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ESTUDOS CULTURAIS E ANTROPOLÓGICOS Priscila Farfan Barroso Etnografia Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar o conceito de etnografia. Distinguir a etnografia dentro do quadro geral da antropologia. Definir quais os objetivos da etnografia. Introdução Neste capítulo, você vai aprender o conceito de etnografia e compre- ender como surge essa ideia ao conhecer e analisar outras culturas. Ao mesmo tempo, vai perceber a vinculação da etnografia à disciplina da antropologia, compreendendo quais as suas relações e potencialidades. Nesse sentido, etnografia não é apenas um método, mas abrange um arcabouço teórico metodológico para pensar o grupo pesquisado. Por último, vai conhecer estratégias no âmbito da etnografia que aju- dam a realizar a pesquisa com mais cuidado e compromisso. Os registros em campo, as entrevistas e a construção da árvore genealógica podem ajudar a “ver” o que não é possível enxergar de outra maneira. Conceito de etnografia Para conhecermos outras culturas, estudarmos os seus modos de vida e com- preendermos os seus pensamentos, ainda que eles sejam diferentes dos nossos, precisamos adotar algumas estratégias de pesquisa. Imagine que você chega a uma sociedade totalmente diferente da sua, more durante um tempo entre as pessoas daquele local e aprende alguns hábitos de vida próprios daquela cultura. Aos poucos, mesmo que de forma intuitiva, você vai entendendo e compre- endendo o modo de se alimentar, de se vestir, de falar, de cuidar da terra, de se relacionar entre as pessoas, de se comportar, assim como as festas e as crenças mais importantes, os motivos para rir e chorar, etc. Entretanto, no âmbito da pesquisa acadêmica, talvez não tenhamos o tempo e a disponibilidade de nos inteirarmos da vida do outro como teria um viajante sem destino. Os primeiros registros sobre outros povos foram feitos por viajantes. Um deles é alemão Hans Staden, que esteve no Brasil na época da colonização e escreveu sobre o perfil, o modo de vida dos indígenas que habitavam essas terras, as práticas canibais em contextos rituais e as relações que se estabeleciam entre eles e os colonizadores (Figura 1). Pires (2013, p. 21) conta sobre Staden: [...] apesar de ser um aventureiro alemão, portanto, sem planos de permanecer em solo brasileiro como os portugueses e os franceses, contribuiu com as suas obras para a formação das representações sobre a guerra índia, primeiramente na capitania de Pernambuco e depois na de São Vicente, onde, ambas as vezes, atuou nos conflitos armados do lado dos lusos contra seus inimigos índios e normandos. Na segunda experiência, em São Vicente, permaneceu meses como cativo de guerra dos tupinambá, aliados dos franceses, e, libertado por uma tribo inimiga de seus algozes, não foi sacrificado no ritual antropofágico. Assim, por meio das representações dos relatos dos viajantes é que a popu- lação acessava a cultura de sociedades distantes e mesmo de culturas que não mais existiam. Muitas vezes, essas descrições registradas pelos viajantes eram caricatas, exageradas e até mesmo fantasiosas, mas como era a única maneira de conhecer o que faziam outras culturas, esses relatos eram bastante difundidos. Figura 1. Desenho de Hans Staden sobre práticas canibais dos indígenas. Fonte: Caderno de Nosferatu (2010, documento on-line). Etnografia2 Contudo, no século XXI, a distância ficou menor, e a tecnologia nos permite viajar, tornando mais fácil conhecer outras sociedades. Então, em vez de lermos sobre o outro, vamos nós mesmos observar, analisar e compreender aspectos de outras culturas. Assim, cabe perceber essas diferenças entre as culturas e refletir sobre elas. Para ir além de uma obser- vação curiosa e de fato estudar os aspectos culturais de outras sociedades, podemos utilizar estratégias e metodologias que nos permitam compreender as explicações correntes naquela sociedade que observamos. Por isso, de forma mais rápida, mais explícita e mais sistemática, buscamos formas científicas de realizar esses estudos. Uma dessas formas é a etnografia. Na etimologia da palavra, do grego, etno é povo e grafia é escrita; logo, o significado da palavra pressupõe escrever sobre um povo. Laplantine (2003) enfoca que a etnografia permite a descrição das formas de vida de determinados grupos sociais, fazendo com que estudemos aspectos culturais diferentes dos nossos de forma mais atenta. Como evidencia Oliveira (2000), agora não conheceremos a cultura do outro por meio dos livros, mas será o nosso próprio corpo que acessará outras sociedades. Segundo explica Laplantine (2003, p. 57), “[...] a etnografia propriamente dita só começa a existir a partir do momento no qual se percebe que o pes- quisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria pesquisa, e que esse trabalho de observação direta é parte integrante da pesquisa [...]”. Assim, dá-se outra maneira de conhecer o outro, mais ativa, mais pessoalizada e mais interpretativa sobre quem são, o que fazem e como pensam os membros de outras sociedades existentes. O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do século XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e informadores: este último termo merece ser repetido. Em suma, a antropologia se torna pela primeira vez uma atividade ao ar livre, levada, como diz Malinowski, “ao vivo”, em uma “natureza imensa, virgem e aberta” (LAPLANTINE, 2003, p. 57–58). 3Etnografia Indica-se a leitura de uma bela etnografia realizada em um contexto urbano, a fim de compreender que a realização da etnografia não se dá apenas entre sociedades que vivem longe de nós, mas também entre as mais próximas. Uma dessas etnografias clássicas é o livro Sociedade de Esquina, no qual William Foote Whyte, conduzido por um informante-chave, estuda determinado local — que ele chamou de Corneville — para compreender o cotidiano de um bairro da periferia de uma grande cidade. Entretanto, essa observação do pesquisador não deve ser feita de forma passiva, apenas olhando para os membros de uma cultura, sem interagir com o que acontece; pelo contrário, ele vai participar, conversar, viver e também contar sobre si para esses nativos. Em outras palavras, propõe-se outra forma de se relacionar com o outro, e essa relação estabelecida entre pesquisador e nativos é levada em consideração na qualidade dos dados coletados e na análise feita sobre essa outra sociedade. Logo, realiza-se uma observação participante, na qual os membros da cultura observada precisam estar de acordo com a presença daquele que vai realizar a etnografia, como explica Oliveira (2000, p. 24): […] aquilo que os antropólogos chamam de "observação participante" […] significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de moda a não impedir a necessária interação. Podemos destacar dois antropólogos que iniciaram esse estudo e discu- tiram a importância da etnografia em seus trabalhos de campo por meio da antropologia. Um deles é Franz Boas (1858–1942) e Bronislaw Malinowski (1884–1942). Laplantine (2003, p. 58–59) se dedica a elucidar as contribuições de cada um deles; sobre Boas, ele afirma: No campo, ensina Boas,tudo deve ser anotado: desde os materiais consti- tutivos das casas até as notas das melodias cantadas pelos Esquimós, e isso detalhadamente, e no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição mais meticulosa, da retranscrição mais fiel... [Para ele] Apenas o antropólo- go pode elaborar uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma microssociedade, apreendida em sua totalidade e considerada em sua auto- nomia teórica. Pela primeira vez, o teórico e o observador estão finalmente Etnografia4 reunidos. Assistimos ao nascimento de uma verdadeira etnografia profissional que não se contenta mais em coletar materiais à maneira dos antiquários, mas procura detectar o que faz a unidade da cultura que se expressa através desses diferentes materiais. Já sobre Malinowski (Figura 2), Laplantine (2003, p. 60–61) destaca o posicionamento do pesquisador em meios aos nativos e as suas contribuições para o campo de estudo: Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a viver com as populações que estudava e a recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e para isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu. […] Nin- guém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto, como ele fez no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentalidade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa. […] Malinowski considera que uma sociedade deve ser estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a observamos. Figura 2. Malinowski entre os Trobriandeses. Fonte: Etnografando (2012, documento on-line). Assim, temos o contexto da discussão sobre o conceito de etnografia e podemos avançar na nossa discussão, a fim de compreendermos como esse conceito é utilizado no âmbito da antropologia — e até mesmo além dessa disciplina. 5Etnografia Etnografia dentro da antropologia Numa primeira discussão, devemos compreender que a antropologia pretende levar em consideração a experiência do pesquisador a partir do trabalho de campo que ele realizou. Então, o pesquisador vai estar diante do que é dife- rente, do que é estranho e até do que assusta. Porém, essa postura que abarca a concepção de alteridade constitui questão central na disciplina estudada. Goldman (2005, p. 163) reforça esse ponto: A antropologia é um dos lugares destinados pela razão ocidental para pensar a diferença ou para explicar racionalmente a razão ou desrazão dos outros. Desse ponto de vista, ela é, sem dúvida, parte do trabalho milenar da razão ocidental para controlar e excluir a diferença. Por outro lado, entretanto, o próprio fato de dedicar-se à diferença nunca é desprovido de consequências e, em lugar de simplesmente digeri-la, a antropologia foi capaz de valorizar essa diferença, sempre foi capaz de ao menos tentar apreendê-la sem suprimi-la, pensá-la em si mesma, como ponto de apoio para impulsionar o pensamento, não como objeto a ser simplesmente explicado — explicação que, aliás, acaba por deter a própria marcha do pensamento. Para aprofundar a discussão sobre a etnografia utilizada para a produção de dados na pesquisa científica, leia o artigo Etnografia: Saberes e Práticas, de Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert. https://goo.gl/LRD2UJ Assim, a disciplina de antropologia compreende a etnografia como parte do processo de pesquisa que possibilita estudar o outro a partir de critérios científicos. Como explica Mattos (2011, p. 53), a: [...] etnografia é a especialidade da antropologia, que tem por fim o estudo e a descrição dos povos, sua língua, raça, religião, e manifestações materiais de suas atividades, é parte ou disciplina integrante da etnologia é a forma de descrição da cultura material de um determinado povo [...]. Etnografia6 Então, podemos compreender a etnografia como o exercício de olhar sobre o outro que nos permite compreender de forma sistemática aspectos culturais intrínsecos que, numa observação rápida, seriam difíceis de apreender. Para reforçar essa ideia, Lévi-Strauss evidencia a etnografia como parte do trabalho do antropólogo: É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da dis- ciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhe- cimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes conhecimentos se "prenderão" num conjunto orgânico e adquirirão um sentido que lhes faltava anteriormente (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 415–416). Tendo a etnografia como parte crucial da aprendizagem do estudo de outras culturas, cabe ter noção da dimensão que esse conceito alcança em termos da pesquisa científica. Peirano (2014, p. 383) se questiona critica- mente sobre a identificação da etnografia como apenas um método, e destaca que as produções de monografias sobre aspectos de outras culturas “[...] não são resultado simplesmente de ‘métodos etnográficos’; elas são formulações teórico-etnográficas. Etnografia não é método; toda etnografia é também teoria [...]”. Assim, não está limitada apenas ao antropólogo a prática etnográfica, mas também não cabe difundir a etnografia como simples metodologia que se aplica a qualquer contexto de pesquisa. Como diz a antropóloga, é preciso fazer uma boa etnografia: A primeira e mais importante qualidade de uma boa etnografia reside, então, em ultrapassar o senso comum quanto aos usos da linguagem. Se o trabalho de campo se faz pelo diálogo vivido que, depois, é revelado por meio da escrita, é necessário ultrapassar o senso comum ocidental que acredita que a linguagem é basicamente referencial. Que ela apenas "diz" e "descreve", com base na relação entre uma palavra e uma coisa. Ao contrário, palavras fazem coisas, trazem consequências, realizam tarefas, comunicam e produzem resultados. E palavras não são o único meio de comunicação: silêncios comunicam. Da mesma maneira, os outros sentidos (olfato, visão, espaço, tato) têm implicações que é necessário avaliar e analisar. Dito de outra forma, é preciso colocar no texto — em palavras sequenciais, em frases que se seguem umas às outras, em parágrafos e capítulos — o que foi ação vivida. Este talvez seja um dos maiores desafios da etnografia — e não há receitas preestabelecidas de como fazê-lo (PEIRANO, 2014, p. 386). 7Etnografia Assim, somente exercitando e praticando a etnografia é que o pesquisador vai aperfeiçoando e percebendo questões que não estavam evidentes na pri- meira observação. Desse modo, etnografia é muito mais que escrever sobre o outro, porque considera um estudo complexo, uma análise cuidadosa e uma interpretação dos dados que está baseada em teoria precedentes para chegar a uma conclusão que contribua com o conhecimento científico. Para além da escrita, o antropólogo pode apresentar nas monografias os registros visuais feitos durante o trabalho de campo, a fim de explicitar aspectos culturais de outras sociedades. Muitas vezes, essas imagens não são apenas para “ilustrar” o que é dito, mas também compõem a argumentação teórica do que é analisado sobre aquela cultura. Um dos exemplos mais clássicos na antropologia é a obra Balinese Character, de Gregory Bateson e Margaret Mead, que apresentaram um estudo minucioso de diversas práticas culturais entre os balineses. Por isso, podemos imaginar que o produto final de análise da observação participante é a monografia, pois “[...] é seguramente no ato de escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se torna tanto ou mais crítica [...]” (OLIVEIRA, 2000,p. 25). Ao juntar as partes de um quebra-cabeça, o todo toma forma. Essa totalidade não deve pretender retratar a verdade única e absoluta, mas apenas apresentar uma versão interpretativa sobre o grupo estudado por quem realizou a pesquisa — podendo seus leitores concordarem ou não. Na composição desse material final, cabe lembrar que essa a escrita pode ser composta de outros materiais (organograma, desenhos, fotos, sons, vídeos) que ajudem o leitor a compreender a argumentação teórico-metodológica apresentada pelo etnógrafo. Estratégias e objetivos da etnografia Para pesquisarmos a cultura do outro, vamos refl etir sobre quais estratégias são relevantes durante o processo da etnografi a. Inicialmente, Oliveira (2000, p. 25) nos lembra que “[...] olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo [...]”. Podemos pensar Etnografia8 que, para olhar o outro, precisamos lançar mão de lentes sociológicas, a fi m de poder ver aquilo que não veríamos com um olhar banal. Assim, esse olhar e essa escuta devem estar atentos ao que se deseja compreender durante a observação participante. Geertz (1978) evidencia o que pode estar contido na proposta de etnografia, de modo que o pesquisador tenha um quadro mais completo do grupo social que estuda. Durante a observação participante, ele não só observa, mas também cria estratégias sistemáticas de como registrar aspectos da vida cultural de quem é observado: O que o etnógrafo enfrenta, de fato — a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados — é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estra- nhas irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro aprender e depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar as linhas de proprie- dade, fazer o censo doméstico... escrever seu diário. Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios do comportamento modelado (GEERTZ, 1978, p. 20). Assim, para compreender o que parecem incoerências, comentários banais e sinais não identificáveis, os registros em cadernos de campos — também chamados de diários — são essenciais e servem para descrever momentos, explicitar detalhes, apresentar aspectos culturais e refletir sobre tudo o que foi visto e falado durante a interação com os membros da sociedade pesquisada. Weber (2009, p. 157) explica que o diário de campo: [...] é um instrumento que o pesquisador se dedica a produzir dia após dia ao longo de toda a experiência etnográfica. É uma técnica que tem por base o exercício da observação direta dos comportamentos culturais de um grupo social, método que se caracteriza por uma investigação singular [...]. Em conjunto com o diário de campo, cabe fazer entrevistas semiestru- turadas (aquelas com questões abertas), para captar informações em maior profundidade, que respondem aos objetivos da pesquisa. Duarte (204, p. 216) nos provoca a pensar o que seria uma boa entrevista: 9Etnografia A realização de uma boa entrevista exige: a) que o pesquisador tenha muito bem definidos os objetivos de sua pesquisa (e introjetados — não é suficiente que eles estejam bem definidos apenas “no papel”); b) que ele conheça, com alguma profundidade, o contexto em que pretende realizar sua investigação (a experiência pessoal, conversas com pessoas que participam daquele universo — egos focais/informantes privilegiados —, leitura de estudos precedentes e uma cuidadosa revisão bibliográfica são requisitos fundamentais para a entrada do pesquisador no campo); c) a introjeção, pelo entrevistador, do roteiro da entrevista (fazer uma entrevista “não-válida” com o roteiro é fundamental para evitar “engasgos” no momento da realização das entrevistas válidas); d) segurança e auto-confiança; e) algum nível de informalidade, sem jamais perder de vista os objetivos que levaram a buscar aquele sujeito específico como fonte de material empírico para sua investigação. Entretanto, é preciso ter cuidado com o discurso do pesquisado durante a entrevista semiestruturada. Este, geralmente num contexto mais formal de pesquisa, acaba dizendo o discurso oficial, o que é esperado, o que ele foi treinado para dizer, quando o que o pesquisador quer muitas vezes é justamente o que escapa desse discurso e revela a situação do cotidiano. Assim, também é preciso considerar as conversas informais como fonte preciosa de informações, pois é nesses momentos que podemos comparar o discurso oficial com o que acontece na prática. Com essas ideias em mente, Zaluar (2009, p. 577) conta como conseguiu estudar o “mundo do crime”: O objetivo era entender os processos sociais existentes no tráfico, ou seja, a dinâmica das relações entre fornecedores de armas e drogas, traficantes e usuários, assim como as formações subjetivas reveladas no simbolismo e nos rituais das interações entre os atores. Os contatos para entrevistas foram feitos seguindo a rede de conhecidos dos usuários ou nos locais de lazer escolhidos para a observação silenciosa. Desse modo, muitas definições e imagens e vários significados contextuais do crime, do desvio, da droga, da polícia, do bairro, das diversas atividades de lazer, das relações entre os usuários, entre eles e os traficantes, entre todos e a polícia foram transmitidos pela observação direta, por conversas informais depois registradas e pelos relatos de experiências de nossos informantes. Além dessas estratégias, também é pertinente para o trabalho de campo a construção do método genealógico. Ele permite a compreensão das formações familiares de uma sociedade, evidenciando os povos ascendentes, quem é filho de quem, se a é cultura patrilinear ou matrilenar, e como se dão casamentos entre grupos sociais. Rivers (1991) defendeu o uso dessa ferramenta para os estudos de parentescos e elucidou que essa técnica elevaria o status das Etnografia10 ciências sociais como estudos de ciências biológicas, pois a sua construção seguiria critérios e padrões que permitiriam um estudo científico sobre as culturas pesquisadas. Outra estratégia que pode garantir a inclusão num grupo social diferente do grupo do pesquisador é a aproximação de um informante-chave. Em es- sência, trata-se de alguém que vai introduzir o pesquisador no cotidiano da outra cultura, explicar rapidamente o que ele não entende, apresentar pessoas importantes para o objetivo da pesquisa, entre outros motivos. Essa abordagem faz com que o pesquisador desenvolva um vínculo maior com essa pessoa. Os informantes chaves são participantes que possuem conhecimentos, status, destrezas comunicativas especiais e estão dispostos a colaborar com o inves- tigador. Ajudam ao investigador a vencer, superar as barreiras que aparecem no seu caminho. Tem acesso a determinados subgrupos e pessoas, que, por outra via seria difícil alcançar. Os atores chaves devem ser escolhidos com cuidado tendo em consideração seu nível adequado de representatividade em relação ao grupo completo de informantes chaves. Recomenda-se que as informações obtidas dos informantes chaves sejam claramente especificadas e diferenciadas como nas notas de campo (LÓPEZ, 1999, p. 49). Assim, vamos percebendo que as estratégias do pesquisador correspondem aos objetivos da etnografia. Para coletar dados que respondam às perguntas gerais e específicas da pesquisa, é preciso que o pesquisador utilize algumas dessas técnicas. Entretanto, sabe-se que não há formulas a serem seguidas, pois cada pesquisa temsuas particularidades, como evidencia Mattos (2011, p. 50): A etnografia é um processo guiado preponderantemente pelo senso questio- nador do etnógrafo. Deste modo, a utilização de técnicas e procedimentos etnográficos, não segue padrões rígidos ou pré-determinados, mas sim, o senso que o etnógrafo desenvolve a partir do trabalho de campo no contexto social da pesquisa. Os instrumentos de coleta e análise utilizados nesta abordagem de pesquisa, muitas vezes, têm que ser formuladas ou recriadas para atender à realidade do trabalho de campo. Assim, na maioria das vezes, o processo de pesquisa etnográfica será determinado explícita ou implicitamente pelas questões propostas pelo pesquisador. Por último, Mattos (2011) ainda sistematiza três questões da etnografia que contribuem com o campo da pesquisa qualitativa: 1. A preocupação com uma análise holística ou dialética da cultura, isto é, a cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da 11Etnografia sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e as ações e interações humanas. 2. A introdução dos atores sociais com uma participação ativa e dinâmica no processo modificador das estruturas sociais. 3. Apresentação das interações e evidência dos processos engendrados e de difícil visibilidade para os sujeitos que dela fazem parte. Logo, a etnografia nos permites conhecer outra cultura de forma mais aprofundada, pois se utiliza de estratégias específicas, de acordo com os objetivos da pesquisa. Nesse sentido, para conhecer os grupos sociais que são diferentes de nós, não basta chegarmos até eles: precisamos ter um olhar mais cuidadoso e atenção redobrada, e também fazer notas sobre aquilo que queremos compreender. Com isso, vamos explicitando os procedimentos da pesquisa científica e reconhecendo essas estratégias dentro de um arcabouço teórico-metodológico guiado pela disciplina da antropologia. CADERNO DE NOSFERATU. Antrpofágia. 2010. Disponível em: <https://cadernodenos- feratu.wordpress.com/2010/07/07/antropofagi/>. Acesso em: 31 out. 2018. DUARTE, R. Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar UFPRS, Curitiba, n. 24, p. 213-225, 2004. ETNOGRAFANDO. Malinowski e sua contribuição à antropologia. 2012. Disponível em: <http://etnografandoantropologia.blogspot.com/2012/05/malinowski-e-sua-contri- buicao.html>. Acesso em: 31 out. 2018. O livro Entre saias justas e jogos de cintura, organizado por Soraya Fleischer e Alinne Bonetti, reúne artigos sobre os encontros dos pesquisadores e seus pesquisados. Cada um deles conta sobre as suas experiências etnográficas, apresenta situações inesperadas em campo e mesmo soluções surpreendentes durante a etnografia. É um livro atual, que apresenta pesquisas contemporâneas e que motiva o leitor a perceber que a etnografia é desafiadora e prazerosa. https://goo.gl/sgd9SZ Etnografia12 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GOLDMAN, M. Jeanne Favret-Saada: os afetos, a etnografia. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 149-153, 2005. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003. LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991. LÓPEZ, G. L. O método etnográfico como um paradigma científico e sua aplicação na pesquisa. Textura: Revista de Educação e Letras, Canoas, v. 1, n. 1, p. 45-50, 1999. MATTOS, C. L. G. A abordagem etnográfica na investigação científica. In: MATTOS, C. L. G.; CASTRO, P. A. (Org.). Etnografia e educação: conceitos e usos. Campina Grande: EDUEPB, 2011. OLIVEIRA, R. C. O trabalho do antropólogo. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2000. PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42, p. 377-391, jul./dez. 2014. PIRES, V. Uma breve análise acerca da atuação interétnica dos indígenas da costa brasileira sob a pena de viajantes europeus (1500-1627) História. Revista da Faculdade de Letras: História, Porto, v. 3, n. 1, p. 9-28, 2013. RIVERS, W. H. O método genealógico na pesquisa antropológica. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, R. 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