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Cidadania e problemas sociais APRESENTAÇÃO Nesta Unidade de Aprendizagem, analisaremos a cidadania e a sua aplicação na sociedade brasileira, através da constatação dos principais problemas sociais, como a violência e sua natureza, a relação desta com o tráfico de drogas e também as diversas formas de preconceito e exclusão social existentes no Brasil. Bons estudos. Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o conceito de cidadania não apenas no sentido de deveres, obrigações e direitos. • Analisar o contexto por trás da violência.• Identificar as diversas formas de preconceito e exclusão existentes no Brasil.• DESAFIO Dois dos problemas mais graves que explicam a permanência de índices altíssimos de criminalidade em nosso país são o tráfico de drogas e a estrutura deficiente do sistema prisional. Pensando nisso, responda: a) Quais são as causas sociais da violência no Brasil? b) Para você, existe relação entre pobreza e violência? INFOGRÁFICO O Infográfico a seguir apresenta dados sobre o uso de drogas pela população brasileira. Os dados foram estimados a partir da pesquisa sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, em parceria com a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) e com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). A pesquisa foi realizada nas 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes, nos anos de 2001 e 2005. Confira! CONTEÚDO DO LIVRO O Brasil é um país que enfrenta hoje grandes desafios sociais que se relacionam com o aumento da pobreza e das desigualdades sociais, bem como da criminalidade e violência que é percebida cotidianamente. O tráfico de drogas é o grande responsável pela superlotação dos estabelecimentos prisionais e parece adquirir cada vez mais força, sobretudo por recrutar crianças e jovens da periferia para executarem suas tarefas em troca de dinheiro rápido e “fácil”. Embora a maioria dos brasileiros conheça o conceito de cidadania, saiba que têm direitos e deveres, a preocupação com o social e sua possibilidade de intervenção ainda é muito pequena e, em alguns casos, incipiente. No Capítulo Cidadania e problemas sociais, da obra Sociedade, cultura e cidadania, você vai estudar as múltiplas dimensões do conceito de cidadania que poderiam vir a ser aplicadas no Brasil. Também irá conhecer as principais causas que originam a violência em nosso país, identificando suas diversas formas que afligem e excluem muitos indivíduos no Brasil. Boa leitura SOCIEDADE, CULTURA E CIDADANIA Pablo Rodrigo Bes Cidadania e problemas sociais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o conceito de cidadania para além de deveres, obrigações e direitos. Analisar o contexto por trás da violência. Identificar as diversas formas de violência e exclusão existentes no Brasil. Introdução O Brasil é um país que enfrenta grandes desafios sociais relacionados ao aumento da pobreza e das desigualdades sociais, bem como da crimi- nalidade e da violência. O tráfico de drogas é o grande responsável pela superlotação dos estabelecimentos prisionais e parece adquirir cada vez mais força, sobretudo por recrutar crianças e jovens da periferia para executarem tarefas em troca de dinheiro rápido e “fácil”. Embora a maioria dos brasileiros conheça o conceito de cidadania e saiba que têm direitos e deveres, a preocupação com o social e as possibilidades de intervenção ainda são muito pequenas e, em alguns casos, incipientes. Neste capítulo, você vai estudar as múltiplas dimensões do conceito de cidadania que poderiam ser aplicadas no Brasil. Também vai conhe- cer as principais causas da violência no País, identificando suas diversas formas, que afligem e excluem muitos indivíduos. Múltiplas dimensões da cidadania O conceito de cidadania no Brasil ganhou impulso a partir das discussões que ocorreram no fi nal do Regime Militar. Nesse período, buscava-se a re- democratização do País, o que se consolidou com a escrita da Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã. Como você pode imaginar, o conceito de cidadania é complexo. Ele é defi nido historicamente a partir dos processos e interações que ocorrem em sociedade. O primeiro autor que definiu as múltiplas dimensões do conceito de cida- dania foi Marshall (1967), sociólogo britânico que dividiu o conceito em três direitos: civis, políticos e sociais. Analisando como esses direitos surgiram na Inglaterra, o autor destacou que seguiram esta sequência: começaram com os direitos civis, associados à liberdade individual dos homens, seguidos pelos direitos políticos e pela necessidade de os sujeitos participarem das decisões de ordem do governo da nação e, posteriormente, pelos direitos sociais, entre eles o emprego e a educação popular como prioridade. Já no Brasil, o processo histórico não seguiu a mesma sequência. De acordo com Carvalho (2008, p. 11), o País apresentou duas principais diferenças: A primeira refere-se à maior ênfase em um dos direitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à alteração na sequência em que os direitos foram adquiridos: entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na sequência inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou norte-americano, e de um cidadão brasileiro, não estamos falando exatamente da mesma coisa. É importante você notar que o conceito de cidadania está sempre atrelado ao conceito de Estado-nação. Dessa forma, cabe ao Estado prover aos cidadãos tais direitos a partir dos órgãos e instituições nacionais, entre elas a própria escola. Com a crise atual do Estado-nação, há desconfiança em relação à sua capacidade de prover esses direitos. Além disso, ocorre a hegemonia mundial do neoliberalismo. Nesse contexto, a cidadania vai ampliar a sua dimensão novamente, uma vez que a própria sociedade é convocada a participar da resolução de conflitos e problemas sociais existentes. Para analisar as relações do Estado com as dimensões da cidadania, acom- panhe o Quadro 1 a seguir. Cidadania e problemas sociais2 Fonte: Adaptado em Carvalho (2008). Dimensões Características Ponto principal Direitos civis São os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. Incluem o direito de ir e vir, escolher o trabalho, manifestar o pensamento, organizar-se, ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, não ser preso a não ser por autoridade competente e de acordo com a lei e não ser condenado sem processo regular. Liberdade individual Direitos políticos Dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade. Normalmente, limitam-se a uma parcela da população e relacionam-se com a capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar e ser votado. Direito ao voto Direitos sociais Enfatizam a participação de todos na riqueza coletiva. Incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. Dependem do Poder Executivo e, em sociedades politicamente organizadas, permitem a redução das desigualdades produzidas pelo capitalismo e um mínimo de bem-estar a todos. Justiça social Quadro 1. Dimensões clássicas da cidadania Embora o Quadro 1 aborde o conceito clássico de cidadania, é importante você observar que, no conceito de sociedade democrática contemporâneo, possuir direitos significa também ter deveres e obrigações em relação à coletividade, o que faz com que os direitos sejam garantidos. Porém, o conceito de cidadania na atualidade vai muito além disso, principalmente devido às novas configurações sociais que surgiram ao redor do mundo nas últimas décadas. No mundo pós- -globalização, ocorre a ascensão do capitalismo, de modo que a participaçãodo Estado diminui enquanto o mercado e o consumo (e a dívida) passam a ditar as regras e impor novos modos de vida. Dessa forma, como nem todos, 3Cidadania e problemas sociais ainda que cumpram suas obrigações, têm os mesmos direitos como cidadãos, são necessários novos movimentos em torno de reivindicações por um Brasil melhor. É aí que entra, por exemplo, o conceito de cidadania multicultural. De acordo com Oliveira (2018, documento on-line), “[...] a cidadania multi- cultural assinala uma preocupação geral com a reconciliação do universalismo de direitos e da associação de membros em Estados-nações liberais com o desafio da diversidade étnica e demais aspirações de identidade atribuídas [...]”. Nesse sentido, é preciso considerar que os grupos étnicos diversos possuem suas histórias, que podem apresentar favorecimentos e prejuízos a alguns deles, o que implica o cidadão ali presente. Ser cidadão afrodescendente, por exemplo, é diferente de ser cidadão “branco”. Afinal, existe todo um processo histórico e social que precisa ser resgatado, positivado e corrigido no caso dos afrodescendentes, inclusive no ambiente escolar. É o mesmo processo que ocorre quando os mais diversos movimentos sociais buscam seus direitos específicos relacionados às suas identidades culturais. Nesse caso, eles estão exercendo a sua cidadania multicultural (Figura 1). Figura 1. A cidadania multicultural entende que todos os grupos étnico- -culturais são igualmente importantes na constituição de uma nação. Fonte: Annasunny24/Shutterstock.com. Cidadania e problemas sociais4 Taylor (2004, p. 5), ao estudar o conceito de cidadania e as suas reconfi- gurações, reforça a ideia de que ela não deve estar restrita ao Estado: O que nós propomos é que não se insista mais sobre uma cidadania abordada através da educação cívica ou da instrução cívica, mas que se reinvente, como condição prévia à realização de uma cidadania multicultural, uma educação popular (por outras palavras, uma educação autenticamente do povo, pelo povo e para o povo) visando a co-habitação cultural. Outro aspecto interessante do conceito de cidadania é que hoje é possível, a partir da revolução das comunicações e informações digitais, via internet, a cidadania cosmopolita. Tal cidadania busca a construção de um sentido comum em relação aos cidadãos globais. Esse conceito desloca os problemas sociais locais, de uma nação específica, para reconhecer que eles ocorrem em todas as nações, buscando alternativas para minimizar tais problemas de forma global. Oliveira (2018, documento on-line) comenta que a cidadania cosmopolita defende “[...] o forte senso do coletivo e responsabilidade individual para com o mundo como um papel de suporte para desenvolver as efetivas instituições globais a fim de aliviar a pobreza e a desigualdade, a degradação do meio ambiente e a violação aos direitos humanos [...]”. Existem inúmeras iniciativas de organizações e voluntários baseadas nesse conceito de cidadania cosmopo- lita. Tais iniciativas procuram assumir ações que anteriormente eram vistas como obrigações estatais. Morin (2000), ao formular os saberes necessários à educação do futuro, enfatiza um conceito que se assemelha ao de cidadania cosmopolita. Veja: A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensões múltiplas. Dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão necessita da reforma planetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educação do futuro de cidadania planetária (MORIN, 2000, p. 104). Dessa forma, o conceito de cidadania se refere à capacidade pessoal e coletiva de comunicação, interação e análise das racionalidades e mentalidades existentes e atuantes que envolvem a formação dos sujeitos sociais contempo- râneos. Como você pode imaginar, a educação é uma ferramenta primordial para o desenvolvimento dessa capacidade. Ser um cidadão contemporâneo significa ser ativo, participante, envolvido com as tramas sociais cotidianas. 5Cidadania e problemas sociais Significa buscar uma sociedade melhor, não se aquietar diante de injustiças sociais, da violência, da criminalidade, do desemprego e de outras mazelas sociais que existem no Brasil (e no mundo) atual. Uma das formas de cidadania que têm relação direta com a educação popular defendida por pesquisadores da área é a cidadania cognitiva. Ela se traduz na capacidade de análise da realidade, de interpretação dos fatos sociais vivenciados e de busca por uma mudança possível da realidade. Para isso, é necessário que os conteúdos escolares (currículo) com- preendam essa possibilidade e não sigam uma tendência tradicional elitista e etnocêntrica. A violência no Brasil: contexto e causas principais O Brasil é um país que enfrenta grandes problemas em relação à violência. Ela se manifesta diariamente, seja por aspectos relacionados à criminalidade, seja por questões étnico-culturais relacionadas aos grupos minoritários que coexistem na sociedade. Um país que possui uma grande desigualdade social e uma distribuição de renda muito desigual que se perpetua historicamente acaba por fornecer as condições para que atos violentos ocorram diariamente, especialmente frente à inefi ciência de um Estado fraco e corrupto. Esse quadro de violência que assola o Brasil fica melhor exemplificado a partir dos dados do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Veja: Em 2016, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo informações do Ministério da Saúde (MS). Isso equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, que corresponde a 30 vezes a taxa da Europa. Apenas nos últimos dez anos, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil (INSTITUTO DE PESQUISA ECO- NÔMICA APLICADA, 2018, documento on-line). Para conhecer um pouco melhor a violência epidêmica que existe na rea- lidade brasileira, você deve analisar os fatores que costumam causá-la, como os socioculturais, institucionais, culturais e o tráfico de drogas. Os fatores socioeconômicos brasileiros mais graves que se relacionam com a violência Cidadania e problemas sociais6 são a pobreza e a fome. Em alguns casos, crimes são cometidos em virtude da precariedade e da necessidade de grupos sociais periféricos e excluídos das possibilidades de emprego e trabalho. Ao analisar essas questões socioeconômicas, Chesnais (1999, p. 55) destaca que “[...] o desemprego ou a ausência de renda levam à tentação da ilegalidade, visto ser fácil, por vezes, conseguir ganhos astronômicos à margem da lei [...]”. A desigualdade econômica percebida na falta de empregos formais, com carteira assinada, ou mesmo de trabalhos a serem executados pelos mais pobres, contribui para que grupos do crime organizado recrutem seus membros com facilidade no interior das favelas e demais guetos da periferia. Para verificar essa relação entre a pobreza e a violência, basta você observar que, segundo o Atlas da Violência 2018, os estados do Norte e do Nordeste tiveram uma taxa de crescimento da violência superior a 80% no período analisado (2006–2016) em relação a todos os demais estados de outras regi- ões, que cresceram em margens bem menores. É sabido que muitos estados das regiões Norte e Nordeste apresentam um quadro histórico de pobreza e desigualdade social, o que amplia as ações criminosas e a violência de toda ordem (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2018). As questões institucionais dizem respeito aos aspectos relacionados ao governo e seus órgãos, que atendem (ou deveriam atender) à população e fornecem a segurança necessária. As instituições que atuam diretamente no combate à violência são a polícia, a Justiça e o sistema penitenciário. Todas apresentam sérios problemas bemespecíficos. As polícias existentes se dividem entre civis, militares (estaduais) e federal. As polícias civis e militares em grande parte do País enfrentam má fama e descrédito, o que se relaciona aos baixos salários praticados e ao seu envol- vimento com a corrupção e com o tráfico de drogas em algumas localidades. A Justiça, por sua vez, se encontra em alguns casos engessada em códigos penais antigos e que eventualmente favorecem que criminosos fiquem fora do sistema carcerário. Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública contidos no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de 2017, a população prisional brasileira em junho de 2016 era de 726.712 presos para 368.049 vagas existentes. Portanto, havia uma taxa de ocupação de 197,4%, ou seja, a superlotação é algo sério e constante nessas instituições (BRASIL, 2017). A taxa de aprisionamento é da ordem de 352,6, ou seja, a cada 100 mil habitantes do País, 352 estão encarcerados, o que é alarmante. Segundo o INFOPEN (BRASIL, 2017, p. 9), “[...] em junho de 2016, a população prisio- nal brasileira ultrapassou, pela primeira vez na história, a marca de 700 mil 7Cidadania e problemas sociais pessoas privadas de liberdade, o que representa um aumento da ordem de 707% em relação ao total registrado no início da década de 90 [...]”. Do total de pessoas privadas de liberdade no Brasil, 40% são presos provisórios que ainda não foram julgados nem condenados. Embora exista um grande esforço da Justiça e da polícia para combater o crime, a estrutura do sistema carcerário é precária e apresenta grandes deficiências no que diz respeito à reabilitação e à reinserção social dessas pessoas privadas de liberdade. De acordo com Bes Oliveira (2016, p. 584): [...] é evidente a urgência e a importância que se repensem e se reestruturem as formas como a reinserção social tem sido proposta no Brasil. Os projetos sociais existentes nas instituições carcerárias são importantíssimos, porém não são efica- zes neste aspecto, pois têm seu término dentro do período do encarceramento [...]. Assim, é comum o insucesso das instituições nacionais que deveriam coibir a insegurança, combater a criminalidade e reinserir (a partir de processos educacio- nais apropriados) as pessoas que cometem crimes. Nesse contexto, duas frentes se favorecem: por um lado, há a formação das milícias nas favelas da periferia; por outro, “[...] esse fracasso dos dispositivos de segurança pública gera o sucesso das polícias paralelas, mais eficazes, melhor remuneradas porém muito mais onerosas e, por isso, reservadas à classe alta [...]” (CHESNAIS, 1999, p. 57). Os aspectos culturais que desencadeiam as mais diversas formas de vio- lência no Brasil se associam com os grupos minoritários que se desviam da norma social padronizada desde a Modernidade. Tal norma estabeleceu como características étnico-culturais privilegiadas aquelas dos indivíduos homens, brancos, heterossexuais, cristãos e de classe social elevada. Aqueles que apresentam quaisquer traços identitários que se desviem dessa norma estão sujeitos ao que Appadurai (2009) denominou “identidades predatórias”. Assim, são vítimas dos mais diversos tipos de violência. Segundo o autor, são [...] “predatórias” aquelas identidades cuja mobilização e construção social re- querem a extinção de outras categorias sociais próximas, definidas como ame- aças à própria existência de algum grupo, definido como “nós”. As identidades predatórias emergem, periodicamente, de pares de identidades, algumas vezes de conjuntos maiores do que dois, que têm longas histórias de contato próximo, mistura e algum grau de mútuos estereótipos. A violência ocasional pode ou não ser parte dessas histórias, mas algum grau de identificação contrastante sempre está envolvido. Um dos membros do par ou do conjunto frequentemente torna-se predatório ao mobilizar um entendimento de si mesmo como uma maioria amea- çada. Esse tipo de mobilização é o passo-chave para transformar uma identidade social benigna numa identidade predatória (APPADURAI, 2009, p. 46). Cidadania e problemas sociais8 É comum que essa violência esteja presente nos crimes de racismo, femi- nicídio e homofobia cometidos atualmente na sociedade brasileira. É como se os grupos que não se identificam com essas formações identitárias agissem de forma violenta para manifestar seu repúdio e, em alguns casos, até mesmo exterminar os indivíduos que são alvo de preconceito. Os fatores culturais no Brasil que levam à violência e a práticas racistas também devem ser consi- derados. Afinal, eles continuam a existir, revelando a profunda desigualdade social que se estabelece de forma étnico-racial sobre a nação. Há ainda o aumento crescente e constante da criminalidade no País, com a ascensão do crime organizado em torno do narcotráfico, que envolve todos os cidadãos, mas principalmente a juventude da periferia. Ao analisar a situação do narcotráfico nacional e internacional, Junqueira e Rodrigues (2018, p. 48) constatam que: [...] a América do Sul é um continente que ainda enfrenta diversos problemas de ordem social e econômica, como, por exemplo, a falta de trabalho e oportu- nidades, as desigualdades sociais, entre outros. Essas características acabam gerando consequências à sociedade, tais como proporcionar o surgimento de problemas ligados à criminalidade, como o tráfico de pessoas, armas e drogas. Para manter as estruturas do crime organizado que dão condições de funcio- namento ao tráfico de drogas no Brasil, inúmeras ações violentas e homicídios são praticados. Tais ações ocorrem principalmente para a manutenção dos territórios das facções que comandam a venda e a distribuição dos narcóticos. Um dos grandes indícios de que a desigualdade social é um problema sério e que merece atenção é o fato de o crime organizado de tráfico de drogas aliciar crianças e adolescentes para que executem tarefas criminosas e, dessa forma, obtenham os recursos financeiros que tanto almejam. Na atualidade, 55% das pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos prisionais são jovens adultos que têm entre 18 e 29 anos de idade. Para agravar ainda mais a situação, 62% das mulheres presas e 26% dos homens estão encarcerados pelo crime de tráfico de drogas (BRASIL, 2017, documento on-line). 9Cidadania e problemas sociais Principais formas de violência e exclusão no Brasil Como você já sabe, o Brasil apresenta grandes desigualdades sociais. Assim, muitas pessoas são excluídas das possibilidades de concorrer e competir por melhores condições de trabalho e emprego. A exclusão social se manifesta de forma cruel. Muitas vezes, ela faz com que o processo de formação das identidades de crianças e jovens se constitua a partir de exemplos negativos, desonestos e associados ao crime. Isso ocorre porque o crime aparece como alternativa para que se viva em igualdade de condições de consumo e com a garantia da satisfação das necessidades básicas de sobrevivência. Dessa forma, “[...] a exclusão social tem sido uma categoria importante e presente nas análises que buscam relacionar violência e direitos civis. Enfatiza- -se o fato de que os excluídos dos direitos tornam-se alvos, ou atores, mais imediatos da violência [...]” (PORTO, 2000, p. 187). Ao mesmo tempo em que ocorre a organização de grupos étnico-culturais minoritários em busca de seus direitos de cidadãos, há, por outro lado, uma reação conservadora contra essas identidades culturais, que, por vezes, se manifesta de forma violenta. Para resolver ou amenizar tais problemas, são necessários “[...] espaços de manifestação das diferenças e do conflito, enquanto mecanismos de ‘prevenção’ contra a violência [...]” (PORTO, 2000, p. 199). As iniciativas de educação multicultural e de relações étnico-raciais, que buscam trabalhar a diversidade e a interculturalidade, têm grande importância para essa prevenção. A seguir, você pode ver alguns dos principais tipos de violênciaque aco- metem a sociedade brasileira na atualidade: violência de gênero; violência sexual; etnocídio. A violência de gênero é a violência relacionada com os diferentes papéis atribuídos ao homem e à mulher. Como você sabe, historicamente, o homem adquiriu maior poder e prestígio do que a mulher. É justamente contra esse posicionamento superior masculino, que relega a mulher ao segundo plano, que o movimento feminista têm se articulado. No Brasil, embora exista uma rede que procura coibir os casos de violência contra a mulher, os casos de femini- cídio têm aumentado. Segundo a Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/2006), em seu art. 7º, são formas de violência doméstica e familiar contra a mulher a violência física, a violência psicológica, a violência sexual, a violência pa- trimonial e a violência moral. Cidadania e problemas sociais10 Dessa forma, a mulher se encontra sujeita a vários tipos de violências. A violência física atenta contra a integridade de seu corpo. A violência psicológica lhe causa danos emocionais e diminuição da autoestima. É o caso de ameaças, humilhações e constrangimentos cotidianos, insultos e cerceamento de ações. Já a violência sexual se manifesta quando a mulher é forçada a manter relações sexuais não desejadas, envolvendo também o aborto e a prostituição mediante coação. Por sua vez, a violência patrimonial refere-se à retenção ou à subtração de bens, valores e direitos ou recursos econômicos. Por fim, a violência moral envolve condutas que caracterizam injúria e calúnia. Segundo os dados estatísticos do Ligue 180 — Central de Atendimento à Mulher, iniciativa do Governo Federal, no primeiro semestre de 2018, foram recebidas as denúncias apresentadas no Quadro 2 (BRASIL, 2018). Fonte: Adaptado de Brasil (2018). Tipo de violência Número de casos % Violência física 16.615 43,31 Violência psicológica 12.745 33,22 Violência sexual 2.445 6,37 Violência patrimonial 647 1,69 Violência moral 1.271 3,31 Quadro 2. Denúncias do Ligue 180 — Central de Atendimento à Mulher Nem todos os casos de violência são denunciados e ainda existem outras formas de violência contra a mulher além das analisadas. Portanto, você pode perceber o quanto a situação é séria. O número de feminicídios para esse mesmo período foi de 14 casos denunciados, sendo que houve 3.018 tentativas de morte que não se consumaram, o que é alarmante. Os casos de violência sexual não se referem somente às mulheres. Todos aqueles que se desviam do padrão heterossexual, como lésbicas, gays, bissexu- ais, transexuais e travestis (LGBTT), sofrem com a violência conhecida como homofóbica. Essa violência se caracteriza por ações que manifestam rejeição irracional ou ódio em relação aos homossexuais. Tais ações ocorrem de forma arbitrária e procuram desqualificar o outro enquadrando-o como inferior ou anormal. Um levantamento realizado pelo órgão não governamental Grupo 11Cidadania e problemas sociais Gay da Bahia a partir de dados de grupos LGBTT dos demais estados brasi- leiros registrou 126 mortes somente no primeiro trimestre de 2018 (Figura 2). Figura 2. Mortes homofóbicas por estado em 2018. Fonte: Querino (2018, documento on-line). Ao referir-se às formas de exclusão social vivenciadas pelos sujeitos da comunidade LGBTT, Peres (2004, p. 25) destaca que: [...] as exclusões e as formas de opressão experimentadas pela população homossexual, e em especial as travestis, desfavorecem qualquer possibilidade de oportunidades à população gay, dentro da configuração social em que vivemos, colocando essa população exposta a uma maior vulnerabilidade e riscos diante do HIV e da AIDS, tanto no plano individual [...] como no plano social, que estigmatiza, discrimina e violenta os direitos humanos, assim como o direito fundamental à singularidade, condição básica para que a pessoa possa sentir um mínimo de dignidade enquanto ser humano. Cidadania e problemas sociais12 A violência étnica também se faz presente no Brasil. Ela normalmente é praticada contra as etnias que passaram por um processo histórico de assime- tria de poder desde a época da colonização brasileira, como é o caso da etnia afrodescendente (negra) e da indígena. Ambas sofrem com o preconceito, o racismo e a discriminação. As populações indígenas são as que têm sofrido com os crimes de etnocídio no Brasil contemporâneo. Um dos problemas enfrentados pela população indígena são os conflitos com grandes latifundiários pela posse das terras que seriam de direito originário das etnias indígenas segundo a Constituição. Para as etnias indígenas, a terra não representa propriedade como para a cultura capitalista. Em vez disso, a terra tem conotação espiritual e sagrada para que os homens desenvolvam todo o seu potencial. Segundo os dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil: dados de 2017, elaborado pelo Conselho Indigenista Mis- sionário (CIMI, 2017), houve 110 casos de assassinato e mais 27 tentativas de homicídio no período analisado, além de demais ameaças e lesões corporais. Como você pode perceber a partir dessa cartografia de algumas das princi- pais formas de violência que ocorrem no Brasil e que estão relacionadas com a exclusão social, o País ainda tem muito a evoluir como nação. A ideia é buscar melhorias estruturais que forneçam condições similares de cidadania a todos os grupos étnico-culturais que compõem a nação. Para reverter esse quadro, é necessária tanto a participação mais consistente e planejada do Estado e de suas instituições quanto o empenho da sociedade civil organizada, em busca de uma convivência intercultural equitativa e com justiça social. Na contemporaneidade, o conceito de violência assume um espectro muito maior, o que é positivo para a sociedade. Afinal, ações que antes eram de âmbito privado e que levavam muitas pessoas a sofrerem e suportarem em silêncio hoje são reconhecidas como formas de violência e podem ser combatidas. No caso das mulheres, em gerações anteriores, muitas vezes a esposa suportava seu casamento, tolerando humilhações, insultos e ameaças de seu cônjuge sem reconhecer nessas práticas uma conduta machista e violenta. Hoje, na maioria dos casos, já não é mais assim. As mulheres conquistaram seu papel de igualdade na sociedade e já não se submetem mais a tais maus tratos, preocupando-se com sua felicidade, que se materializa num relacionamento sadio e sem agressões físicas ou verbais. 13Cidadania e problemas sociais APPADURAI, A. O medo ao pequeno número: ensaio sobre a genealogia da raiva. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2009. BES OLIVEIRA, P. R. A educação no carcere: aproximações e distanciamentos de uma pedagogia prisional. 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Também permite compreender a associação existente entre o tráfico de drogas e a violência e como as deficiências do sistema judiciário e prisional impactam na percepção da punição e na recuperação dos criminosos. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! EXERCÍCIOS 1) (UFPEL, 2007 — adaptado) Os índices crescentes de violência no Brasil resultam da combinação de fatores que incluem miséria, crescimento desordenado das cidades, lentidão da justiça e crescimento do tráfico de drogas. Na base de tudo, está a desigualdade social, que faz com que grande parcela de brasileiros não tenha perspectivas de melhorar de vida. Com base nessas informações e em seus conhecimentos sobre as causas da diferença de acesso da população aos direitos sociais básicos, é correto afirmar que: A) O processo de "colonização de exploração" ocorrido no Brasil não determinou segregação, indicando uma relação de igualdade entre colonizador e colonizado. B) A escravidão que permeou um longo período da história econômica brasileira não impactou o processo de exclusão social verificado no país. C) A formação de uma sociedade patriarcal e patrimonial resultou em uma sociedade que promove o direito de igualdade para todos. D) O fim da escravidão, acompanhado de políticas de inclusão social para os negros, fez com que se extinguisse toda forma de preconceito na sociedade. E) A organização da sociedade brasileira sedimentou-se na segregação entre a elite e o povo, o branco e o negro, o homem e a mulher, formando um Estado resultante da formação desta sociedade. 2) (ENEM, 2012 — adaptado) O que vemos no país é uma espécie de espraiamento e a manifestação da agressividade através da violência. Isso se desdobra de maneira evidente na criminalidade, que está presente em todos os redutos —seja nas áreas abandonadas pelo poder público, seja na política ou no futebol. O brasileiro não é mais violento do que outros povos, mas a fragilidade do exercício e do reconhecimento da cidadania e a ausência do Estado em vários territórios do país se impõem como um caldo de cultura no qual a agressividade e a violência fincam suas raízes. (Entrevista com Joel Birman. A Corrupção é um crime sem rosto. IstoÉ. Edição 2099, 3 fev. 2010) O argumento do texto acerca da violência e agressividade na sociedade brasileira expressa a: A) incompatibilidade entre os modos democráticos de convívio social e a presença de aparatos de controle policial. B) manutenção de práticas repressivas herdadas dos períodos ditatoriais sob a forma de leis e atos administrativos. C) inabilidade das forças militares em conter a violência decorrente das ondas migratórias nas grandes cidades brasileiras. D) dificuldade histórica da sociedade brasileira em institucionalizar formas de controle social compatíveis com valores democráticos. incapacidade das instituições político-legislativas em formular mecanismos de controle E) social específicos à realidade social brasileira. 3) "Não se pode acabar com a cultura da violência sem que surja algo em seu lugar. Precisamos resgatar sentimentos que hoje são tidos como ultrapassados ou fora de moda. Cordialidade, solidariedade e preocupação com o próximo não podem desaparecer. É necessário resgatar a importância da utopia, seja ela qual for. O que se vê hoje, e a cultura da violência se aproveita disso, é a falta de utopias. Tudo é muito individual. Eu falo, eu quero, eu penso, eu tenho, eu sou... Quando o "eu" for substituído pelo "nós", com certeza veremos a cultura da violência perder força. Uma sociedade que pensa o coletivo consegue eliminar fatores que banalizam a violência." (CANDAU, V. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999) De acordo com texto, assinale a alternativa que representa corretamente a ideia de cultura de violência: A) São comportamentos ligados aos processos primitivos de todas as civilizações. B) A cultura de violência está pouco a pouco sendo superada pelos novos padrões civilizatórios da pós-modernidade. C) São padrões de comportamento ligados aos conflitos étnicos e religiosos. D) A ideia de cultura de violência baseia-se em comportamentos agressivos e imposição de poder, hábitos que a sociedade ainda cultiva. E) É decorrente da vontade coletiva da sociedade, que é violenta por natureza própria. (IFS, 2014 — adaptado) Ao assistir a noticiários de televisão é comum nos defrontarmos com casos de crimes que chocam por sua astúcia e crueldade. A violência encontra-se entre as principais preocupações dos brasileiros e o medo passou a ser um sentimento comum no cotidiano das grandes cidades. 4) Sobre as questões de violência urbana no Brasil, assinale a alternativa correta: A) No Brasil, a violência tem feito milhares de vítimas. Em alguns casos, esse ato é praticado pela própria família, além de inúmeros outros ocorridos nas ruas. B) O crescimento desordenado das cidades e o êxodo rural pouco influenciam no aumento da violência urbana. C) Em determinados locais, a existência de um crime organizado não supera a presença e a ação do governo. D) Problemas sociais como desemprego, deficiência dos serviços públicos, principalmente os de segurança pública, não contribuem para o aumento da violência. E) A violência urbana está atrelada às classes menos favorecidas do Brasil. "Alguns indicadores mostram a precariedade dos sistemasde contenção da violência. Cerca de 2.000 roubos ocorrem diariamente na Grande São Paulo e em menos de 3% os assaltantes são presos no momento do crime. Se mesmo assim há um explosivo crescimento de nossa população carcerária é porque não basta prender. As estratégias reativas da polícia e os métodos obsoletos de investigação não estão conseguindo conter significativamente o grande volume de crimes. No Rio de Janeiro, apenas 1% dos homicídios chega a ser esclarecido pelos trabalhos de investigação, segundo revelação do Ministério Público. Se essa "eficiência" da polícia e da justiça for dobrada, a um custo impagável, o volume de crimes mal será afetado. Esse retrato da impotência de nosso sistema de controle criminal é revelador da necessidade de uma profunda reforma no sistema de prevenção criminal e não apenas isso, é necessário que as causas da violência também sejam adequadamente tratadas, sendo que a crise da segurança pública no País não será alterada significativamente." Em nenhum momento na história do tráfico de drogas no Brasil, houve uma conduta correta do Estado para desmantelar as redes de traficantes, as ações da polícia sempre resultam em abuso de poder, chacina e grandes índices de violência. 5) O texto se refere: A) A Grande capacidade do sistema político brasileiro em acabar com o tráfico de drogas. B) A Habilidade pacífica da polícia brasileira com a problemática com o tráfico de drogas. C) O poder que o Estado tem em acabar com o submundo das drogas no país. D) A ineficiência do Estado em lidar com o complexo problema das drogas no Brasil. E) A conduta correta do Estado para desmantelar as redes de traficantes. NA PRÁTICA Michèle Petit, uma antropóloga francesa, apresenta em suas publicações importantes exemplos de como a leitura impacta o leitor. Os livros de Michèle Petit, por exemplo, falam sobre experiências de leitores em espaços de crises, demonstrando assim o significado assumido pela leitora, quando essa permite ao leitor se projetar no que lê. Neste Na Prática, conheça a obra de Michèle Petit “Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva”. Uma conversa franca com os jovens destacada pelas múltiplas dimensões do ato de ler. SAIBA MAIS Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor: Análise do aumento da criminalidade Neste vídeo, disponibilizado pelo canal TVBrasil, a antropóloga Alba Zaluar faz uma análise do aumento da criminalidade. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino! Sempre a exclusão (e o preconceito, e a marginalização, e a discriminação) na sociedade e na escola! Este artigo traz uma análise do livro livro Inclusão e Discriminação na Educação Escolar, organizado por José Leon Crochík e seus colegas Lineu Norio Kohatsu, Marian Ávila de Lima e Dias, Cintia Copit Freller e Ricardo Casco, que originou-se da pesquisa Preconceito em Relação aos 'Incluídos' na Educação Inclusiva. Conteúdo interativo disponível na plataforma de ensino!
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