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1 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Na Pediatria, principalmente no atendimento ambulatorial, “sopro” é um dos termos mais difíceis de serem explicados pelo médico e entendidos pelos pais ou familiares. ↠ O sopro cardíaco, um achado comum durante o exame pediátrico de rotina, é a causa mais frequente de encaminhamento da criança ao cardiologista, e em sua maior parte não significa doença cardíaca. Inclusive, o sopro inocente (fisiológico) é um ruído bastante comum em crianças normais, que pode estar acentuado por quadro febril, anemia e, às vezes, por ansiedade. ↠ Em casos de sopros patológicos e nas situações de dúvida, é importante encaminhar a criança para o especialista; porém, na observância do sopro, independentemente de sua etiologia, o pediatra deve sempre informar de maneira clara e concisa os pais ou familiares do paciente, evitando ansiedade desnecessária. Avaliação clínica do sopro cardíaco ↠ Geralmente, os sopros são detectados em consultas de rotina, ou durante atendimentos a problemas comuns. Febre e anemia podem originar um sopro, sendo aconselhável um exame clínico posterior para confirmar a sua presença ↠ Quando o pediatra detecta sopro cardíaco durante uma consulta de rotina em paciente assintomático, é necessário considerar as seguintes possibilidades: ➢ sopro inocente; ➢ existência de uma cardiopatia ainda não diagnosticada; ➢ doença não cardíaca causando a alteração da ausculta. ↠ Assim, a abordagem tem de considerar essas possibilidades, lembrando que a avaliação geral da criança é tão importante quanto a específica do sistema cardiovascular. ANAMNESE ➢ Primeiros 3 meses de gestação: uso de medicamentos ou drogas, álcool, diabete materno, infecções; ➢ História do parto: peso e estatura ao nascer, uso de oxigênio, sopro descoberto no berçário; ➢ História de malformações extracardíacas; ➢ Recém-nascidos e lactentes: dificuldade para mamar e baixo ganho de peso, taquipneia, sudorese, irritabilidade; ➢ História de anemia, hipertireoidismo, outras doenças; ➢ Pré-escolares e adolescentes: cansaço aos exercícios, síncope, hipodesenvolvimento. EXAME FÍSICO ➢ Presença de malformações extracardíacas; ➢ Precórdio abaulado, ou hiperdinâmico, à palpação; ➢ Cianose, palidez; ➢ Pulsos: diminuídos ou aumentados, diferença de palpação entre membros superiores e inferiores; ➢ Pressão arterial: comparar a pressão de membros superiores e inferiores; ➢ Sinais de insuficiência cardíaca: taquipneia, taquicardia, aumento hepático, edema; ➢ Intensidade do sopro, localização no tórax, localização no ciclo cardíaco, mudança da ausculta com a mudança de decúbito, sopro contínuo, ou diastólico; ➢ 2ª bulha: intensidade, desdobramento; ➢ Arritmia, ritmo de galope; ➢ Estalidos. IMPORTANTE O atendimento precisa ser realizado em ambiente silencioso e com a criança tranquila, o que possibilita um exame cardiológico adequado. Sopros suaves podem passar despercebidos quando a ausculta cardíaca é realizada com a criança chorando. As crianças maiores devem, inicialmente, ser examinadas em decúbito dorsal e depois sentadas ou de pé, para se observar mudanças nas características do sopro. O sopro inocente em geral diminui ou desaparece com a mudança de decúbito. É importante fazer o exame pediátrico completo da criança, pois o sopro deve ser avaliado dentro do contexto geral do paciente. No exame do tórax, o abaulamento precordial sugere um aumento cardíaco crônico, levando a um aumento no diâmetro anteroposterior da caixa torácica. Outras deformidades torácicas, como pectus carinatum ou pectus excavatum, podem associar-se a sopro funcional, por causa da posição do coração no tórax. Em crianças magras, o ictus cordis e as impulsões cardíacas normalmente são visíveis Em cardiopatias com repercussão hemodinâmica, observa-se um precórdio hiperdinâmico, com impulsões cardíacas visíveis e o ictus cordis desviado. Na palpação do tórax, a presença de frêmitos e bulhas palpáveis é sempre patológica. 2 Júlia Morbeck – @med.morbeck Tipos de sopro ↠ Ao se detectar um sopro cardíaco durante o exame físico de uma criança, deve-se analisá-lo de uma forma sistematizada, procurando-se definir seus vários aspectos. Uma análise cuidadosa e sistematizada de um sopro cardíaco pode definir se ele é inocente ou patológico, bem como orientar para um diagnóstico mais preciso de uma cardiopatia. ↠ Nesse sentido, após definir se há ou não sopro cardíaco, deve-se procurar responder os seguintes pontos: ➢ classificar o sopro quanto a sua posição no ciclo cardíaco e definir a característica desse sopro; ➢ definir a localização do sopro nas áreas de ausculta cardíaca; ➢ definir a intensidade do sopro, bem como se há ou não sua irradiação. CLASSIFICAÇÃO DO SOPRO NO CICLO CARDÍACO E CARACTERÍSTICAS DO SOPRO ↠ O sopro cardíaco é classificado em sistólico, diastólico ou contínuo conforme sua posição durante o ciclo cardíaco: ➢ o sistólico ocorre entre a 1ª e a 2ª bulhas cardíacas; ➢ o diastólico entre a 2ª e a 1ª bulhas; ➢ o sopro contínuo ocorre ininterruptamente entre essas bulhas. ↠ Para se definir essa posição, é muito importante que o examinador reconheça as bulhas cardíacas e a sua intensidade e, só após isso, analise o sopro cardíaco. Obs.: Geralmente, os sopros sistólicos e contínuos são de fácil detecção clínica, enquanto os sopros diastólicos são mais difíceis e exigem mais atenção à ausculta. SOPRO SISTÓLICO ↠ O sopro sistólico é classificado, quanto a sua característica, em ejeção e em regurgitação. ↠ O sopro sistólico em ejeção geralmente é mesossistólico e apresenta aspecto em “crescendo e descrescendo”. Nesse tipo de sopro, tanto a 1ª quanto a 2ª bulhas não são encobertas pelo sopro. Quando patológico, ocorre nas lesões obstrutivas ao fluxo de saída do ventrículo direito (p.ex., estenose pulmonar) ou esquerdo (p.ex., estenose aórtica). ↠ O sopro sistólico em regurgitação é em geral holossistólico, iniciando-se junto com a 1ª bulha e chegando até a 2ª bulha. Esse sopro geralmente ocorre nas regurgitações (insuficiência das valvas mitral ou tricúspide e nos defeitos do septo ventricular (comunicação interventricular – CIV). SOPRO DIASTÓLICO ↠ O sopro diastólico é classificado quanto a sua característica em regurgitação (ou aspiração), em ruflar e de enchimento ventricular. ↠ O sopro diastólico em regurgitação inicia-se logo após a 2ª bulha e vai diminuindo de intensidade até o meio ou final da diástole. Esse tipo de sopro ocorre nas regurgitações das valvas arteriais (aórtica ou pulmonar). ↠ O sopro diastólico em ruflar ocorre no final da diástole e tem baixa intensidade, acontecendo nos quadros de estenose das valvas mitral ou tricúspide. ↠ O sopro diastólico de enchimento ventricular é um sopro que ocorre no início da diástole, tem curta duração, e acontece em situações em que um grande volume sanguíneo passa através das valvas mitral ou tricúspide, apresentando uma estenose relativa dessas valvas. Isso pode ocorrer em situações como comunicação interatrial (estenose relativa da valva tricúspide) ou CIV (estenose relativa da valva mitral). SOPRO CONTÍNUO ↠ O sopro contínuo tem característica única e ocorre de modo ininterrupto durante o ciclo cardíaco, apresentando, entretanto, períodos de maior intensidade, alternados com períodos de menor intensidade. As bulhas cardíacas geralmente ficam encobertas pelo sopro contínuo. 3 Júlia Morbeck – @med.morbeck ↠ Esse sopro é do tipo das comunicações entre as artérias sistêmicas, sendo a persistência do canal arterial o exemplo mais conhecido. CLASSIFICAÇÃO DO SOPRO CONFORME A LOCALIZAÇÃO ↠ Após identificar o sopro cardíaco, deve-se procurar definir a sua localização no tórax da criança e determinar a área de maiorausculta. Essa definição é fundamental para que se possa prosseguir com o raciocínio clínico que culminará com o diagnóstico cardiológico. ↠ Por vezes, há relatos de sopros que estão presentes em todos os focos e são chamados de “pancardíacos”. Essa descrição em nada ajudará a definição diagnóstica. É importante imaginar o sopro cardíaco como um terremoto, que sempre tem um epicentro. ↠ Localizar o sopro cardíaco no tórax é definir o local de melhor ausculta e, a partir disso, definir se o sopro está ou não se irradiando para outra área. A irradiação do sopro no tórax segue geralmente a direção do fluxo sanguíneo dentro do coração e nas artérias, o que é de grande valia para interpretação adequada do sopro cardíaco. OBS.: Vale lembrar que, em algumas situações, há mais de um sopro; nesses casos, cada sopro deve ser descrito e analisado em separado. IMPORTANTE: Durante o exame físico do coração, não se pode esquecer de auscultar todo o tórax, o dorso, o abdome e até a cabeça da criança, para pesquisar a presença de sopros que geralmente decorrem de fístulas arteriovenosas extracardíacas. INTENSIDADE DO SOPRO CARDÍACO ↠ O sopro cardíaco é resultado do aumento da velocidade de fluxo sanguíneo e de maior turbulência desse fluxo. A intensidade do sopro cardíaco reflete a magnitude dessa turbulência que, em outras palavras, significa uma diferença de pressão entre duas cavidades ou artérias. Sendo assim, diante de uma criança com estenose da valva pulmonar, quanto mais intenso for o sopro sistólico na área pulmonar, mais grave será a estenose dessa valva, pois o gradiente de pressão entre o ventrículo direito e a artéria pulmonar está muito alto. Por outro lado, quando há comunicação interventricular, quanto maior for a intensidade do sopro sistólico, localizado na área tricúspide, maior será o gradiente de pressão entre o ventrículo esquerdo e o direito, e menor será a CIV, pois não houve aumento significativo da pressão do ventrículo direito, sendo que o fluxo que atravessa a CIV é muito pequeno. ↠ A intensidade do sopro pode ser descrita de forma subjetiva e classificada em graus que variam de I a VI. ➢ Os graus I e II são sopros de fraca intensidade, sendo que o grau I só é detectado por meio de ausculta muito cuidadosa. ➢ Sopros graus III e IV são sopros de intensidade moderada, sendo que o grau IV apresenta frêmito palpável. ➢ Sopros graus V e VI são intensos, vêm acompanhados de frêmitos, sendo que o grau VI pode ser audível mesmo sem o estetoscópio. ↠ Vale lembrar que a intensidade do sopro também depende de outros fatores, como a espessura da parede torácica e a presença de alterações pulmonares que possam dificultar a detecção auditiva do sopro. Sopro Inocente ↠ O sopro cardíaco inocente é a alteração da ausculta que ocorre na ausência de anormalidade anatômica ou funcional do sistema cardiovascular. É um achado frequente, que ocorre em 50 a 70% das crianças, geralmente em idade escolar. ↠ São características dos sopros inocentes: ➢ são mais facilmente audíveis nos estados circulatórios hipercinéticos (febre, anemia); ➢ são em geral sistólicos e raramente contínuos; ➢ nunca são diastólicos; ➢ têm curta duração e baixa intensidade (graus I a III); ➢ não se associam a frêmito ou ruídos acessórios (estalidos, cliques); ➢ localizam-se em uma área pequena e bem definida, sem irradiação; 4 Júlia Morbeck – @med.morbeck ➢ as bulhas são sempre normais; ➢ associam-se com radiografia de tórax e eletrocardiograma normais. ↠ A origem dos sopros inocentes ainda é controversa. Na maioria das vezes, ela é atribuída a fluxos turbulentos, originados em áreas de estreitamento na saída dos ventrículos esquerdo ou direito, ou em áreas de ramificações de artérias e, no caso do zumbido venoso, à turbulência originada no retorno venoso. Esses fluxos turbulentos provavelmente são mais audíveis na criança porque as vias de saída são proporcionalmente mais estreitas e as estruturas cardíacas ficam mais próximas da parede torácica, que é mais delgada em comparação ao adulto. ↠ Os sopros inocentes mais frequentes na criança são: vibratóriode Still, de ejeção pulmonar, de ramos pulmonares, supraclavicular e zumbido venoso. SOPRO VIBRATÓRIO DE STILL ↠ É o sopro inocente mais frequente, detectado em 75 a 85% das crianças em idade escolar, sendo raramente encontrado em lactentes. ↠ É mais bem detectado na borda esternal esquerda média ou entre a borda esternal baixa e o apêndice xifoide, na posição supina, e ocorre no começo da sístole. Tem características vibratórias, musicais, de baixa intensidade, e nunca é rude. ↠ Pode desaparecer com a pressão do aparelho sobre o tórax, e a intensidade diminui com a posição ereta. ↠ O diagnóstico diferencial é com CIV de pequeno diâmetro, miocardiopatia hipertrófica e estenose subaórtica discreta, cujos sopros são de maior intensidade, não se alteram com a mudança de posição e podem estar associados a frêmito. SOPRO DE EJEÇÃO PULMONAR ↠ É um sopro sistólico no foco pulmonar, tem uma característica suave à ausculta, de baixa intensidade. Diminui de intensidade com a mudança de decúbito. ↠ O diagnóstico diferencial deve ser feito com o sopro sistólico da CIA ou estenose pulmonar, mas a 2ª bulha é sempre normal. Sopro de ramos pulmonares ↠ Mais frequente no recém-nascido, é um sopro sistólico, mais audível na região supraclavicular esquerda, suave, sem irradiação. ↠ É causado pela transição do sangue do tronco pulmonar para os ramos, ainda pouco desenvolvidos. Sopro supraclavicular ↠ Também muito comum em crianças, este é um sopro do tipo mesossistólico, que pode ser audível bilateralmente, mais comum à direita, na região logo acima das clavículas, tem baixa intensidade e não provoca frêmito. ↠ O diagnóstico diferencial é com a estenose aórtica. Zumbido venoso ↠ Causado pelo turbilhonamento da entrada do sangue na confluência das veias jugular interna, inominada e subclávia direita com a veia cava superior. É audível com a colocação do estetoscópio, suavemente, na região da veia jugular externa, e acentua-se com a criança sentada. ↠ Tem característica contínua, acentuando-se na diástole, e desaparece pela compressão da jugular. Sopro Patológico ↠ É o sopro causado por uma doença cardíaca. Nas cardiopatias congênitas acianóticas, o sopro tem características muito específicas em cada patologia, permitindo, com frequência, o diagnóstico clínico da doença com base exclusivamente nas características desse ruído. Isso, entretanto, não ocorre com as cardiopatias congênitas cianóticas, nas quais existem várias lesões associadas, com uma patofisiologia complexa, dificultando a determinação da origem do sopro ↠ São consideradas características dos sopros patológicos: 5 Júlia Morbeck – @med.morbeck ➢ irradiação bem nítida e fixa para outras áreas; ➢ associação com alterações dos ruídos cardíacos: bulhas, cliques e estalidos; ➢ podem vir acompanhados de sintomas sugestivos de cardiopatia; ➢ exames laboratoriais alterados (radiografia de tórax, eletrocardiograma, ecocardiograma). A localização do sopro e a sua irradiação auxiliam no diagnóstico diferencial. Os sopros holossistólicos de regurgitação são sempre sinais de doença cardíaca, podendo ser causados por CIV, insuficiência mitral ou tricúspide. Na CIV, o sopro sistólico é mais audível entre o 3º e o 4º espaços intercostais esquerdos, irradiando-se em faixa para a direita. Os sopros de ejeção, com características de crescendo-decrescendo, podem estar associados às estenoses de valvas aórtica ou pulmonar. A irradiação do sopro também é um dado indicativo de cardiopatia; por exemplo, um sopro sistólico de ejeção, nos focos da base, que se transmite bem para o pescoço sugere sopro aórtico; outro, quese transmite bem para a região dorsal sugere sopro pulmonar. Um sopro sistólico no dorso pode ser causado por coarctação de aorta ou estenose de ramo de artéria pulmonar. O sopro sistólico associado à CIA tipo ostium secundum é um sopro mais audível em área pulmonar e é sempre acompanhado do desdobramento fixo da 2ª bulha. Os sopros diastólicos são sempre patológicos e decorrem de insuficiência aórtica ou pulmonar, de estenose e de alterações de fluxo nas valvas mitral e tricúspide. O sopro da estenose mitral é mesotelediastólico e inicia-se após a abertura mitral, podendo acompanhar-se de um estalido de abertura. Esse sopro é caracteristicamente de baixa frequência, por causa do baixo gradiente envolvido nas pressões atrial e diastólica ventricular. Um sopro contínuo em área pulmonar, com vários estalidos, sugere persistência de canal arterial, enquanto um sopro contínuo no dorso é sugestivo de fístula arteriovenosa pulmonar. IMPORTANTE: A 2ª bulha é muito importante na ausculta da criança. Quando o desdobramento fisiológico da 2ª bulha desaparece, deve-se pensar em cardiopatia. Conduta na criança com sopro ↠ O paciente pediátrico com sopro cardíaco deve ser encaminhado ao especialista nas seguintes situações: ➢ sopros de intensidade acima do grau III/VI, que torna pouco provável o sopro inocente; ➢ sopro holossistólico; ➢ ocorrência isolada na diástole; ➢ sopro contínuo; ➢ presença de frêmito; ➢ neonatos com sopro persistente após as primeiras horas de vida; ➢ crianças com síndromes genéticas ou malformações extracardíacas, por causa do risco aumentado de cardiopatia; ➢ crianças que apresentam sintomatologia associada, como déficit ponderal, infecções pulmonares de repetição e cansaço aos esforços físicos; ➢ presença de precórdio hiperdinâmico, arritmia ou alteração nos pulsos; ➢ alteração na pressão arterial, ou pressão arterial diferente em membros superiores e inferiores; ➢ cianose ou sinais de insuficiência cardíaca; ➢ dúvida diagnóstica. Referência BURNS et. al. Tratado de Pediatria: Sociedade Brasileira de Pediatria, 4ª edição. Barueri, SP: Manole, 2017.
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