilizá-los contra os EUA (Manzur, 2014). Ao final do governo de Goulart, houve uma polarização da opinião pública, que se dividiu em, de um lado, apoiar o regime socialista e, de outro, anunciar o “perigo comunista”, o que contribuiu para a instauração da ditadura militar. A PEI entrou em declínio, pois as elites da época defendiam a aliança ao bloco capitalista, o que foi realizado, inclusive, com o apoio direto dos EUA no golpe militar de 1964, que provocou a deposição de João Goulart (Manzur, 2014). TEMA 5 – A INFLUÊNCIA NORTE-AMERICANA NO GOLPE DE 1964 E A PEB DURANTE A DITADURA MILITAR O golpe militar ocorreu no Brasil por uma série de fatores. Um deles foi a paralisia decisória no Congresso Nacional, no qual o presidente João Goulart na época não detinha maioria. A polarização observada dentro do Congresso, que era resultante do cenário da Guerra Fria, opunha simpatizantes do bloco 10 capitalista e do bloco socialista e promoveu uma crise política sem precedentes, abrindo espaço para a atuação dos miliares. Pode-se afirmar que foram: [...] os grupos conservadores, históricos opositores do trabalhismo e de João Goulart, os responsáveis pela interrupção da experiência democrática brasileira em 1964. Foram eles também que, à frente do governo federal, reproduziram por vinte anos uma prática discricionária, autoritária, arbitrária e excludente. (Delgado, 2009, p. 143) Esses grupos conservadores tiveram claro apoio internacional, na figura dos EUA e na parceria de partidos políticos e de parcelas da sociedade civil que eram contrárias ao presidente Jango. As Forças Armadas dos EUA miraram em uma estratégia de combater o inimigo interno, o que foi transferido para as Forças Armadas dos países da América Latina e colaborou para a instauração de regimes militares em massa na região (Rapoport; Laufer, 2000). Os EUA passaram a ver as ações de João Goulart com desconfiança, promovendo uma campanha intensa de difamação do presidente. No final de 1963, de acordo com Rapopor e Laufer (2000, p. 77): […] o Departamento de Estado dos EUA sistematizou sua ingerência na situação interna brasileira para provocar a derrubada de Goulart. Segundo o embaixador Gordon, a preocupação norte-americana era que o "autoritarismo esquerdista" de Goulart pudesse provocar "um golpe mais radical e provavelmente dirigido pelos comunistas contra Goulart”. Além disso, uma das evidências da interferência dos EUA nos assuntos internos brasileiros foi a adoção dos programas de assistência militar como mecanismos de penetração política e ideológica nas Forças Armadas brasileiras (Rapopor; Laufer, 2000). Outro indício é que o governo norte-americano acompanhou o golpe militar com a criação da denominada Operação brother Sam, que englobou a mobilização de uma força naval da sede do Comando Sul Norte-Americano no Panamá para um apoio. A operação foi suspensa, mas demonstrou a intenção clara dos EUA em colaborar com os golpes. O embaixador dos EUA no Brasil à época, Gordon, saudou a queda de Goulart em 1º de abril afirmando que, a partir desse momento, o Brasil poderia executar os ideais da Aliança para o Progresso. Ficou evidente a partir desses fatos que a diplomacia e a inteligência norte- americanas tiveram papel importante nos processos que culminaram no golpe de Estado de 1964 (Rapopor; Laufer, 2000). 11 A ditadura resultante do golpe militar de 31 de março de 1964 deixou marcas na nossa política doméstica e impactou sobremaneira a formulação de política externa (Luiz, 2011). Em relação à política interna, podemos indicar importantes mudanças, como o rompimento com a democracia, a partir da deposição de um presidente eleito, a suspensão de garantias fundamentais, a cassação de mandatos políticos, a censura à cultura e à arte brasileiras, a supressão da liberdade de opinião e de expressão e a tomada do poder pelas forças armadas (Luiz, 2011). No que tange à política externa, durante o governo militar ocorreram modificações intensas de condução, com a eliminação da visão universalista e multilateral da PEI, baseada na autonomia, para uma retomada da subserviência e do alinhamento automático aos EUA, que Cervo definiu como um retrocesso, ou “um passo fora da cadência" (Cervo, 2002, p. 332). Nesse período, houve um predomínio da visão ideológica anticomunista na elaboração da PEB (Luiz, 2011). FINALIZANDO Nesta aula, conhecemos os traços centrais da política externa brasileira entre 1900 e 1964 com o golpe militar. Em primeiro lugar, verificamos a importância da conduta diplomática do Barão do Rio Branco durante a República Velha para a inserção do Brasil no cenário global e para a demarcação das fronteiras. Depois, verificamos as orientações de Getúlio Vargas na PEB, o qual buscou lançar um projeto nacional-desenvolvimentista que foi interrompido com o alinhamento automático aos EUA após a Segunda Guerra Mundial, em 1945. A terceira parte apresentou as características da política externa brasileira entre 1945 e 1961, sobretudo a adoção da Operação Pan-Americana por JK, com o objetivo de estreitar laços com os EUA. O quarto tópico discutiu a política externa independente,adotada de 1961 a 1964, que buscou dar uma nova cara à PEB, com trações de universalismo e busca pela autonomia, substituída por uma subserviência aos EUA com o golpe militar. Na última parte, verificamos os indícios de ingerência dos EUA no golpe militar, a partir da construção de uma visão desprestigiosa do presidente Goulart e de apoio direto às Forças Armadas brasileiras. Vimos, também, os principais traços da política externa no período militar, sendo que o mais marcante foi o resgate do alinhamento automático aos EUA. REFERÊNCIAS BURNS, 1964. Rio Branco e a sua política externa. Revista de História da USP, v. 28, n. 58, 1964. CERVO, A. L.; BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 2. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2002. DELGADO, L. O governo João Goulart e o golpe de 1964: memória, história e historiografia. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v14n28/a06v1428.pdf>. Acesso em: 5 maio 2020. DORATIOTO, F. F. M. A política platina do Barão do Rio Branco. Rev. Bras. Polít. int., v. 43, n. 2, 2000. GALERANI, K. A política externa do governo Juscelino Kubitschek: a Operação Pan-Americana. Interação, v. 1, n.1, 2010. LESSA, A. C. O Barão do Rio Branco e a inserção internacional do Brasil. Rev. Bras. Polít. Int., v. 55, n.1, 2012. LUIZ, J. R. A política externa do regime militar: entre o ranço ideológico e a atuação pragmática. In: Proceedings of the 3rd ENABRI 2011, São Paulo, 2011. MANZUR, T. A política externa independente (PEI): antecedentes, apogeu e declínio. Lua Nova, São Paulo, v. 93, n. 1, p. 169-199, 2014. MOURA, G. Autonomia na dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. RAPOPORT, M.; LAUFER, R. Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da década de 1960. Rev. Bras. Polít. Int., v. 43, n. 1, 2000. SILVA, A. A política externa no cenário da Guerra Fria. Dossiê de Politica Externa CPDOC, 2012. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/PoliticaExterna/CenarioGuerra Fria>. Acesso em: 5 maio 2020. SOUZA, B. A política externa nacionalista do Estado Novo (1937-1945). Videre, Dourados, v. 2, n. 4, 2010. VIZENTINI, P. O Brasil e o Mundo: a política externa e suas fases. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 20, n.1, p. 134-154, 1999. AULA 4 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 TEMA 1 – REALINHAMENTO AUTOMÁTICO E POLÍTICA EXTERNA NOS GOVERNOS DE CASTELLO BRANCO E COSTA E SILVA Nesta aula, estudaremos os processos relacionados à Política Externa Brasileira entre os anos 1960 e 1990. Primeiramente, conheceremos as características da PEB durante a ditadura, nos governos de Castello Branco e Costa e Silva, com orientações bastante diferenciadas. Na segunda parte, conheceremos as abordagens de Médici, cujo governo foi bastante autoritário, e Geisel, com esse último ocorre uma retomada da busca por autonomia. No terceiro item, veremos os elementos da política externa do Brasil nos anos 1980, no governo de Figueiredo e a partir de 1985, com a redemocratização até o governo Sarney. Posteriormente, investigaremos a fundo a aproximação entre Brasil e Argentina, que permitiu a cooperação na área de segurança e na economia, culminando na criação do Mercosul, em 1991. Para finalizar, conheceremos as mudanças impostas à PEB nos anos 1990, com a acentuação da globalização, do neoliberalismo e a crise do multilateralismo. A respeito da PEB durante a ditadura, podemos afirmar que existem cenários distintos dependendo do período. Contudo, predomina a lógica do realinhamento automático com os EUA, mas com alternância de situações em que a orientação da PEB se torna mais autonomista. Em primeiro lugar, o primeiro governo militar, de Castello Branco (1964- 1967), apresentava características de política externa bastante diferenciadas dos demais governos militares. Isso é consequência de sua aproximação ideológica com os EUA, assumindo um discurso anticomunista e de segurança da região em sua orientação de política externa. Para Vizentini, existia uma "política externa interdependente" (2004, p.21). Já Leticia Pinheiro visualiza a estratégia de Castello Branco no "paradigma americanista" (2004, p.37). A orientação da PEB do general era de uma cooperação com os EUA embasada na ideologia liberal-imperialista, com abertura para o capital externo, calcada na ideia de garantir um desenvolvimento associado e dependente aos EUA (Martins, 1975). Existia, então, uma associação dependente com os EUA, mas nem todos os autores concordam haver um retorno ao alinhamento automático aos EUA. Há provas de que o Brasil não rompeu laço com os Estados 3 do bloco soviético e demonstrou-se que a aliança com os EUA não gerou os resultados imaginados. De acordo com Miyamoto, a orientação central do da PEB de Castello Branco “privilegiava o conflito Leste-Oeste, na defesa do mundo ocidental. Tratava-se de uma postura que coincidia, em muitos pontos, com o que realizava a política externa norte-americana” (Miyamoto, 2013, p. 11). O general entendia que os EUA eram o guardião do mundo ocidental, mas apresentava a diferença entre o posicionamento de alinhamento aos EUA nos interesses regionais e nos mais distantes. Nesse sentido, o Brasil não se envolveu no conflito do Vietnã (Miyamoto, 2013). No governo de Costa e Silva, que era um representante da “linha dura” das Forças Armadas, houve uma redução da importância do conflito Leste-Oeste. Costa e Silva ficou pouco tempo no governo. Dessa forma, durante o governo do Marechal Arthur da Costa e Silva, houve um afastamento da afiliação ideológica do regime. Para Costa e Silva, era mais interesse para o Brasil “manter-se distante de tais confrontos, preferindo concentrar esforços nas divergências que se verificavam entre os Hemisférios Norte e Sul” (Miyamoto, 2013, p. 12). Castello Branco direcionava sua atuação para os países desenvolvidos, enquanto Costa e Silva preferiu inserir as problemáticas econômicas na agenda da política externa, orientando sua política para uma concepção que opunha Norte desenvolvido e Sul menos desenvolvido em vez do confronto Leste-Oeste (Miyamoto, 2013). TEMA 2 – POLÍTICA EXTERNA DOS GOVERNOS MILITARES DE MÉDICI E GEISEL Emílio Médici, que governo de 1968 a 1974, assumiu com uma postura clara de combater as tendências ideológicas vistas como ameaças, consideradas comunistas, o que orientou sua atuação na política externa. Em termos regionais, houve uma preocupação em diminuir a chance de uma ameaça à soberania brasileira. Nesse sentido, algumas operações intervencionistas foram executadas durante a gestão de Médici (Miyamoto, 2013). A primeira foi a intervenção no Uruguai, por meio da Operação Trinta Horas, organizada para ocupar o país em caso de vitória do partido considerado comunista nos vizinhos. A segunda ocasião foi o apoio ao General Suarez no 4 Uruguai contra o presidente à época. Por fim, em 1973, o governo Médici apoiou a deposição do presidente do Chile Salvador Allende, quando se instaurou a ditadura no país, com a entrada de Pinochet (Miyamoto, 2013). Demonstrou-se, então, uma busca por liderança na região, com certa margem de autonomia em relação aos EUA, no âmbito regional. Internamente, ocorria o milagre econômico, que era o crescimento extraordinário da época, que chegou a 12% ao ano. Isso assegurou certa convergência com Washington, que foi uma aliança com alguma autonomia na PEB. Isso ocorreu também pelo redimensionamento da estratégia americana pela administração Nixon-Kissinger, sustentada em aliados regionais, desempenhando o papel de "potência média", o que foi relegado ao Brasil (Miyamoto, 2013). Durante o governo Médici, houve uma postura de alinhamento automático aos EUA. O governo em questão era muito autoritário,e foi nesse momento que se instituiu o AI-5, que reprimia todas as formas de expressão e instaurava a censura no país. Havia nesse governo uma subordinação aos interesses dos EUA. O sucessor de Médici, Geisel, que ficou no poder entre 1974 e 1979, promoveu uma abertura política e a distensão da ditadura militar, o que foi refletido na sua orientação de política externa, voltada a assegurar maior autonomia ao Brasil em suas relações externas e com traços inovativos, porém de continuidade em relação a governos anteriores. De acordo com Karla Gobo (2007), a política externa do governo Geisel seguiu as bases da Política Externa Independente, implementada por Quadros e Goulart antes do golpe militar, buscando a autonomia do país e um tratamento diferenciado no cenário externo, sem vínculo direto com os EUA. Geisel buscava reduzir a dependência em relação aos EUA e diversificar parceiros. Inclusive, nos discursos da época, na década de 1970, o país era retratado como emergente, e não mais de terceiro-mundo, demonstrando o interesse em incluir o Brasil em outro patamar a nível internacional (Gobo, 2007). Alguns autores, como Ruy Mauro Marini, defendem que durante a ditadura militar, a PEB apresentava traços subimperialistas, na busca por uma posição intermediária entre Primeiro e Terceiro Mundos, que veio a ser conhecido como a ideia de um país emergente. Assim, o autor previa que existiam centros de poder subimperialistas, que eram dependentes dos países centrais. No caso, EUA e Europa e exerciam relações de dominação com países vizinhos, como os da 5 América do Sul. Nessa lógica, durante a ditadura, o país exerceu uma postura de potência subimperialista (Gobo, 2007). No governo Geisel, a PEB ficou conhecida como Pragmatismo Responsável, demonstrando certa continuidade com a PEB de Costa e Silva, em que havia uma visão nacionalista, de maior autonomia da PEB em relação aos países mais ricos (Gobo, 2007). TEMA 3 – MUDANÇAS NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA A PARTIR DE 1980 E A DÉCADA PERDIDA A PEB da década de 1980 revelou a abertura democrática que ocorreu no período, o enfraquecimento e o fim da ditadura militar e as mudanças das relações externas do Brasil. A política externa de Figueiredo, que foi o último militar no poder, tendo governado de 1980 a 1985, foi denominada universalismo, visto como uma continuidade da atuação do governo anterior, ou seja, do Pragmatismo Responsável de Geisel (Ferreira, 2006) No entanto, o debate sobre a PEB no período não demonstrava um consenso sobre a PEB universalista do chanceler Guerreiro, ministro das Relações Exteriores à época. Deste modo, segundo Ferreira (2006, p. 10), “o Universalismo não foi o único projeto de inserção internacional brasileiro a ganhar voz na gestão do último general presidente do ciclo militar iniciado no golpe militar de 1964”, havendo falta de consenso sobre a gestão da PEB na autarquia nacional. Algumas visões da época consideraram a PEB universalista de Figueiredo negativa, pois defendiam que a aproximação de países do Segundo Mundo ou emergentes não traria ganhos para o Brasil, e que a postura universalista era perigosa, pois previa a aproximação com países de base ideológica não Ocidental diferenciada, como países comunistas (Ferreira, 2006). Durante o governo de Figueiredo, podemos afirmar que a PEB teve significativos avanços, assegurando uma ampliação dos diálogos com os países em desenvolvimento, com ênfase sobre a América Latina de modo geral e América do Sul em especial, que se tornam a prioridade da atuação diplomática brasileira (Cervo; Bueno, 2002). A partir de 1985, com o fim do regime militar e as eleições realizadas democraticamente, passou-se a abandonar a orientação de assegurar maior autonomia ao Brasil no cenário externo, em virtude da grave crise econômica que 6 assolou toda a América Latina. A década de 1980 é considerada a década perdida (Ferreira, 2001). No final da década de 1980, ocorreram transformações significativas no cenário internacional. Depois do segundo choque do petróleo, em que o preço do barril do petróleo se elevou, houve um aumento significativo dos juros internacionais em função da redução da liquidez. O resultado foi uma crise de crédito global que afetou sobretudo os países que haviam se endividado nos anos anteriores, nos quais os juros eram baixos e a oferta de dinheiro no mundo era vasta. Em 1979, no Brasil, a dívida externa correspondia a 28% do valor das exportações, o que provocou um processo de início da crise cambial, com choques de oferta e com altos déficits públicos, que geravam inflação que começou a se acelerar no Brasil e em toda América Latina. Assim, a crise da dívida externa, que provocou recessão nas economias da América Latina, e a chamada década perdida foram consequência do processo de inserção internacional dessa região (CULPI, 2016). No entanto, sob ponto de vista político, pode-se considerar que foi uma década ganha. Não apenas se formaram e se firmaram inúmeras entidades e partidos populares na América Latina como se iniciou uma nova fase histórica para o país, com o fim da ditadura e com a promulgação da Constituição de 1988. Mallman (2008, p. 20) afirma: Pode-se dizer que a democracia foi um dos ganhos políticos da década economicamente perdida. [...] Outro ganho foi o surgimento e consolidação de um espaço regional de coordenação de políticas, cujos desdobramentos positivos ainda fazem-se presentes. Apesar das dificuldades, a década de 1980 foi marcada por acontecimentos relevantes no que diz respeito à aproximação dos governos latino- americanos. TEMA 4 – A APROXIMAÇÃO BRASIL-ARGENTINA, MERCOSUL E A COOPERAÇÃO SECURITÁRIA NO CONE SUL A agenda integracionista da América do Sul se expandiu durante os governos militares de Argentina e do Brasil e teve como primeiro ato consolidado a Declaração de Iguaçu de 1985, quando os dois países decidiram ampliar as relações comerciais e cooperar na área de energia nuclear. Isso demonstrou que a ênfase colocada na época era sobre a cooperação na área de segurança, com vistas a reduzir rivalidades entre as principais economias da América do Sul. 7 No ano de 1986, Argentina e Brasil estreitaram mais os laços, criando o Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), considerado o início do processo de cooperação efetiva entre Brasil e Argentina (Vaz, 2002). Em 1988, ocorreu a assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, dentro da ALADI, que previa a liberalização do comércio entre Brasil e Argentina (Mallmann; Marques, 2013). Segundo Vizentini (2005), a criação do Mercosul foi resultado de um aprofundamento das relações entre Brasil e Argentina no final dos regimes militares dos anos 1980. Contudo, a democratização não pode ser considerada o único motivador do processo de cooperação, já que os primeiros acordos foram assinados em 1979 e 1980 por Videla e Figueiredo (governantes do período militar) em áreas estratégicas. Moniz Bandeira (2010) destacou que a interdependência entre esses dois países era tão profunda que inibia potenciais conflitos, induzindo-os a negociar a cooperação. Assim, a PEB brasileira nos anos 1980 voltou-se para a região e para os países vizinhos, permitindo um aprofundamento dos laços com a Argentina. Para Santander (2012), o Brasil e a Argentina, que são as forças mais importantes do bloco, demonstraram reticência em criar uma forma mais avançada de integração política por uma série de razões. Mesmo quando estabeleciam diálogo, as rivalidades históricas que remontavam o período colonial, com a competição entre os Impérios Português e Espanhol pela Bacia do Prata, se revelavam. Essas condições geopolíticas não contribuíram para aprofundar o processo de integração da região. Por outro lado, a constituição do Mercosul evidencia queesses dois Estados desejavam institucionalizar sua cooperação, mesmo com fragilidades em termos estruturais (Santander, 2012). Podemos afirmar que o Mercosul foi resultado de um processo de aproximação mais formal entre o Brasil e a Argentina em meados da década de 1980, alterando sua intenção inicial, que seria firmar relações amigáveis entre os dois países. O Tratado de Assunção, que fundou o Mercosul, foi assinado em 1991 por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, a região geopolítica conhecida como Cone Sul, como resultado dos esforços de aproximação entre Brasil e Argentina. Ambos países passavam por momentos de restabelecimento da democracia e de abertura política para a região da América do Sul, após décadas de regimes 8 ditatoriais, bem como haviam adotado políticas econômicas neoliberais (Malamud, 2003). Conforme Malamud (2003), duas características sobre o Mercosul devem ser elucidadas a respeito de seu surgimento: i) o objetivo principal do bloco era econômico, e não político, ou seja, buscava-se o estabelecimento do Mercado Comum (após a criação de uma área de livre circulação de mercadorias na região) e o crescimento da competitividade das economias; ii) a característica intergovernamental, que resultou em dependência em relação aos interesses políticos dos chefes de Estado para garantir o avanço do processo. A combinação desses dois elementos representou a identidade do Mercosul na ocasião de seu lançamento, demonstrando o contexto nacional e internacional em que ele foi criado, o neoliberal, propagado para toda a América do Sul nos anos 1990. Um projeto muito importante para a cooperação política na área de segurança, defesa e infraestrutura é a Unasul, que representou a busca por aproximar os Estados de toda América do Sul sem impactar a autonomia e a soberania desses países (Melo, 2015). De acordo com Melo (2015, p. 460): A União de Nações Sul-Americanas surge em 2008 por meio de um tratado constitutivo que substitui e extingue a antiga Comunidade Sul- Americana de Nações – CASA, criada em 2005. A organização regional é criada por intermédio da diplomacia de Lula já no fim do seu segundo mandato e consolida assim um período de grande atuação do Presidente da República em assuntos exteriores, método conhecido como diplomacia presidencial e de grande relevância para consolidação de acordos internacionais visando a integração regional. Podemos assinalar que a Unasul coloca ênfase não apenas no aspecto econômico e de cooperação em temas políticos, mas na cooperação em defesa e segurança. Para tanto, instituiu o Conselho de Defesa Sul-Americano, considerado o organismo interno mais expressivo e atuante da instituição. Dessa forma, pode-se considerar que a integração no âmbito da segurança regional é a finalidade primordial do Conselho de Defesa, com o objetivo de criar uma Zona de Paz na América do Sul (Melo, 2015). TEMA 5 – ANOS 1990 – A GLOBALIZAÇÃO, O NEOLIBERALISMO E A CRISE DO MODELO DE PEB Com a intensificação do processo de globalização na década de 1990, os Estados latino-americanos passaram a focar em uma estratégia de crescimento 9 pautada na abertura de mercado e na inserção global. Ademais, o modelo de desenvolvimento baseado no protecionismo fracassou em eliminar os desequilíbrios econômicos e sociais na região. O endividamento externo e a inflação deterioravam a situação econômica e expandiam a recessão, que provocou a chamada década perdida. Os Estados se aproximaram para buscar uma saída conjunta à crise, associada ao paradigma neoliberal emergente. Além disso, os fatores domésticos dos processos de democratização do final dos anos 1980 promoveram a decadência dos governos nacional- desenvolvimentistas, que davam ênfase ao desenvolvimento industrial das nações sul-americanas. Esse declínio permitiu a entrada de governos com ideologia neoliberal na América do Sul (Cervo; Bueno, 2002). Nesse momento, os governos sul-americanos passaram a adotar os princípios do chamado Consenso de Washington, que estabelecia uma série de ajustes liberais com o objetivo de reduzir a intervenção do Estado na economia. Contudo, essa doutrina não levou em conta as especificidades da região e os obstáculos que os ajustes imporiam às economias. Nesse sentido, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial impuseram condicionalidade em troca de auxílio financeiro. Nos anos 1990, com esse processo de abertura de mercado e privatizações, o Estado teve sua atuação reduzida. A economia passou por uma crise intensa já mencionada na década de 1980 e o início dos anos 1990 foram de crise de hiperinflação e recessão, com o fracasso do Plano Cruzado. As reformas adotadas nos governos de Fernando Collor e FHC provocaram a ruptura do projeto nacional-desenvolvimentista (Vigevani, 1994; Cunha, 2016). A política econômica do governo de FHC foi bastante neoliberal, com políticas que levaram empresas à falência e aumentaram o desemprego e a desigualdade social. Nesse sentido, a PEB sustentava a política realizada a nível doméstico, promovendo abertura econômica e entrada de multinacionais por um paradigma conhecido como autonomia pela participação, que permitiu a incorporação do Brasil aos regimes internacionais, de comércio, crédito, entre outros. Isso tinha como objetivo resgatar a credibilidade internacional, necessária para o êxito do programa de estabilização, alcançado com o sucesso do Plano Real, que fortaleceu nossa moeda e eliminou a memória inflacionária. Na década de 1990, observou-se uma continuidade na PEB que é explicada pela prevalência de uma mesma burocracia profissionalizada, os 10 diplomatas do Itamaraty. Isso denota um predomínio dos interesses da política doméstica na formulação da política externa dos países. Nesse período, como já mencionado, o multilateralismo e o desenvolvimentismo entraram em crise com o neoliberalismo, exigindo que o Brasil se inserisse em uma nova ordem global pós cenário bipolar da Guerra Fria (Vizentini, 1999). O projeto do Mercosul tinha o objetivo de assegurar uma inserção internacional dos países do Cone Sul, sendo uma plataforma para os países se lançarem a nível global, e não um projeto em si só de aproximação e parceria regional (Vizentini, 1999). O Brasil passou a ocupar uma posição de liderança regional, provocando certa competição com os EUA, que criaram o NAFTA. Em 1994, foi lançada a iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que nunca se concretizou mas tinha o objetivo de retomar a iniciativa política por parte dos EUA, como resposta aos progressos do Brasil-Mercosul e à crise de confiança no neoliberalismo que a crise mexicana gerou em toda América. O Mercosul assinou um acordo-marco de cooperação com a União Europeia em dezembro de 1995 que não avançou e foi retomado em 2019. De acordo com Vizentini (1999, p. 153): a estratégia de inserção internacional centrada no Plano Real, na atração de capitais estrangeiros e nas privatizações sofreu considerável desgaste com o advento da crise financeira internacional, ironicamente no preciso momento em que Fernando Henrique Cardoso lograva sua reeleição. Com a saída de FHC, Lula reorientou a PEB para retomar um projeto nacional e inserir o Brasil como um global player, garantindo maior autonomia e independência ao país (Vizentini, 1999). Nesta aula, conhecemos os traços principais da Política Externa Brasileira em diferentes momentos do governo militar. Primeiramente, pudemos conhecer os elementos da política de Castello Branco, que permitiu um realinhamento automático aos EUA e de Costa e Silva, que retomou os traços da PEI, com a busca por autonomia da PEB. Na segunda parte, observamos o retrocesso da PEB de Médici, que retomou o alinhamento aos EUA. Geisel, por sua vez, começou o processo de abertura da PEB, com o Pragmatismo Responsável,que buscava garantir maior autonomia ao país em relação aos países ricos. A terceira seção da aula 11 demonstra as alterações da PEB durante a década de 1980, a década perdida, com o fim da ditadura e uma busca por mais parcerias a nível internacional. A quarta parte apresentou as características da aproximação entre Brasil e Argentina, que começou durante a ditadura militar e se consolidou na década de 1990, com a constituição do Mercosul, firmando a liderança regional brasileira. Na última parte, conhecemos os traços da PEB durante a década de 1990, que precisou se adaptar a uma nova ordem global pós-Guerra Fria. Com isso, demonstrou uma crise do modelo de inserção multilateral, por meio de uma busca por fortalecer o Mercosul e precisou abrir indiscriminadamente nossas fronteiras a nível financeiro com o objetivo de liberalizar a nossa economia, sem a pretensão de dar maior protagonismo ao Brasil. 12 REFERÊNCIAS CERVO, A. L; BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. CULPI, L. A. Empresas transnacionais: uma visão internacionalista Curitiba: Intersaberes, 2016. CUNHA, D. O modelo de desenvolvimento brasileiro e a política externa. Dossiê: SimpoRI. NEIBA, v. 5, 2016. FERREIRA, O. S. A crise da política externa: autonomia ou subordinação? Rio de Janeiro: Revan, 2001. FERREIRA, T. A ruína do consenso: a política exterior do Brasil no governo Figueiredo (de 1979 a 1985). Rev. Bras. Polít. Int., v. 49, n. 2, p. 119-136, 2006. GOBO, K. Década de 1970: a Política Externa e o Papel do Itamaraty. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. LUIZ, J. R. A política externa do regime militar: entre o ranço ideológico e a atuação pragmática. In: PROCEEDINGS OF THE 3RD ENABRI, São Paulo, 2011. Anais… MALAMUD, A. Presidentialism and Mercosur: A Hidden Cause for A Successful Experience. In: LAURSEN, F.; ALDERSHOT, A. Comparative Regional Integration: Theoretical Perspectives, v. 53, n. 7, 2003. MALLMANN, M. I.; MARQUES, T. C. S. Leituras do Mercosul: diferentes percepções acerca do bloco. Século XXI, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, 2013. Disponível em: <http://sumario- periodicos.espm.br/index.php/seculo21/article/viewFile/1868/151>. Acesso em: 21 maio 2020. MALMANN, M. I. Os ganhos da década perdida: democracia e diplomacia regional na América Latina. EDIPUCRS, 2008. MARTINS, A. M. G. Curso de Direito Constitucional da União Europeia. Coimbra: Livraria Almedina, 2004. MELO, F. Conselho de Defesa Sul-Americano e Integração Regional: análise da história recente. Conjuntura Global, v. 4 n. 3, set./dez., 2015, p. 457-466. 13 MIYAMOTO, S. Política Externa Brasileira: 1964-1985. Carta Internacional, v. 8, n. 2, jul./dez. 2013. MONIZ BANDEIRA, L. A. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul (da Tríplice Aliança ao Mercosul). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. PINHEIRO, L. Política Externa Brasileira: descobrindo o Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. SANTANDER, S. Invariances et ruptures dans le Mercosur. In: SANTANDER, S. Relations internationales et régionalisme. Liège, Presses Universitaires de Liège, 2012. SILVA, A. A política externa no cenário da Guerra Fria. Dossiê de Política Externa CPDOC, 2012. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/PoliticaExterna/CenarioGuerra Fria>. Acesso em: 21 maio 2020. VAZ, A. C. Cooperação, integração e processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Funag/Ibri, 2002, 308 pp. VIZENTINI, Paulo. O Brasil e o Mundo: a política externa e suas fases. Ensaios FEE, Porto Alegre, v. 20, n.1, 1999, p. 134-154. AULA 5 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 TEMA 1 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E OS DIREITOS HUMANOS Nesta aula, estudaremos alguns temas específicos de destaque da Política Externa Brasileira, procurando explicar como a PEB se posiciona em relação a alguns temas. A primeira temática que será apresentada é a dos direitos humanos, buscando verificar como a orientação da PEB evoluiu em relação a esse tema. Na segunda parte, verificaremos em que medida o Brasil se posiciona com destaque no regime de migrações, ao receber imigrantes e refugiados. O terceiro tema também está associado a uma temática social, que é o posicionamento do Brasil em relação à proteção do meio ambiente a nível internacional. Na quarta parte da aula, conheceremos como o Brasil usa uma importante ferramenta de política externa, que é a diplomacia cultural. Para finalizar, entenderemos a questão da paradiplomacia brasileira, que é a atuação de atores não-estatais na política externa, de modo paralelo ao Itamaraty. O Brasil, a partir dos anos 2000, assumiu uma postura mais proativa nas Conferências internacionais de direitos humanos e objetiva se tornar um líder na questão. Nesse contexto, passou a se destacar em alguns temas, como o combate ao tráfico de pessoas e a recepção e defesa dos direitos dos refugiados, deslocados e apátridas. Inclusive, “o Brasil foi convidado a apresentar na ONU o modelo de política de combate ao tráfico de pessoas, devido a inovações demonstradas” (Culpi, 2017, p. 203). O processo de internacionalização dos direitos humanos está associado “a dois sistemas: o universal e o regionalizado” (Correa; Antunes, 2005, p. 40). O segundo encontra-se “dividido em quatros sistemas de alcance continental: o europeu, o interamericano, o asiático e o africano. Enquanto o universal é formado pelas decisões oriundas da ONU” (Correa; Antunes, 2005, p. 40). As convenções de direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, fazem parte ao sistema universal e são o ponto de partida para pensarmos os direitos de todos os indivíduos. Nesse sentido, o Brasil assinou todos esses documentos. O Pacto Internacional Direitos Civis e Políticos é um dos documentos mais abrangentes sobre o tema e os documentos mais atuais avançaram pouco na questão dos direitos humanos, com exceção da Convenção das Nações Unidas 3 sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e suas Famílias, assinada em 1990 (Correa; Antunes, 2005, p. 42). Esses documentos preveem uma série de direitos aos indivíduos, como o direito à vida, à liberdade de pensamento, à religião e à moradia. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 determina a não discriminação, afirmando que todos nascem iguais em direitos e deveres. O primeiro acordo que estabeleceu a não discriminação por raça foi a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965. Na sequência, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, previam a concessão desses direitos para todos os cidadãos, não apenas para os nacionais, incluindo, portanto, os migrantes. Antes da ditadura, na primeira metade do século XX, a participação brasileira nos encontros e debates sobre direitos humanos foi progressista e proativa, voltada à real proteção dos direitos humanos, reflexo da postura do Itamaraty à época. O Brasil propôs nesse período a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Castilho, 2003). Após a ditadura, iniciou-se uma fase na qual o Brasil se tornou alvo de críticas por violação de direitos humanos e, em vez de estabelecer normas internas associadas ao tema, mudou o tom e passou a defender a soberania dos países em detrimento aos direitos humanos. O Brasil só se inseriu na Corte Interamericana de DDHH em 1992, durante o período democrático (Castilho,2003). Após 1985, com a abertura democrática, o tema dos direitos humanos passou a receber mais atenção na PEB, com um compromisso maior do país com o tema. Nessa fase, o país assinou e ratificou vários tratados importantes que o inseriram no regime internacional de defesa dos direitos humanos, embora tardiamente (Castilho, 2003). O Brasil, a partir dos anos 2000, buscou ser protagonista na questão do regime internacional de defesa dos direitos humanos. Um dos temas que destacou o Brasil em sua Política Externa foi a recepção de refugiados e imigrantes de modo geral. 4 TEMA 2 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PARA AS MIGRAÇÕES O Brasil colocou a defesa dos direitos dos refugiados, dos imigrantes e a consequente recepção destes em seu território como um tema prioritário em sua política externa a partir dos anos 1990, e com mais ênfase nos anos 2000, com vistas a projetar-se como líder no regime de refugiados e migrações internacionais. Isso fazia parte de uma estratégia dos governos para ganhar mais margem de manobra a nível internacional e tornar-se protagonista em temas sociais, sobretudo a partir de 2002, com a assinatura dos Acordos de Residência do Mercosul. A Lei n. 9.474/1997 estabeleceu diretrizes para o tratamento do tema dos refugiados, prevendo a reunificação familiar e a possibilidade de trabalho. Contudo, a Lei de Migrações Brasileiras era bastante atrasada no Brasil e só foi substituída em 2017, pela Nova Lei de Migrações, que vencia a visão militar, a qual via os imigrantes e refugiados como ameaça (Moreira, 2014). O Brasil tem demonstrado o protagonismo na questão do tráfico internacional de pessoas e liderado o debate sobre o combate ao tráfico de pessoas no Mercosul. Nesse sentido, o Brasil ratificou o Plano Nacional de Enfrentamento de Tráfico de Pessoas em 2008, o que foi feito após a promulgação da Lei argentina n. 26.364, realizada também em 2008, mas em abril. Desde a promulgação dessa lei, o governo brasileiro resgatou 6339 vítimas de exploração laboral e sexual (Culpi, 2017). A Nova Lei de Migrações Brasileira, aprovada em maio de 2017, impôs mudanças na abordagem brasileira sobre as migrações, sobretudo superando a visão do imigrante como ameaça à segurança e atribuindo a eles mais direitos. No entanto, ainda há muito a se analisar, pois a lei foi promulgada em novembro de 2017, com vários problemas que podem prejudicar o avanço e a aplicação da normativa. Sobre os vetos, a não permissão de candidatura a cargos públicos aos imigrantes é um aspecto muito negativo, pois era uma das maiores vitórias da lei. Um aspecto relevante destacado por Reis (2011b, p. 61) é que as migrações internacionais passaram a ser vistas como tema estratégico das suas agendas de política externa no século XXI. Nesse sentido, o Brasil demonstrou esse interesse de se destacar e adquirir mais prestígio internacional ao defender temáticas voltadas aos direitos humanos, como é o caso do direito dos migrantes, 5 especialmente em relação aos temas dos refugiados, apátridas, deslocados e tráfico de pessoas. A exemplo disto, no dia 1º de julho de 2009, quando anunciou a mais recente anistia aos imigrantes indocumentados no Brasil e enviou o projeto de reforma da lei dos estrangeiros ao Congresso Nacional, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicamente solicitou ao ministro da Justiça que levasse o tema à reunião do G8 para, em suas palavras, “[...] mostrar aos líderes dessas grandes economias a contrariedade do Brasil com a política dos ricos com os imigrantes” (Lula da Silva, 2009). O Brasil tem uma posição proativa em relação à recepção de refugiados (considerados uma imigração temporária), contudo, tem uma abordagem conservadora no que tange à recepção de imigrantes que buscam novas oportunidades de vida e pretendem se fixar no país. Mesmo com a aprovação da Nova Lei de Migrações, pouco foi feito por essa população em termos de integração à sociedade brasileira (Culpi, 2017). A partir de 2001, o Brasil se tornou um destino importante para os migrantes haitianos, que escapavam dos problemas políticos e do terremoto que assolou o país. Esse novo fluxo migratório haitiano implicou mudanças no debate a respeito do tema no Brasil, que foram importantes para pressionar por uma normativa migratória mais adequada. Segundo a especialista Baeninger, “a migração haitiana foi protagonista para o Brasil se enxergar como um país que não oferece direitos. Nesses últimos cinco anos ela mostrou um Brasil despreparado, improvisado e pouco comprometido com os direitos sociais” (Culpi, 2017). Entre os anos de 2010 e 2017, os dados revelam que aproximadamente 80 mil haitianos entraram no Brasil e 45 mil encontravam-se empregados. Embora haja muita xenofobia no Brasil, ou seja, preconceito contra imigrantes, os haitianos foram bem recebidos e passaram a ocupar seus postos de trabalho com muita dedicação e respeito, o que os tornou queridos pelos nacionais (Culpi, 2017). A migração de haitianos ao Brasil contribuiu para demonstrar que o Brasil se inseriu no regime global de migrações e precisa ter posições coerentes interna e externamente em relação a essa população, conferindo e garantindo a ela mais direitos, conforme a nova lei prevê. Outro fluxo importante recente é o de venezuelanos (Culpi, 2017). A partir de 2015, com o agravamento da crise política e econômica na Venezuela, em virtude do enrijecimento do regime político de Maduro, muitos 6 venezuelanos passaram a entrar no Brasil, especialmente em Roraima, o que, em 2018, desencadeou uma crise de refugiados venezuelanos na cidade. A Venezuela sofre com escassez de alimentos e de outros produtos de extrema necessidade, bem como desemprego e inflação altíssimos. Entre 2015 e 2016, as solicitações de refúgio de venezuelanos no Brasil aumentaram 3.000%, o que gerou uma necessidade de resposta do governo. Em 2018, o Brasil contava com mais de 86 mil pedidos de refúgio, estando os venezuelanos na primeira posição (33% do total). Em Boa Vista, Roraima, muitos venezuelanos estavam vivendo em condições de miséria, o que exigiu do governo brasileiro uma atenção, com o envio de ajuda financeira para essa população. A mobilização de voluntários para dar assistência a essa população tem se mostrado fundamental. Estima-se que há cerca de 52 mil venezuelanos vivendo no Brasil em condições precárias, sendo urgente o apoio a essa população (Culpi, 2017). TEMA 3 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PARA O MEIO AMBIENTE A PEB para o meio ambiente ganhou destaque a partir dos anos 1992, quando o Brasil sediou a ECO-92, a primeira conferência sobre o meio ambiente, realizada no Rio de Janeiro. Antes disso, o Brasil participou da Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente humano, realizada em Estocolmo em 1972, quando se vinculou qualidade de vida ao desenvolvimento (Souza, 1994). Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, foi elaborada a Agenda 21, que determinou um novo paradigma sobre o meio ambiente, colaborando para a gestão de políticas públicas dos Estados com vistas a criar um novo modelo de desenvolvimento em harmonia com a proteção do meio ambiente (Culpi, 2015). O fato de o Brasil sediar esse evento demonstrou o protagonismo brasileiro e da PEB no regime de proteção ao meio ambiente. Cada Estado tinha autonomia para definir a sua Agenda 21, que no Brasil foi estabelecida em 1997 pela Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável (Queiroz, 2005). Observa-se que as organizações internacionais se revelam ineficazes para exigir dos Estados o cumprimento das normas, sobretudo ao concederem autonomia aos Estados para implementarem as suas agendas. No ano de 2002, outro importante evento relacionado ao regime de meio ambiente foi a Cúpula Mundialsobre Desenvolvimento Sustentável, em 7 Johanesburgo, que denunciou a falta de avanços em relação à proteção ambiental. No Brasil somente em 2008 foi criado um Comitê Gestor Nacional e Produção e Consumo Sustentáveis, tendo o propósito de buscar padrões de consumo menos prejudiciais (Queiroz, 2005). Na última Conferência do Meio Ambiente da ONU realizada em 2012 no Rio de Janeiro, observou-se novamente a proeminência do Brasil ao sediar novamente o evento após 10 anos do primeiro. Contudo, os documentos produzidos não demonstraram ações concretas que refletem a falta de comprometimento da maior parte dos países com a diminuição das práticas de produção e consumo prejudiciais ao meio ambiente. Outro elemento importante do regime de proteção ao meio ambiente é o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), cuja relação com o Brasil é constante. O PNUMA nunca exerceu papel relevante no cenário internacional, pois foi utilizado como fórum de debate dos países do Sul, que reclamavam por maior inserção nas relações internacionais, e acabou esvaziado pelos países mais desenvolvidos. No fim da década de 1990, devido aos resultados insatisfatórios da Rio- 92, o debate sobre a criação do Onuma (um órgão da ONU para tratar do meio ambiente) foi resgatado, com vinculação à OMC. Nesse sentido, o Brasil e outros países emergentes defenderam o fortalecimento da Comissão sobre Desenvolvimento Sustentável (CDS) em substituição à criação do Onuma, que nunca foi concretizada (Barros-Platiau, Schleicher, Varella, 2004). No ano de 2001, o Brasil assinou com os países do Cone Sul, em Assunção, o Acordo Marco sobe Meio Ambiente do Mercosul, o único documento do bloco que trata efetivamente da questão ambiental. Pode-se afirmar que a própria natureza do tratado impede sua eficácia, por se tratar apenas de uma agenda com objetivos a serem alcançados, sem caráter obrigatório. Dessa forma, o Acordo não provocou efeitos imediatos sobre as legislações de sustentabilidade, não avançando para a harmonização de políticas sobre meio ambiente na região (Culpi, 2015). O Brasil se revelou ativo nos debates sobre Meio Ambiente no âmbito internacional, destacando-se nos anos 1990 e início dos anos 2000, sobretudo no regime de Mudanças Climáticas, e ao ter uma postura ativa na busca pela ratificação do Protocolo de Kyoto. 8 Com a entrada de governantes mais conservadores, de Temer e com ênfase ao governo Bolsonaro, pouco foi discutido a respeito da questão climática na atuação da Política Externa Brasileira. Isso demonstra que o Brasil passou de protagonista dos debates pela Sustentabilidade e contra o desmatamento a ator secundário na questão. A atuação do governo Bolsonaro tem sido a favor dos interesses comerciais de desmatamento, validando as queimadas na Amazônia e sendo um ator partícipe do processo de destruição maior da Floresta Amazônica, o que representa uma ameaça para as tribos indígenas da região e para o futuro das próximas gerações. TEMA 4 – POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A DIPLOMACIA CULTURAL Os países usam a cultura como forma de construir uma boa imagem no cenário internacional. O conceito de soft power (poder brando) foi introduzido por Joseph Nye na década de 1980. O poder brando refere-se aos instrumentos que os Estados adotam para conseguir seus objetivos sem utilizar da força física, que seria o hard power. Uma das ferramentais centrais do soft power é a cultura, atração cultural e a atração por valores políticos e ideológicos. Dessa forma, a cultura pode ser vista como instrumento diplomático de política externa, garantindo ao Estado maior margem de manobra no cenário internacional. Exemplos de diplomacia cultural são sediar eventos esportivos, como Olimpíadas e Copas do Mundo, promover exposições, feiras e congressos, entre outros. O Brasil, a partir da década de 1990 e sobretudo dos anos 2000, começou a realizar uma inserção externa mais proativa, com uma perspectiva mais universalista de diversificação de parceiros externos, o que exigiu uma construção de uma boa imagem e de prestígio internacional. Assim, “a diplomacia cultural emerge como uma das mais completas ferramentas capazes de consolidar a posição brasileira em lugar destacado no cenário internacional, por permitir um intercâmbio entre os ganhos de cunho político, econômico e de cooperação” (Bijos; Arruda, 2010 p. 34). De acordo com Soares (2008), muitos Estados implementaram estratégias de construção de uma boa imagem perante os outros países. Isso é consequência da relevância dos meios de comunicação na criação e difusão de imagens, o que leva os países a adotar estratégias diplomáticas para atrair a atenção 9 internacional sobre suas riquezas e potencialidades culturais, econômicas e naturais. Na formação dessa imagem positiva, o patrimônio cultural de uma nação recebe destaque, bem como suas riquezas naturais e características econômicas e de progresso tecnológico. Conforme Soares (2008, p. 56), “o prestígio cultural de um país é um componente básico do soft power cuja importância é fundamental para a construção de uma imagem internacional favorável aos interesses nacionais”. No Mercosul, por exemplo, pouca atenção é dada à agenda da diplomacia cultural por parte dos países. No entanto, observam-se atividades culturais relevantes, que são iniciativas de atores não estatais, como pesquisadores, ONGs e universidades. Essas ações criaram redes de artistas, realizações de exposições e mostras de cinema e fotografia, assim como programas de mobilidades docente e discente entre universidades (Soares, 2008). Barros (2019) argumenta que a diplomacia cultural no Brasil se realiza com base nas interações entre os departamentos de cultura do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e dos setores culturais nas embaixadas em outros países. A questão cultural se revela um bom mecanismo de aproximação entre os povos, que contribui para abrir a indústria cultural na promoção de laços entre estados, assegurando maior possibilidade de diálogo a níveis econômico e político. Um elemento que o Brasil tem utilizado no âmbito da diplomacia cultural é a Divisão de Promoção da Língua Portuguesa, que realiza ações de ensino da Língua Portuguesa com apoio das embaixadas brasileiras no exterior (Barros, 2019). No Governo FHC, a diplomacia cultural foi pouco adotada, concentrando- se mais na aproximação aos países ricos neoliberais. Por sua vez, no governo Lula, há a aproximação com os países vizinhos, com os africanos e com os países árabes, diversificando parcerias. Contudo, os programas culturais com resultados mais bem-sucedidos e maior abrangência foram realizados na Europa, o que indica uma preocupação em construir a imagem de um Estado em emergência para inseri-lo em um espaço de diálogo com potencias semelhantes (Bijos; Arruda, 2010). 10 TEMA 5 – POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A PARADIPLOMACIA Existem diversas novas formas de atuar na política externa que demonstram que os municípios e estados vêm adquirindo espaço no cenário internacional nos últimos anos, sobretudo após o fim da Guerra Fria. Diferentes termos são adotados para caracterizar a atuação dos governos não centrais, entre elas: microdiplomacia, protodiplomacia e a paradiplomacia. A atividade paradiplomática é compreendida como a atuação dos governos subnacionais ou subestatais (regiões, cidades, províncias e estados) em assuntos de natureza internacional, recebendo ou não a ajuda do Governo Central para tanto. Deste modo, podemos entender a paradiplomacia como o envolvimento de governos não-centrais nas relações internacionais por meio do estabelecimento de contatos permanentes ou ad hoc com atores estrangeiros públicas ou privadas, com vistas a incentivar a troca de experiências e promovero debate de assuntos socioeconômicos ou culturais. Nesse sentido, o Ministério das Relações Exteriores não trata sozinho de assuntos relacionados à política externa, tendo que compartilhar certas funções com os estados e municípios, dando como exemplo a germinação das cidades- irmãs, prática paradiplomática mais habitual na atualidade (Castelo Branco, 2011, p.58). No processo de geminação, há uma troca de experiências entre duas cidades de países diferentes, tendo por objetivo o desenvolvimento mútuo no setor social, econômico, político ou cultural, que pode configurar uma transferência de política (Rodrigues, 2004, p. 5). Conforme Reis (2011), a germinação ou irmanação corresponde ao estabelecimento de laços entre municípios a nível internacional, sendo de Estados diferentes. O objetivo central dessa atividade é criar projetos que promovam o desenvolvimento de áreas específicas, quais sejam: cultura, serviços públicos, urbanização, gestão urbana e economia, entre outros, trazendo vantagens mútuas (Reis, 2011a). Além das geminações entre cidades, que são o exemplo mais comum de paradiplomacia, podemos citar outras formas, que são a participação de delegações brasileiras em eventos internacionais, contribuições por parte de cidades e estados oferecendo sediar eventos internacionais, assim como as 11 contribuições em fundos voluntários de ordem internacionais. Essas ações podem ter a motivação de conferir uma boa imagem e um prestígio internacional à cidade e ao estado (Castelo Branco, 2011). Verifica-se que o fenômeno da paradiplomacia é recente na PEB, pois há uma tendência histórica de centralização da política externa no MRE. No governo FHC, a prática da paradiplomacia se tornou mais intensa, com a busca do Itamaraty em ampliar o diálogo com atores sociais e expandir, assim, a transparência do governo (Barros, 1998) Nos últimos anos, sobretudo a partir dos anos 2000, observa-se o envolvimento de outros atores na PEB. Defende-se que a PEB passa por dois processos: a verticalização controlada (Pinheiro, 2009), que denota maior participação da sociedade civil nos temas de política externa; e a descentralização horizontal (Hill, 2003), plano de Estado para desburocratizar a PEB e descentralizá-la, com envolvimento de outros setores do governo nas decisões internacionais (Gonçalves; Oliveira, 2017). Nesta aula, conhecemos os traços centrais do envolvimento do Brasil no tema dos direitos humanos, no qual buscou ser protagonista a partir dos anos 2000. Na segunda parte, verificamos como o Brasil se colocou na temática da imigração, de maneira que o país teve uma postura alterada depois dos anos 2000, que resultou na aprovação da Nova Lei de Migrações. Nesse caso, por mais que o Brasil tenha aprovado uma lei mais progressista, que confere mais direitos humanos aos imigrantes, ainda existe pouca aplicabilidade dessa lei e violação dos direitos humanos dos seus protagonistas. A quarta parte referiu-se à questão da diplomacia cultural, que tem sido usada pelo Brasil para projetar uma boa imagem em relação aos outros países. Na última parte, pudemos conhecer a questão da paradiplomacia, que é a atuação de cidades e estados na política externa e que tem ganhado espaço na política externa brasileira, especialmente nos últimos vinte anos. 12 REFERÊNCIAS BARROS, C. Diplomacia cultural como instrumento da política externa brasileira. Trabalho de Graduação (Relações Internacionais) – Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2019. BARROS, S. R. A execução da política externa brasileira: um balanço dos últimos 4 anos. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 41, n. 2, p.18- 28, jul./dez, 1998. BARROS-PLATIAU, A. F.; VARELLA, M. D.; SCHLEICHER, R. T. Meio ambiente e Relações Internacionais: perspectivas teóricas, respostas institucionais e novas dimensões de debate. Rev. bras. polít. int., dez., v. 47, n. 2, p.100- 130, 2004. BIJOS, L.; ARRUDA, V. A diplomacia cultural como instrumento de política externa brasileira, Revista Dialogos: a cultura como dispositivo de inclusão, Brasília, v. 13, n. 1, ago., 2010 p. 33-53. CASTELO BRANCO, A. C. Paradiplomacia e entes não-centrais no cenário internacional. Curitiba: Juruá, 2008.155p. CASTILHO, L. Política externa brasileira em direitos humanos: a infeliz descontinuidade. Fronteira, PUC Minas, v. 2, n. 4, 2003. CORREA, A. M.; ANTUNES, A. R. Direitos humanos e migrações. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 40, n. 11, p. 39-50, dez. 2005. CULPI, L. A construção de Políticas Ambientais Internacionais: o caso do Mercosul. Conjuntura Global, v. 3, n.1, jan./mar., 2014, p. 13-20. _____. A Evolução da Política Migratória no Mercosul entre 1991 e 2014. Conjuntura Global, v. 4, n. 3, set./dez., 2015, p. 424- 437. _____.. Estudos Migratórios. Curitiba: Intersaberes, 2017. GONÇALVES; F. OLIVEIRA, P. Política externa (sub)nacional: um estudo da paradiplomacia do Estado do Rio de Janeiro e de sua relação com o governo federal. Conjuntura Global, v. 6, n. 1, jan./abr., 2017, p. 94-115. HILL, C. The changing politics of foreign policy. Hampshire; New York: Palgrave, 2003. 13 MOREIRA, J. M. Refugiados no Brasil: reflexões acerca do processo de integração local. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXII, n. 43, p. 85-98, jul./dez. 2014. PINHEIRO, L. Autores y actores de la política exterior brasileña. Foreign Affairs Latinoamérica, v. 9, 2009. QUEIROZ, Y. A. S.; GARCIA, D. S. S. Deslocados ambientais: um conceito ainda desconhecido. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 10, n. 1, edição especial de 2015. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>. Acesso em: 22 maio 2020. REIS, R, P. A ação externa dos Governos Subnacionais: Um estudo da inserção internacional de Curitiba e do estado do Paraná. 2011.180 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Faculdade de Relações Internacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011a. REIS, R. R. A política do Brasil para as migrações internacionais. Contexto internacional, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 47-69, jun. 2011b. RIBEIRO, M. C. M. Globalização e novos atores: a paradiplomacia das cidades brasileiras. Salvador: Edufba, 2009. 212p. RODRIGUES, G. M. A. Política externa federativa: análise de ações internacionais de Estados e municípios brasileiros. 2004. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – PUC São Paulo, São Paulo, 2004. SILVA, A. A política externa no cenário da Guerra Fria. Dossiê de Política Externa CPDOC, 2012. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/PoliticaExterna/CenarioGuerra Fria>. Acesso em: 22 maio 2020. SOARES, M. S. A. A diplomacia cultural no Mercosul. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 51, n. 1, p. 53-69, 2008. SOUZA, A. Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável: uma reflexão crítica. Paper do Naea, 45, ago., São Paulo, 1994. AULA 6 POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 TEMA 1 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A COOPERAÇÃO SUL-SUL Nesta aula, estudaremos outros temas além dos tratados anteriormente, associados à política externa brasileira, assim como avaliaremos os elementos de PEB apresentados entre os anos de 2003 e 2020. Primeiramente, apresentaremos os conceitos de Cooperação Sul-Sul e suas características, que ganharam força na PEB nos anos 2000. O segundo tópico trata da agenda da PEB em relação à educação, demonstrando em quais projetos o Brasil se envolve no tema a nível internacional. Na sequência, poderemos verificar a relevância do tema da saúde pública na agenda internacional brasileira. O quarto tópico tratará das orientações de política externa dos governos Lula e Dilma, com um protagonismo central do primeiro nas relações diplomáticas. Por fim, entenderemosas orientações de PEB dos governos Temer e Bolsonaro até 2020, bem como os desafios atuais da PEB. Observa-se, a partir dos anos 2000, uma aproximação maior do Brasil com os países do Sul. Isso se insere no paradigma de busca por maior autonomia e maior credibilidade internacional, com vistas a afirmar os interesses nacionais e agir de modo coletivo com os Estados considerados semelhantes em termos de desenvolvimento. Essa ação de aproximação entre os países do Sul modificou a ordem global e contrabalanceou o poder internacional, sobretudo pelo fortalecimento das potências emergentes, com destaque para a China. Essa autonomia maior na PEB não representou o rompimento definitivo com os Estados mais ricos, pelo contrário, houve uma diversificação das parcerias comerciais. No âmbito da cooperação Sul-Sul, pode-se afirmar que “a política externa e a cooperação internacional prestada pelo Brasil possuem forte caráter desenvolvimentista” (Santos; Cerqueira, 2015, p. 26). Assim, a cooperação com os países da América do Sul, África, Ásia e Oriente Médio teve foco em políticas de desenvolvimento em áreas variadas, como saúde e educação. É importante destacar que a Cooperação Sul-Sul tem bases nas coalizões do Terceiro Mundo criadas nos anos 1950 para contrapor a hegemonia dos países ricos do Norte. A ideia era promover o comércio entre os países do Sul-Sul e fortalecer esses Estados. A Conferência de Bandung de 1955 foi um dos exemplos 3 disso. Uma das primeiras iniciativas nesse sentido foi a criação do G-77 para contrapor à força as economias mais ricas no período da Guerra Fria (Santos; Cerqueira, 2015). A Cooperação Sul-Sul é vista como uma alternativa solidária calcada em demandas locais, soberania nacional e não interferências em assuntos domésticos entre o Estado doador e o receptor. Um dos princípios que fundam essa forma de cooperação é a promoção de parcerias igualitárias e relações horizontais com a intenção de criar vantagens mútuas de desenvolvimento para ambos países, em uma estratégia ganha-ganha (Culpi; Cusson, 2016). Dessa forma, as potências emergentes criaram a cooperação Sul-Sul com o objetivo de contrapor o formato de cooperação e financiamento praticado pelos países do Norte, baseado na condicionalidade e na interferência nos assuntos domésticos. As potências emergentes, como Brasil, China, Índia e Rússia foram beneficiadas por crescimento econômico, aumentando sua participação no comércio internacional. Ocorreu uma redistribuição de poder pelo surgimento desses atores (Culpi; Cusson, 2016). Nesse contexto, as potências emergentes passaram a atuar por meio de uma diplomacia multidirecional, criando fóruns formais e informais, a níveis global e regional. Assim, esses atores também se tornaram doadores emergentes, oferecendo meios alternativos de financiamento diferentes dos oferecidos pelas instituições tradicionais de financiamento criados por Bretton Woods, FMI e BIRD. A criação do Banco dos BRCIS é consequência desse tipo de pensamento. O BRICS é um arranjo informal criado para estreitar os laços entre as potencias emergentes nos anos 2000. Em 2003, a aproximação se intensificou e, em 2010, passou a contar com a participação da África do Sul, tornando-se BRICS. Houve uma expansão do comércio e da interdependência entre essas potências ao longo dos anos 2000. Em 2009, foi realizada a primeira reunião oficial do BRICS, institucionalizando Cúpulas anuais e criando vários grupos de trabalho. Os Estados passaram a coordenar posições políticas em vários temas, como direitos humanos, mudanças climáticas, comércio e segurança, ganhando influência no âmbito regional e internacional. A China se utilizou do arranjo para ganhar maior influência e desafiar a hegemonia dos EUA, propondo uma alteração de poder a nível global em um mundo multipolar (Culpi; Cusson, 2016). 4 TEMA 2 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO Uma das áreas mais importantes em relação à cooperação Sul-Sul na qual o Brasil atua é a questão da educação em projetos nos países menos desenvolvidos. Os projetos de maior relevância são os da educação superior, como o exemplo da concessão de bolsas de estudo a alunos de graduação nos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP) e a alunos de pós-graduação nos países da América Latina (Leal; Moraes, 2018). Em termos de política externa, a educação internacional foi utilizada como ferramenta de soft power, ou poder brando, sobretudo no governo Dilma no Brasil e em outros países como Espanha, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos da América (Miranda; Bischoff, 2018). Algumas ações nacionais adotam a educação para promover a imagem do país a nível internacional, por meio do estabelecimento de ações de cooperação na área educacional entre os Estados. Um dos casos de poder brando da diplomacia é o intercâmbio acadêmico de discentes e docentes. No caso brasileiro, existem ações importantes, embora com resultados menos significativos que em outros países, por meio da garantia de oportunidades de alunos africanos e latino-americanos estudarem no Brasil, com bolsas de estudo nas Universidades privadas ou vagas nas universidades públicas. De acordo com Miranda e Bischoff (2018, p. 904), essas ações “visam a incentivar o intercâmbio educacional e a difusão da cultura do país e se concentram no campo da cooperação científica”. A primeira iniciativa de cooperação internacional em educação superior realizada pelo Brasil foi o Programa de Estudantes-Convênio de Graduação de 1965. Esse tipo de programa de cooperação permite que estudantes de países carentes realizem suas formações em universidades brasileiras, tendo um resultado positivo sobre a sociedade do país de origem do estudante (Leal; Moraes, 2018). Vale lembrar que a partir dos anos 2000 a PEB tem ampliado os temas em sua agenda, sendo a educação uma temática que ganha relevância para criar uma identidade regional. Em relação às ações educacionais, os atuantes da PEB educacional são o MEC e O MCTI, que não têm autonomia para influenciar a Política externa, sendo protagonistas nas medidas de cooperação educacional por serem convidados a participar de reuniões sobre o tema (Leal; Moares, 2018). 5 O Brasil realiza importantes programas e discussões sobre educação no Mercosul, com ênfase sobre a mobilidade acadêmica e a validação de diplomas dos outros países. Conforme Pereira, Bernardo, Culpi e Pessali (2018, p. 292), “a educação é considerada uma das áreas prioritárias para o fortalecimento da integração no Mercosul”. Desde a criação do bloco regional em 1991, houve várias discussões sobre credenciamento de diplomas e mobilidade estudantil, que culminaram na criação do MEXA em 1998, que é o mecanismo experimental de credenciamento de cursos para o reconhecimento de títulos de graduação universitária nos países do Mercosul (MEXA), que determina as regras para o intercâmbio entre discentes e docentes (Pereira; Bernardo, Culpi; Pessali; 2018). Esse intercâmbio passou a ser realizado depois da fundação do Projeto de Mobilidade Acadêmica Regional de Cursos (Marca). As Universidades que participam desse programa são aquelas com cursos inseridos no Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação — Sistema Arcu-SUL (Pereira; Bernardo, Culpi; Pessali; 2018). TEMA 3 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A SAÚDE Durante o século XX, o tema da saúde não recebeu a atenção devida na política externa brasileira. A partir dos anos 1990, com o surgimento da Nova Ordem Global, a saúde se torna um dos mais importantes temas da agenda internacional e da Política Externa Brasileira (Lima, 2017). Os projetos de cooperação na área de saúde ocorrem há algumas décadas, mas ganharam força a partir dos anos 2000, como uma estratégia na esfera da Cooperação Sul-Sul. Nesse sentido, ocorreuma aproximação entre os dois atores chaves da PEB e da saúde: o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Saúde. A respeito dos atores responsáveis pela cooperação na área de Saúde, os mais importantes são aqueles vinculados ao Ministério da Saúde, quais sejam: a Assessoria Internacional do Ministério (Aisa/MS), o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmitidas e Aids (PN-DST/Aids), o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No âmbito da cooperação internacional em saúde, o ator mas importante é a Agência Brasileira 6 de Cooperação (ABC), que encabeça o processo de negociação dos projetos de cooperação técnica em saúde (Lima, 2017). No tema da propriedade intelectual e inovação em saúde pública, o Brasil tem sido protagonista nos debates internacionais. O posicionamento defendido pelos diplomatas brasileiros é de direito social e acesso universal aos medicamentos, com o objetivo de modificar as políticas de propriedade intelectual, que prejudicam os países mais pobres em seus sistemas de saúde pública. A PEB foi ativa no sentido de inserir a temática da prioridade intelectual na agenda da OMS, o que foi exitoso (Lima, 2017). Segundo Rezende (2018), a partir dos anos 1990, o Brasil se tornou modelo e referência internacional em termos de programas de saúde. Alguns exemplos importantes são o Programa Nacional de Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, de 1988, o Programa Nacional de Controle do Tabagismo, de 1989, e a Rede Nacional de Bancos de Leite Humano, criada em 1998. Esses programas exitosos foram elaborados com envolvimento direto de atores da sociedade civil. Essas iniciativas deram respaldo ao Brasil para participar de modo ativo dos debates internacionais sobre o tema da saúde. Rezende (2018, p. 64) pontua que A política externa brasileira em matéria de saúde beneficia-se da experiência e da competência técnica do Ministério da Saúde e do SUS – compreendido também pelas outras esferas da federação e por suas instâncias participativas – na elaboração e na implantação de políticas públicas eficazes, democráticas e participativas. Portanto, podemos entender que existe um comprometimento da política de saúde brasileira doméstica e da diplomacia pública nessa matéria com o desenvolvimento da nação, o que coloca o Brasil como país que se destaca nesse quesito a nível internacional. Contudo, a política de saúde ainda precisa evoluir muito no Brasil para garantir acesso amplo e de qualidade a todos os cidadãos (Rezende, 2018). TEMA 4 – A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE 2003 A 2015 Entre 2003 e 2016, o Partido dos Trabalhadores esteve no poder no Brasil, com os presidentes Lula e Dilma, até o afastamento da presidente, em agosto de 2016. A Política Externa do governo Lula é considerada bastante ativa e engajada, sendo uma das áreas mais exitosas do governo (Almeida, 2004). Lula 7 desenvolveu uma diplomacia presidencial, focada em sua personalidade e baseada em seu carisma. Pode-se afirmar que em sua política econômica Lula não realizou transições esperadas e manteve a política macroeconômica liberal consagrada por FHC, baseada no tripé econômico: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Nesse sentido, realizou uma política econômica aquém do que se esperava dele, em termos de geração de emprego e demanda, embora tenha provocado uma melhora na distribuição de renda na sociedade brasileira, que é nossa principal mazela, com seus programas sociais. Agradou a banqueiros e empresários e pouco fez para combater de fato os problemas estruturais que promovem a desigualdade social, como a questão da educação e da expansão dos investimentos produtivos. De acordo com Almeida (2004), a atuação na Política Externa foi na qual Lula mais realizou o que se esperava de um partido socialista, ao ampliar sua agenda e diversificar as parcerias a nível político e econômico, dado o ativismo diplomático demonstrado desde o começo do governo Lula. Houve uma priorização das relações com os países emergentes, considerados semelhantes em termos de nível de desenvolvimento com foco na Cooperação Sul-Sul, sem um rompimento dos fortes vínculos com os países desenvolvidos do Norte. Embora tenha havido elementos de continuidade em relação a governos anteriores, Jakobsen aponta que a PEB durante o governo Lula assumiu uma nova forma. De acordo com Jakobsen (2017), nesse período foi transmitida uma imagem do país muito diferente da vista nos governos anteriores. Jakobsen (2017) chama o período de redemocratização da política externa, no qual o ex-presidente se tornou um porta-voz e interlocutor das necessidades sociais do Brasil e de outras nações em desenvolvimento nos debates e organismos internacionais, como a ONU, OMC e a OMS, na luta contra as ações exploratórias das potências mais ricas. A política externa do período Lula se concentrou no aprofundamento das relações Sul-Sul, com presença forte na Unasul, no BRICS e no fortalecimento do Mercosul, mas como manutenção das relações com as potências hegemônicas. O governo assumiu, assim, uma postura universalista e engajada em suas relações externas. Observou-se uma expansão das relações econômicas internacionais, com atração de novos parceiros comerciais, ampliando as 8 exportações brasileiras, e a abertura de mercados para investimentos externos a nas empresas nacionais, como a Petrobras e a Vale (Jakobsen, 2017). Cornetet (2014) destaca que o Brasil adquiriu mais respeito e prestígio internacional a partir do governo Lula, com ênfase sobre o desenvolvimentismo e a cooperação Sul-Sul. O Brasil nesse período se orientou por uma premissa de PEB de não indiferença e não intervenção. Sobre o governo Dilma, que foi afastada em 2016, Jakobsen destaca que Dilma preservou algumas conquistas da política externa do governo anterior, porém não realizava esforços ativos em estreitar vínculos, tendo uma postura mais ativa em sua atuação diplomática (Jakobsen, 2017). Para Cornetet (2014), observa-se certa continuidade na PEB de Dilma em relação ao governo anterior, pois Dilma priorizou também a América do Sul, fazendo mais visitas a esses países, mas não colocou tanta ênfase na política externa, como o seu antecessor. Cornetet (2017, p. 141) assinala que “enquanto Lula consolidou-se como líder político a partir de seu carisma, Dilma destacou-se na administração pública por sua capacidade técnica e gestora”, embora tenham sido denunciados escândalos de corrupção durante o seu governo. TEMA 5 – OS DESAFIOS ATUAIS DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA: DE 2016 A 2020 No que tange ao governo de Temer, Jakobsen (2017) destaca que houve uma ação de ruptura e enfraquecimento das relações externas, observadas nas constantes mudanças de ministros de relações exteriores do governo Temer. Moreira (2020) argumenta que nos governos Temer e Bolsonaro observa- se uma continuidade na orientação da política externa, que busca sua desideologização, termo que aparece expressamente em alguns discursos de Temer e Bolsonaro, assim como de seus ministros. Esse processo ocorre com o afastamento das relações com os países da região, assim como a aproximação e o alinhamento quase automático aos EUA e uma falta de agenda e de posicionamento em relação aos temas da agenda de modo geral, com exceção da temática da segurança, que passa a ser priorizada. Durante o governo Temer, existem dois momentos da política externa, com o Ministro das Relações Exteriores Serra (2016-2017) e Nunes (2017-2018). Na primeira fase, Serra apresenta os novos princípios de política externa brasileira, 9 com um progressivo distanciamento com a Venezuela e maior aproximação com os EUA, ações associadas àpauta da desideologização (Moreira, 2020). Uma das ênfases da gestão de Serra no MRE foi a ampliação comercial, focada na conclusão dos acordos comerciais com a Europa e com o México. Outro tema que mereceu destaque, além da desideologização e do comércio, foi a segurança nas fronteiras, que teve como resultado contatos com os países fronteiriços para organizar o combate ao crime organizado (Moreira, 2020). No mandato de Nunes no MRE (2017-2018), houve a suspensão efetiva da Venezuela do Mercosul e a finalização de alguns acordos comerciais, como o do Chile, assim como a assinatura de acordos para combater o crime transnacional, a exemplo do Acordo com a Bolívia (Moreira, 2020). Durante o governo Bolsonaro, houve a articulação de um distanciamento ainda maior com a Venezuela, por meio do não reconhecimento do governo Maduro no país vizinho, assim como se procurou preservar o distanciamento da Nicarágua, como estratégias da desideologização. Em termos comerciais, houve aprofundamento das negociações de acordos comerciais com alguns Estados, como Canadá, Coreia, Colômbia, Singapura, sendo uma continuação de processos iniciados no governo Temer. De acordo com Moreira (2020, p. 17), “no aspecto de segurança nas fronteiras, as ações ainda são tímidas e pouco efetivas, mas focadas em discursos oficiais, já que é uma plataforma de campanha eleitoral do presidente”. Observaram-se traços de continuidade entre os dos governos (Temer e Bolsonaro) na PEB. Verificou-se que, em ambos, a diplomacia foi limitada a poucos temas e não houve uma postura universalista, tampouco uma linha de atuação clara. Isso prejudicou a imagem do Brasil no exterior, pois não se buscou projetar o Brasil externamente no âmbito comercial ou político, demonstrando que a PEB não foi uma prioridade para Temer e para Bolsonaro até 2020 (Moreira, 2020). Jakobsen (2017) avalia que nenhum dos governos brasileiros após a redemocratização elaborou uma política externa que promovesse maior integração com a sociedade e um envolvimento para elaborar espaços de diálogos com diferentes grupos sociais a respeito das orientações da política externa. Esse aspecto de inclusão da sociedade civil de modo efetivo e das demandas da sociedade na agenda internacional permanece como o maior desafio da PEB. 10 Nesta aula, conhecemos o posicionamento em relação a algumas temáticas sociais relevantes, assim como as características da PEB entre 2003 e 2020, demonstrando mudanças no percurso. Na primeira parte da aula, analisamos a temática da Cooperação Sul-Sul, que ganhou força na PEB sobretudo a partir dos anos 2003 e orientou as ações dos governos do PT em sua inserção internacional. Depois, visualizamos a importância da temática da educação como ferramenta de poder brando nas relações do Brasil com outros países, sobretudo os africanos. Na terceira parte, compreendemos o papel do Brasil nos projetos de cooperação em saúde com países menos favorecidos, que se tornou um tema relevante na PEB nos anos 2000. Investigamos as orientações de Lula na política externa, que teve presença ativa no cenário internacional, por meio de uma diplomacia presidencial intensa, com ênfase nas relações com os países do Sul, mas preservando os vínculos com os países mais ricos. A PEB de Dilma demonstrou uma continuidade do seu antecessor, com menos prioridade da PEB na agenda de política da ex-chefe de Estado. Por fim, analisamos as orientações de PEB de Temer e Bolsonaro, que tiveram alguns eixos comuns, como a desideologização e a ênfase no tema dos acordos comerciais e da segurança nas fronteiras. Pudemos observar que ambos governos não deram prioridade para a PEB em sua agenda, deixando essa importante área relegada a segundo plano e promovendo processos de alinhamento quase automático aos EUA, especialmente com Bolsonaro. 11 REFERÊNCIAS ALMEIDA, P. R. de. Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula. Rev. bras. polít. int. [online]. 2004, v. 47, n.1, p.162-184. CORNETET, J. A Política Externa de Dilma Rousseff: Contenção na Continuidade. Revista Conjuntura Austral v. 5, n. 24, jun./jul. 2014. CULPI, L. A.; CUSSON, G. The BRICS? New Development Bank A China-led Challenge to Western Hegemony? In: WOERTZ, Eckhart. (Org.). Reconfiguration of the Global South: Africa and Latin America and the Asian Century. London: Routledge, 2016. JAKOBSEN, K. Análise de Política Externa Brasileira: continuidade, mudanças e rupturas no Governo Lula. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017, Disponível em: <http://143.107.26.205/documentos/Kjeld_Aagaard_Jakobsen.pdf>. Acesso em: 25 maio 2020. LEAL, F. G.; MORAES, M. C. B. Política Externa Brasileira, Cooperação Sul-Sul e Educação Superior: o caso do Programa Estudante-Convênio de Graduação. Educ. Soc. [online]. 2018, v. 39, n. 143. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 73302018000200343>. Acesso em: 25 maio 2020. LIMA, J. Saúde global e Política Externa Brasileira: negociações referentes à inovação e propriedade intelectual. Ciências saúde coletiva, v. 22, n. 7, jul. 2017. Disponível em: <https://www.scielosp.org/article/csc/2017.v22n7/2213-2221/>. Acesso em: 25 maio 2020. MIRANDA, J.; BISCHOFF, V. Educação Internacional como soft power: o ensaio da política externa de Dilma Rousseff. Revista Ibero-Americana em Estudos de Educação, v. 13, n. 3, 2018. MOREIRA, D. As semelhanças entre os governos Temer e Bolsonaro na política externa (2016-2019). Revista Neiba, Cadernos Argentina-Brasil, Rio de Janeiro, v. 9, n.1, 2020. PEREIRA, A. E.; BERNARDO, G. J.; CULPI, L. A.; PESSALI, H. F. A governança facilitada no Mercosul: transferência de políticas e integração nas áreas de educação, migração e saúde. Rev. Adm. Pública [online]. 2018, v. 52, n. 2. 12 REZENDE, B. Saúde e Política Externa: os 20 anos da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (1998-2018). Ministério da Saúde: Brasília, 2018. SANTOS, R. F.; CERQUEIRA, M. R. Cooperação Sul-Sul: experiências brasileiras na América do Sul e na África. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 23-47, mar. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0104- 59702015000100023&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 maio 2020.