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Autores: Profa. Maria Teresa Vianna Van Acker Prof. Vinícius Carneiro de Albuquerque Colaboradora: Profa. Tânia Sandroni Didática Específica – História Professores conteudistas: Maria Teresa Vianna Van Acker / Vinícius Carneiro de Albuquerque © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. U516.47 – 22 Maria Teresa Vianna Van Acker Professora de História formada pela Universidade de São Paulo – USP (bacharelado e licenciatura) e doutora em Educação pela mesma universidade. É coordenadora da área de História das séries finais do Ensino Fundamental no Colégio Objetivo. Professora do ensino público e privado, autora de livros paradidáticos como: Renascimento e Humanismo – O homem e o Mundo Europeu do Século XIV ao Século XVI; Grécia Antiga – A vida Cotidiana na cidade-Estado. Ambos para a coleção História em Documentos da Editora Atual. E também do livro Inclusão Digital e Empregabilidade, para a editora Senac. Interessou-se pela formação de professores tendo realizado o mestrado e o doutorado na área de Didática, especialmente pela formação de professores, área em que atua na elaboração de cursos de atualização para professores da rede Objetivo de ensino, além de coordenar a reformulação de material didático das séries finais do Ensino Fundamental. No campo do ensino a distância, foi professora-especialista do curso de gestão da escola para diretores promovido pela Faculdade de Educação da USP e pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo – Seesp, de 2010 a 2013. Vinícius Carneiro de Albuquerque Historiador, formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e licenciado pela Faculdade de Educação da mesma universidade. Obteve o título de mestre pelo programa de História Social para o qual apresentou, em 2007, a dissertação Ceará: 1824: A Confederação das Províncias Unidas do Equador contra o Império do Brasil. Atualmente é professor do colégio e curso pré-vestibular Objetivo, instituição na qual atua há mais de dez anos, tendo amplo contato com modernas tecnologias utilizadas na preparação de aulas digitais em diversas plataformas midiáticas. Também é professor da Universidade Paulista (UNIP), na qual trabalha com especial interesse na área de ensino a distância voltada para a formação de professores de História. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F676s Acker, Maria Teresa Vianna Van. Didática específica. / Maria Teresa Vianna Van Acker. Vinícius Carneiro de Albuquerque. – São Paulo: Editora Sol, 2022. 250 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Didática. 2. História. 3. Currículo Nacional. I. Título. CDU 37.02 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Profa. Sandra Miessa Reitora em Exercício Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades do Interior Unip Interativa Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Angélica L. Carlini Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. Deise Alcantara Carreiro Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Kleber Souza Vitor Andrade Sumário Didática Específica – História APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA: VISÃO HISTÓRICA ..................................................... 13 1.1 Qual História ensinar? Diferentes propostas, diferentes momentos políticos ............ 14 1.1.1 Os jesuítas .................................................................................................................................................. 14 1.1.2 O Colégio Pedro II ................................................................................................................................... 18 1.1.3 O Ministério da Educação ................................................................................................................... 22 1.2 Como ensinar? A didática da História: uma construção entre debates e embates, ideias e documentos ............................................................................................................... 29 1.3 Três concepções de disciplina escolar em diálogo com a didática da História ........... 38 1.3.1 Transposição didática ............................................................................................................................ 38 1.3.2 Cultura escolar ......................................................................................................................................... 40 1.3.3 Educação histórica ................................................................................................................................. 41 2 FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS ATUAIS ............. 43 2.1 O que é ideológico e qual sua relação com a ciência e com a seleção de conteúdo ................................................................................................................................................... 44 2.2 A diversidade e a velocidade na sociedade globalizada e suas implicações na transformação do papel do professor ................................................................................................. 47 2.3 O que significa o conceito de reflexividade nas sociedades modernas e o seu correlato professor-reflexivo e aluno-reflexivo ...................................................................... 53 3 NOÇÕES DE TEMPO E ESPAÇO NO ENSINO DA HISTÓRIA: ENTRE O SABER ENSINADO E O SABER CONSTRUÍDO ................................................................................................................................. 69 3.1 A construção social do conceito de tempo e de espaço ...................................................... 71 3.2 Noções de espaço e tempo no ensino da História.................................................................. 77 3.3 Tempo e espaço: entre a História ensinada e a História aprendida ................................ 81 4 A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HISTÓRICA: ENTRE O SABER DO SENSO COMUM E O SABER CONSTRUÍDO PELO ALUNO MEDIADO PELO ENSINO DA HISTÓRIA ........................ 86 4.1 A narrativa histórica na historiografia ........................................................................................ 87 4.2 A narrativa: do senso comum à articulação dos acontecimentos e conceitos em sala de aula ............................................................................................................................................. 89 4.3 O ensino de História: superação do senso comum e construção de um saber .......... 92 Unidade II 5 O CURRÍCULO NACIONAL E O ENSINO DE HISTÓRIA .....................................................................102 5.1 PCN e Diretrizes Curriculares de História para o Ensino Fundamental e Temas Transversais ..................................................................................................................................................1065.1.1 Temas transversais ................................................................................................................................ 113 5.2 Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio .......................................................................114 5.3 Diretrizes curriculares para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana .........................................................122 5.3.1 As diretrizes: seu contexto e propósitos ..................................................................................... 122 5.3.2 O ensino das relações étnico-raciais ............................................................................................ 124 6 MATERIAL DIDÁTICO E ENSINO DE HISTÓRIA: O LIVRO DIDÁTICO – REFLEXÕES E TENDÊNCIAS ....................................................................................................................................................132 6.1 A função do livro didático e seu histórico no Brasil ............................................................132 6.2 Advento do PNLD: livro didático e currículo nacional ........................................................137 6.3 As representações no livro didático: ilustração e documento .........................................140 Unidade III 7 NARRATIVAS HISTÓRICAS EDUCATIVAS ALÉM DA ESCOLA .........................................................156 7.1 Patrimônio histórico .........................................................................................................................156 7.2 Museus históricos, etnológicos e outros...................................................................................161 7.3 Cinema, teatro, música e literatura ............................................................................................164 8 PROJETOS E AS NOVAS TECNOLOGIAS .................................................................................................169 8.1 Estudo do meio e visita a museu .................................................................................................172 8.2 Tecnologia aplicada ao ensino de História ..............................................................................174 8.3 Projetos interdisciplinares ...............................................................................................................179 8.4 A importância da sequência didática (SD) no ensino de História ..................................180 8.5 Desafios contemporâneos: o ensino de História e a BNCC – Base Nacional Comum Curricular .....................................................................................................................................187 7 APRESENTAÇÃO A disciplina Didática Específica – História justifica-se nos cursos de licenciatura para situar o licenciando na docência da disciplina escolar que se habilita a ensinar. Por isso mesmo, trata-se de uma disciplina com características específicas: a abordagem de uma vertente histórica, ou seja, apresentar ao futuro professor o percurso dessa disciplina para ele compreender questões relativas à construção do currículo e das práticas escolares. Além da vertente histórica, apresenta um caráter teórico-prático, pois deve disponibilizar práticas escolares com fundamentos tanto na teoria da História quanto na pedagogia. Para isso, esse curso tem como principal objetivo fornecer subsídios para o aluno, futuro professor, compreender o processo histórico da constituição da disciplina História, sua importância atual e as relações entre a produção acadêmica da História e as práticas da Educação Básica, tendo em vista que a História é uma construção do presente, um conhecimento orientador para a análise social e, por isso, importante na constituição do que chamamos de reflexividade, ausente das sociedades tradicionais e orais e cada vez mais presente nas modernas da Era Industrial. Os objetivos específicos desta disciplina podem ser assim definidos: • Entender a importância do ensino da História na educação brasileira. • Compreender e se apropriar das questões e discussões sobre o saber histórico ensinado e aquele construído e apropriado pelos alunos. • Familiarizar-se com os recursos didáticos e suas relações com o ensino de História. Para tanto, organizamos o curso em dois grandes eixos para aproximar os alunos dos conteúdos e da reflexão sobre as práticas docentes – questões de fundo sobre o ensino de História e instrumentos a serviço do ensino de História. O primeiro eixo aborda dois aspectos: formação do professor de História – considerando as mudanças ao longo do tempo, problemas antigos e novas perspectivas, saber histórico ensinado e saber construído e apropriado pelos alunos (noções de tempo e espaço no ensino da História e a construção da narrativa histórica), abrangendo, assim, a necessidade de pensar cientificamente de maneira que a consciência do senso comum possa nos ajudar a superar seus problemas e armadilhas. O segundo eixo diz respeito aos instrumentos a serviço do ensino de História – volta-se para alguns elementos práticos, abordados nos seus aspectos relativos, determinações e proposições legais, o currículo nacional e o ensino da História e os materiais e recursos didáticos, analisando desde o livro didático até projetos e abordagens interdisciplinares. Devemos ressaltar que as possibilidades de ensino e aprendizagem são modificadas no decorrer da própria História, assim os debates aqui apresentados, mais do que encerrar as questões, devem abrir os olhares para os desafios e as novas abordagens que o ensino da História enfrenta no Brasil da atualidade. 8 Além desses dois grandes eixos, indicamos que o livro-texto está dividido em três unidades que articulam essas questões estabelecendo relações, apresentando leituras e conteúdos relevantes e propondo reflexões e o desenvolvimento de pensamento crítico sobre a atuação de professores e professoras. INTRODUÇÃO Certamente, você teve vários professores de História durante sua vida de aluno na escola básica. Deve ter julgado muitos deles e percebido que conviveu com professores ótimos; outros, ruins. Deve também ter tido professores que simplesmente cumpriam sua função, não ficaram na sua memória. Pode até ser que você já tenha se reunido com colegas de faculdade ou com ex-colegas de classe, para comentar sobre seus professores. Talvez consiga lembrar-se de considerações como as seguintes: “o professor x sabia muito a matéria, mas não sabia explicar, ele era inexperiente”; ou “a professora y sabia muito, mas a classe não a deixava explicar”; ou “o professor z era muito popular, suas aulas eram divertidas, mas não aprendi muito com ele”. E ainda: “boa mesmo era a professora w, até hoje me lembro de suas aulas, nunca me esqueço dos debates que fizemos sobre o nazismo e das aulas sobre a Independência do Brasil, em que ela relacionou fatos do Brasil com pressões da Europa, discutíamos muito, e ela exigia também bastante, todos gostavam muito da aula”. Talvez seja interessante pensar quais os critérios mobilizados nesses juízos e como as imagens dos professores e professoras de História acaba sendo construída. O “bom” professor é aquele que demonstra apenas o domínio das informações ou podemos mobilizar outros critérios para além de um conhecimento tido como enciclopédico? Ou deveríamos pautar nossos critérios pela capacidade de desenvolver pensamento crítico, ainda que no âmbito do Ensino Básico? Questões interessantes, não? A reflexão sobre esses problemas deve nos acompanhar por toda a nossa disciplina. As lembranças de todos os alunos são povoadas por professores bem preparados. Alguns deles bem experientes, outros, inexperientes e, por isso, não tão bem-sucedidos, às vezes, até desvalorizados pelos alunos. Os professores dedicados e experientes e os que superam todos os problemas colocados pelo ensino representam o ideal que qualquer docente gostariade ser. Porém, trata-se de uma idealização e, por esse motivo, representa um primeiro obstáculo à superação dos problemas concretos da vida cotidiana em uma escola. Se você conversar com o seu professor bem-sucedido, certamente, saberá que ele acumulou conhecimentos preparando-se para as aulas, estudando, lendo e refletindo sobre seus fracassos com outros colegas e transformando suas vivências em experiência ou, ainda, pesquisando sobre novas práticas desenvolvidas em diferentes lugares. Talvez o professor visto como bem-sucedido seja, ao menos parcialmente, aquela figura inquieta e que não se acomodou com o domínio das informações e procurou ir além. Desse modo, construiu uma maneira de trabalhar composta de conhecimentos teóricos e práticos que dialogam com o momento em que se vive, assim, muitas pessoas expressam suas considerações por ele com a expressão “ele tinha uma didática excelente!”. Ou seja, ele tinha o domínio do conjunto de aspectos envolvidos nos processos da atividade de ensinar, e não apenas das informações relativas aos conteúdos e informações. Certamente, ele sabia ensinar bem História e aprendeu não apenas com o exemplo de outros, mas também com o estudo teórico da didática geral e da didática da História. 9 Esse estudo teórico permitiu construir uma reflexão rigorosa de suas vivências, com erros e acertos, que permitiram que ele se tornasse um professor experiente. Consideramos, assim, que, desde o início, devemos retirar o peso que a palavra teórico pode carregar. Às vezes, sua simples aparição já é suficiente para desanimar o leitor ou mesmo para construir uma barreira aparentemente intransponível. O efeito da valorização da teoria que desejamos aqui é justamente o contrário: todos nós compreendermos que a teoria, por informar a prática com qualidade, nos auxilia a não sermos vítimas de um empirismo que impede de melhorar em diversos aspectos. A teoria nos traz reflexão, embasamento e, em nossa área, nasce de um saber acumulado e desenvolvido de maneira coletiva. Ou seja, um professor ou professora desenvolve aspectos que acabam sendo reconhecidos pela comunidade docente, geram estudos e reflexões que circulam, são avaliados e se transformam em trabalhos acadêmicos como artigos, comunicações, dissertações, teses ou capítulos de livros que podem nos ajudar muito na hora de superar as dificuldades que a prática nos coloca. O professor recém-formado ou os que querem se aperfeiçoar podem se beneficiar muito dos conhecimentos da didática específica da História, ou seja, desse campo de conhecimento construído na interface da pedagogia e da História, cujo objeto de estudo é o ensino de História, considerado uma prática viva, em contínua transformação, em amplo contexto, que vai da sala de aula à organização dos sistemas nacionais de ensino e justificam práticas e procedimentos que se materializam nas aulas. A didática da História não se constitui como repertório de técnicas descontextualizadas, mas um campo de conhecimento que permite aos professores e profissionais de ensino articularem reflexão rigorosa sobre a prática em relação às ações de intervenção, ou seja, de ensino junto a seus alunos. Reflexão cada vez mais presente na forma de pensamento científico problematizado e reconhecido por aqueles que atuam na área. Dessa forma, à medida que abordamos alguns aspectos que consideramos mais relevantes para o aprendizado de didática do ensino de História, trazemos indicações, sugestões de leituras e referências que podem conduzir a aspectos recentes dos debates acadêmicos. Para ter uma boa didática, o professor deve ter consciência dos processos envolvidos em sua prática pedagógica, como a trajetória de sua disciplina, a fim de compreender o que significam algumas expectativas sociais de pais e alunos, entender sua multiplicidade e o motivo da distância entre os diferentes anseios e as demandas dos exames nacionais, bem como, por vezes, das ênfases e explicações elaboradas nos cursos de História, ou seja, os desafios do ensino da História e seus problemas. Assim, você pode estar se questionando: mas como saberei quais sãos as práticas e ações mais adequadas em determinadas situações? Esse é um dos nossos desafios cotidianos como docentes, pois nos deparamos com situações recorrentes, mas também com novidades que nos impõem reflexão e construção de novos caminhos. E como podemos fazer isso? Procurando ler e aprender sobre as experiências acumuladas de outros profissionais. Vamos trazer aqui alguns exemplos iniciais que serão melhor desenvolvidos no decorrer de nosso livro-texto. Suponha que num dado momento você procure suporte para questões tão amplas quanto quais os temas mais adequados a serem trabalhados? O que não pode faltar na trajetória pela Educação Básica? Como posso construir situações atraentes e inovadoras, mas, ao mesmo tempo, consistentes e significativas? O que posso procurar ler? Onde pesquisar? Assim, com diversos questionamentos, 10 saímos da empiria para a problematização e muitas obras podem nos auxiliar. É o caso do livro Didática e Prática de Ensino de História, de Selva Guimarães, que traz temas como as abordagens historiográficas recorrentes no Ensino Fundamental, políticas públicas, currículos e ensino, estudo da História e da cultura afro-brasileira e indígena, livros didáticos, formação dos professores de História, ensino e construção da cidadania, experiências, saberes e práticas, interdisciplinaridade, transversalidade e ensino de História, projetos, pesquisa e produção de conhecimento em sala de aula; além do uso de diferentes fontes e processos de aprendizagem, como cinema, canções, literatura, documentos, imprensa, fontes orais ou iconográficas, tecnologias digitais, cultura material e museus ou, ainda, avaliação e aprendizagem em História. Isso tudo fundamentado com bibliografias e estudos consistentes. Porém, não basta compreender o que norteou o currículo e a didática da disciplina no passado e atualmente e suas diferenças. É preciso também entender as características próprias do conhecimento construído pela disciplina História. Afinal, ensinar História não é transmitir uma única versão a ser repetida pelos alunos por meio de um questionário. Desenvolver o conhecimento histórico é construir, a partir do ensino, noções de temporalidade e historicidade. Essas noções são ferramentas cognitivas fundamentais para elaborar narrativas explicativas dos fenômenos sociais cujo domínio exige a transformação de maneiras espontâneas de narrar em formas explicativas e argumentativas, que permitem não só a compreensão, mas a análise do presente. As questões contemporâneas nos trazem a necessidade de atualização e de ter contato com produções recentes. Quais são os novos desafios? Desse questionamento, e de muitos outros, nasceu a obra Novos Combates pela História: desafios, ensino, organizada por Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky, com textos que abordam uma agenda atual e dialoga com aspectos de grande relevância. Textos como A História Contra-Ataca, de Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky; Quem Escreve a História: a qualificação do historiador, de Carlos Fico; Defesa do Ensino de História nas Escolas, de Maria Ligia Prado; Negacionismo e Revisionismo Histórico no Século XXI, de Marcos Napolitano; Anacronismos e Apropriações, de Pedro Paulo Funari; Fake News: do passado ao presente, de Bruno Leal; Usos Pedagógicos para YouTube e Podcasts, de Icles Rodrigues; Visibilidade Histórica para Mulheres, Negros e Indígenas, de Luanna Jales e A Grande Ásia e o Ensino de História, de Alex Degan. Você pode estar pensando: quantos novos temas, como vou dar conta de tudo isso? Calma, as propostas são múltiplas e as estratégias de abordagens também são variadas. Devemos ressaltar que uma importante característica de nossa atuação como professores e professoras de História é a multiplicidade de iniciativas. Nossa atuação é marcada pela heterogeneidade. Diferentes experiências podemter igual validade, além disso, será que existe uma única maneira de atuar? Definitivamente, não. Cada um dos temas que trazemos aqui em caráter ilustrativo já é, em si mesmo, fruto de muitas experiências, de elaborada reflexão crítica e, sobretudo, resultado da constatação de sua relevância para a atuação de professoras e professores de História. Os aspectos gerais tratados relativos ao ensino de História, a constituição de sua didática ao longo do tempo, os desafios contemporâneos que devem enfrentar, as noções de tempo e espaço e o papel da narrativa na produção do conhecimento histórico, são o suporte para compreender o debate e a efetivação do currículo nacional do ensino de História, que atinge diretamente a sala de aula por meio 11 das diretrizes propostas pelo Ministério da Educação, replicadas pelas secretarias de ensino de estados e municípios. O livro didático também será abordado com o objetivo de permitir aos alunos que compreendam sua concepção e estrutura e o utilizem da melhor forma como apoio e instrumento de trabalho, e não como pauta de planejamento. Essa abordagem pode encontrar apoio em textos como o de Selva Guimarães, cujo capítulo traz o título “Livros Didáticos de História”, que se inicia com o seguinte questionamento: Adotar, abolir, complementar e/ou diversificar o uso de livros didáticos no ensino de História? Para muitos, essa questão pode parecer ingênua, inadequada ou superada. Isso porque muito já se investigou sobre política, conteúdo e forma do livro didático e, de modo geral, ela constitui a principal fonte de estudo, o elemento predominante e, muitas vezes, determinante no processo de ensino e aprendizagem em História. Esse fato não é peculiar ao Brasil. [...] O livro didático é um dos principais veiculadores de conhecimentos sistematizados, o produto cultural de maior divulgação entre os brasileiros com acesso à educação escolar básica na rede pública de ensino (2012, p. 91). Reflexão poderosa, não é mesmo? Partindo de algo quase corriqueiro, que é como a presença do livro didático avança a fim de problematizar seu uso, analisar as consequências das escolhas e como ele influencia na construção do conhecimento histórico. Os professores se valem cada vez mais, nos dias de hoje, de narrativas históricas produzidas fora da escola, com o objetivo de divulgar o conhecimento acadêmico ou os conhecimentos vinculados à produção da memória relacionados a museus, patrimônio histórico, material e imaterial, e práticas de História. Além desses recursos, a literatura, o cinema, a música e o teatro são instrumentos para o ensino da História. Finalmente, trataremos do uso das novas tecnologias e da maneira de organizar o ensino de conteúdos por meio de projetos interdisciplinares. Com essa constatação, nos parece que um tema importante que ronda as aulas de História nas mais diversificadas realidades presentes no Brasil: o problema da produção do conhecimento sobre a História e as fake news. Tema importante abordado na obra já referida de Pinsky e Pinsky Novos Combates pela História: desafios, ensino. Quantas novidades, quantos desafios e quantas possibilidades, não é mesmo? Refletindo com a obra do patrono da educação brasileira Paulo Freire (2015, p. 74-75), O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da história, mas seu sujeito igualmente. 13 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Unidade I 1 FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA: VISÃO HISTÓRICA A disciplina escolar Didática da História se constituiu, ao longo do tempo, em um campo de saber: o campo educacional. Para ter a compreensão do que isso significa, é importante conhecer a própria história da disciplina, pois As mudanças efetuadas no ensino de História nas últimas décadas vieram articuladas às transformações sociais, políticas, econômicas e educacionais de maneira mais ampla, bem como àquelas ocorridas no interior dos espaços acadêmicos, escolares, na indústria cultural e nos diversos espaços formativos. Nesse sentido, considero importante não separarmos a investigação e o debate sobre o ensino, do contexto em que ele é produzido, do conjunto de relações de espaços de saber e poder, especialmente, das relações entre Estado, universidades, indústria cultural e escolas de ensino fundamental (GUIMARÃES, 2012, p. 19). De acordo com essa abordagem, parece ser muito importante situar o conhecimento na época de sua produção e uso para que tenha historicidade, não é mesmo? Isso nos ajudaria a evitar o erro de pensar o ensino e o conhecimento sobre a História de maneira desligada da realidade no qual são produzidos e realizados. E continua, Nas últimas décadas do século XIX e na primeira do século XXI, a produção historiográfica e educacional não somente se ampliou de forma consistente e gradativa, como alargou sua presença na indústria cultural, incluindo aqui os diferentes espaços de produção de novas tecnologias e artefatos, objetos que fazem parte da cultura contemporânea. Assim, além do Estado e do mercado editorial, a mídia também se faz presente na discussão sobre o ensino de História, ou seja, sobre o que, para que e como promover esse ensino aos milhões de jovens que frequentam as escolas brasileiras (FREITAG, 1989 apud GUIMARÃES, 2012, p. 19-20). Podemos considerar que a própria trajetória da formação de nossa disciplina como disciplina escolar tem relevância, pois nem sempre saberes e práticas foram organizados tal como se encontram no início do século XXI. Como nos indica ainda Guimarães (2012, p. 20), os desafios eram outros e as soluções, também. Isso nos coloca diante do constante problema da necessidade de pensar os processos formativos que se desenvolvem em diversos espaços e as relações entre sujeitos, saberes e práticas. Enfim, é refletir sobre modos de educação dos cidadãos numa sociedade complexa, marcada por diferenças e desigualdades. 14 Unidade I Como todo campo de saber, também se constituiu em meio a convergências e embates entre a produção acadêmica da História e as práticas de ensino acumuladas ao longo dos anos permeadas por determinações dos momentos políticos do país. Por isso, para que o professor de História ao se formar conheça a história das práticas do seu campo profissional específico, o campo educacional, e, nele, o subcampo da disciplina de História, ele precisa conhecer aspectos das lutas que a forjaram, tanto no âmbito da escola (cultura escolar) quanto no de sua produção acadêmica e no seu reconhecimento social, e ainda na esfera de decisões estatais. Traçamos um panorama do ensino de História no Brasil de forma a salientar os valores e as práticas que o orientaram em diferentes momentos a partir de uma organização cronológica. Convidamos os alunos a procurar identificar as permanências atuais de alguma característica forte de épocas passadas, relembrando sua vida escolar. 1.1 Qual História ensinar? Diferentes propostas, diferentes momentos políticos Selecionar e organizar o conteúdo da História a ser ensinada é uma das dimensões tanto do professor de História quanto das instituições sociais legitimadas para tanto. Percebendo isso, reconhecemos que estamos trabalhando com processos sociais modificados no decorrer do tempo e, conforme já indicado, que possuem sua historicidade. Vamos examinar aqui o papel dos jesuítas, inicialmente, depois, dos professores do Colégio Pedro II e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e, por fim, do Ministério da Educação, por meio de pareceres e instruções relativas à construção dos currículos e à concepção do ensino de História. 1.1.1 Os jesuítas Podemos dizer que a partir da chegada dos jesuítas, foram fundadas as primeiras escolas elementares brasileiras, em que se consideravam os textos bíblicos comoa base para o ensino da História. A necessidade de compreender diversos aspectos relacionados aos jesuítas e ao ensino nos deixa a questão do que pesquisar e o que assistir para conhecer de maneira consistente e adequada um pouco mais da História dos jesuítas. Isso nos coloca alguns desafios e riscos que podemos ressaltar agora para constituir-se em um alerta aos mais diversos momentos de sua formação e, posteriormente, da atuação como docente. Se nosso impulso inicial for muitas vezes fazer uma rápida pesquisa em buscadores da internet, é preciso estabelecer alguns critérios para isso. É recorrente aparecerem títulos chamativos, fantásticos e que denunciam a “verdadeira História” deste ou daquele assunto, bem como “aquilo que não tem contaram sobre...” ou, ainda, abordagens que se colocam como científicas por alegar que se fundamentam em pesquisas e em diversos estudos e fontes, mas que não os citam corretamente ou não são oriundos de trabalhos embasados de pesquisadores acadêmicos já referendados por seus pares, como deve ser a pesquisa científica. Toda vez que encontramos esse comportamento na divulgação de supostos conhecimentos históricos, é preciso se atentar e ter muito cuidado. Mas, então, você se pergunta: como fazer? É claro que uma primeira via de pesquisa será a internet, e isso não se constitui em um problema, pois assim é possível encontrar artigos, periódicos, entrevistas, dissertações e teses de grande qualidade. A questão é ter os cuidados necessários ao realizar isso. 15 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Conforme alertamos, um dos critérios seria a publicação em revistas e instituições reconhecidas e que submetem as publicações ao crivo acadêmico. Outro critério seria pesquisar a própria trajetória de quem divulga determinados conhecimentos. São cuidados que implicam esforço, mas nos trazem resultados com um nível de segurança cada vez maior. Saiba mais Para saber mais sobre os jesuítas, sua maneira de agir e pensar e como isso se relaciona com a catequese e o ensino, recomendamos as obras: O’MALLEY, J. W. Uma história dos jesuítas: de Inácio de Loyola a nossos dias. São Paulo: Edições Loyola, 2017. Para um olhar mais específico: TOLEDO, C. A. A.; SKALINSKI JUNIOR, O. Modernidade, espiritualidade e educação: A Companhia de Jesus dos exercícios espirituais à Ratio Studiorum. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 42, p. 71-93, jun. 2011. Disponível em: https://cutt.ly/hNysDpc. Acesso em: 24 out. 2022. Para compreender a relação entre jesuítas e colonização: VIOTTI, H. A. A fundação de São Paulo pelos jesuítas. Revista de História, v. 8, n. 17, p. 119-133, 1954. Disponível em: https://cutt.ly/6NydYUs. Acesso em: 24 out. 2022. E também a reportagem: INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Os missionários jesuítas que inspiraram “A Missão”, filme de Roland Joffé, 20 dez. 2019. Disponível em: https://cutt.ly/1Nyfho5. Acesso em: 24 out. 2022. Além de bibliografia e artigos, existe uma produção cinematográfica que procura se aproximar do universo mental e espiritual dos jesuítas e contribuem para termos um melhor entendimento de como foi sua atuação em tempos coloniais. Ao recomendar filmes ou outras produções culturais, ressaltamos que devem servir para problematização e questionamentos, e não como simples ilustração da verdade. Tal atitude crítica nos permite levar tais obras para sala de aula a fim de trabalharmos com documentos de diversas bases. 16 Unidade I Saiba mais A relação entre cinema e ensino de História pode ser muito enriquecedora. O caso dos jesuítas inspirou obras como: A MISSÃO. Direção: Roland Joffé. Reino Unido: Warner Bros., 1986. 125 min. SILÊNCIO. Direção: Martin Scorsese. EUA: SharpSword Films, 2016. 165 min. HÁBITO Negro. Direção: Bruce Beresford. Canadá: Alliance Communications Corporation, 1991. 101 min. As práticas dos jesuítas eram utilizadas para reforçar a catequese e exercitar a leitura e a escrita, além de introjetar os valores católicos. Para isso, os padres utilizavam o catecismo, ou seja, um conjunto de textos seguidos por exercícios de perguntas e respostas que garantissem a compreensão da história bíblica. Para a introjeção desses valores, os jesuítas se valiam das encenações teatrais como método didático, como se pode constatar na correspondência de José de Anchieta e na Ratio Studiorum, o grande manual da didática jesuítica, publicado em 1599. Saiba mais Saiba mais sobre a pedagogia jesuítica, importante tópico da História da educação. O texto pode ser encontrado em: COSTA, C. J.; MELO, J. J. P.; FABIANO, L. H. Fontes e métodos em História da educação. Dourados: UFGD, 2010. Disponível em: https://cutt.ly/uNyl0vt. Acesso em: 24 out. 2022. O tempo histórico dos textos bíblicos, diferentemente das religiões tradicionais, não é o tempo cíclico da natureza ou dos rituais sagradas. É um tempo linear, também sagrado, no qual a humanidade caminha simultaneamente com homens singulares, subordinados, os dois, à providência. Desde a introdução do “Novo Testamento”, na Bíblia, os homens passaram a ter a possibilidade de conversão, surgindo então a noção do tempo da humanidade e do tempo dos homens, tempos paralelos subordinados a um tempo absoluto: o da providência divina. 17 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Para saber mais sobre os diferentes usos das noções de tempo, sua historicidade, suas modificações e sua construção e desenvolver uma ampla visão do uso social do tempo em diversas sociedades, recomendamos: PIMENTA, J. P. O livro do tempo: uma história social. São Paulo: Edições 70, 2021. Na obra, você vai poder desenvolver seus conhecimentos acerca de noções como “As sociedades e os ciclos da natureza” (capítulo 1); “A invenção do tempo nos calendários” (capítulo 2); “As sociedades e seus tempos mítico-religiosos” (capítulo 3); “A mecanização do tempo. Relógios para quê?” (capítulo 4), “A organização temporal do passado” (capítulo 5); “Ideias e conceitos de história” (capítulo 6); “O tempo segundo as ciências da natureza” (capítulo 7); “Viver e pensar o futuro” (capítulo 8) e, “Morrer, viver e lembrar. Tempos da morte como tempos da vida” (capítulo 9). Na escola jesuítica e nas missões jesuíticas, a conversão dos indígenas é um de seus propósitos. Ali se narrava a História do mundo a partir do advento de Jesus Cristo e da própria conversão da comunidade. As dimensões desse tempo linear, ainda que sagrado, são três: o tempo da criação e da queda da humanidade; a oferta de salvação – a vivência na religião –; e o juízo final. Saiba mais Se quiser aprofundar a perspectiva bíblica do tempo, recomendamos a leitura do texto de Raquel Glezer: GLEZER, R. O tempo e os homens: dom, servidor e senhor. In: GLEZER, R. et al. Estudos sobre o tempo. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 1991. p. 3-13. Disponível em: https://bit.ly/3gB71s2. Acesso em: 24 out. 2022. Esse modelo e as estratégias de ensino de História atendiam a uma sociedade que, ainda que dominada pela Igreja, já valorizava a importância da difusão da escrita e da leitura, mantendo o texto sagrado como base, o tempo linear como organizador da narrativa e instituindo uma ideia que perdurará até o último quartel do século XIX: a concepção de uma História Universal, que é católica. 18 Unidade I 1.1.2 O Colégio Pedro II Em 1837, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, inclui a disciplina de História como obrigatória. Nesse ano, também é fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ambos defendem uma concepção de formação da nação. Foram essas as duas instituições que elaboraram, no Brasil, os primeiros pilares do que podemos chamar de didática da disciplina História e pautaram a formação dos professores de ciências humanas a partir de manuais escritos por profissionais liberais cultos e já influenciados por ideias de uma escola laica que tem origem na França. A História como disciplina laica surgiu na França como uma estratégia da burguesiapara conquistar hegemonia nacional. Para isso, estruturou-se a educação pública, gratuita, leiga e obrigatória, a fim de garantir, após a Revolução Francesa, uma base de apoio às novas ideias. Nesse contexto, a História tinha o papel de construir uma narrativa sobre o passado comum à nacionalidade. Seus conceitos estruturantes eram nação, pátria, nacionalidade e cidadania. Seu tempo era linear, contínuo, com as mesmas três dimensões existentes na História sagrada, que agora se converteram em passado, presente e futuro. Sendo que o tempo absoluto deixou de ser a vontade da providência divina e passou a ser a vontade dos homens. A finalidade da História deixou de ser o juízo final e passou a ser a liberdade, a razão, o progresso, a evolução. No Brasil, a constituição da disciplina História a partir da criação do Colégio Pedro II e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro também esteve a serviço da hegemonia de um grupo dominante com interesses voltados à Europa e em um Estado que mantinha fortes vínculos com a Igreja. Saiba mais A fim de conhecer mais a respeito da História do Colégio Pedro II, recomendamos as seguintes leituras: ANDRADE, V. L. C. Q. Colégio Pedro II: um lugar de memória (1837-1937). 1999. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. MENDONÇA, A. W. P. C. et al. A criação do Colégio de Pedro II e seu impacto na constituição do magistério público secundário no Brasil. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 985-1000, out./dez. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3VUIIp7. Acesso em: 24 out. 2022. Para pensar a instituição, memória e patrimônio: ANDRADE, V. L. C. Q.; SANTOS, B. B. M. Memória e patrimônio da História da educação brasileira – O Colégio Pedro II. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28., 2015, Florianópolis. Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. Florianópolis: Udesc, 2015. p. 1-9. Disponível em: https://bit.ly/3VWkV8p. Acesso em: 24 out. 2022. 19 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Para analisar o currículo: SANTOS, B. B. M. O currículo da disciplina História no Colégio Pedro II – República (1889-1950). In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH-RIO MEMÓRIA E PATRIMÔNIO, 14., 2010, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: UniRio, 2010. p. 1-11. Disponível em: https://bit.ly/3F64Mr0. Acesso em: 24 out. 2022. Na escola elementar ou de primeiras letras, seguia-se um plano de estudos proposto em 1827, no qual o ensino de História estava associado à leitura de temas que contribuíssem para a formação do senso moral e da valorização dos deveres para com a pátria e seus governantes. A História estava ligada à formação moral e cívica e de seu estudo fazia parte a leitura da constituição do império e da História do Brasil. No entanto, em poucas escolas, aprendia-se essa História, o que prevalecia era o ensino de leitura e escrita, gramática, aritmética, sistema métrico, pesos e medidas, ensino da doutrina religiosa; de modo muito semelhante ao ensino jesuítico, posto que se mantinha como disciplina a História sagrada, até 1870, quando a influência da Igreja sobre as questões do Estado diminui, mas permanece no plano de estudos de várias escolas públicas, até mesmo após o advento da República. Essa escola laica mantinha, então, forte vínculo religioso e além das questões já apontadas referentes à concepção temporal da História sagrada com a História laica, convém elencar mais uma: o destaque para a figura de grandes personagens, que a exemplos das histórias de santos, eram consideradas motivadoras para a formação moral das gerações futuras. Essa História biográfica era tida como um modelo pedagógico para o ensino da História nas classes elementares, em que se confundia com o da moral cívica, intimamente relacionada a um sentido religioso. No final do século XIX, com a abolição da escravidão, o processo de urbanização foi intensificado, entra no debate a concepção de cidadania e a extensão dos direitos sociais e civis a mais pessoas. A escola era a via de ampliação do número de alfabetizados e da aquisição da cidadania política. A Proclamação da República veio acompanhada com o direito de voto dos alfabetizados. Entre as várias propostas para o ensino de História, a que se tornou hegemônica afirmava a construção de um passado único da nação, porém, sem incluir os setores sociais marginalizados como agentes da História do país. Esta era conduzida pelos feitos dos grandes homens, os pais da pátria, e pela celebração de tradições nacionais nas aulas e nas festas cívicas. Desse modo, a História foi a via para incutir o patriotismo, entendido como amor pela Pátria e por seus governantes. O conceito de cidadania subjacente criado nas narrativas históricas servia para disseminar valores de preservação da ordem e obediência à hierarquia; o conceito de progresso era vinculado à modernização segundo moldes europeus. Nos livros de História elaborados no início do século XX, destacavam-se a ação desses grandes homens, como aqueles que cuidavam da política, enquanto os trabalhadores votavam e produziam. Os grandes personagens eram apresentados para salientar os conteúdos básicos da História da pátria: riqueza e beleza da terra, matas e rios; o clima, a gente mestiça, risonha e pacífica; a história dos portugueses civilizadores, a cristianização. Todos esses itens foram expostos em um livro de Afonso Celso (advogado, literato e político mineiro, filho do Visconde de Ouro Preto, importante figura do 20 Unidade I final do Império, foi presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras) chamado Porque me ufano de meu paiz, que pretendia divulgar uma cultura única e pacífica em todo o Brasil. Saiba mais O valor da obra de Afonso Celso, e também de outros, é inestimável e para sua preservação e divulgação, pode-se acessar a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. O acervo digitalizado permite visualizar e fazer download das obras. Para conhecer a Brasiliana, recomendamos o endereço: Disponível em: https://www.bbm.usp.br/pt-br/. Acesso em: 24 out. 2022. Na Brasiliana, acesse a obra de Afonso Celso: CELSO, A. Porque me ufano do meu paiz. 4. ed. Rio de Janeiro: H. Garnier Livreiro-Editor, 1900. Disponível em: https://bit.ly/3f6TV5n. Acesso em: 24 out. 2022. A proposta de Afonso Celso não era, contudo, hegemônica, outras foram elaboradas em contraposição a essa e provocaram polêmicas. Um exemplo foi a de Manoel Bonfim (1868-1932, natural de Sergipe, estudou Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, foi jornalista e professor de Pedagogia e Psicologia na Escola Normal do Rio de Janeiro), que pretendia formar professores da escola normal que conhecessem a História da América e que permitissem identificar traços de mestiçagem na construção da sociedade brasileira. Saiba mais Rebeca Gontijo realizou um importante estudo sobre Bonfim, cuja referência é: GONTIJO, R. Manoel Bomfim. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010. Disponível em: https://bit.ly/3VVMkr1. Acesso em: 24 out. 2022. Ainda nas primeiras décadas do século XX, houve também propostas anarquistas que pretendiam combater o patriotismo e o culto à pátria, que justificavam o militarismo e as guerras em nome do pacifismo e, especificamente, da oposição à Primeira Guerra Mundial. Foram abertas escolas anarquistas em São Paulo e em Porto Alegre, mantidas por operários anarquistas, que tentaram implantar a ótica das lutas sociais para entender a História, e não a formação do Estado ou o progresso. Elas foram inspiradas na pedagogia do espanhol Ferrer Guardia, que valorizava a racionalidade e o cientificismo e procurava fazer uso de estratégias 21 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA de aprendizagem bastante diferenciadas para a época, como visitas a museus e exposições com o objetivo de propor que o aluno pensasse e não apenas decorasse o conteúdo. A organização dos conteúdos históricos também era diferente:propunha-se a abordar temas como a Revolução Francesa antes do estudo sobre a Antiguidade, quebrando assim o paradigma da linearidade temporal. As ideias revolucionárias, no entanto, foram pontuais e de pouca duração. As dez escolas com esse perfil foram fechadas com a pressão do governo de Arthur Bernardes (1922-1926), que sufocou os movimentos trabalhistas. Além da experiência anarquista, que se restringiu a poucas escolas, podemos mencionar que havia uma diversidade de escolas primárias em áreas urbanas e rurais, algumas públicas, outras particulares confessionais ou criadas e mantidas por imigrantes e outros setores laicos que, muitas vezes, também atendiam adultos trabalhadores. Eram escolas com propostas diversas, com horários e tempos pedagógicos diversificados. Porém tal diversidade foi se subordinando ao controle estatal, e ao final de um período de confronto sobre o que deveria compor seu currículo, no fim dos anos 1930, se consolidaram como fundamentais para a formação nacionalista e patriótica os seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, História do Brasil e Educação Moral e Cívica, com Geografia, eram os conteúdos que sedimentavam o culto aos heróis e à criação das tradições nacionais, tanto nas aulas como nas festas cívicas. Podemos depreender a existência de projetos distintos e que são, eles próprios, repletos de historicidade. As concepções de História no século XIX, durante o Período Regencial (1831-1840) e no decorrer do Segundo Reinado (1840-1889), modificava-se, ainda mais com o advento da República em 15 de novembro de 1889. Saiba mais Qual o lugar da História nos currículos? Quais as concepções de tempo? Como se deu a construção de figuras heroicas e de que maneira as festas cívicas também entraram para o currículo? São formas de nos aproximarmos do conhecimento histórico produzido e difundido em determinadas épocas. Você pode estar se questionando: como as datas e celebrações são construídas, quando e como, não é mesmo? Para nos aproximarmos desse debate, indicamos a obra: PIMENTA, J. P. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022. Em sua introdução, ao discutir a atualidade da Independência, o autor nos apresenta um breve histórico sobre a construção de símbolos e celebrações. Ainda sobre o ensino de História e datas cívicas, recomendamos: MENDONÇA, J. A.; FONSECA, S. G. Ensino de História e datas cívicas nas vozes de jovens estudantes do Ensino Fundamental. In: FONSECA, S. G. (org.). Ensinar e aprender História: formação, saberes e práticas educativas. Campinas: Alínea, 2009. 22 Unidade I Voltando ao debate sobre os currículos, devemos ressaltar que a consolidação curricular ocorreu concomitantemente à criação do Ministério da Educação, em 1930, que passou a orientar não somente o currículo, mas a definir alguns dos heróis. Entre os heróis, destaca-se Tiradentes, e entre as festas cívicas, o 7 de setembro. Além disso, o Ministério produzia uma diferenciação entre a escola dos primeiros anos e os cursos ginasiais, para os quais era exigido o exame de admissão, nos quais os conteúdos de História eram obrigatórios. Até então, o estudo da História não era obrigatório. A História do Brasil existia como conteúdo complementar à História da civilização, daí o Brasil nascer em Portugal, ser fruto da expansão marítima e da introdução na América da civilização cristã. O povo brasileiro, constituído de mestiços, negros e índios, estava ausente da galeria de heróis que organizavam o conteúdo a ser ensinado. Os nativos eram apresentados como conquistados, submetidos ao real sujeito da História. Até a Lei n. 5.692/1971, que fixa as diretrizes e bases para o ensino de primeiro e segundo graus em âmbito nacional, os conteúdos de História do Brasil tinham como objetivo formar a consciência nacional por meio de seus heróis e marcos históricos. O principal personagem que ocupava o centro desse ensino era a pátria, como mostram Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli. Saiba mais A fim de entender melhor como as coisas funcionavam, leia a obra das autoras nas páginas indicadas: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. p. 10-11. 1.1.3 O Ministério da Educação O Estado surge com papel importante e protagonista na constituição dos conteúdos da disciplina História, na definição dos tempos pedagógicos, na sua obrigatoriedade ou não, na fixação e definição de seus conteúdos, além de estabelecer a obrigatoriedade para o exame de admissão ao ginásio, que dá direito a prosseguir no ensino secundário. Determina também o ensino secundário com a Reforma de Gustavo Capanema em 1942, quando a História do Brasil passou a ter uma carga maior e o currículo dedicava uma série ao seu ensino. Definiram-se dois níveis do curso secundário: o ginasial de quatro anos e o curso colegial, separado em clássico ou científico, de caráter propedêutico, ou seja, preparatório para o Ensino Superior, de três anos. E aí a disciplina de História tornou-se presente em vários exames vestibulares e, portanto, também nos cursos preparatórios. O objetivo de seu estudo era o sucesso nos exames de seleção, que tinham um caráter enciclopédico. 23 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Para conhecer mais sobre o Ministério da Educação, recomendamos acessar o verbete do Dicionário do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA 1953-. In: DICIONÁRIO DO PATRIMÔNIO CULTURAL. Iphan, 2014. Disponível em: https://bit.ly/3MYLu8R. Acesso em: 24 out. 2022. Nele, temos as referências aos decretos e leis, como o Decreto n. 19.402, que cria uma Secretaria de Estado com a denominação de Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, em 14 de novembro de 1930. Além de atuar na definição de conteúdos da disciplina, o Estado começou a se preocupar mais intensamente com a formação dos professores. O Ministério da Educação começou a fiscalizar a aplicação das leis, a inspecionar escolas, criou, para isso, dois órgãos: o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), em 1944, e a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (Cades), em 1953. Órgãos que se destinavam a publicar periódicos e manuais voltados à formação dos professores. Os anos 1950 e 1960 foram ricos em discussão. Em 1955, foi criado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), vinculado ao Ministério da Educação. Entre seus objetivos, estava contribuir para o estudo e ensino das áreas de humanidades, além de elaborar instrumentos de análise e planejamento para a sociedade brasileira. Em 1963, o departamento de História do Iseb tinha à frente Nelson Werneck Sodré, um marxista que, com professores formados pela Faculdade Nacional de Filosofia e alguns estudantes, elaboraram um projeto de coleção para professores de História – História Nova do Brasil, a ser publicado pela Campanha de Assistência ao Estudante (Cases), também vinculada ao Ministério da Educação. Sua pretensão era reformular os métodos, o estudo e o ensino da nossa História. A intenção de seus autores era fazer o povo aparecer na História do Brasil e também integrar o Brasil à História mundial, além de estender o estudo até o presente. Tratava-se não apenas de mencionar o povo, mas de explicitar a estrutura social e dar ênfase à estrutura econômica. A intencionalidade política está presente em todas as propostas de ensino de História, embora nem sempre de forma explícita. No caso dessa obra, o seu propósito editorial era claro e mencionava que a Campanha de Assistência ao Estudante (Cases) do Ministério da Educação e Cultura teria plena convicção de estar contribuindo, à sua maneira, para o desenvolvimento coerente e acelerado do processo histórico brasileiro. Sua origem, – assim como a de todas as demais que compõem essa coleção –, prende-se à tentativa, já impostergável, de reformular, na essência e nos métodos, o estudo e o ensino de nossa História. 24Unidade I Foi possível observar que vivia-se um momento de euforia, de crença em profundas mudanças estruturais da sociedade brasileira. Saiba mais As informações sobre esse momento histórico podem ser muito instigantes para verificarmos o quanto avançamos e quais questões ainda fazem sentido para o ensino da História. Acesse o artigo: LOURENÇO, E. História Nova do Brasil: revisitando uma obra polêmica. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 28 n. 56, p. 385-406, 2008. Disponível em: https://bit.ly/3TA9KRa. Acesso em: 24 out. 2022. Esse projeto, porém, não foi levado a cabo, sofreu duras críticas da academia, especialmente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Com o advento do regime militar, o Iseb foi extinto e a obra, censurada e proibida. Além do debate sobre a interpretação da História do Brasil, o modo de ensiná-la, outra questão se colocava no final dos anos 1950. Questionava-se, a partir dos princípios da Escola Nova, a propriedade do ensino da História e sua falta de criticidade. Surgiu uma nova proposta formulada por Delgado de Carvalho, professor influente do Colégio Pedro II, autor de vários livros de Geografia e História, influenciado por diálogos com Anísio Teixeira e Lourenço Filho. Em 1957, Delgado de Carvalho publica Introdução Metodológica aos Estudos Sociais, em que propõe outra disciplina, em vez da História, objetivando oferecer ao aluno uma visão integral da vida, com sentido de significado social, descobrindo o valor e a importância de si mesmo. Nessa proposta, afirmava-se, sob a inspiração de Dewey e suas ideias de escola democrática e valorização da experiência na aprendizagem (sobre a qual voltaremos a falar) que, em vez de restringir-se ao conteúdo de História, essa disciplina estaria voltada para a vulgarização dos conhecimentos de História, Geografia Humana, Economia, Sociologia, Política e Antropologia Cultural. Em 1970, na segunda edição de sua obra, o autor justifica sua proposta: “A Sociologia, Geografia Humana, Estatística, História, Política e Economia não constituem Ciências, mas apenas ramos científicos de uma ciência una” (CARVALHO, 1970, p. 16). Segundo o autor, essas distinções são artificiais, o objetivo de serem assim ensinadas é tentar vencer sua complexidade. No entanto a simplificação didática compromete o alcance e a significação, por isso era preciso transformar o ensino e articulá-las. Essa proposta não foi aceita e nem mesmo posta em prática na época, sendo objeto de várias críticas por parte de historiadores que defendiam a particularidade do conhecimento da História e sua importância na educação básica. Emília Viotti da Costa, por exemplo, afirmava que: ”A História matéria tem uma finalidade: formar a personalidade integral do adolescente [...] e fornecer-lhe conhecimentos básicos específicos” (apud RICCI, 1999, p. 51). 25 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Paralelamente a essa proposta, em caráter experimental, foram criados no estado de São Paulo, em 1961, os ginásios vocacionais coordenados pelo Serviço de Ensino Vocacional. Eram escolas de tempo integral que procuravam desenvolver projetos a partir de áreas de conhecimento com a finalidade de engajar os alunos na compreensão e atuação em sua realidade. Um dos eixos centrais eram os Estudos Sociais, a partir dos quais as demais disciplinas se congregavam para responder questões relativas ao trabalho no intuito de que cada um pudesse construir um projeto que atendesse sua vocação ontológica, e não apenas profissional. Os professores deveriam trabalhar em equipes multidisciplinares orientando os alunos em um processo de ensino-aprendizagem investigativo, do qual faziam parte os estudos do meio, ou trabalho de campo, os estudos dirigidos, os estudos supervisionados e os estudos livres. Uma consulta ao Fundo do Serviço do Ensino Público Vocacional do Estado de São Paulo (SEV) no Centro de Documentação e Informação Científica (Cedic) nos informa que os Estudos Sociais diziam respeito à História do sindicalismo, legislação trabalhista, segurança no trabalho, saúde do trabalhador e trabalho e produção na História do Brasil. No entanto o projeto foi extinto em 1969, com a prisão de vários de seus coordenadores. As memórias de ex-alunos e ex-professores publicadas em livros e blogs permitem conhecer algumas de suas práticas e identificar algumas de suas reflexões ainda presentes. Elas revelam que não se tratava de uma redução do ensino de História, mas de um deslocamento do foco da lista de conteúdos para o interesse definido em assembleias e de um método investigativo, que inclui não só fazer a pesquisa, buscar a informação, como também, às vezes, para o custeio disso, procurar recursos na oficina da escola e na cantina. Saiba mais Para aprofundar-se no tema, visite o site e consulte as obras: Disponível em: http://www.vocacional.org.br/. Acesso em: 24 out. 2022. ROVAI, E. Ensino vocacional: uma pedagogia atual. São Paulo: Cortez, 2005. TAMBERLINI, A. R. M. B. Os ginásios vocacionais. São Paulo: Annablume, 2001. Lembrete Os exemplos dos anos 1950 e 1970 mostram que, no campo educacional, há diferentes posições possíveis, e que elas entram em luta por poder no campo educacional. Nos anos 1970, entretanto, outra proposta de Ensino de Estudos Sociais foi vitoriosa em 1971 e definida pela Lei n. 5.692/1971 (BRASIL, 1971), que extinguiu os cursos de História e de Geografia do primário e 26 Unidade I antigo ginásio, hoje, Ensino Fundamental. As disciplinas permaneceriam apenas no segundo grau, hoje, Ensino Médio. Além disso, foram criadas duas disciplinas: Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, com as quais, a disciplina de Estudos Sociais dividia a carga horária. No contexto político do período militar, que procurava retirar da escola a menção a tensões e conflitos, era conveniente reduzir o conteúdo histórico e valorizar a história e administração local, os símbolos pátrios e os deveres dos cidadãos. O argumento pedagógico, utilizado para implantar essa reforma, foi de que era preciso valorizar o conhecimento dos alunos menores, partindo do mais presente e mais próximo, ampliando gradativamente para o mais distante e mais antigo, avançando em círculos concêntricos. Essa justificativa teria como embasamento a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget, interpretada de modo errôneo, segundo o próprio autor e, não obstante, utilizada como argumento para a impossibilidade de os alunos dos primeiros anos de escolarização dominarem conceitos como tempo histórico (BITTENCOURT, 2011a, p. 185). Em 1976, o Ministério da Educação determina que para dar aulas de Estudos Sociais, os professores precisam ser formados na área, fechando-se assim as portas para os graduados em História e em outros cursos de nível superior. Dessa forma, evidencia-se a exclusão das especificidades das diferentes disciplinas que compõem a área de ciências humanas na formação de professores e o intuito de homogeneizar as práticas de ensino. Ainda no campo da ação do Estado como protagonista nas práticas de formação de professores, data de 1962 a obrigatoriedade de um conjunto de disciplinas vinculadas à formação pedagógica do professor definindo a carga horária embasada em discussões e reflexões sobre os alunos e o método, justificados no Parecer n. 292/62 (BRASIL, 1962) do Ministério da Educação. Nesse texto, o método não está centrado apenas no ensino, mas também na aprendizagem, com foco na motivação. Ele ainda define um ensino que promove a relação entre a prática e a teoria por meio do estágio supervisionado dentro de uma escola real, pela tutela. Uma proposta ligada à imitação, observação e reprodução de padrões consagrados, que propiciasse exercitar modelos. Podemos considerar que isso significa que o ensino de História tem grande importância na formação dos futuros cidadãos, pois se retroagirmos nosso olhar à década de 1960, nos deparamos com o Decreto n. 477/1969, que proibia qualquerforma de manifestação política não autorizada, provocativa ou subversiva de professores, alunos ou empregado, de acordo com o apresentado por Guimarães (2012, p. 81). Tal explicação está no tópico “Os professores de História como cidadãos educadores”, quando a autora considera que A reflexão sobre a construção da cidadania nos espaços escolares implica pensar a formação de professores de história como sujeitos de direitos e deveres, profissionais, cidadãos com postura ética e compromisso social e político com a educação. Logo, é fundamental investigar a formação e a profissionalização dos professores de história. Na atual democracia brasileira, essa questão está ancorada em dois marcos jurídicos normativos da educação nacional: a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei 9.394/1996, 27 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA que ratifica a Constituição Federal e estabelece, entre as finalidades da educação republicana, a preparação para o exercício da cidadania. [...] a trajetória da educação brasileira, assim como a construção democrática, foi “lenta e gradual”, expressão utilizada para caracterizar o processo de democratização do regime político. E continua em sua reflexão crítica, [...] a formação dos professores na área de ciências humanas, aqui entendidos como cidadãos, formadores de cidadãos, foi estrategicamente desqualificada, manipulada ou deformada no projeto educacional da ditadura, configurada no bojo da chamada Reforma Universitária, lei 5.540/1968. O art. 40 dessa lei, sobre o “Corpo Discente” definia que as universidades deveriam adotar, entre outras medidas, as atividades de educação cívica e educação física e desportos. O item (d) determinava que as universidades estimulassem “as atividades que visassem a formação cívica, considerada indispensável à criação de uma consciência de direitos e deveres do cidadão e do profissional”. Daí decorre a obrigatoriedade curricular de Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), que era a versão (para o ensino superior) da Educação Moral e Cívica (EMC), disciplina que se tornou obrigatória nos currículos de todos os graus e modalidades de ensino do país, em todos os cursos superiores (lei 869/1969), inclusive nas licenciaturas e na pós-graduação (GUIMARÃES, 2012, p. 80-81). Buscando apresentar a instrumentalização de medidas governamentais, bem como suas consequências mais imediatas, a autora ainda menciona que Articulada a essa medida, ocorreu a criação dos cursos superiores de licenciatura curta em estudos sociais, autorizados pelo decreto 547, de 1969. Tratava-se de um modelo de formação cujo conteúdo focalizava fragmentos de história, geografia, formação moral e cívica e o ajustamento ideológico dos jovens, futuros professores, aos objetivos e interesses do Estado, moldados pela doutrina de segurança nacional e desenvolvimento econômico. Caracterizo a formação universitária de professores nos cursos de estudos sociais como uma (des)qualificação estratégica imposta pela ditadura com o objetivo de impedir propostas formativas com base nos princípios da democracia e da cidadania (GUIMARÃES, 2012, p. 81). Dessa maneira, Selva Guimarães identifica a intencionalidade que estruturava a educação no Brasil daquele período e que, conforme veremos na sequência, foi posteriormente enfrentada por seus opositores na redemocratização e nos anos seguintes. Os anos 1980 foram o momento de sucesso no processo de conquista da redemocratização do país, repletos de muitos debates e experiências. As propostas da História Nova do Brasil, com ênfase 28 Unidade I nas determinações econômicas, ganharam os livros didáticos mais vendidos. Mas a grande inovação da década foram as propostas de articulação de currículos em eixos temáticos, que se tornaram referências para a futura elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Em 1986, o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Superior (Sesu), publica o diagnóstico e a avaliação dos cursos de História do Brasil, que apontam conflitos entre as concepções de História vigentes entre historiadores e pedagogos (BRASIL, 1986). Considera que essa distância e a continuidade da didática como transmissão de modelos proposta pelo Parecer de 1962 deixava de atender às situações reais enfrentadas pelos novos professores. O texto do documento é contundente: O que se verifica, de modo geral, é que os futuros profissionais do magistério não estão sendo instrumentados para criar suas próprias técnicas e utilizar os recursos de que dispõem de acordo com a diversidade de situações por eles encontradas nas escolas. No geral, o que se aprende na universidade está de tal maneira desvinculado das diferentes realidades, que bem se pode diagnosticar que, neste mister, o que se tenta passar é um “modelo” de “como dar aulas”, caracterizando um reducionismo ineficaz (BRASIL, 1986, p. 30). O diagnóstico mostra que as técnicas de ensino estavam descoladas dos objetivos de produção do conhecimento e não havia consenso sobre o significado do ensino de História, defende uma maior discussão para que seu sentido seja a produção de conhecimento e possibilita a instrumentação profissional do professor. Selva Guimarães nos indica que No final dos anos 1980, em uma obra publicada em 1989, Rouanet defendeu quatro argumentos a favor da restauração das humanidades no currículo: a) o cultivo das humanidades constitui um contrapeso necessário à difusão da cultura tecnocrática, assim resumidos; b) o manejo das humanidades torna o espírito infinitamente mais versátil; c) o cultivo da humanidades pode contribuir para o hábito do pensamento crítico, sem o qual, segundo o autor, nossa jovem democracia não poderia sustentar-se; d) segundo o autor, o argumento não menos importante, as humanidades são fonte de prazer (ROUANET, 1989, p. 322-326 apud GUIMARÃES, 2012, p. 82). A mudança nesse quadro geral veio com a Constituição de 1988, que, para Guimarães (2012, p. 84), [...] constituiu-se um marco jurídico-político na educação dos cidadãos brasileiros. Traduz conquistas das forças políticas democráticas, das lutas históricas do movimento social dos professores e dos estudantes brasileiros. O art. 206 estabeleceu que o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar pesquisar e divulgar o pensamento, a 29 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas no ensino; e IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Ainda, para Guimarães (2012, p. 85), Em relação aos cidadãos de direitos e deveres – os professores –, a Constituição avançou em aspectos fundamentais para o desenvolvimento profissional docente, ao definir como princípio, no item V do art. 206: “a valorização dos profissionais de educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas. [...] Desse modo, a Carta Magna garante os princípios de igualdade, liberdade, pluralismo [...]. Em 1997, a História e a Geografia voltam aos currículos escolares. Seu ensino é repensado a partir das discussões acumuladas, e o governo federal lança as Diretrizes Curriculares e Parâmetros Curriculares como instrumentos e apoios para os professores, o que trataremos analisando suas características e suas propostas em diálogo com as tensões políticas e com o processo de constituição do campo da didática. 1.2 Como ensinar? A didática da História: uma construção entre debates e embates, ideias e documentos Ao mesmo tempo em que a seleção de conteúdos curriculares foi se organizando com implicações políticas e sociais, e considerando como argumento as condições necessárias à aprendizagem dos alunos, uma didática da Históriase configurou, voltada à metodologia de ensino e à formação de professores. Vamos apresentar as principais ideias e alguns textos que as documentam. Os primeiros métodos pedagógicos propostos eram voltados para a memorização e para a introjeção dos valores a partir de recursos como as festas, que, de algum modo, lembram a metodologia do teatro utilizada pelos jesuítas, desde o século XVI. Para atingir a finalidade do curso de História de forma bem-sucedida, o método era a memorização, já utilizada nos catecismos católicos, em que o conteúdo era apresentado seguindo um modelo de perguntas e respostas. As respostas deveriam ser idênticas ao texto, e os erros ou imprecisões dos termos eram contemplados com castigos físicos, entre os quais, a já conhecida palmatória. Para isso, eram utilizados os chamados métodos mnemônicos, que se valiam de imagens, poesias e rimas que incentivavam o patriotismo, como, por exemplo, os versos de Olavo Bilac (1904, p. 114): “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste! Criança, não haverá país nenhum como este!” 30 Unidade I As comemorações e as festas eram um reforço à consolidação dessa memória histórica. Elas envolviam música, teatro, desfiles e vários rituais nos quais participavam os alunos com suas famílias ao lado das autoridades públicas. Os métodos mnemônicos tinham também uma razão de ser do ponto de vista sociocultural. A sociedade brasileira da época apresentava uma minoritária população letrada. A maioria não tinha acesso à escrita e já havia incorporado as formas de comunicação oral, entre elas, a repetição. Eram, portanto, esses os métodos mais eficientes para os objetivos da escola. Com as mudanças dos hábitos culturais, esses processos passam a cair, pois eram considerados ultrapassados. É possível conhecê-los hoje por meio de manuais didáticos e de romances. Um dos livros mais adotados de História do Brasil era Lições de História do Brasil de Joaquim Manuel de Macedo, professor do Colégio Pedro II, publicado por volta de 1861 com várias reedições. Cada lição deveria ser exposta pelo professor e lida pelo aluno. A seguir um texto com as explicações sobre os locais mencionados, depois, um resumo, na forma de quadro sinótico, dividido em personagens, atributos, feitos e acontecimentos e data e, a seguir, um conjunto de perguntas. Figura 1 – Lição XXI. Guerra Hollandeza (sic) Fonte: Macedo ([s.d.], p. 185). 31 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Figura 2 Fonte: Macedo ([s.d.], p. 189). Figura 3 Fonte Macedo ([s.d.], p. 190). 32 Unidade I Saiba mais Para aprofundar-se nas análises de Joaquim José de Macedo, consulte a obra: MATTOS, S. R. A História do ensino de História do Brasil Império através dos manuais de Joaquim Manuel de Macedo. 1993. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, 1993. Disponível em: https://bit.ly/3zac2OE. Acesso em: 24 out. 2022. Entretanto, ainda é nesse período de valorização dos heróis da pátria que podemos situar os primeiros manuais para professores e, por conseguinte, no dizer de Schmidt (2006), o início da constituição da disciplina Didática de História com um código, pois eles tornam possível para nós hoje o conhecimento do que se entendia por ensinar História, e que essa formação era um valor social. Schmidt e Cainelli (2004) citam como um precursor, nesse sentido, a obra de Jonathas Serrano, que se destaca por ter escrito dois manuais voltados ao ensino de História. Em 1917, Metodologia da História na Aula Primária e, em 1935, Como se ensina História. Na primeira, ele exalta a História pátria e o culto ao herói, mas também indica que o professor deveria escolher uma biografia que despertasse o interesse dos alunos e utilizar outros materiais, como mapas e gravuras. Ou seja, a chamada história biográfica não se restringia à narrativa da vida de um herói e sua repetição. Vale ler uma página desse manual que ensina como se deve ensinar História: Como nas classes elementares, o método biográfico e anedótico é indispensável, cumpre que a mestra possua farto cabedal de episódios interessantes, que logrem prender a atenção da criança. Na frase de Bliss, é preciso ter a lição da ponta da língua. Se a mestra hesita, ou gagueja ou não sabe contar, como esperar que a escutem com gosto? Grande dificuldade, saber contar! Em linguagem simples, acessível a cérebros tão jovens ainda, e com tudo correto, e principalmente evocativa, escolher o essencial, por de lado quanto é inútil e sobrecarrega a narrativa, discernir a minúcia que põe em relevo a personalidade ou a época: eis o que se não consegue sem esforço, dedicação, amor ao ensino. Por isso vemos comumente quem está desempenhando, sem verdadeira vocação nem preparo pedagógico, a dificílima e nobre função de guiar os primeiros passos das crianças no terreno da história, desobrigar-se, – ou julgar que se desobriga – da rude tarefa, exigindo a repetição decorada de páginas de um manual, epítome ou que nome tenha. Chamam a isso – ensinar história. 33 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Não é que os manuais devam ser abolidos. Ao contrário. Reconhecem-lhes a utilidade, especialistas como Lavisse, Hindale e Bliss, para não multiplicar as citações. Mas urge empregá-los e pouquíssimo temos que valham (SERRANO apud BITTENCOURT, 2011a, p. 92-93). Serrano, formado no Colégio Pedro II, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e professor tanto do Pedro II como da Escola Normal do antigo Distrito Federal, interage com autores expressivos da produção educacional, inclusive com John Dewey, com o qual se alinha para defender a ideia de que o ensino de História deve ter como referência primordial a experiência da criança, o estímulo à sua curiosidade e o desenvolvimento de significações com base em suas necessidades reais, tendo como ponto de partida a relação passado/presente. Por isso, a memorização e os elementos apresentados devem ser de interesse dos alunos, mas não se justificam por si só. Nos primeiros anos do século XX, de fato, a Europa e os Estados Unidos discutiam sobre a intencionalidade dos atos de ensinar e sobre as possibilidades e condições da compreensão dos alunos. Um expoente desse momento foi o filósofo americano John Dewey, que influenciou no Brasil a obra de representantes da Escola Nova, entre eles, Lourenço Filho e Anísio Teixeira. Jonathas Serrano, do Colégio Pedro II, se alinha assim à Escola Nova, de algum modo. Em 1935, Murilo Mendes escreve A História no Curso Secundário, em que procura se apropriar da Filosofia da História, da reforma da escola secundária e dos métodos do ensino de História. Preocupa-se com as metodologias de ensino e com a adequação destas com os ideais e interesses da juventude. O Ministério da Educação, após a consolidação da regulamentação dos cursos, também passa a atuar na área de formação de professores, assim, em 1959, publica Apostilas de Didática Especial de História, que perfaziam oito unidades, sendo elas: • História e a Escola Secundária. • Métodos de Ensino da História. • Planejamento e Ensino de História. • A motivação da aprendizagem da História. • A integração e a fixação da aprendizagem da História. • O material didático no ensino de História. • A verificação de aprendizagem, em História. • Atividades extraclasse relacionadas ao ensino da História (CADES apud URBAN, 2011, p. 44). 34 Unidade I A organização da apostila fala por si, diz respeito ao foco da didática da História e suas preocupações com o ensino. Era interessante para o estudante, ou para o professor que já lecionava e que estava se especializando no estudo da História, entrar em contato com a concepção de método formulada nos seguintes termos: “uma atividade é metódica quando refletida, ordenada e visa atingir um fim [...] Método é simplesmente um conjunto de processos que devemos empregar, para obter resultados desejados” [...] (CADES apud URBAN, 2011, p. 45). Definição hoje contestada por não se revelar de eficáciacomprovada, pois, para grupos de alunos distintos, nem sempre a mesma ação configura-se como eficiente. Os autores das apostilas se preocupavam em apresentar as principais técnicas utilizadas para selecionar e ordenar o conteúdo da História. Segundo eles (CADES, 1959, p. 17-24), as principais são: • Progressiva ou cronológica: narra os fatos históricos na ordem em que se sucederam. • Regressiva: começa o estudo da História no presente e retrocede até atingir os acontecimentos mais remotos. • Círculos concêntricos: consiste em percorrer diversas vezes toda a esfera da História. • Efemérides ou calendários: faz-se o estudo à medida que os acontecimentos surgem no calendário. • Grupos: sabe-se que o estudo da História acompanharia a evolução da humanidade. Podemos inferir a partir desse exemplo, que as preocupações com a temporalidade já estavam presentes nas ideias de alguns professores. Também podemos deduzir que apesar de definirem o método como técnica para obter um fim, a diferenciação entre as possibilidades sugeridas indica a necessidade de uma escolha ativa por parte dos professores, portanto da análise das condições concretas de sua sala de aula e de seus alunos para a escolha do caminho que julgar mais conveniente. Na mesma década, Amélia Americano Domingos de Castro, em 1952, escreveu Princípios do Método no Ensino de História. Ela apresenta seus propósitos de modo claro e inequívoco, contribuindo para compreender a didática como uma aplicação prática, mas não mecânica, de princípios básicos da História e da Pedagogia, considerando a intencionalidade e a finalidade da ação educativa e as características dos educandos. Somente a partir desses pressupostos, segundo a autora, é que se desenvolvem os processos didáticos. Enfim, a didática se configura aí com muita clareza como um saber prático indissociado do conhecimento teórico. As palavras da autora são muito apropriadas e auxiliam a exposição do que seja a constituição do campo da didática da História. O estudo das diferentes técnicas didáticas particulares, aplicáveis nas situações com que se defrontam professor e alunos, não pode ser desligado das considerações gerais que as explicam e fundamentam. Diversos modos de proceder podem ser utilizados na direção da aprendizagem, desde que se harmonizem e unifiquem pela obediência a certos princípios no âmbito mais 35 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA geral que constituem o método pedagógico. Ora, este, quando encarado em função de uma determinada matéria, deve, preliminarmente, considerar os princípios fundamentais referentes à natureza da matéria em questão, pois, como diz Dewey, o método de ensino é, “a eficaz orientação da matéria para resultados desejados” (CASTRO, 1952, p. 2). Lembrete A didática da História é uma construção na fronteira entre o conhecimento histórico e o pedagógico, entre a apresentação dos conteúdos e a motivação e possibilidades de aprendizagem dos alunos. Ainda na década de 1950, diante das discussões sobre a abolição do ensino de História e sua impropriedade pela dificuldade de aprendizagem, defendida por Delgado de Carvalho, foram apresentados argumentos na defesa da sua especificidade e valor como disciplina escolar do ponto de vista da formação dos alunos. Um dos exemplos dessa argumentação foi a publicação de Emília Viotti da Costa, professora de metodologia do ensino de história, na Universidade de São Paulo, em 1959. Os objetivos do ensino da História no curso secundário, de acordo com o texto: A História matéria tem uma finalidade a preencher [...] formar a personalidade integral do adolescente e, em segundo plano, fornecer-lhe conhecimentos básicos. Como preenche a História essa função? Inicialmente por seu caráter informativo, amplia a visão intelectual, fornece conhecimentos novos. Por outro lado, dá margem à expansão do aluno – oralmente ou por escrito. Sendo matéria essencialmente expositiva, desenvolve hábitos de expressão e sistematização do pensamento. O aluno aprende a expressar-se, a formular suas ideias com clareza e método. O aproveitamento da História nesse sentido depende, evidentemente, da orientação seguida pelo professor. O uso e abuso das perguntas nas sabatinas e exames, o que facilita sem dúvida alguma o trabalho de correção, é, a esse respeito, pouco producente. A exposição oral contribui para dar segurança ao aluno, domínio e controle de si mesmo, hábito de falar em público. Diminui inibições. Dessa forma estamos contribuindo para a formação de sua personalidade. A História ainda pode também desenvolver o raciocínio. Educa a imaginação. Formulando problemas, analisando os porquês, as razões, as condições que explicam um determinado fenômeno, problemas da sociedade. Enxergar soluções. Mas tudo isso sempre a História ensinada permaneça num plano explicativo e não se restringe a fastidiosa enumeração de fatos, dados, nomes, geralmente sem significado, e que são obrigatoriamente decorados pelos alunos (COSTA apud BITTENCOURT, 2011a, p. 94). 36 Unidade I Nos anos 1960, João Alfredo Libâneo Guedes, em 1963, um dos autores das Apostilas de Didática Especial da História, escreve um curso de Didática da História, no qual reafirma sua relação com a psicologia e com a didática geral e indica a importância da preparação do ambiente da aula. Descreve o que ele chama de sala de História, muito utilizada por educadores ingleses e gerou o que convencionamos chamar de sala-ambiente. Essa sala deve ser ampla para conter, no fundo, prateleiras com modelos; no centro, um epidiascópio e máquina de projeção e as carteiras dos alunos. De um lado, a exposição museológica e a mapoteca e, de outro, os dioramas. Na frente, a plataforma de demonstração necessária para despertar a atenção focal dos alunos. E, atrás da plataforma, o quadro-negro e a tela móvel. Anexo à sala, deve existir um pequeno laboratório de trabalho manual (GUEDES, 1963). Lembrete Os recursos tecnológicos que permitem ir do questionário às várias leituras de diferentes imagens tornam-se parte da didática da História. Ainda na década de 1960, precisamente em 1969, publicou-se O Ensino da História no Primário e no Ginásio, de Miriam Moreira Leite, obra que foi referência no seu tempo. Segundo Ana Cláudia Urban (2011), apresenta algumas ideias que nos permitem compreender as transformações havidas no processo de concepção da História como disciplina escolar e, por conseguinte, a justificativa de uma didática da História. Há cinquenta anos, o ensino da História pretendia atingir, entre outros, os seguintes objetivos: disciplinar a memória, a imaginação, o julgamento; promover ideias de patriotismo; ilustrar a geografia e a literatura; estabelecer relações com os acontecimentos correntes; desenvolver os hábitos de precisão; perceber claramente as relações causais; introduzir a utilização dos livros; inclinar à tolerância; inculcar o amor à verdade; assegurar a formação cívica. Hoje esses objetivos se sintetizam no hábito de situar e captar a obra do homem em sua evolução e continuidade; de captar o sentido do passado, da duração das sociedades humanas e da simultaneidade das coisas; de explicar o presente e estabelecer sua problemática; de deduzir as constantes morais e sociais dos fatos e de desenvolver o espírito crítico (LEITE apud URBAN, 2011, p. 47). Lembrete O ensino de História deixa de ser acessório à moral, à ética, à cultura geral, ao civismo para se constituir como um modo de pensar e se orientar no mundo a partir da contextualização temporal. 37 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Elza Nadai, em 1993, apontava para as relações com a Universidade, em artigo publicado na Revista Brasileira de História. Ensinar História é também ensinar o seu método e, portanto, aceitar a ideia de que o conteúdo não pode ser tratado de forma isolada. Deve-se menos ensinar quantidades, e mais, ensinar a pensar (refletir) historicamente. Superação da dicotomia entre ensino e pesquisa [...]. Compreensãode que alunos e professores são sujeitos da história [...]; são agentes que interagem na construção do movimento social (NADAI, 1993, p. 159-160). E também enfatizava que o professor deveria ser um intelectual que pensa a história da construção do ensino e contribui para o efetivo fortalecimento desse campo de conhecimento. Elza Nadai (2011, p. 99) também afirmava, concordando com François Furet que: A História para existir como disciplina escolar teve de sofrer várias mutações, de modo a constituir um campo do saber ao mesmo tempo intelectualmente autônomo, socialmente necessário e tecnicamente ensinável. Estava posto o lugar da História como disciplina escolar com uma posição própria no campo educacional. Foram abertos alguns fóruns de debates, estudos, campo de pesquisa e reflexão sobre diversas abordagens e temáticas sobre o ensino de História, questionamentos sobre seus conteúdos curriculares, metodologias de ensino. Análises sobre o que é o conhecimento histórico, ou seja, questões epistemológicas envolvidas no conhecimento histórico e o que significa sua reprodução no ensino da História para a escola fundamental e média. Em 1983, ocorreu o I Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História. Em 1988, houve o I Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História. A pesquisa histórica na universidade e o ensino de História passaram a dialogar, o que permitiu criticar e introduzir conteúdos informativos e visões diferenciadas a partir da pesquisa. O professor tornou-se também um pesquisador, um intelectual, e não somente um reprodutor. As questões de pesquisa não se restringem mais à academia, atingem a escola a partir da frequência de professores como ouvintes e como apresentadores de trabalhos. O ensino de História foi tema da Revista de História, publicação da Associação Nacional de Pesquisadores de História – História em Quadro Negro. E a partir de 2012, começou a contar com a revista eletrônica História Hoje. 38 Unidade I Saiba mais Consulte as revistas eletrônicas de História para acompanhar a produção acadêmica: ANPUH. Revistas eletrônicas. São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://bit.ly/3TyfM4D. Acesso em: 24 out. 2022. Especialmente a revista História Hoje, criada em 2003, dedica-se a várias experiências de didática da História, e que, a partir de 2012, publica trabalhos relativos à História e ao ensino e procura divulgar projetos e experiências dos profissionais de História. A didática da História, como parte do campo educacional, tornou-se um espaço de pesquisa e produção de conhecimentos para compreender a constituição das práticas de ensino e sua relação com os currículos reais, ou seja, aqueles que os prescritos pelo Estado se transformaram. As principais concepções de didática da História são três: a transposição didática, a cultura escolar e a educação histórica. 1.3 Três concepções de disciplina escolar em diálogo com a didática da História 1.3.1 Transposição didática Uma concepção de disciplina escolar é aquela que define o conteúdo escolar como uma transposição didática da ciência de referência produzida em centros universitários, com rigor metodológico. Os responsáveis por essa transposição ou vulgarização são autores de livros didáticos, burocratas dos ministérios e secretarias da educação, técnicos educacionais e até mesmo a família. O representante máximo dessa concepção é Yves Chevallard, que se notabilizou por estudar o ensino da Matemática e entrou em voga quando a educação dos valores nacionais passa a ser superada pela importância da educação com vistas ao desenvolvimento científico. Segundo o autor, muito citado no Brasil, mas cuja obra nunca foi traduzida para o português: Um conteúdo de saber que foi designado como saber a ensinar sofre a partir de então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto para ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que transforma um objeto de saber a ser ensinado em um objeto de ensino é denominado transposição didática (CHEVALLARD, 2005, p. 45, tradução nossa). Esse processo se dá em quatro etapas: o saber acadêmico, o saber a ensinar, o saber ensinado e o saber aprendido. 39 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA O saber a ensinar, que desencadeia o processo, é definido por técnicos, representantes de associações e professores militantes, através da seleção do saber acadêmico e de sua estruturação didática. O saber ensinado é aquele fruto do saber docente, no qual o professor é sujeito ao fazer escolhas quando seleciona, organiza, recorre; enfim, sistematiza na aula o saber a ensinar. O aluno, como sujeito de um processo de aprendizagem, elabora o seu conhecimento a partir dessa relação com o saber ensinado e nas suas relações sociais, construindo o seu saber aprendido. Portanto a disciplina escolar, nesse sentido, é dependente do saber produzido na academia que, entretanto, sofre a mediação de ações alheias à produção desse conhecimento realizadas por técnicos e agentes do governo, autores de livros didáticos, coordenadores e orientadores e até as famílias. A boa transposição seria então aquela efetuada quando há mudanças de espaço de produção do conhecimento, propiciando uma melhor reconstrução, recriação de saberes e ações mais eficientes, como afirma Anhorn (2003). Esse conceito é importante na pesquisa sobre o ensino porque permite à academia compreender o processo de ensino, considerando sujeitos e subjetividades. Mas também possibilita ao professor refletir sobre o seu modo de organizar as aulas em função do conhecimento que pretende ensinar, o que diz respeito à seleção e preparação de material e às argumentações. Ainda permite analisar os conteúdos aprendidos com o que se pretendia ensinar. No entanto, grande parte dos pesquisadores interpretou o conceito de transposição didática como mera reprodução, desvinculando-o da ideia de reconstrução, recriação. Essa compreensão tornou-o passível de crítica e esvaziou seu sentido ao reduzir os conteúdos escolares significativos à sua aproximação com o saber sábio, o da produção científica, estabelecendo entre eles uma relação de dependência, segundo Circe Bittencourt (2011a). Em decorrência desse ponto de vista, explica-se a supervalorização do conhecimento científico sobre o conhecimento escolar, inferiorizando-o. Assim, os saberes ensinados mais valorizados, em função de suas características, são os das séries finais, uma vez que os conteúdos estão mais próximos da produção científica e os métodos didáticos se reduzem a técnicas pedagógicas. Do mesmo modo, as disciplinas das áreas científicas passam a ser mais valorizadas do que as das áreas de humanidades. Segundo Bittencourt (2011a, p. 35) Chevallard entende ser a escola parte de um sistema no qual o conhecimento por ela reproduzido se organiza pela mediação da “noosfera”, conceito correspondente ao conjunto de agentes sociais externos à sala de aula – inspetores, autores de livros didáticos, técnicos educacionais, famílias. Esses agentes garantem à escola o fluxo e as adaptações dos saberes provenientes das ciências produzidas pela academia. Essa abordagem considera a disciplina escolar dependente do conhecimento erudito ou científico, o qual, para chegar à escola e vulgarizar-se, necessita da didática, 40 Unidade I encarregada de realizar a “transposição”. Consequentemente, uma “boa” didática tem por objetivo fundamental evitar o distanciamento entre a produção científica e o que deve ser ensinado, além de criar instrumentos metodológicos para transpor o conhecimento científico para a escola da forma mais adequada possível. Ainda que seja possível criticar a hierarquia dos conhecimentos decorrentes da ideia da disciplina escolar como transposição didática, é preciso reconhecer que essa concepção promoveu uma mudança importante em relação ao tempo em que os conteúdos do ensino de História no Brasil estavam estruturados no estudo da História da Europa ocidental. A pesquisa históricae a crítica a distância entre a História ensinada e a produção acadêmica, que trazia outros conhecimentos sobre a estrutura social da História do Brasil, a produção ideológica da História, a valorização do cotidiano e as pesquisas, deram lugar ao homem comum como sujeito da História. Enfim, inúmeras foram as contribuições da transposição didática para a renovação do ensino e ainda serão. 1.3.2 Cultura escolar Do que entendemos por cultura escolar, fazem parte as práticas decorrentes de objetivos educacionais, de objetivos formativos, da função social da escola, da avaliação e da organização do tempo e do espaço na escola. De tal modo que podemos identificar uma razão didática que se explica pela compreensão dos conteúdos cognitivos e simbólicos selecionados, organizados, normalizados e transformados em rotina na instituição escolar. O que, para o pesquisador francês Forquin (1993), denomina-se “cultura escolar”. Trata-se, então, de uma cultura que emerge no interior da escola, através das práticas e relações cotidianas de docentes e discentes. Esse conceito dá conta de um aspecto que escapa à transposição didática: a escola produz valores e práticas que por vezes até justificam a criação do saber sábio ou da pesquisa acadêmica. Nessa linha crítica, Ivor Goodson (1995) argumenta que existem conteúdos escolares ensinados na escola que não correspondem a uma disciplina acadêmica preexistente. É no interior da escola que se formam as disciplinas escolares. Isso é o que defendem André Chervel (1990) e Ivor Goodson (1995) a partir de suas pesquisas sobre práticas desenvolvidas na escola. Para André Chervel (1990), as disciplinas escolares têm objetivos próprios que, na maioria das vezes, não se confundem com aqueles da ciência de referência. Por isso, a seleção de conteúdos decorre de um sistema de valores e interesses da escola e do papel que desempenha na sociedade. A pesquisa de Chervel sobre a história da gramática escolar na França inspirou vários estudos e reflexões posteriores a esse respeito. Ele concluiu que as regras gramaticais e normas da língua francesa decorreram da necessidade de que a escola tinha de ensinar todos os franceses a escrever do mesmo modo, de acordo com critérios criados para serem obedecidas no meio escolar. A gramática como estudo acadêmico surgiu mais tarde. De fato, da cultura escolar, fazem parte as práticas decorrentes de objetivos educacionais, de objetivos formativos, da função social da escola, da avaliação e da organização do tempo e do espaço na escola. Uma prova de que a cultura escolar tem grande independência em relação à pesquisa está 41 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA na estruturação dos quatro grandes períodos da História, criada para organizar os estudos históricos escolares e acabou por definir as cadeiras universitárias, como mostra Circe Bittencourt (2011a). Entre nós, também, ainda segundo Bittencourt, o currículo decorrente da Lei de Diretrizes e Bases de 1962, que definiu o currículo mínimo pelo Conselho Federal de Educação, consistia-se pelas disciplinas que já compunham as propostas curriculares do Ensino Fundamental e Médio e já estavam presentes nos livros didáticos: História Antiga, História Medieval, História Moderna, História Contemporânea, História da América e História do Brasil. Assim, pesquisar a cultura escolar permite à cultura acadêmica lançar luzes sobre os processos didáticos; e, aos professores, pensar sobre a cultura escolar leva a refletir criticamente e analisar as práticas cotidianas e as rotinas a fim de valorizá-las ou compreendê-las e, talvez, conseguir transformá-las. 1.3.3 Educação histórica A partir de um texto do alemão Klaus Bergmann, “A História na Reflexão Didática” publicado na Revista Brasileira de História (1990), alguns pesquisadores sentiram-se instigados com a provocação de considerar que a função da didática no ensino da ciência da História tinha como foco a consciência histórica. As colocações de Bergmann levavam a sistematizar uma reflexão sobre o que já podíamos considerar implícito nos textos de Emília Viotti da Costa e de Miriam Moreira Leite. Porém, além de afirmar o aspecto cognitivo da História, ele propunha compreender a produção da ciência histórica no contexto da realidade do seu tempo, tendo como objeto os processos de ensino e aprendizagem, os processos de formação e autoformação de indivíduos, grupos e sociedades pela História e a partir da História, considerava, então, os pressupostos da aprendizagem, os conteúdos a ensinar, as técnicas e materiais de ensino e as representações da História. Nessa linha de pesquisa e de atuação no campo do ensino da História na universidade e nas escolas públicas, destaca-se a atuação no Paraná de Maria Auxiliadora Schmidt. Suas pesquisas tratam de entender como o aluno constrói a ideia sobre a História, sobre os conteúdos trabalhados na escola, sob o ponto de vista da cognição histórica e não da psicologia, alinham-se às pesquisas da década de 1980 e 1990, que também se desenvolveram no Reino Unido, na América do Norte, na Espanha e em Portugal. Os resultados dessas pesquisas contribuem com a discussão acerca da aprendizagem da História e, por conseguinte, para considerações e instrumentação dos professores acerca das suas ações didáticas e das possíveis intervenções junto à classe ou aos alunos. Um exemplo são as contribuições de Izabel Barca e Marília Gago (2001), como sua pesquisa sobre os alunos do 6º ano de escolaridade e a compreensão dos conceitos históricos e a relação com as ideias tácitas. Segundo essas pesquisadoras, os conceitos históricos são compreendidos pela sua relação com os conceitos da realidade humana e social que o sujeito experiência. Quando o aluno procura explicações para uma situação do passado, à luz da sua própria experiência, mesmo sem apreciar as diferenças entre as suas crenças e valores e as de outra sociedade, revela já um esforço de compreensão histórica. 42 Unidade I A partir dessas considerações, é preciso que os professores levem em conta tanto as ideias tácitas quanto os conceitos históricos, pois ambos fazem parte da cognição histórica. A educação histórica, ao se voltar para a cognição histórica, buscou estudar os níveis de progressão dos alunos. Uma contribuição importante é os alunos discriminarem conceitos, pois necessitam disso para desenvolver a aprendizagem em História. Segundo o pesquisador britânico Peter Lee (2001), há duas ordens de conceitos: os de primeira ordem e os de segunda ordem. Os conceitos de primeira ordem são datas, eventos e definições como agricultor, governante, impostos, Estado, grande propriedade, senhor de engenho, operário, partido etc. Mas há conceitos de segunda ordem, que são os que dão consistência à disciplina: narrativas, relatos, explicações. São eles que compõem o conhecimento específico da História e estão na base da possibilidade de construção de um pensamento histórico. Essa abordagem se diferencia da piagetiana, a qual influenciou o pensamento sobre o ensino de História, como o de Amélia de Castro, ao enfatizar a relação entre o pensamento e as motivações (interesses, capacidades e necessidades dos alunos devem ser valorizados) e o conhecimento sobre a personalidade dos educandos para evitar frustrações e desvios emocionais (CASTRO, 1952). Diferentemente do enfoque na psicologia, o objetivo da educação histórica é pesquisar as ideias históricas dos alunos para intervir com base nessas ideias, de forma a construir estratégias e apresentar-lhes os princípios do pensamento histórico construído a partir de fontes, evidências ou narrativas significativas. A contribuição da educação histórica para a formação dos professores de História é provocar a reflexão sobre o sentido do seu trabalho na construção do conhecimento histórico propriamente dito, pois segundo Schmidt e Garcia (2005), a didática da história, por ser o campo de discussão e ação sobre a seleção de conteúdos e estratégias de ensino,no seu atual estágio de desenvolvimento, exige que o professor compreenda não apenas os critérios normativos e nacionais das propostas curriculares e dos programas escolares, como também as condições de produção do conhecimento histórico a partir de problematizações distintas, sujeitos históricos distintos, vozes silenciadas. E ainda é necessário, na perspectiva da educação histórica: [...] recuperar a vivência pessoal e coletiva de alunos [...], vê-los como participantes da realidade histórica, a qual deve ser analisada e retrabalhada, como o objetivo de convertê-la em conhecimento histórico, em autoconhecimento, uma vez que, desta maneira, os sujeitos podem inserir-se a partir de um pertencimento, numa ordem de vivências múltiplas e contrapostas na unidade e diversidade do real (SCHMIDT; GARCIA, 2005, p. 299-300). 43 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Consulte os textos disponíveis nos links: SCHMIDT, M. A. M. S.; GARCIA, T. M. F. B. A formação da consciência histórica de alunos e professores e o cotidiano em aulas de História. Caderno Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 297-308, set./dez. 2005. Disponível em: https://bit.ly/3FcYuG2. Acesso em: 24 out. 2022. BERGMANN, K. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 19, p. 29-42, 1990. Disponível em: https://bit.ly/3D5MJ1h. Acesso em: 24 out. 2022. Lembrete A didática da história é uma construção social e política que se dá no campo da investigação e da prática do ensino. 2 FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE HISTÓRIA: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS ATUAIS O maior obstáculo da formação do professor de História na licenciatura está intrinsecamente vinculado a desafios e perspectivas impostos pelas condições concretas que se apresentam na sala de aula. Desafio que não se resolve apenas na licenciatura, mas necessariamente se completa na prática. O papel da disciplina Didática da História nos cursos de licenciatura tem o objetivo de oferecer questionamentos e práticas reflexivas para o professor situar-se no campo da produção de conhecimentos a respeito do ensino da História, considerando sua historicidade e seu lugar na educação. A didática da História se constrói no diálogo entre a produção historiográfica e os desafios postos pelas condições sociais concretas, considerando a cultura escolar, as questões relativas à transposição didática e alguns princípios da educação histórica. Agora, trataremos dos desafios da sociedade contemporânea. Na leitura das diretrizes curriculares e demais documentos, observamos que o ensino de História apresenta como objetivo central a formação da identidade nacional. Entretanto, atualmente, o entendimento desse conceito é outro. A identidade nacional não é mais pensada nas propostas de ensino como um objeto imutável e permanente. Diversamente do início do século XX, ela se apresenta multifacetada, ainda que se pretenda uma, afirma e reconhece a identidade de diferentes grupos sociais e regionais, que têm conflitos entre si, disputam hegemonias e, mesmo assim, dão conformação ao um consenso nacional. Esse é um tema em que há permanência e ruptura. 44 Unidade I O campo da didática da História, assim como o da educação, continua a consistir de espaços de disputa de poder pelos vários agentes sociais, incluindo não apenas classes sociais (como vimos no caso do manual História Nova do Brasil e da escola anarquista), mas também movimentos sociais, incluindo o movimento negro e as manifestações dos povos indígenas e, ainda, as posições das classes dominantes. Assim, para compreender alguns debates e se posicionar, o professor em formação de História deve saber: • O que é ideológico e qual sua relação com a ciência e com a seleção de conteúdo. • Qual é o papel da diversidade e velocidade na sociedade globalizada e suas implicações na transformação do papel do professor. • O que significa o conceito de reflexividade nas sociedades modernas e o seu correlato professor-reflexivo e aluno-reflexivo. 2.1 O que é ideológico e qual sua relação com a ciência e com a seleção de conteúdo Atualmente, temos visto na grande imprensa algum destaque para críticas ao material didático de História como sendo ideologicamente tendencioso. Saiba mais Um exemplo é a matéria sobre o viés ideológico do material de História de uma revista de grande circulação: MANSUR, A.; VICÁRIA, L.; LEAL, R. O que estão ensinando às nossas crianças? Época, Rio de Janeiro, [s.d.]. Disponível em: http://glo.bo/3N09Jn0. Acesso em: 24 out. 2022. Entretanto, hoje, temos o desafio de não apresentar uma versão única da História e, ao mesmo tempo, compor uma narrativa que contemple as diferenças numa perspectiva de possibilidades da compreensão do passado como herança da humanidade na construção de um futuro. É, portanto, muito difícil não considerar diferentes pontos de vista, muitas vezes, em conflito com o de um grupo social. Por esse motivo, algumas considerações sobre o conceito de “ideologia” são importantes para problematizar, questionar e avaliar a contribuição de matérias jornalísticas para a reflexão do professor de História atuante ou em formação. 45 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Comecemos pela história dessa palavra e sua importância na compreensão das ideias de uma época. A expressão “ideologia” começou a ser conhecida e difundida nos primeiros anos do século XIX a partir do livro Elementos de Ideologia (Eléments d’idéologie) de Destutt de Tracy, o objetivo do autor era elaborar uma “ciência das ideias”, compreendendo a gênese delas e, assim, possibilitar percepções mais adequadas da realidade com efeitos gerais na vida dos homens, em especial no tocante à política e à moral. Considerando que as ideias deveriam ser compreendidas como fenômenos naturais, elas também poderiam ser objeto de uma ciência específica a ser desenvolvida: a ideologia. Ou seja, a palavra surgiu com o sentido de uma ciência para compreender as ideias, e não como um adjetivo pejorativo que acaba por desqualificar uma dada ideia. Por isso, não podemos julgar um material didático considerando apenas um pequeno trecho dele, mas a sua função dentro de todo o projeto editorial. Entretanto, não se estabeleceu esse sentido da palavra. O que explica o significado pejorativo com o qual, frequentemente, se emprega a palavra ideologia. O projeto de Destutt de Tracy não vingou. Sofreu muitas críticas, pois ele pretendia estabelecer critérios para definir o que seriam ideias válidas e positivas, inclusive no campo da política. Por consequência, a expressão passou a ter uma conotação negativa, referindo-se a tentativas de implementar ideias ou projetos ilusórios ou utópicos, desprovidos de sentido. Ao contrário de seu sentido pretendido, ideologia e ideológico tornaram-se sinônimos de ideias falsas e de representações ilógicas da realidade que, inclusive, poderiam impedir a produção de conhecimento efetivamente válido sobre a natureza e os homens, como o desenvolvido pelas ciências. Dessa forma, Auguste Comte se refere à ideologia como um conjunto de ideias de uma época, presentes na opinião geral da sociedade, portanto, no senso comum, porém não tendo necessariamente fundamentos lógicos ou sendo resultados de demonstrações confiáveis e racionais. Enfim, podendo ser tão somente preconceitos arraigados e não devidamente questionáveis, devendo ser evitados como objeto de crítica, mediante o emprego de método científico. Ideologia, assim, tornou-se um obstáculo ao conhecimento científico, ou “positivo”, na conhecida expressão de Comte. Por consequência, as ideologias tornaram-se a temática presente tanto no âmbito da metodologia e da epistemologia, como também na teoria política. Particularmente, nas ciências humanas, dadas as suas próprias características, os debates sobre conhecimento objetivo, neutralidade axiológica, empirismo e racionalismo sempre estiveram relacionados à discussão do significado da expressão e suas consequências na produção do conhecimento.No campo das ciências sociais, em que se situa a História, o empirismo, notadamente em suas versões neopositivistas, foi objeto de questionamentos e severas críticas, o significado da expressão ideologia, em termos gerais, pode ser entendido sob duas formas. Na primeira, a ideologia é considerada uma visão necessariamente falseada do mundo, podendo ter por consequência efeitos políticos expressivos, se constituindo em elemento legitimador e assegurador de modos de dominação e de desigualdades sociais, sejam relativas a diferenças de classe, gênero, etnia. Nesse sentido, a ideologia é considerada como um elemento imaginário que ocultaria a realidade, isto é, as formas concretas de existências das relações sociais e dos interesses nelas presentes, tendo, também por consequência, uma dimensão histórica. Nessa perspectiva, a ideologia, sendo falsa consciência, 46 Unidade I poderia ser superada, substituída por uma “consciência verdadeira”, não falseada da realidade, na medida em que os processos políticos rompessem com as formas de dominação existentes e permitissem compreender de maneira justa a realidade. Lembrete A História do Brasil se configurava como um apêndice da História Geral, o que era polêmico, ainda que permaneçam determinadas situações. Esse questionamento se dá por considerar uma visão falseadora da realidade. O grande “xis” da questão está em responder duas interrogações: por que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, o termo ideologia é usado para referir-se às ideias de dominação de uma classe sobre outra? De toda forma, como é possível uma ideologia favorecer o domínio de um segmento menor de pessoas em detrimento de uma comunidade infinitamente maior? Por exemplo, como os livros de História deixaram de lado, por tanto tempo, os trabalhadores, quer fossem escravos, quer fossem operários, como agentes com importante papel da construção do país? Para chegar às respostas, torna-se necessário um pequeno aprofundamento das origens do termo ideologia. Por quais mecanismos ou instrumentos isso é possível? Na segunda forma, a ideologia não é reduzida à condição de falsa consciência da realidade, mas sim entendida como visão de mundo, percepções da realidade que sob as mais diferentes formas, inclusive simbólicas, se fazem presentes na vida dos homens em todo e qualquer tipo de sociedade. Ela se constitui em elemento da cultura, não, em última instância, deve ser eliminada da existência humana. Nessa perspectiva, ao contrário de se falar na ideologia, no singular, deve-se falar de ideologias, no plural; pois os homens necessariamente as produziriam a partir das suas experiências de vida, e os homens não podem viver sem concomitantemente construir percepções da realidade que os orientam a nela sobreviver, o que não significa afirmar que as ideologias não estão interpenetradas de interesses. Ao contrário, elas somente podem se constituir a partir dos interesses dos seres humanos, ainda que por meio de processos não conscientes. Assim sendo, as ideologias apresentam sempre componentes políticos, ou seja, pertinentes às relações de poder existentes nas sociedades, mas não podem ser reduzidas tão somente à esfera política. Desse ponto de vista, ao dar voz aos vários agentes da História e ao sentido que conferem ao processo histórico, teremos de aceitar que estudar História é explicitar os diferentes agentes sociais e os conflitos que permeiam as relações internas às sociedades. Assim precisamos ler atentamente às matérias jornalísticas e procurar saber se as afirmações sobre o discurso ideológico têm a intenção de menosprezar algumas ideias ou esclarecer a existência de conflitos sociais. Nesse caso, como tratar dos conflitos de forma positiva sem tomar partido, a princípio, e sem negá-los? Esse é o desafio do professor de História, que deve procurar mostrar os diferentes agentes históricos aos alunos, considerando as diversas classes sociais, os conflitos entre elas e os diferentes interesses e posicionamentos. 47 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA 2.2 A diversidade e a velocidade na sociedade globalizada e suas implicações na transformação do papel do professor Hoje, a profissão docente é procurada tanto por jovens que buscam ingresso no mercado de trabalho quanto por adultos que procuram realocar-se profissionalmente. Os mais jovens já estudaram na escola como ela se apresentou a partir dos anos 1970, especialmente a escola pública: um espaço com um público diversificado em relação à idade, experiência familiar e cultura, muitos deles cujas famílias têm raízes no mundo rural e passaram a habitar a cidade em condições precárias de moradia, fruto de uma ocupação urbana desordenada provocada por intenso fluxo migratório do campo para a cidade, especialmente, do Nordeste para o Sul. À diversidade do fluxo migratório interno própria dos anos 1950 e que constituiu a formação das metrópoles do Brasil industrializado, somam-se o movimento populacional e a reconfiguração do espaço em tempos de globalização. Atualmente o mundo do trabalho obriga aos deslocamentos populacionais, do interior do país e do exterior. Para além da diversidade cultural presente na formação da população brasileira, que deve ser considerada na escola, tal como está presente na Constituição Federal e nas diretrizes curriculares, o nosso país enfrenta a presença de outros povos. Temos um universo cultural plural que se coloca como um desafio para o ensino de História em uma sociedade capitalista, com desigualdades sociais, mas que se quer democrática e com uma agenda de ampliação de direitos, especialmente, de direitos humanos. Precisamos então ter clareza da função das primeiras narrativas históricas aprendidas na escola e para o convívio social. É difícil não reconhecermos o papel do ensino de História na formação da imagem que fazemos do mundo e convidamos, aqui, cada aluno, a um exercício introspectivo a partir da leitura desse trecho de Marc Ferro (1983, p. 11): Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças. Ela nos marca para o resto de nossa vida. Sobre essa representação, que é para cada um de nós uma descoberta do mundo e do passado das sociedades, enxertam-se depois opiniões, ideias fugazes e duradouras, como um amor [...] mas que permanecem indeléveis as marcas de nossas primeiras curiosidades, das nossas primeiras emoções. [...]. Esse passado não só não é o mesmo para todos como, para cada um de nós, sua lembrança se modifica com o tempo: essas imagens mudam à medida que se transformam o saber e as ideologias, e à medida que muda, na sociedade, a função da História. Cabe então a cada um se perguntar sobre seus primeiros contatos com a História do Brasil e do mundo: quais imagens eram evocadas e qual o lugar dos sujeitos históricos, dos homens comuns, nessa representação? 48 Unidade I Exemplo de aplicação De que modo sua experiência pessoal se configura no contexto do processo histórico de constituição do ensino de História? Como esse modo forja uma ideologia? Compreende-se, do ponto de vista político e sociológico, a construção da narrativa histórica escolar nos séculos XIX e XX e sua relação com os métodos de ensino, mas também se reconhece necessário, atualmente, problematizar aquelas representações que muitas vezes se repetem. Por que, com a unificação econômica dos espaços, o passado das sociedades é alvo do confronto entre culturas e etnias entre nações ou internamente nas nações? Em nosso caso, podemos situar os indígenas, que têm direito a uma História indígena; e os quilombolas, como descendentes de escravos. Ao mesmo tempo, precisamos considerar as histórias regionais que, por vezes, desaparecem no contexto da História nacional. A diversidade das origens dos diferentes agentes que participam da História nacional está presente no horizonte do professor de História hoje. Todos têm direito a ter sua históriaconsiderada, o que se torna um desafio para a formação do professor da área, que deve ainda averiguar essa composição no panorama nacional. Ademais, há uma forte atuação de movimentos culturais de minorias étnicas que muitas vezes procuram uma identidade pura, ou negam sua identidade híbrida. Lembrar que as tradições culturais são inventadas em contextos de contato entre culturas. Portanto a música negra, que identifica o movimento negro, nos Estados Unidos, estudada por Gilroy (2001), desenvolveu-se não apenas a partir de uma essência negra ou africana, mas da necessidade de uma expressão política em uma época na qual aos negros africanos era negada a possibilidade de alfabetização. O trabalho, considerando a diversidade, provoca grande transformação no papel do professor de História, que precisa se valer de alguns instrumentos de abordagem dos conteúdos, qual seja o acesso a pesquisas recentes, além dos materiais didáticos. Entretanto essa solução é também um novo desafio: como lidar com a velocidade da informação e com as novas demandas de aprendizagem contínua? Apesar de, na nossa sociedade, a demanda por aprendizagem ser constante, de vivermos sob o bordão da aprendizagem ao longo da vida, da aprendizagem permanente e massiva, que precisamos aprender a aprender, o professor sofre uma grande transformação no seu papel. O que mudou? O professor não é mais identificado como homem de conhecimento, se considerarmos que conhecimento é transmissão de informação. De fato, inúmeros professores atestam que não conseguem concorrer com a Rede Globo, mencionando a emissora de televisão como um produtor de conhecimento mais crível para seus alunos. Essa visão é um estereótipo que considera o conhecimento apenas a transmissão de informações e está sustentada em práticas conservadoras e ainda valorizadas, que não problematizam as informações, que não procuram analisar sua condição de produção social e histórica. Por outro lado, o professor não pode ser uma mera fonte de informação. Não é possível para ele manter-se atualizado em relação às pesquisas, que são inúmeras, ocorrem em vários lugares de mundo e podem ser veiculadas pelas mídias. Atualmente, o valor da informação em relação 49 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA ao conhecimento é necessariamente outro. Se, há mais de cinquenta anos, algum aluno podia se vangloriar de saber de cor os doze césares, hoje, isso não ocorre e, se acontece, é, no mínimo, bizarro. Pergunta-se: para que serve essa informação? A aprendizagem reprodutiva ligada exclusivamente à memorização não tem lugar quando o valor é o desenvolvimento do pensamento, a construção de conceitos e tendo em vista não apenas o pensamento crítico, mas também a valorização da ciência, que implica em questionar a informação recebida, formular novas hipóteses e estratégias de busca de respostas. Mas como lidar com tanta informação? A segunda metade do século XX sofre de “obesidade informativa”, pois ela tem imensa capacidade de armazenamento e distribuição de informação pelo acesso aos grandes bancos de dados. A informação flui de modo muito dinâmico, mas também pouco organizado em relação às sociedades em que o suporte da informação era a escrita. Segundo Pozo: A aprendizagem da cultura impressa costuma ser uma viagem organizada por quem produz o conhecimento [...], na sociedade de informação é o consumidor quem deve organizar ou dar significado à sua viagem. É a cultura do zapping informativo, uma cultura feita de retalhos de conhecimento, uma collage em que é necessário recompor para obter um significado (apud CAIMI, 2014, p. 165-166). E ainda segundo Caimi (2014, p. 166), Esse fenômeno que os autores classificam como uma terceira revolução nos suportes de informação, produziu importantes transformações na dinâmica das sociedades contemporâneas, em suas instituições, na vida das pessoas. Uma geração inteira, de modo mais ou menos silencioso, adotou a tecnologia e desenvolveu novas estratégias de aprendizagem, de relacionamento, de convívio social, constituindo um expoente das mudanças sociais relacionadas com a globalização. Salientando a necessidade de melhor compreender as gerações nos novos tempos, Caimi (2014, p. 166) nos explica que Veen e Wrakking (2009, p. 30) nomeiam essa nova geração de Homo zappiens, “aparentemente uma nova espécie que atua em uma cultura cibernética global com base na multimídia”, e a distinguem pelo fato de ter crescido acessando múltiplos recursos tecnológicos, desde os mais antigos, como o controle remoto da TV, o mouse do computador, o minidisc, até os mais recentes, como o telefone celular, o iPod, o MP3, o tablet e tantos outros. Consideram, ainda, que “esses recursos permitiram às crianças de hoje ter controle sobre o fluxo de informações, lidar com informações descontinuadas e com a sobrecarga de informações, mesclar comunidades virtuais e reais, comunicarem-se e colaborarem em rede, de acordo com suas necessidades”. 50 Unidade I Caimi (2014, p. 167) ressalta a importância de perceber mudanças no mundo no qual nos situamos e na relação que os jovens estabelecem com a escola. Voltando a Veen e Wrakking (2009, p. 30) nos traz, Os autores salientam que a relação desses jovens com a escola mudou, considerando o comportamento de outras gerações. Entre os mais típicos comportamentos manifestados pelo Homo zappiens para com a escola, destacam-se: a) reconhece a escola como um dos interesses, entre muitos outros, como redes de amigos, trabalho de meio turno, encontros sociais; b) considera a escola desconectada de seu mundo e da vida cotidiana; c) demonstra comportamento ativo, em alguns casos hiperativo; d) concede atenção ao professor por pequenos intervalos de tempo; e) quer estar no controle daquilo com que se envolve e não aceita explicações do mundo apenas segundo convicções do professor; f) aprende por meio de jogos, de atividades de descoberta e investigação, de maneira colaborativa e criativa. Enfim, o uso intensivo de tecnologias digitais teria influenciado o modo de pensar e o comportamento do Homo zappiens, na medida em que, para ele, a maior parte da informação que procura está a apenas um clique de distância, assim como está qualquer pessoa que queira contatar. Ele tem uma visão positiva sobre as possibilidades de obter a informação certa no momento certo, de qualquer pessoa ou de qualquer lugar. O Homo zappiens aprende muito cedo que há muitas fontes de informação e que essas fontes podem defender verdades diferentes. Filtra as informações e aprende a fazer seus conceitos em redes de amigos/parceiros com quem se comunica com frequência. Dessa maneira, é importante considerar que os modelos tradicionais, tendendo à repetição de conteúdos extensos e distantes das experiências desses novos alunos, apresentam, no mínimo, dificuldades para chegar até esse novo grupo. Se a aprendizagem precisa ser ativa, deve envolver o mundo digital e todos que se relacionam com ele, mas sempre com o cuidado de manter uma relação crítica com as práticas e ferramentas, pois podemos considerar que não é o simples uso de um aparelho eletrônico que vai solucionar a dificuldade presente em nosso mundo de construir noções consistentes relacionada ao saber histórico, que os alunos precisam desenvolver em sua escolarização. 51 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Consulte o texto no link a seguir: CAIMI, F. E.; OLIVEIRA, S. R. F. Os jovens e a aula de História entre tensões, expectativas e possibilidades. Revista Educação em Questão, v. 44, n. 30, p. 88-109, set./dez. 2012. Disponível em: https://bit.ly/3spDrsd. Acesso em: 24 out. 2022. A maneira de estocar a informação corresponde a uma dada concepção do tempo, como aponta Pierre Lévy (2010) em obra publicada em 1990 e traduzida para o português em 1993. Esse autor caracteriza o tempo das sociedades da escrita como o tempo linear, que imprime uma ordem sequencial nos calendários, datas, anais e arquivos. É a memóriaestocada, trata-se do tempo da irreversibilidade. Já a sociedade da informática produz outro tempo, veloz, não adequado à linearidade proposta ou imposta pela modernidade ou, no dizer do autor, o tempo das sociedades da escrita. Essa velocidade é percebida em vários sentidos e estamos sempre “atrasados” em relação a essa tecnologia. São sociedades do tempo pontual, o tempo da memória curta, que salta de um ponto a outro, organizado como rede, como rizoma. Tempos passados que se presentificam, coexistem. Saiba mais Consulte a obra nas páginas indicadas. LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na Era da Informática. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 76-130. Esse autor já fala de uma tendência à negação do passado, a sua transformação em presente, que se denomina “presentismo”. Tema de grande preocupação e interesse de reflexão para os historiadores ainda hoje, quase trinta anos depois da publicação do trabalho de Pierre Lévy. O historiador Hobsbawn (1995) também escrevia em meados dos anos 1990 que quase todos os jovens crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação com o passado da época em que vivem. Nesse contexto, o papel dos historiadores é fazer lembrar o esquecido, para além da crônica, da memória e da compilação. Essa tendência revela-se de grande risco quando implica no esquecimento de um passado público. O passado público valoriza-se apenas pela memória e não pela história que analisa como experiência político-social. Maria de Lourdes Janotti (1997) considera que essa tendência indica a possibilidade de produzir uma grande alienação coletiva e relaciona-se com as transformações realizadas pela globalização econômica mundial. As diferenças absolutas são relativizadas, e o imperialismo do mercado reduz tudo à lógica 52 Unidade I econômica. A cultura regional transforma-se em mero produto de consumo nos ritmos produzidos pelas mídias, configurando-se como algo interessante, com valor de consumo privado. Ignora-se, no entanto, seu sentido ideológico, desinteressa-se pelo passado público e sobretudo pela vontade política que leva à crítica e à construção de projetos futuros. Saiba mais Consulte a obra a seguir: BITTENCOURT, C. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, C. (org.) O saber histórico em sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997. Tais questões relativas à velocidade da produção de informação, às novas tecnologias e às experiências do tempo trazem desafios para a escola. As reflexões de Caimi (2014), a partir das leituras de Pozo, Veen e Wrakking, indicam alguns comportamentos dos jovens que entram em choque com a cultura escolar que colocava o professor e o material didático como o detentor das informações: • A escola é para os jovens somente um de seus interesses, entre outros como amigos, encontros sociais e até trabalho de meio turno. • A escola está, para eles, desconectada de seu mundo e da vida cotidiana. • Os jovens têm comportamento ativo, em alguns casos, hiperativo. • Os alunos prestam atenção ao professor por um curto período. • Os alunos almejam controlar aquilo com que se envolvem e não aceitam explicações do mundo apenas segundo as informações do professor. • Os alunos aprendem por meio de jogos, de atividades de descoberta e investigação de forma colaborativa e criativa. Do ponto de vista da experiência prática, há um grande foco de tensão que se dá no contexto da sociedade contemporânea e, para os professores de História, especificamente, no seio da cultura escolar. Entre aquilo que se considera tradição, ou código disciplinar quadripartido em História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, e o tempo cronológico e linear, os interesses e expectativas de aprendizagem dos alunos vai uma grande distância. A sociedade demanda agentes sociais que sejam criativos em relação aos papéis sociais Em 1991, Esteve mostrava a perda do consenso sobre a educação, considerada do ponto de vista da educação tradicional: 53 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA A sociedade tornou-se pluralista, isto é, grupos sociais distintos, com potentes meios de comunicação a seu serviço, defendem modelos de educação opostos, em que se dá prioridade a valores diferentes, e até contraditórios; por outro lado a aceitação na educação da diversidade própria da sociedade multicultural e multilíngue obriga-nos a modificar os materiais didáticos e a diversificar os programas de ensino (apud SILVA; FONSECA, 2007a, p. 22). O professor deve enfrentar esse desafio que contempla a variedade de alunos em sala de aula, as imposições dos exames externos que, apesar de exigirem criatividade e autonomia de aprendizagem, também exigem treino pelo modo como são propostos. Ao mesmo tempo, há que se enfrentar a passagem de um modelo único de ensino para uma elite e para um sistema de massas, em um momento específico da economia capitalista, em que tanto o desenvolvimento das tecnologias de informação como o mundo do trabalho se modificam e impõem mudanças bastante velozes com significativos impactos sociais. Exemplo de aplicação Considerando as leituras feitas até aqui, analise seu cotidiano como aluno ou aluna e verifique em que medida as observações sobre a condição de trabalho do professor podem ser corroboradas por você. 2.3 O que significa o conceito de reflexividade nas sociedades modernas e o seu correlato professor-reflexivo e aluno-reflexivo É consenso entre os historiadores e, sobretudo, entre os formadores de professores de História, os que se ocupam da didática da História, afirmarem o seu papel na valorização de historicidade das experiências humanas, das diversas concepções de tempo, o que inclui as possibilidades de entendimento e de ação com vistas ao futuro. Rüsen, autor alemão, com muitas obras sobre a didática da História, afirma que a História tem um sentido último pragmático, pois orienta para uma análise do social com uma perspectiva de futuro. Uma análise que não teria a função de “mestra da vida”, como repositório de exemplos, mas sim de orientação para a ação a partir do entendimento do mundo nos indivíduos que se encontram, o que representa uma historicidade, entendida como um produto da consciência histórica. Nesse sentido, o ensino de História tem um caráter pedagógico diretamente vinculado à função reflexiva que lhe foi atribuída nas sociedades modernas. Uma didática para o ensino da História passa, igualmente, a ter sentido porque é um instrumento necessário ao cumprimento dessa função maior. Podemos acrescentar ainda que a universalização da escolarização contínua nas sociedades modernas, em que a formação para a cidadania ocupou papel preponderante na legitimidade política da escolarização, e não somente da instrução, fez com que o ensino da História também passasse a ser importante, inclusive o entendimento dos processos históricos. Você reconheceria esses propósitos no projeto pedagógico de Joaquim Manuel de Macedo, calcado na reprodução de alguns fatos históricos por meio de textos e resumos? E nos textos de Jonathas 54 Unidade I Serrano, sobre como ensinar História e quais imagens utilizar? E em Emília Viotti da Costa, sobre a importância da História na formação dos alunos? O que mudou na didática da História foi a ênfase no caráter de educação para a reflexão, para uma postura ativa dos alunos e para a compreensão dos processos históricos. No Brasil, podemos dizer que o contexto teve grandes transformações: de uma sociedade escravista, de um Estado com forte vínculo com a Igreja e preponderância oligárquica, passamos a uma sociedade industrial (ou agroindustrial), com pluralidade religiosa e um forte movimento pela democracia, pela representação de setores sociais que estiveram fora da esfera de decisão política. Podemos dizer que à medida que a sociedade brasileira se modernizava, outros setores sociais participavam das decisões, e a reflexividade torna-se um valor. Assim, é importante conhecer melhor a relação entre modernidadee reflexividade dos agentes sociais para pensarmos no sentido que damos a ideias-chave no discurso educacional em geral e, também, naquele produzido sobre o ensino de História: a recusa ao tradicional, entendido como reprodução e mera memorização; a valorização da inovação tecnológica, a qual nem sempre vem acompanhada de reflexão por parte de alunos e professores. Busque exemplos em suas vivências. Sempre que se mencionam métodos tradicionais, eles estão vinculados à memorização apenas? Sempre que se faz uso de tecnologias consideradas inovadoras, em geral, aquelas oriundas das tecnologias de informação e da comunicação, as TICs, há um esforço de reflexão por parte de alunos e professores? O uso de novo ou tradicional está efetivamente vinculado à possibilidade de reflexão e são adjetivos utilizados para apenas reforçar alguma mudança de práticas que se quer valorizar? O que é então ser reflexivo? Vários autores, a partir dos anos 1980, defenderam a ideia de que professor e outros profissionais deveriam ter uma formação que considerasse a reflexividade e a prática. Estudos realizados nos Estados Unidos, nos anos 1980, observaram que apenas o discurso teórico não formava para a reflexão, em algumas profissões. Era preciso haver uma relação entre as ações práticas, repetidas de forma quase automática, sem questionamentos, e uma reflexão consistente sobre as condições concretas e imediatas que subsidiassem decisões práticas embasadas em conhecimentos profissionais estabelecidos. Há áreas profissionais que exigem a aplicação de um conhecimento sobre outra pessoa e nas quais a experiência não pode ser repetida para ser corrigida, como é o caso das áreas da saúde e da educação. Elas exigem reflexão sobre a ação prática que possibilite readequar-se rapidamente, dependendo dos efeitos da intervenção feita. Essa condição está presente na educação, o que levou Philippe Perrenoud a formular o bordão “o professor age com urgência e decide na incerteza”. Muitos foram os títulos de livros que trazem a expressão “professor-reflexivo” e que se propunham a apresentar uma alternativa a uma ação tradicional do professor, não reflexiva. 55 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA O que significa então relacionar modernidade e reflexividade? Para entendermos um pouco mais sobre isso, vamos apresentar as ideias do sociólogo Giddens, inglês que estabelece ligação entre esses dois termos. Giddens (2003) escreve muito em relação ao tema e tece várias considerações sobre o que poderíamos chamar de intensificação de práticas reflexivas pelos agentes sociais na modernidade, que decorrem de sua conceituação do agente social em que cognição e linguagem têm papel fundamental, sempre correlacionadas à capacidade de os atores realizarem algum tipo de controle consciente sobre as suas ações, ou seja, exercerem uma capacidade reflexiva que seria inerente aos humanos. Afinal, todo agente realiza monitoramentos reflexivos de suas próprias ações, dos aspectos, dos contextos em que se encontra e das ações dos outros agentes, o que implica em empreender uma constante racionalização de suas ações, mesmo que não demonstre maior consciência disso. Nesse sentido, os agentes teriam dois tipos de consciência: uma prática, entendimento, e subsequente competência, acerca do que tem de fazer em determinados contextos e situações; e uma discursiva, que se manifestaria pela capacidade de, por meio de discurso, expor e explicar as razões pelas quais as ações ocorrem de determinadas maneiras, tanto as suas como as dos outros agentes. A partir disso, precisamos considerar que todas as práticas sociais incluem a cognitividade, capacidade de compreensão e de conhecimento da realidade, dos seus agentes sociais. Sem ela, não há possibilidade de efetivar a interação social entre humanos, pois as atividades sociais só poderiam ser produzidas (e reproduzidas) mediante a construção de possibilidades de ocorrência resultantes das ações dos agentes em tempo-espaço específicos. As possibilidades de ocorrência de situações de interação social seriam produzidas pela maneira como os agentes compreendem e conhecem a realidade em que ocorrem as interações, capacitando-se a produzir as ações que melhor atenderiam aos seus objetivos mais imediatos. Nesse sentido, a consciência da realidade possibilita uma rotina de atitudes e a reprodução constante dessa rotina afirmaria a consciência prática dos agentes. Esta seria constituída por um estoque de conhecimentos resultantes das interações e que nem sempre seriam claramente perceptíveis. Tais conhecimentos tornam-se mais assertivos quando os agentes exercem a consciência discursiva, produzindo discursos de maior sistematicidade que terminariam por também favorecer a reprodução da rotina social. Situações imprevistas, não premeditadas, podem levar à quebra de rotina, da própria força da consciência prática como elemento de garantia e segurança para os agentes sociais. Assim as relações entre consciências e competências são estreitas e fundamentais para a vida social, assegurando-lhe estabilidade necessária, manifesta na normatização dos modos de agir dos agentes, sem, no entanto, a normatização significar o estabelecimento de uma inflexibilidade quanto aos comportamentos possíveis. Toda nova situação exigiria racionalização para definir as ações a serem praticadas, mesmo que isso venha a ocorrer de modo aparentemente inconsciente. Com o advento da modernidade no ocidente e as consequentes mudanças, inclusive nos modos de compreender o tempo (que passa a ser cronometrado para propiciar melhor desempenho produtivo) e o espaço (cuja representação cartográfica também se matematiza); a rotinização sofre 56 Unidade I mais impactos e, consequentemente, também, a “consciência prática” dos agentes, afetando o sentimento de segurança que ela atenderia e promoveria. A intensificação contínua dos meios de comunicação, a urbanização como consequência da industrialização, a configuração do aparato burocrático do Estado Moderno estabelece ambientes criados pelos homens muito distintos das rotinas predominantes, configurando novas formas de articulação institucional e de integração social. As rotinas, ainda que permaneçam, são cada vez mais passíveis de sofrerem transformações contínuas e abruptas, exigindo maior esforço de reflexividade, isto é, do exercício da consciência discursiva e do desenvolvimento de espaços em que essa consciência discursiva seria considerada de maior importância, devendo haver práticas próprias que a estimulassem e a desenvolvessem, como as que passam a serem realizadas nas escolas, tornando as pedagogias escolares, progressivamente, preocupações públicas. Nesse sentido, esse autor salienta por diversas vezes a posição singular que a escola vem a ocupar nas sociedades modernas. Segundo Giddens (2003), corroborado por estudos de vários historiadores e sociólogos, a vigilância se faz presente como componente do Estado Moderno, que se amplia à medida que a modernidade avança. Em resumo, entendemos aqui por modernidade as transformações do tempo e espaço das relações sociais decorrentes de inovações tecnológicas produzidas pela industrialização capitalista. Giddens (2003) mostra que essas exigências não se deram de igual modo em todos os locais. Ele considera que há regiões de maior controle. As de maior controle e vigilância das relações coincidem com as zonas de maior risco e vulnerabilidade, pois são mais valorizadas. Poderíamos chamar de zonas centrais no sistema capitalista. Nas outras regiões, as periféricas, podem emergir comportamentos mais relaxados e de maior intimidade entre os agentes, com mais afetividade e também mais agressividade. Sua análise refere-se às cidades, à geopolítica. Mas podemos encontrar implicações na escola, no sistema escolar. Na escola, essas ações de vigilância e controle perpassam as atividades sociais que ali se desenvolvem, em que se estabelecem “linhas de autoridade” internas e externas, queperpassariam as relações entre os agentes internos à escola (diretores, professores e alunos) e entre esses últimos e os “agentes externos”, que envolvem uma gama de agentes externos à escola e que nela interferem: autoridades governamentais a pais de alunos e indivíduos em geral. Os agentes e suas ações de vigilância e controle se concretizam também na organização espacial e temporal da escola. Observação O currículo e sua implantação na escola estão entre as ações de controle que o Estado começa a assumir, paulatinamente. Exemplo de aplicação Podemos relacionar essas zonas prioritárias de controle ao histórico da implantação dos currículos de História no Brasil? Quem foram e quem são os agentes sociais envolvidos? 57 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Ao nos referirmos à construção da didática da História no Brasil em função de maior controle, normatividade, mas também fruto de reflexão sistematizada sobre as práticas de ensino, identificamos alguns elementos presentes nas considerações de Giddens (2003) sobre a progressiva reflexividade e sua relação com a modernidade. Inicialmente, as reflexões sobre a prática e a elaboração de métodos que implicam também em controle sobre o tempo e o espaço se realizaram no âmbito do Colégio Pedro II e de seus exames, em uma disciplina que não era, a princípio, obrigatória. O segundo passo foi torná-la obrigatória e depois instituir paulatinamente um sistema de ensino que se instala, poderíamos dizer, do centro para a periferia. Entretanto esse processo que ocorre no caso brasileiro não diz respeito apenas ao maior controle, também identificamos a ampliação da participação dos agentes sociais envolvidos em vários níveis: o Ministério da Educação, as secretarias, as universidades, as associações de professores. As discussões, propostas e produção de discursos sobre o ensino de História e suas práticas são crescentes e estimuladas pelo processo da elaboração e acompanhamentos dos currículos, com evidentes propostas de alteração da organização do espaço e do tempo na escola. Estas acompanham as mudanças relativas à concepção de tempo do mundo informatizado, ainda que a este não se subordinem. Nesse sentido, as nossas vivências podem corroborar as considerações de Giddens (2003) a respeito das modificações provocadas pela modernidade em relação ao tempo (cada vez mais medido e controlado para melhor desempenho produtivo), às comunicações, à urbanização, que a partir da industrialização, levam tanto à “transformação da concepção de tempo” como a “comodificação do espaço”, estabelecendo um “um meio ambiente criado, de caráter muito distinto, expressando novas formas de articulação institucional”, alterando “as condições da integração social e sistêmica e mudando a natureza das conexões entre o próximo e o remoto no tempo e no espaço” (GIDDENS, 2003, p. 117). Qual lugar da reflexividade nesse processo é bastante significativo, pois se é na prática, usualmente cheia de rotinas, que as transformações da modernidade se instalam? Para Giddens (2003), o processo de produção e reprodução das atividades humanas depende das condições criadas pelos próprios agentes, o que significa, na origem, uma atividade cognitiva, reflexiva, que se manteria envolvida em uma rotina definida em espaços e tempos específicos e precisos, porém sujeita a interferências e a mudanças. Porém, a esfera prática, pelo seu aspecto rotineiro e repetitivo, não oferece aos agentes o acesso direto aos conhecimentos envolvidos no processo. É na consciência discursiva, que expõe e explica as razões práticas, que se situa a competência de controle consciente sobre as ações efetivas de controle sobre as ações dos agentes. Esta é a esfera da reflexividade e sua relação com o monitoramento, característico do agir de todo agente (monitoramento da própria ação e dos aspectos do contexto em que se está, bem como das ações dos outros), que implica uma racionalização da ação do ator, – seu entendimento teórico –, e uma capacidade de discursividade (de explicar as razões porque estariam agindo de uma maneira ou de outra e por que os demais atores agem de uma forma ou de outra). A reflexividade é então uma competência de racionalização e discursividade, aqui entendidas como competência social. Podemos aproximar essa concepção teórica de certa sociologia contemporânea das considerações sobre o ensino de competências, da valorização do aluno e do professor-reflexivo, estabelecidas por Perrenoud em várias das suas obras. 58 Unidade I Consciência reflexiva e consciência prática não apresentariam barreiras intransponíveis entre si, pois a primeira permite que se fale (portanto, se pense) sobre a ação; e a segunda, a prática, permite a ação rotinizada, não refletida ou objeto tradicional de reflexão, de reflexividade por parte do agente. Nessa medida, se consideramos a produção no campo de conhecimento na educação, que denominamos “didática da História”, veremos que ela se constitui a partir da relação entre a consciência prática do ensino e a consciência discursiva presente na explicitação dos métodos e no seu entendimento. Portanto, apesar de vincularmos as primeiras produções da didática da História como sendo tradicionais, devemos rever o sentido desse adjetivo. Desde as primeiras propostas de Joaquim Manuel de Macedo, a didática se constituiu na busca de um método a partir da reflexão sobre as práticas com a intenção de produzir efeitos e intervir nas práticas sociais, monitorando-as. A didática da História, podemos dizer, desde o século XIX, se constrói no âmbito da modernidade e não das sociedades tradicionais. O uso do termo tradicional, nesse caso, é ideológico, tem sentido pejorativo e indica uma estratégia de convencimento de que tais práticas, procedimentos ou modo de pensar precisam ser superados. Trata-se de um discurso produzido para dar conta de uma luta no próprio campo de conhecimento. Lembrete A produção da didática da História tornou-se um campo de conhecimento produzido em meio a tensões sociais e às lutas no campo da educação. Essas considerações sobre reflexividade e modernidade, vinculadas à ação sobre a sociedade, podem nos ajudar a pensar os desafios postos pelo professor na atualidade, e que não existiam desse modo anteriormente, nas últimas duas décadas do século XX: a democratização do ensino, a globalização e a diversidade da clientela escolar, além do impacto das novas tecnologias na economia e nas considerações sobre o tempo e o conhecimento histórico (presentismo). Não é à toa que autores como Giddens (2003) salientaram ser o prolongamento da escolarização da população um forte indicador da modernização de uma sociedade, vistos seus efeitos sobre os modos de sociabilidade e de compreensão da realidade que os agentes sociais passam a internalizar. Indivíduos mais escolarizados têm expectativas de futuro pautadas por padrões culturais tipicamente modernos, em geral incorporados por meio da experiência escolar, que lhes permitem construir suas identidades pessoais e coletivas, – e também suas perspectivas de vida como adultos –, mediante um “projeto reflexivo”. No entanto o discurso reflexivo não é simplesmente orientador das práticas, subalternizando-as. Por isso, é importante analisar para compreender as expectativas de futuro de alunos tão diversos, uma vez que as trajetórias escolares, se consideradas fundamentais para a conformação de indivíduos modernos, podem, mesmo quando semelhantes, serem objeto de atribuições diversas por esses mesmos indivíduos, especialmente quanto ao seu papel na definição de “futuros possíveis” (GIDDENS, 2003). 59 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA A importância atribuída à trajetória escolar pode, conforme a compreensão que dela tenham os agentes sociais, ser minimizada, sobretudo, quando eles vêm a ter um grau de escolarização inédito em suas famílias, caso de muitos dos atuais alunos das redes públicas brasileiras. Entre estes, não é incomum imputar maior relevânciaa outros fatores do que às suas trajetórias escolares concretas para a definição do futuro. Para analisar as práticas a serem instrumento de conhecimento (de seus alunos e de suas condições de trabalho) e de autoconhecimento (de suas estratégias e de suas possibilidades), o professor precisa considerar que a aprendizagem escolar é uma construção que ocorre em três dimensões: individual (aluno), coletiva (classe) e social (contexto social real – comunidade escolar, comunidade do bairro, família, cidade e país). Ao aceitar a existência dessas três dimensões, precisamos considerar o protagonismo de cada aluno, a diversidade presente no grupo, classe, e a valorização social dos percursos de construção do conhecimento, especialmente daqueles ligados à disciplina escolar, no caso, a História. Nesse contexto, o professor tem um papel importante de mediador do diálogo entre os alunos com suas diferentes experiências, destes com as propostas do material didático e deste com o conhecimento produzido na área da disciplina História, o que engloba tanto a disciplina escolar quanto a área acadêmica. Esse é o desafio para a formação inicial dos professores e para a formação continuada. Reflexividade implica em uma relação entre uma consciência prática e uma consciência discursiva, que são diferentes, mas estão implicadas entre si, como relacionar a produção e exigência teórica com as questões da prática? Os princípios que orientam a formação segundo o modelo da racionalidade prática já estavam presentes em propostas da Escola Nova que, entre nós, foram enfatizadas por Lourenço Filho, para quem os professores deveriam também ser responsáveis por sua formação ao longo da vida. Ação que envolve protagonismo na aprendizagem, o estabelecimento de um diálogo do professor (enquanto aluno e depois, como profissional) com o conteúdo do curso a partir dos elementos que ele julga pertinentes, a partir da avaliação de uma situação prática vivenciada. Essa atitude de reflexão sobre as situações práticas acaba por criar hábitos de análise sobre as ações cotidianas e auxilia na busca da solução de problemas de ensino e aprendizagem na sala de aula e produz um conhecimento profissional, a partir da prática. A reflexão sobre a prática não é isolada. Seu espaço de realização é o interior da escola, entre seus professores e demais profissionais do ensino, e nas instituições de formação. Às considerações iniciais da Escola Nova e dos defensores da experiência como campo de formação, como o filósofo americano do início do século XX, John Dewey, podemos somar alguns frutos de pesquisas mais atuais, que apenas corroboram essas indicações mais antigas. No campo da formação de professores, Maurice Tardif é um autor a ser estudado para quem quiser se aprofundar no assunto. 60 Unidade I Saiba mais Para compreender um pouco mais os debates nos quais Maurice Tardif se envolveu, recomendamos a leitura de: TARDIF, M. A profissionalização do ensino passados trinta anos: dois passos para a frente, três para trás. Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 123, p. 551-571, abr./jun. 2013. Disponível em: https://bit.ly/3gF0HQb. Acesso em: 24 out 2022. Podemos nos deter aqui nos aspectos principais das pesquisas sobre a singularidade do saber docente que se desenvolve a partir da apropriação em instituições de formação de professores, de formulações teóricas sobre o processo de ensino, porém somente podem ser concretamente incorporadas por um indivíduo mediante o efetivo exercício da prática docente, em suma, nas experiências de ensinar e por elas. É importante assinalar, no entanto, que o saber prático se faz da reflexão, por vezes tensa, entre experiência direta de trabalho no magistério e os postulados teóricos a respeito do processo de ensino e dos modos legítimos de ensinar. Tensão que não se constitui propriamente em um desacordo entre o saber prático e as teorias de fundamentação científica ou filosófica presentes no campo educacional, mas sim entre os efeitos das experiências práticas nos professores, especialmente quando estas são reconhecidas como positivas, e emocionalmente significativas, e os efeitos dos modos como são expostas essas teorias nos cursos de formação inicial, nem sempre bem compreendidas. O que, por vezes, no discurso sobre a prática dos professores, se manifesta como uma recusa ou desvalorização das teorias acadêmicas e em empobrecimento da argumentação na produção dos discursos sobre a prática. Isso se verifica em vários estudos, como os de Ana Maria Machado, sobre o saber prático dos professores de História. Modos de exposição que apesar de afirmarem a justeza de formulações teóricas e procedimentos pedagógicos críticos em relação ao conservadorismo pedagógico, podem reproduzir nas situações concretas das práticas de sala de aula modelos mais próprios da chamada didática tradicional, a qual pretende criticar os responsáveis pela exposição dessas formulações. Sobre isso, em História, uma dificuldade frequente decorre das considerações acerca do tratamento do conceito de tema pela historiografia e das dificuldades de sua transposição para os currículos de História. Tendo em vista essas dificuldades, a partir dos anos 1990, inúmeros espaços formativos para além da escola e das instituições formadoras procuraram acolher os professores de História, abrindo locais para a discussão de experiências, estimulando vivências e problematizando-as. Entre os espaços de discussão de experiências, relembramos aqui os encontros nacionais e regionais da Associação Nacional de História (Anpuh), que mantém um grupo de ensino de História do qual participam muitos professores relatando reflexões sobre suas práticas. Além destes, há o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino da História. Esses espaços de debate, reflexão e aprendizagem continuada foram fruto da luta de professores de História da Educação Básica nos movimentos sociais, políticos e 61 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA acadêmicos de um lado e, de outro, a expansão da pesquisa nos programas de pós-graduação, que se abriu para a participação de professores da escola básica, desde os anos 1990. Em alguns estados, o espaço de reflexão e de diálogo entre a universidade e a escola básica vem-se ampliando e contam com programas de mestrado profissional em ensino de História e iniciativas de cursos de especialização oferecidos em convênios entre as universidades e as redes que compõem o sistema de ensino público. Saiba mais A Anpuh desenvolve debates, publicações, tal como a importante Revista Brasileira de História, que traz discussões, notícias de eventos e encontros regionais e nacionais, organiza diversos grupos de trabalho, os reconhecidos são os de Ensino de História e Educação; História Ambiental; História Cultural; História da Infância e da Juventude; Emancipações e Pós-abolição; História Antiga; História Contemporânea; História da África; História da Ciência e Tecnologia; História da Saúde e das Doenças; História das Relações Internacionais e da Política Externa Brasileira; História das Religiões e das Religiosidades; História dos Partidos e Movimentos de Direita; História dos Partidos e Movimentos de Esquerda; História e Marxismo; História Política; Mundos do Trabalho; Os Índios na História e o Patrimônio Cultural. Além disso, realiza lives e publicações constantes que são de grande interesse dos estudantes e professores e professoras de História de todo o país, cujo endereço eletrônico é: Disponível em: https://anpuh.org.br/. Acesso em: 25 out. 2022. Dessa maneira, como exemplo de temas fundamentais desde a década de 1990, podemos mencionar a Revista Brasileira de História: Disponível em: https://bit.ly/3f6qeBx. Acesso em: 25 out. 2022. Esse é o dossiê com o tema Ensino de História. Memória, História e Historiografia. No site indicado, acesse todos os artigos presentes. A necessidade constante de atualização e reflexão sistemática também gerou a demanda, atendida pelo mercadoeditorial, pela publicação de alguns manuais para o ensino de História, voltados à formação profissional. Elencamos aqui alguns dos manuais mais expressivos que procuraram enfrentar os desafios do ensino e foram fruto de pesquisa sobre o ensino de História. Em 1997, foi publicado O Saber Escolar e a Sala de Aula, organizado por Circe Bittencourt, uma das assessoras da elaboração dos PCN de História para as séries finais do Ensino Fundamental. Sua 62 Unidade I obra reúne as mais significativas pesquisas apresentadas no 2º Encontro Perspectivas do Ensino de História, promovido pela Faculdade de Educação da USP, com o apoio do núcleo regional da Anpuh de São Paulo, em fevereiro de 1996. A primeira parte se dedica à questão curricular e à formação de professores. Afirma a importância da compreensão do tempo presente e a percepção do aluno como agente capaz de transformar a realidade na construção de uma sociedade democrática. A segunda parte trata das necessidades e dificuldades no uso de diferentes recursos de ensino sem, contudo, apontar a solução fácil, mas muito pouco eficiente, conforme já mencionado no diagnóstico de 1986 em relação à reprodução de receitas de aulas e modelos como estratégia de formação de professores. Traz uma contribuição significativa por não reduzir o trabalho do professor à aplicação de sugestões técnicas produzidas distantes da realidade da sala de aula. A concepção de método para o ensino de História nos artigos publicados nesse livro é a do método histórico. Em 2003, Leandro Karnal, professor de História na Unicamp, publicou História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. O manual é dividido em duas partes: a primeira trata de reflexões gerais e teóricas importantes para a sala de aula, se forem de fato lidas e analisadas. Essa advertência do organizador, logo nas primeiras páginas, convida o professor-leitor para ser o protagonista de sua leitura e de sua prática, oferecendo-lhe parâmetros do campo da didática da História. A segunda parte oferece textos de especialistas da pesquisa em História com sugestões de materiais acessíveis à formação do aluno da Educação Básica, para que as pesquisas e temas da recente historiografia possam ser incorporados. Sua preocupação com os conteúdos que compõem os currículos é explicitada, mas a estratégia de exposição é coerente com a proposta de tornar o professor protagonista do seu ofício. Saiba mais A leitura da obra a seguir é obrigatória para compreender melhor a didática da História: KARNAL, L. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003. Também, em 2003, como fruto de investigação do Núcleo de Pesquisas e Estudos em História Cultural do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Abreu e Soihet (2003) organizaram o volume Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia, no qual tratam especialmente da cultura histórica e da cultura política e seu papel no ensino de História, tanto em nível superior como na escola básica. Os textos analisam diferentes períodos da História, especialmente Getúlio Vargas e Antigo Regime e o ensino de Brasil Colonial. 63 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Acesse o artigo: ROIZ, D. S. Entre a “cultura histórica” e a “cultura política”: os ingredientes necessários para a renovação da historiografia e do ensino de História? Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 13, n. 39, dez. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3DueLFe. Acesso em: 25 out. 2022. Em 2004, foi publicado por Maria Auxiliadora Schmidt e Marlena Cainelli – Ensinar História. Um manual de concepção diferente. Cada um dos tópicos é tratado em cinco etapas: teorizando o tema, debatendo o tema (a partir de diferentes trechos de diversos autores), trabalhando atividades, ampliando o debate e comentando bibliografias. Entre os tópicos trabalhados, estão a história do ensino de História, o saber e o fazer histórico na sala de aula, as diferentes concepções de História, as considerações sobre o fato histórico e seu ensino, a abordagem dos conceitos históricos, as noções de tempo, as fontes, o espaço da História local, a importância da História oral, do livro didático e a avaliação. Saiba mais A fim de compreender a obra em sua integralidade, leia: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2006. O reconhecimento da necessidade de aprofundar os saberes sobre o ensino de História, os desafios colocados pela didática e a relação entre as antigas e as novas práticas têm alimentado uma produção contemporânea consistente, reflexiva e desafiadora ao trazer novas propostas, exemplos de atuação, questões que muitos enfrentam no dia a dia e, somando-se a isso, diversas obras fazem referência aos saberes e às práticas que precisam ser desenvolvidas desde os anos iniciais de escolarização. Quando passamos pelos índices dessas obras, pode parecer que são repetições, variações sobre um mesmo aspecto, mas a leitura dos artigos e capítulos indica que não se trata disso, mas de uma consistente bibliografia reflexiva que vem se desenvolvendo por décadas e que dá sinais de vitalidade e de relevância cada vez maior. Assim, indicaremos algumas obras que podem servir de referência em sua formação em didática da História, bem como recursos para sua vida profissional, pois desafios virão, e uma boa estratégia é procurar embasamento teórico consistente em obras de referência. 64 Unidade I Em 2015, Helenice Rocha, Marcelo Magalhães e Rebeca Gontijo publicaram O Ensino de História em Questão: cultura histórica, usos do passado. A obra contém artigos de diversos autores e autoras que abordam as vertentes de estudos sobre o ensino de História: “História: como se ensina e como se aprende?”; “Histórias presentes no rádio, nas bancas de jornais e nas escolas”. Estes são os subtítulos que apresentam artigos sobre tendências e perspectivas de ensino e pesquisa; consciência histórica e aprendizagem; educação histórica; História, consciência histórica e ensino de História; cultura histórica; linguagens e novas linguagens; ensino de História, História, historiografia e produção de sentido em práticas de letramento; formação histórica e narrativas – ensino de História e espaço escolar no estágio supervisionado; aprender a pensar historicamente; ensino de História e imagem; memória, saber histórico escolar e efemérides; ensino de História e os desafios da diversidade – a conformação da consciência histórica nos processos de implementação da Lei n. 10.639/2003 (ROCHA; MAGALHÃES; GONTIJO, 2015). O domínio da diversidade de temas abordados pela obra é uma marca muito positiva na atuação de professores e professoras de História. Saiba mais Sobre a obra, sua referência completa é: ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, R. O ensino de História em questão: cultura histórica, usos do passado. Rio de Janeiro: FGV, 2015. O saber histórico na sala de aula foi tema da obra organizada por Circe Bittencourt; Com artigos de referências na área, nos apresenta debates sobre proposta curriculares, linguagem e ensino, discutindo o capitalismo, a cidadania e as propostas curriculares, as políticas públicas e os currículos de História; História, política e ensino; formação do professor de História e o cotidiano na sala de aula; livros didáticos entre textos e imagens; História e dialogismo; museus; representações sociais e consumo de imagens; memória e ensino de História; televisão como documento, além de filmes, História e ensino. Saiba mais Acesse a obra a seguir: BITTENCOURT, C. O saber histórico na sala de aula. 12. ed. São Paulo: Contexto, 2015. Em 2012, Sônia Nikitiuk organizou a obra Repensando o Ensino de História, que se propõe a refletir a apropriação do saber; reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno; o ensino de História e as transições paradigmáticas na História e na Educação; identidade profissional e construção de 65 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIAnovos currículos. Os temas aqui apresentados são apenas alguns dos exemplos que, a exemplo dos outros títulos aos quais nos referimos, não esgotam os assuntos tratados pelos diversos autores. Saiba mais Para aprofundar-se no tema, leia a seguinte obra completa: NIKITIUK, S. L. Repensando o ensino de História. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2012. Em 2014, Marcelo Magalhães, Helenice Rocha, Jayme Fernandes Ribeiro e Alessandra Ciambarella organizaram a obra Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. A proposta foi estabelecer diálogos entre a História e seu ensino, os usos do passado na História escolar e a divulgação histórica, os autores propõem debates sobre o ensino de História e os regimes de historicidade, a presença do passado em sala de aula, consciência histórica e educação histórica; mudanças provocadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) com os livros didáticos; a geração Homo zappiens na escola, artigo ao qual já nos referimos nessa obra; África e o ensino de História; cultura histórica, memórias e representações sobre a ditadura militar na televisão nacional; aprender História com jogos digitais em rede – possibilidades e desafios para os professores. Saiba mais Para aprofundar-se no tema, leia a seguinte obra completa: MAGALHÃES, M. S. et al. Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: FGV, 2014. Em 2013, Marcos Silva organizou o livro História: que ensino é esse?. Propondo discutir como manter e renovar o ensino de História, arquivos e ensino para crianças, ensino de História em territórios rurais e urbanos, a importância das culturas africanas, a representação dos índios em livros didáticos; europeus, indígenas e africanos e o Estado-nação; criança na História e na educação; ensino de História Antiga; Idade Média, América Latina, a questão da hegemonia audiovisual e a escola; turismo; performance no ensino de História, música e conhecimento, uso dos quadrinhos Maus, saber histórico escolar. Além disso, traz artigos sobre a atuação de professores, leituras recomendadas e filmes citados nos artigos. 66 Unidade I Saiba mais Para aprofundar-se no tema, leia a seguinte obra completa SILVA, M. História: que ensino é esse? Campinas: Papirus, 2013. Podemos notar algumas recorrências, como a multiplicidade de temas e autores, a necessidade de pensar criticamente as ações sobre o ensino de História e seus diálogos com o presente. Fechando a apresentação de algumas obras de referência, consideramos importante ressaltar que não esgotamos temas, possibilidades, debates ou autores. São indicações expressivas e que podem ser ampliadas, sempre. Cada uma delas é depositária de enorme trabalho intelectual, pensamento crítico e desejo de aprimorar o ensino de História em nosso país. Como última obra dessa lista, lembrando que no decorrer de nossa disciplina, muitas outras são referidas, recomendamos a obra de Circe Maria Fernandes Bittencourt, Ensino de História: fundamentos e métodos. Obra minuciosa e ampla, em sua 1ª parte, aborda a História escolar: perfil de uma disciplina, começando com a questão: O que é disciplina escolar? Apresenta conteúdos e métodos de História: breve abordagem histórica. Traz como tema História nos dias atuais – propostas curriculares. Na 2ª parte, trata de métodos e conteúdos escolares: uma relação necessária em que coloca a seguinte questão: conteúdos históricos: como selecionar? Aborda aprendizagens em História, mostrando a formação de conceitos, conhecimento histórico, tempo/espaço e mudança social. Trata de procedimentos metodológicos no ensino de História e procedimentos metodológicos em práticas interdisciplinares; aparecem a História ambiental, o estudo do meio, patrimônio histórico e lugares de memória. Na 3ª parte, aborda materiais didáticos: concepções e usos, em que apresenta livros e materiais didáticos em História, se propõe a discutir os usos didáticos de documentos, mostrando fontes e diferentes documentos, e trata dos documentos não escritos na sala de aula – museus e seus objetos, imagens, fotografia, cinema e audiovisuais, o uso de filmes, música e História. É interessante notar que para além dos debates, cada capítulo é encerrado com sugestões de atividades, o que é mais uma importante contribuição da obra. 67 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Saiba mais Para aprofundar-se no tema, leia a seguinte obra completa: BITTENCOURT, C. M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2011. Para além dos manuais que têm sido publicados, podemos mencionar a importância da Olimpíada Brasileira em Ensino de História, que desde 2009, apresenta divulgação de documentos de vários tipos, como os iconográficos, escritos e mapas sobre a História do Brasil, com considerações sobre a iconografia, além de divulgação de artigos de revistas oferecendo aos professores uma oportunidade de acesso a fontes de informação, muitas vezes, pouco acessíveis. Saiba mais Para saber mais sobre as Olimpíadas de História, acesse o site: Disponível em: http://www.olimpiadadehistoria.com.br. Acesso em: 25 out. 2022. Em todas essas iniciativas e encontros acadêmicos, os manuais e as questões postas pela Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) são temas de reflexão as relações entre presente e passado, ou seja, a concepção do tempo histórico, o caráter das narrativas históricas das práticas pedagógicas, o uso de fontes e documentos, as mediações entre os saberes, o cotidiano da escola e do mundo. Para concluir, podemos considerar que o diálogo entre a escola e a universidade ocorre de modo dinâmico e são diversos os caminhos para a formação continuada do professor de História na necessária busca de aprimoramento constante. Ressaltamos ainda a importância da ONHB como espaço de produção de conhecimento, interlocução dos alunos e mentoria dos professores, ambiente de desafios e aprendizagens extremamente diversificadas. Consideramos essa iniciativa um exemplo a ser difundido e praticado em todo o país, pois o trabalho em equipe com a resolução de desafios constantes fundamentados em leitura e interpretação e não em “decoreba” de informações, que, além disso, valoriza a diversidade presente em nosso país e discute a História que chega ao dia a dia dos estudantes, como, por exemplo, discutir os 50 anos da ditadura cívico-militar em um ano específico ou aproveitar as efemérides relacionadas ao bicentenário da Independência do Brasil em 2022 a fim de propor a realização de trabalhos e murais, abordando criticamente o tema. 68 Unidade I Saiba mais Em 2019, a OHNB propôs o desafio, e as equipes aceitaram-no, de trabalhar sobre aqueles tidos como os excluídos da História, ou os excluídos das narrativas da História, gerando um dicionário biográfico digital acessível a qualquer interessado no endereço eletrônico: ONHB. Excluídos da História. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3W4j7dp. Acesso em: 25 out. 2022. Nas palavras da própria ONHB, com autoria de Helenice Rocha, Kazumi Munakata, Márcia de Almeida Gonçalves e Augusto Ridson de Araújo. Excluídos da História Entre os dias 3 e 8 de junho de 2019, 6.753 alunos de todo o Brasil criaram o dicionário biográfico Excluídos da História, que inclui 2.251 verbetes sobre personagens raramente estudadas na historiografia tradicional. [...]. A Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB) é um projeto que se iniciou no ano de 2009, no âmbito do Museu Exploratório de Ciências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e que prossegue sendo elaborado por docentes e pós-graduandos do Departamento de História da mesma universidade. Ao longo desses quase 12 anos, a ONHB já teve cerca de 450 mil participantes, orientados pelos professores de história de suas escolas, públicas ou privadas. A Olimpíada possui seis fases on-line e uma fase presencial, nas quais os participantes respondem a questões de múltipla escolha e realizam diferentes tarefas e desafios. A prova percorrediferentes aspectos e períodos da história do Brasil, com questões necessariamente amparadas em documentos históricos (textuais ou imagéticos). Mesmo não sendo uma prova temática, todos os anos trazemos um tema sobre o qual refletimos ao longo da prova e das tarefas. Na 11ª ONHB (2019), inspirados em parte pelo debate trazido à esfera pública pelo samba-enredo da Escola de Samba Mangueira (Histórias para ninar gente grande), convidamos os estudantes e seus professores a pensarem sobre o tema “Excluídos da História”. Convidamos os participantes da 11ª Olimpíada Nacional em História do Brasil a refletir sobre os excluídos da história do Brasil, e a produzir, a partir de um template por nós criado, quatro páginas de um livro didático imaginário, trazendo um personagem dali ausente mas por eles identificado como relevante. As perguntas lançadas aos participantes incluíam: quem são os sujeitos da história que por muito tempo não mereceram datas comemorativas, monumentos ou destaque dentro dos livros didáticos? Quem são os sujeitos históricos que, embora estudados pelos historiadores e cientistas sociais atualmente e muitas vezes 69 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA mencionados em sala de aula pelos professores, são rejeitados por parte da sociedade, pela narrativa dominante dos meios de comunicação de massa e até mesmo por uma parcela dos estudiosos que prefere negar a sua importância? Por que alguns protagonistas trazem desconforto às narrativas estabelecidas? Adaptado de: Rocha et al. (2022). Projeto de enorme valor, nos parece uma experiência que deve se tornar referência pelo país, uma vez que insere os alunos, professores e escolas numa realidade moderna e sofisticada de ensino e aprendizagem de História que serve como exemplo do que pode ser feito de inovador nesse início do século XXI. 3 NOÇÕES DE TEMPO E ESPAÇO NO ENSINO DA HISTÓRIA: ENTRE O SABER ENSINADO E O SABER CONSTRUÍDO O desafio da didática da História é relacionar o conhecimento histórico e as experiências dos alunos, negociando significados para que ocorra, por parte deles, uma reconstrução do conhecimento e não mera reprodução. A ênfase do ensino de História com o objetivo de aprendizagem de um modo de pensar e de apreender métodos de investigação e produção de conhecimento pode ser localizada em vários momentos do século XX, ainda que tenha se acentuado a partir dos anos 1980 do século XX, conforme apresentado na formação histórica do professor de História. Vamos ilustrar a diferença entre o que se pretende ensinar e o saber construído pelos alunos com dois casos que podem ser considerados anedóticos, mas que nos permitem examinar a importância da compreensão de noções de tempo e espaço para a construção do conhecimento histórico. Caso 1 Trata-se de um relato de experiência de uma pessoa acerca de suas aulas de História na década de 1960 a fim de ilustrar que não compreendia o que era ensinado. Segundo ela, sempre se falava em Duque de Caxias, o pai da pátria. Havia revoltas e lá estava o Duque de Caxias. Em casa, um dia, ao ouvir o pai comentar sobre problemas sociais e revoltas no Brasil, ela participou da conversa sugerindo que se chamasse o Duque de Caxias para resolver os problemas. O pai se espanta e pergunta por quê? Ela explica, séria, que ele é o pai da pátria. A família ri, ela sente vergonha. Percebe que o que julgava ter aprendido era falho. Esse caso mostra que mesmo que o ensino fosse concebido com intuitos de realçar o poder e a importância do Estado, precisa fazer sentido. A História, como disciplina, ainda que a serviço da ideologia nacionalista, não podia ser reduzida pelos seus defensores a meros relatos de heróis que asseguram a ordem de um mundo em que os conflitos são expressões da luta do bem contra o mal. Nessa perspectiva, se produz uma ficção distante das narrativas construídas a partir das operações de contextualização em um processo histórico, para o que são fundamentais as noções de tempo e espaço. 70 Unidade I Caso 2 Trata-se de cenas que ocorrem em torno de duas aulas de História na série Cidade dos Homens, produzida pela TV Globo, no episódio “A Coroa do Imperador”. As aulas de História são assim contextualizadas: a professora está organizando um passeio ao museu imperial de Petrópolis e explicando a vinda da família real ao Brasil. Na primeira aula, a professora anuncia o passeio e projeta uma apresentação em Power Point com diferentes slides contendo imagens e mapas para explicar a vinda da família real e o Bloqueio Continental. Os alunos estão quietos, porém dispersos, percebemos apenas a manifestação do entendimento de dois alunos. Um deles, Acerola, durante toda a apresentação, desenha a viagem de Portugal para o Brasil e o Bloqueio Continental. Mostra-se atento, mas está silencioso. O outro, cujo nome não é mencionado, reage imediatamente à projeção de um slide em que está grafado o século XIX. A grafia chama a atenção de um dos alunos, que pergunta o que é “xix”? A professora responde que se trata de algarismos romanos. Ele fixa essa informação e, durante todo o resto da explicação, em vários momentos, ele pergunta por que os romanos vieram para o Brasil. A professora se mostra impaciente. Claramente esse aluno ainda não incorporou a série temporal de uma cronologia da sucessão da História escolar, e a informação recebida provocou o que chamaríamos de confusão, pois o aluno não entendia porque os romanos não estavam presentes no restante da explicação da professora. Entre uma aula e outra, podemos acompanhar o pensamento de Acerola, que anda pelo Rio de Janeiro, compara a organização espacial de um bairro de classe média carioca com a favela, demonstrando percepção de diferenças e tensões sociais; analisa as condições de vida e expectativa de futuro de conhecidos ligados ao tráfico de drogas. Na aula seguinte, a professora pretende ouvir o que os alunos entenderam da aula anterior e recolher o dinheiro para o pagamento do ônibus para a ida a Petrópolis. Ninguém se apresenta para falar o que entendeu. Há muita risada e barulho. A professora ameaça cancelar o passeio e aí Acerola se dispõe a explicar, dizendo que pode tentar, mas fará isso do seu jeito. Ela o incentiva. E com o apoio de um mapa histórico pendurado na lousa, ele explica o Bloqueio Continental, identificando as questões geopolíticas com as disputas de grupos do narcotráfico pelo controle dos morros do Rio de Janeiro. Cada país é um morro e a lógica da dominação territorial é uma lógica econômica em um contexto de disputa de vários países. Todos ouvem e compreendem a explicação de Acerola. Voltaremos a esse caso mais adiante, por enquanto, vamos salientar que Acerola relaciona o passado e o presente, distinguindo-os. Ao explicar o Bloqueio Continental, contextualiza-o no espaço e no tempo. Compara-o, mas reconhece a distância temporal entre eles. Esse aluno já se apropriou da noção de tempo e espaço, como mostra sua explicação, que põe em evidência a relação dos dois. Acerola estabelece uma sequência cronológica entre os diferentes acontecimentos que explicam a vinda da família real e também identifica a permanência de alguns elementos que fazem parte da estrutura da sociedade em que vive. 71 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Essas duas operações realizadas por Acerola não inatas. Foram aprendidas tanto individualmente, por ele, como são frutos de uma construção social. Abordaremos as noções de tempo e espaço do ponto de vista da sua importância para a intervenção do professor de História na sala de aula em três perspectivas a seguir. 3.1 A construção social do conceito de tempo e de espaço Norbert Elias (1998), sociólogo alemão, em seu livro, Sobre o tempo, diz que a percepção do tempo não é inata e que nem sempre foi a mesma, ou seja, que a compreensão das sequências temporais não foi concebida da mesma forma e que também não o será no futuro. A construção do conceito de tempo exigiu da humanidade e exige dos indivíduos a elaboraçãode uma imagem mental que reúna eventos sucessivos, presentes em conjunto, porém não simultaneamente. Isso é possível por meio do poder de síntese que depende de um repertório de experiências vividas. Essa capacidade lhes oferece possibilidades de orientação, como mostra: A percepção do tempo exige centros de perspectiva – os seres humanos – capazes de elaborar uma imagem mental em que eventos sucessivos, A, B e C, estejam presentes em conjunto, embora sejam claramente reconhecidos como não simultâneos. Ela pressupõe seres dotados de um poder de síntese acionado e estruturado pela experiência. [...] Para se orientar, os homens servem-se menos do que qualquer outra espécie humana de reações inatas e, mais do que qualquer outra, utilizam percepções marcadas pela aprendizagem e pela experiência prévia, tanto a dos indivíduos quanto a acumulada pelo longo suceder de gerações (ELIAS, 1998, p. 33). Norbert Elias (1998) se detém, no seu livro, às experiências acumuladas pela humanidade com a observação das regularidades astronômicas, o salto para a possibilidade de organização de séries ou sequências cronológicas, culminando com a capacidade de identificar, nessas séries, diferentes durações. Entretanto, ele considera que todos nós também mobilizamos as experiências de nosso repertório coletivo vivenciadas individualmente. À primeira vista, esse assunto pode parecer trivial e, ao mesmo tempo, muito teórico e pouco prático para a realidade que os professores enfrentam. Porém, parte da dificuldade dos alunos no aprendizado da História está na necessária contextualização dos fenômenos no espaço e no tempo, na dificuldade em estabelecer sequências cronológicas e em dar o salto das sequências cronológicas para identificar as diferentes durações. Por esse motivo, é importante que o professor tenha clareza do caminho percorrido pelo homem desde as primeiras identificações de marcadores de tempo até as nossas possibilidades culturais de identificar temporalidades. Voltemos ao caso 1, que mostra ausência de qualquer preocupação com apreensão e significado dado à própria datação dos eventos mencionados, como se a simples menção da data já significasse sua 72 Unidade I contextualização temporal. O que também ocorre, de certa forma, no caso 2, com a confusão feita entre os romanos (povo) e o algarismo utilizado para indicação dos séculos. Conhecer as condições de produção das noções de tempo e espaço pela humanidade pode nos ajudar a propor situações de aprendizagem para que nossos alunos superem as dificuldades que encontrem, o que significa ter um repertório para apurar a escuta em relação às dúvidas ou noções imprecisas e falhas dos alunos e, a partir desse ponto, estabelecer diálogos com alguns alunos ou com toda a classe. Convém lembrar que até os anos 1980, discutia-se a pertinência em ensinar História para alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental. Chegou-se a recomendar esse estudo somente após o atual oitavo ano do Ensino Fundamental. Esse argumento baseava-se em algumas leituras do biólogo suíço Jean Piaget, em seu livro, A Noção de Tempo na Criança (1975), para quem o pensamento da criança, nos primeiros estágios do seu desenvolvimento cognitivo, elabora o tempo de forma intuitiva e se limita às relações de sucessão (antes e depois) e de duração fornecidas pela percepção imediata. Alguns leitores desse autor inferiram daí que, por isso, as crianças não são capazes de elaborar operações lógicas que permitam organizar séries temporais maiores ou identificar durações quer sejam elas apenas quantitativas, medidas por unidades numéricas, quer sejam de ordem qualitativa, definindo simultaneidades, sucessão e duração. No entanto, as pesquisas realizadas na década de 1980, inspiradas nas leituras de Vygotsky sobre a construção social do pensamento, demonstraram que não há uma barreira etária para o ensino de História conforme argumentam os leitores de Piaget. Entretanto a noção de tempo é inata, há uma aprendizagem a ser feita, portanto se faz necessária a mediação do professor nesse processo. Nesse sentido, acreditamos ser importante apresentar as contribuições de Norbet Elias na descrição desse processo da humanidade, para que o professor saiba a relação entre a construção social do tempo ao longo da história da humanidade e a construção mental apresentada por seus alunos. A própria construção das linhas do tempo, ainda é utilizada como suporte para que os alunos possam compreender melhor as diferentes temporalidades (duração, simultaneidade, mudanças e permanências), está relacionada à elaboração de sucessão e ordenação de fatos. Ainda que possamos pensar que esta seja uma operação mental corriqueira, ela não é. Segundo Norbert Elias (1998), uma sequência temporal é uma síntese de vários acontecimentos que dependem de um alto nível de generalização e de síntese, possibilitados pelo patrimônio social de um saber relativo a métodos de medir as sequências temporais e as suas regularidades. Por exemplo, os instrumentos mais antigos usados para medir o tempo foram a Lua, o Sol e as estrelas. Porém eles não tinham um padrão fixo para avaliar a duração dos acontecimentos. Seu uso decorria de um conceito de tempo diferente do nosso. É possível ter uma ideia dessa diferença quando verificamos que o conceito de “mês” era expresso pela palavra “lua”, e que o conceito de “ano” era expresso pela palavra “colheita”. Houve épocas em que a humanidade não media continuamente o tempo. Apenas em momentos pontuais. 73 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA No entanto o conceito atual de tempo não é mais dependente de fenômenos dos astros. Ele está fundado na utilização de unidades de medida, como dia, mês e ano, adaptável a qualquer calendário. Isso ocorre porque, para nós, o tempo corresponde a um fluxo contínuo e uniforme, resultado da experiência socialmente acumulada de processos de medição e de instrumentos reguladores do tempo: os relógios de movimento contínuo, a sucessão de calendários anuais e das eras/períodos que encadeiam os séculos (vivemos hoje no vigésimo primeiro século depois do nascimento de Jesus Cristo). As experiências que temos em relação a formas de medir o tempo na sociedade capitalista (crescentemente industrializadas e urbanizadas) fazem com que possamos determinar o tempo social com alguma autonomia em relação ao tempo físico. Ainda que não possamos separar os dois, pois são as necessidades sociais que nos motivam a medir o tempo dos corpos celestes. Voltamos mais uma vez aos nossos casos ilustrativos para verificar que a elaboração de sequências temporais ordenadas requer várias operações mentais para as quais a mediação do professor é importante. No caso 1, não havia percepção de sequências de acontecimentos não simultâneos. Havia o que poderíamos chamar de um passado contínuo que se faz presente e provoca uma justaposição entre o tempo de Duque de Caxias e o tempo presente. No caso 2, além da não identificação dos romanos como um povo, há um desconhecimento de unidades medidas de tempo e modo de grafar os séculos. Esses exemplos, e certamente muitos outros de que possamos nos lembrar durante a leitura deste livro-texto, mostram que a construção dos conceitos relativos ao tempo é social, e não natural. Não foi uma construção trivial para a humanidade e também pode não ser, para alguns indivíduos, o que demanda, da parte de quem ensina História, a elaboração de estratégias didáticas adequadas para dar conta dessa especificidade e não cair na armadilha de considerar as noções de tempo algo alheio às experiências dos indivíduos. Isso não ocorre por má vontade, mas por uma dificuldade. Nosso vocabulário é ainda pobre para pensar sobre o tempo. Nossas expressões reforçam a ideia de que o tempo existe independentemente de qualquer coisa e que nossa ação sobre ele se restringe à medição “o tempo passa”, “o tempo corre”. Não pensamos que quando consultamos o relógio, estamos estabelecendo uma correspondênciaentre posições inerentes a duas ou mais sequências de acontecimentos, ou seja, estamos fazendo uma operação mental de sincronização. Faz pouco tempo que o físico Einstein pôs em evidência que o tempo é uma forma de relação, e não um fluxo tão objetivo quanto o de um rio. Então, já sabemos que o tempo é uma construção social que depende da capacidade de memória e síntese para realizar operações mentais que estabelecem relações entre dois ou mais processos. Um deles é padronizado para servir de quadro de referência e padrão de medida. Eles podem ser os movimentos da natureza, os processos sociais (revoluções, mudanças políticas) ou os mecanismos que servem de referência e escala de medida para o tempo (relógio). 74 Unidade I É possível também que a vida de um sujeito humano seja usada como padrão de medida nas sociedades em que sua vida está associada a um calendário e ao desenvolvimento de cronologias baseadas na noção de era, ou seja, a um continuum evolutivo reconhecido e padronizado. É o caso de Jesus Cristo. Os calendários, como apontou Norbert Elias (1998), foram grandes construções sociais que evidenciaram formas sofisticadas de representação do tempo. Encontramos calendários na Mesoamérica, na Grécia, no Egito, entre os babilônios, na China e no calendário muçulmano, judaico e até o gregoriano. Além dos calendários, o tempo foi gradativamente sendo medido por mecanismos, o relógio, e também, na sociedade capitalista, pelo tempo de trabalho e pelo tempo do dinheiro. As transformações dos mecanismos para definir e identificar o tempo são contínuas. Atualmente, o relógio digital representa uma modificação em relação ao relógio analógico, em que se representa no mostrador o fluxo dos segundos, minutos e horas. Enquanto, no relógio digital, lê-se o instante que se reduz aos números do mostrador, perde-se a representação do fluxo do tempo. A construção social da noção de tempo, que experimentamos na atualidade, está relacionada com a continuidade de um processo de transformação e integra a concepção de identidade individual ou social. Ou seja, o processo em transformação da vida de uma pessoa, ou da história de um país, mantém uma identidade que não está em algo que permaneça inalterado, como se fosse uma substância. A identidade é dada pela continuidade de uma transformação que provém de outra, seguindo um sucesso ininterrupto. O Brasil do século XVII e o Brasil do século XX são os mesmos, não porque sejam iguais, mas porque têm sua continuidade reforçada por meio da rememoração. Um indivíduo é o mesmo quando adulto e quando criança pela continuidade das transformações que o conduziram de um estágio a outro. E também uma continuidade rememorada, ele não se esquece de como havia sido. Atualmente, na sociedade industrial contemporânea, os indivíduos têm um sentimento de identidade pessoal e de sua continuidade por toda a vida. A trajetória de toda vida humana é mensurável em uma escala social etária, eu tenho doze anos, você tem dez, e isso passa a ser um elemento importante da imagem pessoal de si e dos outros. Esses dados numéricos coordenados servem para simbolizar diferenças biológicas, psicológicas e sociais bem conhecidas, além de indicarem mudanças. E mais do que tudo isso, atribuímos aos processos biológicos e sociais relacionados em uma escala de tempo um caráter irreversível. “Daí dizermos que o tempo seja irreversível. Mas o que é irreversível é nosso envelhecimento” (ELIAS, 1998, p. 57). Temos a impressão de que o processo social que medimos utilizando escalas temporais (anos ou séculos) vai prosseguir indefinidamente. Mas ele só permanece enquanto for rememorado. Resumindo, estabelecer sequências temporais ordenadas significa reconhecer uma escala que permita medir o tempo. Essa escala é arbitrária e seu significado e importância são dados por quem mede o tempo. A sequência de fatos só existe a partir da identificação e da memória do sujeito que realiza todas essas operações. 75 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Lembrete Certamente existe uma relação implícita entre sequência temporal, identidade e memória. Fica a pergunta: por que medimos e procuramos determinar o tempo? A resposta da pesquisa de Norbert Elias é que o desenvolvimento da percepção do tempo pela humanidade se deu com a função de orientação. Sempre que precisamos responder à pergunta: quando vamos fazer isso? Ao buscarmos orientação para a ação, buscamos determinar ativamente o tempo. Nas sociedades antigas, os sacerdotes de posse do conhecimento dos astros ou de outro sistema que consideravam indicativos das mudanças ou dos momentos propícios decidiam sobre atividades agrícolas ou sobre batalhas. O estudo da História de Roma nos informa que os sacerdotes buscavam identificar na natureza, nas entranhas dos pássaros, os dias auspiciosos e os dias nefastos. Com base nisso, decidiam-se guerras. Nos dois casos, tratava-se de um conhecimento de poucos acerca da ação sobre muitos. E hoje? Hoje essas decisões dependem do calendário, que foi construído ao longo dos séculos e com o qual estamos tão familiarizados que seu uso nos parece natural. As decisões sobre a guerra ou as plantações já dependem de outras considerações que também dependem da análise e interpretação de fatos e dos ritmos de mudança, de análise de conjuntura, que vão além da percepção da sucessão e duração do tempo. Podemos então dizer que o desenvolvimento das operações mentais corresponde ao desenvolvimento de sentidos de orientação com função social bastante importante. Os elementos operatórios presentes na construção social da noção de tempo são os seguintes, segundo Norbert Elias (1998, p. 62): • A Sequência entendida como síntese do sucessivo, fluxo contínuo dos acontecimentos, que na linguagem comum aparece na expressão “ao longo do tempo”. • A Duração entendida como a possibilidade de identificar o começo e o final de um acontecimento que existe no interior de um fluxo incessante de outros semelhantes, definir intervalo, distinguir um intervalo de outro, comparar os intervalos do ponto de vista de seu comprimento, ou seja, de sua duração. • Noção de passado, presente e futuro corresponde à possibilidade de um mesmo olhar apreender o que se produziu ou se produzirá. Essa noção não se restringe à estrutura de uma sequência temporal, mas inclui os próprios homens que expressam suas experiências em relação às sequências temporais. Essas experiências se transformam de acordo com os seres humanos que conferem o significado de passado, presente e futuro. 76 Unidade I Voltando ao caso 2, observamos que Acerola se apropria de todas essas operações ao tecer considerações sobre a sociedade em que vive e, especialmente, as noções de duração que utiliza para explicar o Bloqueio Continental. Considerando nosso cotidiano e nossas práticas, podemos perceber que a sociedade em que vivemos, altamente industrializada, concebe o tempo como uma trama contínua que encerra e condiciona toda a extensão das atividades humanas. Essa concepção é fruto de um longo aprendizado que levou à introjeção dos elementos operatórios de sequência, duração e das noções de passado, presente e futuro. Como a escola é o local por excelência da socialização cultural, uma de suas missões é garantir a seus alunos o repertório cultural disponível socialmente. Daí porque persiste na cultura escolar a prática da utilização de linhas do tempo ou frisas temporais, que exploram as noções de duração, passado, presente e futuro indicados por Norbert Elias. Ressalta-se, no entanto, que a construção desses conceitos depende do contexto social, ou seja, das experiências historicamente compartilhadas e reiteradas. Há um elemento de aprendizagem presente na concepção de tempo e que deve ser considerado ao abordarmos tanto as diferentes perspectivas do tempo para as diferentes sociedades como entre os alunos. A construção da noção de tempo é, portanto, uma forma de consciência que está intrinsecamenterelacionada à possibilidade de reconhecer diferentes temporalidades relativas à produção da humanidade. É um dos objetos de estudo da didática da História e também da reflexão para a produção historiográfica. Entretanto, apesar de ser um conceito bastante importante, e complexo, pouco pensamos nele no dia a dia e na sua construção pela humanidade e pelos indivíduos e no seu processo de transformação. O conceito de temporalidade envolve as noções básicas de tempo usadas para localizá-lo e organizá-lo a partir de referências, medições, percepção de sequências, eras/períodos e durações com diferentes ritmos e, sobretudo, a compreensão de que o tempo é uma construção social. De forma análoga, o conceito de espaço também é construído socialmente a partir das experiências dos indivíduos e nas diferentes sociedades. O espaço vivido é múltiplo e representado com o resultado da ocupação dos lugares, da relação dos lugares distintos, da mobilidade que se permite atingir. Toda a percepção do espaço, assim como do tempo, é relacional. Desde a relação do corpo com os lugares – medidas de distância – à construção do espaço geográfico considerado a partir da economia, das relações comerciais, da mobilidade espacial e da organização política (o território), das relações internacionais e das relações socioculturais entre os territórios e lugares. Do mesmo modo que as relações temporais se organizaram com base nas sequências temporais, a partir das quais os homens sintetizam experiências não simultâneas na mesma sequência a partir de referenciais comparativos. A construção do conceito de espaço também exige a síntese de vivências espaciais que não podem ser simultâneas, mas podem ser assim apreendidas e representadas nos mapas. Mapas bem antigos permitem mostrar que já em tempos remotos, a humanidade foi capaz de representar a síntese de diferentes posições (ao lado, atrás, em frente), indicativas das relações 77 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA de lateralidade apreendidas simultaneamente. Além delas, os mapas contemplam a noção de direção (orientação) e proporção (escala). O estudo das sociedades humanas permite que identifiquemos nos hábitos e costumes do cotidiano a presença do conceito de espaço como conceito mental organizador das experiências vividas. Nesse sentido, ele é um importante elemento para análise da História de um povo, de uma região ou até de uma pessoa. Um exemplo bastante ilustrativo, por ser radical no tratamento do espaço, é a obra do historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou: cátaros e católicos em uma aldeia francesa 1294-1324. Trata-se do estudo de uma aldeia de camponeses cátaros do século XIII, que aponta diferentes formas de percepção do espaço inter-relacionadas com as formas de ação humana. Os habitantes da aldeia tomavam como escala para considerar o espaço, o corpo dos habitantes da aldeia e as propriedades. As medidas de superfície e distância se traduziam nas partes do corpo, que se tornava o espaço imediato vivenciado por esses aldeões. O espaço geográfico, ou seja, o território, a região, os limites de circulação nos espaços, os caminhos para as diferentes regiões, era reconhecido a partir da ideia da “terra”, entendida como um espaço maior do que a casa e como propriedade de alguém. Assim, “terra do conde de Foix”, por exemplo. Esses camponeses também tinham uma percepção do espaço a partir dos deslocamentos ocasionados por algumas práticas sociais, por exemplo, os contatos comerciais, o trabalho sazonal da colheita, os casamentos. Todas as situações que colocavam em contato pessoas de lugares e regiões diferentes já concebiam, a seu modo, o espaço como relação entre lugares a partir de caminhos e a constituição de regiões se faz por práticas sociais. A ideia de território como espaço político era clara para os camponeses que percebiam que o lugar em que viviam pertencia ao poder e domínio do rei da França, reconhecendo sua presença na moeda produzida pela monarquia sediada em Paris. O espaço também era apreendido como produção de relações culturais identificadas pelo contato de indivíduos de diferentes sotaques. Todas essas noções relativas à apreensão do espaço são importantes para compreender os processos históricos, na medida em que a alteração do espaço corresponde a uma mudança no tempo, parafraseando a citação frequente de Piaget (1975, p. 12): “o espaço é um instantâneo tomado sobre o curso do tempo, e o tempo é um espaço em movimento”. 3.2 Noções de espaço e tempo no ensino da História Apesar de o tempo ser uma construção social e, portanto, fruto do presente, não é tema habitual de reflexão. Não é incomum ouvirmos pais de alunos falarem que a História estuda o passado, que se trata de disciplina fácil e que basta decorá-la. Diante disso, não compreendem as dificuldades de aprendizagem de seus filhos. Outra afirmação do senso comum, muitas vezes emitida por alunos, é a pergunta: por que preciso estudar isso? Já passou, não vou usar para nada. Ao tentarmos interpretar essas opiniões à luz das considerações anteriores sobre o tempo, podemos dizer que decorrem de uma falha na noção de tempo dessas pessoas que gera uma afirmação falsa que 78 Unidade I não resiste a uma reflexão um pouco mais rigorosa. Para mostrar sua inconsistência, podemos começar concordando com a afirmação para, em seguida, procurarmos dessas pessoas como então se apreende esse objeto, chegaremos a um paradoxo. É possível estudar História, pois os fatos passados não podem ser nem observados, nem descritos, nem registrados. Então, se aceitamos rigorosamente a afirmação de que o objeto da História é o passado, então a História nem existiria como disciplina escolar. Mas ela existe! E interessa a muita gente como se comprova pelas revistas de divulgação da História, pelos filmes históricos, além da sua permanência e consideração como disciplina escolar. O que se estuda então? Estudam-se os documentos, os vestígios do passado, que, no entanto, não são passado, pois aqueles que constituem a matéria-prima da produção do historiador, assim como seu interesse e suas condições para estudar o passado, localizam-se no presente. Portanto, precisamos complementar a afirmação do senso comum – a história é o estudo do passado – para que ela faça sentido: a História é fruto da compreensão do presente em relação ao passado acessível, porque é conservado a cada época e por cada historiador. Temos então que acrescentar à ideia de passado histórico à noção de investigação. O passado que é objeto de estudo da História é fruto de pesquisa para torná-lo compreensível para o presente. Portanto se realiza, na investigação, a reversibilidade do passado no presente. Vamos ler o que nos diz Michael Oakeshott: A única entrada de um historiador no passado é por meio desses remanescentes de um “passado conservado”. E a primeira preocupação de uma investigação histórica consiste em reuni-los desde onde se encontram dispersos no presente, recuperar o que poderá ter sido perdido, impor algum tipo de ordem a essa confusão, reparar os danos que possam ter sofrido, reduzir sua fragmentação, discernir suas relações, reconhecer um remanescente em termos de proveniência (apud GIDDENS, 2003, p. 62). O passado histórico é fruto de uma investigação que exige um método de interpretar os vestígios e para tal deve considerar as culturas que coexistem com o momento da interpretação e com a produção dos vestígios. Precisa averiguar as estruturas sociais no espaço e no tempo. A interpretação histórica leva a contextualizações, entre elas, a contextualizar no tempo, ou seja, identificar temporalidades. Para isso, se utiliza de categorias temporais de acontecimento, ciclo, conjuntura, estrutura. Considera tanto o tempo mensurável, a partir de instrumentos de medida de tempo, as cronologias e as periodizações (definição de eras), como a possibilidade de qualificar partes de sequências cronológicas definidas de forma qualitativa, identificandodurações, sucessões (diacronia) e simultaneidades (sincronia), além de mudanças e permanências. As formas como as diferentes sociedades nomeiam o passado também são fruto de interpretações coletivas que conferem significado às lembranças comuns. Por exemplo, Circe Bittencourt, no seu Manual sobre o Ensino de História, ao explicar que eras e períodos são convenções culturais, exemplifica com o caso dos Terenas. Esse grupo indígena situa sua história no tempo da servidão, que corresponde ao 79 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA período iniciado na Guerra do Paraguai até a segunda metade do século XX, quando se deu a demarcação das terras indígenas (BITTENCOURT, 2011a). As sequências estabelecidas pelos historiadores ocidentais na época moderna seguiram a periodização cristã, identificando o tempo em “antes de Cristo” e “depois de Cristo”. Agruparam os anos em séculos. Criaram períodos: Pré-história, Antiguidade, Idade Média, períodos Moderno e Contemporâneo. Determinaram épocas: Época Vitoriana, Século das Luzes, A Bela Época. Como já vimos, todas as medidas de tempo são construções sociais e uma forma de conhecimento do mundo, portanto são passíveis de alteração conforme as experiências sociais também se transformam. Assim, as periodizações da História passaram a ser criticadas a partir dos anos 1930 do século XX, indicando que essa periodização da chamada “História Universal” ignorava realidades de outras culturas e povos, especialmente aqueles dominados pelos europeus. É a chamada periodização quadripartida, que considera a Idade Antiga, a Idade Média, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea, as quatro grandes divisões da História e uma forma de narrá-la com base em sequências lineares de acontecimentos. Saiba mais Leia a obra nas páginas indicadas: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. A construção de noções de tempo. In: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2006. p. 75-88. As autoras apresentam a crítica que Chesnaux faz à periodização europeia, mostrando a existência de outras formas de dividir a História, que está nas páginas 81 e 87. A partir do século XX, com a crítica à cronologia e à ideia de História Universal, surgiram preocupações importantes com o tempo de duração e com a problemática das continuidades e das mudanças. Estas eram preocupações das ciências sociais da época. O sociólogo alemão Weber, entre outros, considerou que as transformações estruturais são mais lentas e não acompanham as mudanças conjunturais. Por exemplo, a introdução do trabalho feminino nas fábricas não alterou de imediato valores da sociedade patriarcal. Com essa preocupação, os historiadores, especialmente na França, contribuíram com uma reflexão acerca da duração. Destaca-se nesse cenário a contribuição de Fernand Braudel (1983) que pensou a duração como fundamento do conhecimento da História. Para ele, os fatos históricos têm três ordens de duração que não se diferenciam quantitativamente por medidas de tempo, como ano ou século, mas por longa duração, média duração e curta duração. 80 Unidade I A longa duração é a estrutura que corresponde à relação temporal mais estável e de maior existência relativa à questão investigada pelo historiador. Seus marcos cronológicos, ou seja, seu início e seu final escapam à percepção de seus contemporâneos. Por exemplo, se queremos estudar o trabalho na colônia, as estruturas escravistas na Idade Moderna são o elemento de longa duração, muitas das quais persistiram ainda depois do decreto de abolição. A longa duração é o elemento unificador da história humana no espaço e no tempo. E, ao ser o fundamento do conhecimento produzido pelos historiadores, permite relacionar aspectos sociais, culturais, ambientais e materiais. A partir da longa duração, Braudel (1983) concebeu a diferenciação do tempo sócio-histórico, concebendo duas outras estruturas auxiliares na organização da pluralidade dos tempos sociais: as durações média e curta, todas elas relacionadas reciprocamente de tal modo que ao situar um fato histórico no tempo, podemos identificar três durações que se superpõem. A média duração corresponde à noção de conjuntura ou tempo cíclico, uma estrutura de tempo de duração intermediária. Por exemplo, no caso do estudo do trabalho no período colonial, podemos circunscrever o tema ao ciclo do açúcar, ou ao ciclo na mineração, ou à conjuntura própria do sertão. Enfim, a particularidades conjunturais que coexistem e são perpassadas pela estrutura de longa duração. A curta duração corresponde à noção de acontecimento e significa um momento preciso que pode ser representado por uma data: nascimento, morte, assinatura de um tratado. Por exemplo, no caso do estudo do trabalho no período colonial, podemos considerar a Revolta dos Malês, a análise de casos de compra de carta de alforria, a formação de um dado quilombo. Lembrete Segundo Braudel (1983), a compreensão da História permite situar eventos no tempo e no espaço por meio da integração de agentes, espaços e estruturas, permitindo a articulação da pluralidade dos tempos sociais. O espaço, nessa perspectiva, que considera a intervenção humana local e a permanência no tempo de diferentes durações, ganha um papel muito importante na produção do conhecimento sobre o tempo histórico, sobre as ações no tempo. São os vestígios da ação humana no espaço vivido que permitem a apreensão da simultaneidade de durações que constituem o passado, segundo Isnard (1982, p. 81) “a história projeta-se no espaço, reflete atuações sucessivas: o espaço apresenta, portanto, a sua historicidade e torna-se uma dimensão da história”. A Geografia e a História são, nesse caso, disciplinas complementares. A História se vale do estudo do espaço para compreender as diferentes durações do passado, mudanças e permanências. A Geografia vai estudar como esses diferentes elementos se combinam na construção da realidade 81 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA atual. Por outro lado, o estudo da História das práticas sociais oferece elementos para compreender a organização espacial de uma sociedade. É o caso do trabalho de Thompson sobre a formação da trabalhadora inglesa, que permite pensar o espaço inglês nos séculos XVIII e XIX. Do estudo da história das fronteiras e a partir dos registros das diferentes formas de ocupação do território, podemos conhecer melhor a organização social dos diferentes povos, as relações de convivência entre eles, de miscigenação e de dominação. Citamos apenas alguns dos conteúdos considerados clássicos na História que dependem, para entender o processo histórico, da compreensão da ocupação espacial. Além da Revolução Industrial com os cercamentos e o êxodo rural, além do controle do tempo e das transformações da vida social por influência da fábrica, podemos citar outros temas. O estudo do escravismo, tanto na Antiguidade quanto no período moderno, exige, para sua compreensão, o conhecimento da relação entre os territórios que recebem escravos e os que os fornecem, por um lado; de outro lado, exige que se conheça o papel do trabalho escravo na produção das relações sociais que passam a modificar a ocupação do espaço. Podemos pensar também na História das populações indígenas brasileiras ao longo da colônia e, atualmente, do ponto de vista da demarcação de suas terras e das considerações de suas fronteiras. 3.3 Tempo e espaço: entre a História ensinada e a História aprendida Esses dois conceitos apresentados são muito importantes na epistemologia das ciências sociais e, entre elas, a História. Eles estão no cerne das possibilidades de identificação de temporalidades e espacialidades que resultam na definição dos períodos, eras, e da caracterização das transformações das relações sociais, de forma significativa. Podemos verificar os conceitos mais frequentes, canonizados e, em relação ao estudo de História, variações da localização no espaço e no tempo: Renascimento, Revolução Industrial, Revolução Agrícola, capitalismo,sociedade mineradora. Ainda que para serem efetivamente operatórios, eles precisam estar vinculados a um tempo-espaço, pois não fazem sentido em uma sucessão temporal estabelecida de forma a abstrair o espaço construído pelas relações sociais e de poder e seu vínculo com a interpretação dos fatos e com a compreensão do que tenham sido as vivências do passado. Relacionar a História ensinada à História aprendida é considerar não apenas o significado que os alunos dão aos conteúdos ensinados, mas escolhê-los de modo que estes sejam culturalmente significativos, isto é, que permitam compreender o passado à luz de valores diferentes dos atuais e que essa possibilidade de compreensão signifique também contribuir para a construção da identidade dos alunos. Portanto não há apenas interesse na divulgação de conhecimentos eruditos, curiosos, que motive os alunos. Atualmente, em tempos de globalização, o desafio vai além da motivação da curiosidade e do interesse por uma cultura geral. O desafio proposto para o ensino é propiciar o desenvolvimento de identidades comprometidas com a democracia e que garantam o convívio e o respeito por diferentes culturas e subculturas. Nesse sentido, a compreensão do outro tempo e sua relação com o tempo da aprendizagem dos alunos e com a possibilidade de eles virem a construir conceitos relativos às disciplinas ensinadas passaram a ser norteadores das concepções de ensino de História e um desafio para a transformação da cultura escolar ancorada nos modelos de transmissão de conhecimentos com a finalidade de ilustração. 82 Unidade I Por isso, se hoje podemos estabelecer relações entre os temas históricos e a construção das noções de tempo e espaço, é porque há, efetivamente, uma demanda social. Vamos começar a aprofundar a discussão a partir da observação de uma contradição entre o consenso, entre os estudiosos do tempo e do espaço e algumas práticas escolares. Entre os estudiosos, não há dúvidas de que tempo e espaço são conceitos indissociáveis. Em seu livro Sobre o tempo, Norbert Elias (1998) afirma, como Piaget, que tempo e espaço são conceitos inseparáveis. Na escola, poucos professores de História lidam com conceitos de paisagem, local, território e espaço, distinguindo-os e utilizando-os para compreender os processos históricos. Também não é frequente a exploração dos mapas, como textos de leitura. Com relação ao tempo, ainda é comum que os materiais didáticos se pautem nas sequências cronológicas desvinculadas de seu significado para o presente. Pode haver muitas razões para isso, entre elas, a falta de recursos didáticos. Aqui vamos nos deter a um outro aspecto que diz respeito ao debate no final dos anos 1950, com a proposta de Estudos Sociais de Delgado de Carvalho e a efetiva eliminação da disciplina História do primário e antigo ginásio, até seu efetivo retorno com a publicação dos PCN. Como argumento para essa decisão, foi utilizada uma ideia atribuída a Jean Piaget, interpretado a partir de leituras que acabaram falseando seu pensamento. Alegava-se à época, com base nesse autor, que as crianças não têm capacidade para realizar operações mentais de reversibilidade, ou seja, aquela exigida para a construção de conceitos de tempo e espaço. Retomemos as ideias de Jean Piaget para mostrar a efetiva possibilidade de trabalhar com essas noções, até mesmo nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Esse biólogo e pesquisador do conhecimento, por isso conhecido como epistemólogo, foi muito importante nos estudos da pedagogia, especialmente nas suas considerações sobre os estágios do desenvolvimento cognitivo. Lembrete Piaget descreve a construção da concepção de tempo observando que há uma percepção intuitiva do tempo, que se limita às relações de sucessão (antes e depois) e de duração fornecida pela percepção imediata (durante). Essa é a percepção da criança. O conceito de tempo como trabalhamos ao estudar História é aquele denominado por Piaget por “tempo operatório”, por ser construído por meio de operações lógicas. São essas operações que permitem medir o tempo em unidades numéricas sem sequência ordinal ou cardinal e também construir relações de simultaneidade, sucessão e duração. 83 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Entretanto, além das conclusões de suas pesquisas, Piaget também estudou os processos de aprendizagem e escreve que sua possibilidade está relacionada a adquirir estruturas cognitivas em estágios determinados pela maturidade biológica e por meio de estímulos do ambiente. Um desses estágios é o hipotético-dedutivo, que permite as abstrações. A passagem de um estágio para outro decorre de processos de assimilação e acomodação presentes no desenvolvimento das estruturas mentais e no crescimento da capacidade cognitiva. Assim, ao se deparar com um objeto de conhecimento, o indivíduo acomoda-o a esquemas mentais que permitem sua assimilação. Ao se deparar com desafios exteriores, porém, ocorrem desequilíbrios da estrutura interna, conflitos. Contudo, pela reequilibração, ocorre o desenvolvimento intelectual, graças à maturação física e à interferência de fatores sociais, como a interação com os adultos. No entanto a leitura apressada sobre os estágios de desenvolvimento cognitivo que apresentavam idealmente o desenvolvimento de abstrações e da reversibilidade, próprias do desenvolvimento das noções de tempo e espaço, no estágio hipotético-dedutivo que se desenvolveria a partir dos 15 anos, desconsideraram os aspectos de sua teoria que tratavam da importância do estímulo do adulto para tal desenvolvimento, no caso, o professor. Seus leitores à época apenas consideraram o aspecto da maturidade biológica. A esse respeito, é importante ler o que diz o próprio Piaget em entrevista a Richard Evans (apud CASTORINA et al., 1988, p. 88): O fato de ter algumas pessoas que não assimilaram bem as minhas ideias e passaram a aplicá-las demasiado rapidamente é um grande perigo. [...]. Gostaria que o ensino, sobretudo no caso das crianças menores, permitisse mais que elas fossem professoras de seu próprio comportamento e das suas experiências [...]. Porém, é importante que os professores proponham às crianças, materiais, situações e ocasiões que lhes permitam progredir. Não se trata de deixar as crianças fazerem tudo o que quiserem. Trata-se de colocá-las diante de situações que coloquem novos problemas e de encadear as situações umas às outras. É preciso saber dirigi-las, deixando-as livres ao mesmo tempo. Verificamos que houve uma aplicação imediata de parte da teoria piagetiana e uma dificuldade na compreensão da teoria da equilibração, que explica o mecanismo que permite o sujeito passar de um esquema mental para outro, reestruturando-se a partir da ultrapassagem do que seja um desequilíbrio cognitivo. No processo de aprendizagem, os erros observados, os conflitos e sua resolução são indicadores do processo de equilíbrio. Para que o ensino favoreça os processos de aprendizagem, ele não deve ter como objetivo conteúdos que se situem apenas na área das estruturas já conhecidas pelos alunos. O papel do professor é graduar os desafios. Segundo Cesar Coll e Eduardo Martí (1979), a ideia essencial é que se o conteúdo que o aluno deve aprender está excessivamente afastado de suas possibilidades de compreensão, não será produzindo desequilíbrio que qualquer possibilidade de mudança ficará bloqueada. Porém, se o conteúdo que o aluno deve aprender está totalmente ajustado a suas possibilidades de compreensão, tampouco acontecerá desequilíbrio algum, e a aprendizagem 84 Unidade I real será, novamente, nula ou muito limitada. Em ambos os casos, a aprendizagem será nula ou puramente repetitiva. Entre esses extremos, existe uma zona na qual os conteúdos, ou as atividades de aprendizagem, são suscetíveis de provocar uma defasagem ótima, ou seja, um desequilíbrio manejável pelas possibilidades de compreensão do aluno. Nessa zona, é que deve estar situada a ação pedagógica. A partirdessas considerações, do estudo de Piaget e das pesquisas realizadas nos anos 1980 e nos seguintes, observou-se que a construção operatória do conceito de tempo e espaço exige o desenvolvimento do esquema mental da reversibilidade, que seria, grosso modo, a possibilidade de combinar toda operação com seu inverso, de modo que ambos se anulem mutualmente, como, por exemplo, passado e presente. Estou estudando, no presente, o fato passado. Então toda a construção de sequências temporais exige a operação de reversibilidade. Da mesma maneira, o próximo e o distante. Apenas o pensamento é capaz de transformar o irreversível em reversível: o passar do tempo e o deslocamento no espaço, superando as limitações físicas dessa operação. Essa atitude demanda da parte dos professores uma atitude diversa da consagrada pela cultura escolar e exige a superação da expectativa de avaliar a produção dos alunos do ponto de vista da reprodução do que foi ensinado. Muito mais importante é promover a cooperação entre os alunos, assim como a cooperação do professor para com a criança. Nesse sentido, o professor é um mediador entre o aluno e o conteúdo da aprendizagem. Seu trabalho está voltado tanto para selecionar conteúdos como para criar condições para a aprendizagem e, assim, a avaliação tem um papel fundamental: formar e orientar as ações da docência. Essas considerações não implicam em desvalorizar os conteúdos disciplinares, nem em aceitar qualquer resposta dada mecanicamente pelos alunos. Os conteúdos e saberes culturais são orientadores do currículo que tem como base valorizar a construção social do conhecimento e aceitar que cada estudante também realize individualmente o mesmo processo, ou seja, o conhecimento não é inato. Dessa forma, o professor tem o papel de mediar para intervir nessa construção e tornar a aprendizagem significativa. Sobre isso, é importante o professor refletir sobre as seguintes considerações de Ausubel acerca das condições propícias no ensino para que os alunos deem significado ao que estão aprendendo: • Uma das condições é que o conteúdo tenha sentido próprio, ou seja, se apresente de forma contextualizada. Em história, isso significa apresentar o fato e a rede de relações espaciais e temporais que lhe são pertinentes, ou seja, as diferentes durações que se apresentam de forma simultânea. Na história, isso deixa de ocorrer sempre que apresentamos fatos isolados. Por exemplo: uma lista de presidentes da República e seus feitos, sem relação com os conflitos sociais, a composição política da época, as condições econômicas. Ou quando apresentamos fatos organizados cronologicamente acreditando que sua proximidade no tempo tenha valor de explicação causal. Exemplo, as dinastias do Egito para explicar o Egito Antigo; ou os governadores gerais para explicar o início da colonização do Brasil. 85 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA • É preciso que o aluno esteja predisposto à aprendizagem significativa, ou seja, tenha interesse. O próprio ensino deve provocar esse interesse propondo, em primeiro lugar, desafios cognitivos, e deixando evidente que o conteúdo apresentado como tema de estudo para os alunos, também é um tema de investigação do interesse da sociedade, e que exige reunir diferentes fontes de informação disponíveis para se chegar a conhecer, além de métodos. Não se pretende com isso que os alunos reinventem todo o conhecimento acumulado, mas que valorize sua produção e não a tome como uma verdade dada, concebida como norma. Para isso podemos introduzir uma pergunta que desafie a leitura de diferentes fontes que estimulem a relação entre textos, mapas e imagens. • O novo conteúdo a ser apreendido deve ser apresentado de modo a levar em conta a estrutura cognitiva que o indivíduo já tem, o conhecimento prévio ou conceitos subsunçores. A partir do qual haverá possibilidade de incorporação e assimilação. • O professor deve organizar o ensino do conteúdo de forma a contemplar os itens a, b e c. Para isso selecionar perguntas, introduzir atividades e explorar os materiais disponíveis de forma a promover as conexões entre o que os alunos já sabem e o novo conteúdo, de modo que ao final do processo eles também o incorporem, não pela repetição das explicações, mas pela incorporação dos conceitos e noções (apud MORAES, 2005, p. 99-100). Os conteúdos ou itens dos programas de História devem ser explorados de modo que os alunos possam representar o tempo e o espaço, mas também exercer ações mentais sobre essas informações, ou seja, pensar sobre as noções e conceitos de tempo e espaço, relacionando o senso comum (a primeira percepção, ou a vivência) aos conhecimentos historiográficos. Para isso, são fundamentais atividades que tenham como objetivo a representação simbólica (desenhos) das relações espaciais e temporais e a reversibilidade. Com essa finalidade, o professor deve explorar as várias formas de apreender o tempo social correspondente às diferentes durações, o que inclui as permanências e mudanças, e também as diversas formas de apreender o lugar (local, espaço, território, trajetórias) onde ocorre a ação humana estudada. As representações desses espaços e das suas correlações estão na origem da cartografia. A cartografia, nesse sentido, é uma linguagem a ser ensinada que ao articular fatos, conceitos e sistemas, permite ler e escrever as características do território. A linguagem própria para a expressão da temporalidade é a narrativa que põe em perspectiva as diferentes durações, considera o tempo cronológico, mas não reduz o tempo histórico a uma sequência linear, o que seria um empobrecimento da contextualização temporal, pois desconsideraria as 86 Unidade I permanências e mudanças. Considera também a periodização entendida sempre como uma construção arbitrária com a função de tornar compreensiva a contextualização temporal de um dado fato. A periodização deve sempre ser acompanhada de uma argumentação que comprove sua eficácia na compreensão dos processos históricos estudados, não pode se reduzir a um rótulo. Dessa forma, é fundamental a articulação entre as diferentes durações e o espaço da ação humana. O estudo da História só é possível mediante a construção das relações espaço-temporais, que tornam apreensível a ação humana nas suas temporalidades apresentadas pelos professores e também pelos alunos sob a forma de narrativa, em que um parágrafo sucede outro, ou numa cena de filme ou de teatro, em que uma ação sucede outra. A narrativa da História escolar precisa ter uma estrutura discursiva linear, na qual, porém, diferentes durações possam ser consideradas. A proximidade entre as práticas de narração linear nas sociedades com escrita e a construção da narrativa histórica é muito grande, por isso, ao ensinar História, é preciso distinguir os elementos do saber do senso comum e o do saber construído pelo aluno e mediado pelo ensino. Tratar do ensino da História considerando as condições de construção do conhecimento por parte dos alunos auxilia a compreender as várias situações de sala de aula e até a valorizar o que muitas vezes se apresenta, de modo a parecer quase uma contestação ou indisciplina. 4 A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA HISTÓRICA: ENTRE O SABER DO SENSO COMUM E O SABER CONSTRUÍDO PELO ALUNO MEDIADO PELO ENSINO DA HISTÓRIA O ensino de História está vinculado à construção de conceitos para além dos conceitos de tempo e espaço. Almeja-se que os alunos construam um modo de pensar próprio da disciplina. Lembrete Tomando como ponto de partida as representações que os alunos fazem do mundo social – suas ideias de senso comum – o ensino da História tem por objetivo a construção de conceitos históricos, ultrapassando o senso comum. A articulação entre os conhecimentos prévios dos alunos, entre os quais incluímos os conhecimentos do senso comum, as representações sociais sobre os conteúdos ensinados e a sua superação por meio do ensino de História, que propõe elaborar conceitosque ocorrem por diferentes narrativas. Elas são centrais na produção do saber histórico em seus diversos níveis: o historiográfico, o da transposição didática próprio da elaboração de conteúdos a serem ensinados na expressão da apreensão dos alunos. A seguir, o tema será apresentado sob três aspectos: a narrativa histórica na historiografia, a narrativa no senso comum e explicação dos acontecimentos. Do senso comum ao saber construído pelo aluno a partir do ensino da História. 87 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA 4.1 A narrativa histórica na historiografia Na primeira metade do século XX, considerou-se menor o uso da expressão “narrativa histórica” para se referir à apresentação do trabalho de investigação dos historiadores. Os historiadores da escola dos Annales consideravam que as narrativas, então utilizadas desde o século XIX, não relacionavam os acontecimentos com a estrutura econômica e social, nem consideravam o cotidiano e as experiências das pessoas comuns. Surgiram assim os historiadores que privilegiaram as estruturas (BURKE, 1992, p. 330) e os outros que apenas contavam histórias. No entanto, com a nova História, a partir dos anos 1970, novos objetos, novas abordagens da investigação em História voltaram a valorizar a narrativa histórica de outro modo. Relembrar, ainda que de forma sintética, essa transformação é importante, pois ela ajuda o professor a se situar diante da produção da História escolar, a compreender as ênfases das discussões curriculares do trabalho com documentos e também a selecionar materiais didáticos e a elaborar projetos com seus alunos. Vários são os historiadores que voltam ao tema em defesa de um retorno da narrativa histórica, mas a distinguindo da narrativa histórica tradicional. O que seria uma e outra? É comum que as encontremos hoje. A História tradicional é tratada por Peter Burke e Lawrence Stone como uma forma de produção do conhecimento metódico e científico. Ambos consideram de grande simplificação relacionar a narrativa linear histórica apenas ao positivismo e ao louvor da nação, como se seus textos fossem meros “antiquários” ou crônicas, sem qualquer vínculo com a ciência. Ao retomar o perfil da narrativa tradicional traçada por esses autores, encontraremos muitas semelhanças com a visão do senso comum da História. Quando comparamos com o novo sentido da narrativa histórica, reconhecemos as mudanças que também ocorreram na historiografia e que atingem a História escolar, ou a História ensinada, nas propostas que pretendem ser mais modernas e inovadoras. A narrativa tradicional da História diz respeito à política. Um bordão do tempo vitoriano era “História é a política passada: política é a História presente” (BURKE, 1992, p. 10). Porém é preciso lembrar que essa relação da História com a política adveio de sua pretensão a ser científica, tal como formulou Ranke no século XIX, com base no estudo daquelas que eram, à época, novas fontes materiais. Eram arquivos relativos à História política que deveriam ser tratados a partir da crítica textual dos registros desconhecidos localizados em arquivos de Estado e que até então não se tinha conhecimento. A nova História já se interessava por toda e qualquer aspecto da vida humana com base na ideia de que tudo tem um passado que pode ser investigado e relacionado ao restante dos fatos passados (BURKE, 1992, p. 11). Os fatos da cultura são fatos históricos, pois a cultura é uma construção social que se dá no tempo e no espaço. É quase impossível pensar uma historiografia independentemente da narrativa. Porém os historiadores tradicionais pensavam a História como narrativa dos acontecimentos, e os historiadores dos Annales pensam as estruturas. Porém, segundo Stone (2013, p. 10), há um ponto comum que é a própria narrativa, assim definida: “Narrativa significa organização material em uma ordem sequencial 88 Unidade I cronológica, com o conteúdo direcionado a um relato único e coerente, não obstante se sirva de tramas secundárias”. A diferença entre a história-narrativa e a história estrutural (das grandes séries documentais, dos grandes estudos quantitativos) é que a primeira tem uma organização mais descritiva do que analítica e seu foco está no homem e não nas circunstâncias. Já história estrutural privilegia o coletivo e o estatístico e sob influência da metodologia das ciências sociais e do pensamento marxista. Daí seu interesse maior pelas sociedades do que por indivíduos e em afirmar a cientificidade dos novos métodos em relação ao anterior. Eles também passaram a buscar mudanças que seriam determinantes, identificadas no plano econômico e social e na longa duração. A produção historiográfica atual mais recente, após os anos 1970, não se dedica a buscar um elemento determinante. Parte do princípio de que cultura do grupo ou a vontade individual são agentes causais de mudança potencialmente tão importantes quanto as circunstâncias impessoais da produção material e do crescimento demográfico. As ligações entre cultura e sociedade, apesar de serem complexas, são consideradas. A partir desse ponto de vista, a História política foi revalorizada por estudos que mostram que poder político e militar e o uso da força bruta também ditam a estrutura da sociedade, a distribuição da riqueza, o sistema agrário e até a cultura da elite. Já História quantitativa, com as modernas tecnologias, se tornou uma História para programadores, de leitura impossível. Novos temas passaram a ser tratados por historiadores, e a nova História foi identificada por modos distintos. Novos objetos também foram construídos. Surge a micro-história, ou narrativa a partir de um único episódio. Georges Duby dedica um livro a uma única batalha para descrever a sociedade feudal do início do século XIII. Carlo Ginzburg, cujo livro O queijo e os vermes, citado em livros didáticos e paradidáticos, partindo da investigação de um interrogatório da inquisição, analisa a circulação dos temas da alta cultura nas baixas classes sociais. Na obra, Montaillou, a partir de uma vila, Le Roy Ladurie mostra, na elaboração do espaço e do tempo de uma aldeia dos Pireneus, a vida e a morte, o trabalho e o sexo, a religião e os costumes locais no início do século XIV. Os novos historiadores voltaram a contar histórias. Isso quer dizer que toda escrita da História é, a seu modo, uma narrativa, no entanto esse modo afeta conteúdo e método e deixa-se afetar por eles. Então podemos pensar que a narrativa é um modo de escrita histórica, mas que afeta conteúdo e método e, em contrapartida, deixa-se afetar por eles. Vamos retomar aqui as características mais fortes das narrativas da nova História e que afetam diretamente a concepção do ensino de História e dos currículos: Hoje os historiadores não se dedicam a buscar um elemento determinante, mas se constata que a cultura do grupo ou a vontade individual são agentes causais de mudança potencialmente tão importantes quanto as formações impessoais da produção material e do crescimento demográfico. As ligações entre cultura e sociedade são complexas. Do mesmo modo, alguns estudos recentes mostram que poder político e militar e o uso da força bruta também ditam a estrutura da sociedade, a distribuição da riqueza, o sistema agrário e até a cultura da elite. A história quantitativa se tornou uma história para programadores, de leitura impossível. 89 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Novos temas passaram a ser tratados pelos historiadores, chamados de novos, com modos distintos. Novos objetos também foram construídos. Surge a micro-história, ou narrativa, a partir de um único episódio. Os novos historiadores têm contado quais histórias? Observação A nova História dá voz aos vários agentes sociais, não se dedica apenas aos vencedores, preocupa-se também com a vida, com os sentimentos e o comportamento de pobres e obscuros e não com grandes e poderosos. Dá vozes aos vários agentes sociais. Apesar de ser descritiva, valoriza muito a análisee trabalha com novas fontes além das grandes séries, valoriza o episódio, o indivíduo, sempre que isso contribua para esclarecer sobre uma cultura ou uma sociedade do passado. A partir de elementos únicos que não sejam exóticos mas que, pela grande quantidade de vestígios e documentos que podem ser entrecruzados, possam elucidar sobre a cultura do passado. É importante enfatizar que são esses os aspectos da nova História que influenciam as discussões sobre o ensino da disciplina hoje e as propostas curriculares, sobre a importância de organizar o currículo por temas e as críticas à construção linear da História. 4.2 A narrativa: do senso comum à articulação dos acontecimentos e conceitos em sala de aula Tratar da narrativa histórica pode verificar tanto de teoria da história como de historiografia, mas também da História escolar e da compreensão dos alunos a respeito de fatos. Deixemos de lado, por enquanto, as questões da historiografia, as obras de História, os livros didáticos, para exercitar a memória de sala de aula. Retomemos o exemplo de a “Coroa do Imperador”, no qual apenas um aluno conseguiu articular as informações da professora em uma narrativa, ainda que ela tenha feito uma. E nos perguntamos: por que será que é difícil para os alunos essa construção que corresponde à articulação de diferentes conceitos relacionados e situados no tempo e no espaço? Voltemos rapidamente à série Cidade dos Homens, ao episódio a “Coroa do Imperador”, e lembremos que Acerola consegue articular uma narrativa, a partir da qual a professora pode identificar suas dúvidas e prosseguir a explicação. Como um professor pode propiciar que o seu aluno construa narrativas? Será que o exercício de situar no tempo se reduz a datações? Os professores identificam muitas dificuldades dos alunos. Mencionam que estudantes repetem trechos que ouvem ou leem, partes de narrativas, mas não constroem um texto próprio. Outros já conseguem encadear frases e construir nexos entre elas. 90 Unidade I Afinal, quais são as narrativas conhecidas dos alunos para que possamos, partindo do senso comum, levá-los a construir narrativas e, gradativamente, contribuir para a articulação de conceitos históricos que deem sentido e contexto aos acontecimentos. E por que partir do senso comum? O que é senso comum? Senso comum é o conjunto de conhecimentos compartilhados pelos homens em uma determinada sociedade decorrentes de suas interações vivenciadas em situações sociais cotidianas e reproduzidos pelas rotinas. Esses conhecimentos expressam compreensões dos indivíduos acerca de si mesmos e do mundo em geral, tomados como dados não questionáveis. Na tradição sociológica positivista, ou neopositivista, o senso comum é entendido como afirmação desqualificada, destituída de verdade, banal, ilusória, ou seja, uma fonte de equívocos e ignorância. Seu valor é negativo e, portanto, não tem lugar na escola. Contudo, em outras perspectivas sociológicas de influência fenomenológica ou marxista, o senso comum é considerado de maneira positiva. Trata-se de um elemento imprescindível à vida social, pois ele é a condição primeira para o compartilhamento de significados ou representações, sem os quais se torna impossível efetuar qualquer relação social. Assim, é a partir dele que se dá a mediação do professor em relação a conteúdos e conceitos acerca do mundo pelos alunos. Saiba mais Leia a obra a seguir para conhecer o assunto mais detalhadamente: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. A construção dos conceitos históricos. In: Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. Com certeza, o ponto de partida pode ser o trabalho com a História familiar, muitas vezes, transmitida com base na repetição própria da História oral, que exige a memorização. Pode-se, conforme o caso, também considerar as histórias de comunidades tradicionais, como os indígenas, e ainda alguns grupos remanescentes de quilombolas, em que o passado se faz presente pela memória. Portanto há narrativas de histórias que não são narrativas históricas, mas a elas se assemelham. Ambas constroem uma memória socializável. Do mesmo modo, é importante partir da familiaridade dos alunos com a estrutura textual da narrativa, pois verificaremos que se analisarmos detidamente tudo o que contém uma narrativa que conta uma história real ou inventada, observaremos que ela possui todos ou quase todos os elementos que encontramos nas narrativas presentes em notícias, análises de textos da História do presente ou em grandes textos de História. Vamos refletir um pouco sobre os elementos dessa estrutura textual, encontrados na estrutura dos gêneros de textos narrativos, como mitos, contos, lendas, memórias, notícias, entre outros: narrador, personagem, tempo, espaço, ação e conflitos. Vamos começar a refletir um pouco sobre cada um desses elementos dessa estrutura textual. 91 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA O narrador é alguém que conta a História. O narrador pode ser um observador que viu e presenciou o fato, ou apenas um articulador dos elementos da narrativa. No caso da narrativa histórica, ele conta uma História a partir de vestígios encontrados no presente do que já aconteceu, a partir dos quais constrói uma narrativa que tem significado no presente em que se situa sua narração e a sua leitura. Eis a primeira possibilidade de aproximação a ser considerada pelo professor em seu trabalho na elaboração de estratégias dialógicas com seus alunos. Além disso, a narrativa precisa conter personagens e acontecimentos. Os personagens vivem os acontecimentos narrados na História, a não ser que seja um testemunho, o narrador não faz parte da História. Cada um dos personagens tem um papel e age produzindo os acontecimentos que, encadeados, constituem uma trama da qual emergem conflitos reconhecidos em algum fato que se destaca. Esses conflitos são importantes. Nas histórias de ficção ou nas lendas, eles constituem o motivo pelo qual as pessoas comumente se interessam em ouvir histórias. Nas histórias reais, eles constituem a expressão da vida social, das tensões entre os diferentes atores sociais, entre a sociedade e os desafios do ambiente físico, entre um povo e seus vizinhos. Nos conflitos e por causa deles, o papel dos diferentes personagens sofre mudanças e suas ações produzem acontecimentos passíveis de serem reconhecidos como ações importantes na manutenção de uma dada ordem ou na expressão dos seus conflitos. Os conflitos apresentados geram transformações nos personagens e um encadear de ações apreendidos por meio da sua organização temporal. Além de narrador, personagens, acontecimentos, a narrativa deve conter outro elemento para ser compreensível: o tempo. Este pode se apresentar de forma mais simples, como datas, eventos. Mas podemos ter diferentes durações, coexistindo. Sem a organização temporal, o sentido das ações, o encadeamento dos acontecimentos e conflitos e as transformações tornam-se sem sentido. Além do tempo, a ação dos personagens se manifesta no espaço. Conforme haja ação no tempo, há transformação do espaço. As histórias reais são contextualizadas em sociedades reais que ocupam espaços reais, lugares, territórios, e constroem espaços de convivência, quer ela seja harmoniosa ou conflituosa. Por isso, inúmeras menções aos espaços são também necessárias. Os personagens das narrações não precisam ser pessoas, mas podem ser elementos de um mundo que se quer contar. Podem ser histórias fantásticas, lendárias, míticas ou reais. As histórias reais podem se reduzir a histórias de pessoas, as biografias; mas podem ser histórias de sociedades. Nesse caso, as personagens nem sempre são pessoas no sentido próprio. Podem ser grupos diferenciados dentro de uma mesma sociedade, muitas vezes, indicando diferenciação social produzida por distinção de hierarquia de poder político ou econômico, ou de gênero, por exemplo, os servos, os nobres, os proprietários rurais, os caçadores, as mulheres, os senadores. A apresentaçãodesses personagens requer uma descrição da sua posição social e do funcionamento da sociedade para que a narração e o papel dos personagens sejam compreendidos e tenham sentido 92 Unidade I lógico. Portanto ela exige relatos e descrição de ações. Do mesmo modo que as narrativas ficcionais exigem a descrição de personagens. Explicitar as estruturas narrativas já familiares aos alunos é um ponto fundamental para que possamos verificar, estimular, a construção da contextualização histórica, com conceitos de temporalidade e os demais conceitos próprios da História aos alunos. Por quê? Lembrete Relembramos que, do ponto de vista da educação histórica, há conceitos de primeira ordem, relativos aos conceitos clássicos da disciplina; e os conceitos de segunda ordem, que dizem respeito à narrativa, explicação, inferência. Porém partir da narrativa como ela é apreendida pelo senso comum é um começo, pois entre a narrativa que existe em função de preservação da memória, a narrativa ficcional e a narrativa histórica, há uma distância grande. Esta última está relacionada a um método e a uma ciência que se preocupa com a compreensão do tema estudado por meio de investigação na qual a narrativa na História é um modo de articular a construção de um conhecimento cujo eixo central é a articulação de diferentes conceitos contextualizados no tempo e no espaço. Esse modo é comum à História e a todas as Ciências Sociais. 4.3 O ensino de História: superação do senso comum e construção de um saber O objetivo do ensino de História é a construção da narrativa histórica como expressão do conhecimento histórico a serviço de compreender o presente, bem como formar a identidade e a cidadania ativa. Por ser expressão do conhecimento histórico, é preciso superar noções de História que expressam o senso comum. Uma delas é a ideia de a História ser reprodução do passado. Outra é a identificação da narrativa histórica como uma expressão da verdade por vezes construída de forma maniqueísta a partir da luta do bem contra o mal, do honesto contra o desonesto em um processo de desenvolvimento dramático. Tais expressões do senso comum podem ser identificadas nas seguintes situações: • Apreciação de um dado filme, sobre algum tema histórico, com a frase: “É ótimo, mostra exatamente como aconteceu.” • No interesse pelos heróis, pelas grandes vitórias e não pelo contexto histórico em que elas ocorrem, ou que permitem produzir os heróis. Trata-se sem dúvida de uma visão de conhecimento da História como simples reprodução da repetição da narrativa, ou seja, a decoreba, prática escolar hoje considerada ultrapassada e até imprópria às sociedades contemporâneas, entretanto eram desejáveis e consideradas em seu tempo quando estiveram a serviço da identidade nacional a partir da representação de uma sociedade homogênea. 93 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Lembrete Nunca é demais lembrar que houve um investimento grande nessa forma de ensinar pelas práticas escolares reforçadas pelo mercado editorial. O manual de Joaquim Manuel de Macedo foi um exemplo desse intento. O ensino da História hoje está a serviço de identidades e, para tanto, as narrativas históricas precisam superar a narrativa única e propiciar uma consciência histórica. Maria Auxiliadora Schmidt (2009) nos remete ao conceito de consciência histórica situada, a qual é aprendida quando os sujeitos narram a História construindo formas coerentes de suas identidades históricas. Os aprendizes são capazes de subjetivar os dados que lhes são objetivamente apresentados. Esse conceito de consciência histórica revela total compromisso dos processos de ensino, ou seja, da didática com a relação ao saber, de acordo com Charlot (apud SCHMIDT, 2009), uma vez que se busca levar os alunos à subjetivação e comunicação dos conteúdos valorizados e produzidos pela sociedade. Desse modo, por meio de processos de subjetivação, a aprendizagem se revela humanizadora, o aluno torna-se homem; singularizadora, por meio dela, o discente é um exemplar único de homem, com sua própria interpretação; socializadora, por meio dela, o aluno é membro de uma comunidade e nela ocupa um lugar. Portanto, o professor, ao considerar esses pressupostos da didática da História, forma os alunos para participarem da construção de um mundo preexistente a eles na medida em que podem dar sentido ao tempo – orientar-se, no presente, em relação ao passado e ao futuro, de sua vida, consigo e na sociedade. Logo, a didática da História é uma didática para a formação humana (bildung). É uma bildung por ser alicerçada na experiência compartilhada da sociedade com os jovens e na possibilidade de construção da sociedade futura, considerando a experiência deles. De que experiências estamos falando? Fundamentalmente das experiências narrativas sobre a História, que dão sentido às que são próprias do humano, sem as quais, não há produção da consciência historicamente situada. As narrativas históricas não são quaisquer narrativas. Segundo Schmidt (2009), a narrativa histórica deve conter análise da ação, dos agentes e do contexto; argumentos sobre situações específicas do passado; interpretação que implica na ressignificação do presente para construir uma orientação para a ação. Deve, ainda, romper a linearidade, a apresentação exemplar dos fatos e a crítica condenatória. Para a construção na narrativa histórica, segundo Rüsen (apud SCHMIDT, 2009) é preciso: • inquirir o passado, interrogá-lo a partir de uma questão que vem do presente, do aqui agora; • representar uma continuidade, tornando o passado, presente, ou seja, dando-lhe um significado atual, social e pessoal; • realizar um ato de identidade – ser um esforço de afirmação de uma identidade, uma resposta à perda de si, ao anonimato. 94 Unidade I Todas as características anteriores podem ser aplicadas à construção social do conhecimento histórico, quer seja ele historiográfico ou escolar. Entretanto algumas ressalvas devem ser feitas em relação às narrativas escolares construídas para a construção do conhecimento histórico escolar. A narrativa escolar não gera novo conhecimento histórico, mas novas compreensões históricas pessoais. Alunos e professores devem pensar sobre essas narrativas e versões do passado. A narrativa torna-se então a forma de expressão dos processos de conhecimento. Nesse sentido, algumas outras ressalvas são importantes a respeito do tempo da escrita. Apesar de termos múltiplas durações e, portanto, nos depararmos com diversas possibilidades de abordar a contextualização temporal, a escrita tem um tempo linear, é nesse tempo de produção da narrativa que se articulam os diferentes tempos e sujeitos históricos (GLEZER, 1991). A perspectiva da História como conhecimento e como narrativa está presente na proposta do PCN do Ensino Fundamental para terceiro e quarto ciclos, em que se pode ler: “A História era relatada sem transparecer a intervenção do narrador, apresentada como uma verdade indiscutível e estruturada como um processo contínuo e linear que determinava a vida social no presente” (BRASIL, 1998b, p. 20). O texto enfatiza a importância do ponto de vista do historiador – ou seja, seu lugar de articulador da narrativa – de um ponto de vista interessado no passado a partir do presente, o que implica que a produção da narrativa histórica também seja uma produção de identidades. Sobre as características dos conteúdos das narrativas históricas a serem ensinadas, o texto dos Parâmetros Curriculares menciona: Os eventos históricos eram tradicionalmente apresentados por autores de modo isolado, deslocados de contextos mais amplos, como muitas vezes ocorria com a história política, em que se destacavam apenas ações de governantes e heróis. Hoje prevalece a ênfase nas relações de complementariedade, continuidade, descontinuidade, circularidade, contradição e tensão com outros fatos de uma época e de outras épocas. Destacam-se eventos que pertencem à vida política,econômica, social e cultural e também aqueles relacionados à dimensão artística, religiosa, familiar, arquitetônica, científica, tecnológica. Valorizam-se eventos do passado mais próximo e/ou mais distante no tempo. Há a preocupação com as mudanças e/ou com as permanências na vida das sociedades. De modo geral, pode-se dizer que os fatos históricos remetem para as ações realizadas por indivíduos e pelas coletividades, envolvendo eventos políticos, sociais, econômicos e culturais (BRASIL, 1998b, p. 39). Podemos inferir que as narrativas históricas, ao ultrapassarem o senso comum, articulam os diferentes agentes históricos a partir da utilização de conceitos contextualizados no tempo e no espaço. 95 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Schmidt e Cainelli (2004) sugerem que eles sejam explicitados de diferentes formas, em frases, parágrafos, narrativas históricas sobre temas. Quanto aos temas, o professor pode considerar um amplo leque de possibilidades. Temas panorâmicos Abrangem a análise de um período concreto do passado. Por exemplo: a sociedade brasileira no período colonial, a sociedade feudal. No primeiro caso, os conceitos de colonização e sociedade são fundamentais e sua explicitação considera também o conceito de economia, uma vez que tanto a estratificação social quanto as relações coloniais têm base econômica. No segundo caso, são fundamentais os conceitos de feudalismo e sociedade, que também se articulam com o conceito de economia. Os temas panorâmicos articulam diversos conceitos e conteúdos, que devem ser trabalhados, por isso eles devem ser tratados em grandes unidades didáticas. Temas evolutivos Estão relacionados à contextualização temporal, com a finalidade de identificar a evolução de um tema em seus momentos fundamentais. Por exemplo: as relações Brasil-Portugal de 1808 e 1822, as fases da Revolução Francesa. Em ambos os casos, o tratamento desse tema exige a organização de noções temporais como cronologia, duração e sucessão. Tema comparativo Impõe a necessidade de um conceito que será o ponto principal da comparação. Por exemplo: as semelhanças e diferenças entre a colonização do Brasil e dos Estados Unidos, também as distinções e semelhanças entre Atenas e Esparta. No primeiro caso, envolve o conceito de colonização; no segundo, está implícito o conceito de cidade-Estado. Tema biográfico Convida a buscar informações mais precisas e detalhadas sobre as realizações de um dado personagem em um tempo e espaço determinados, enfatizando seu papel social. Por exemplo: Leonardo Da Vinci, um homem de seu tempo; Getúlio Vargas – 1937-1945. 96 Unidade I Tema analítico Estimula a análise de aspectos de determinado período histórico. Exige que se delimite temporalmente o período em função dos formatos considerados mais relevantes. A análise deve respeitar a cronologia, partindo-se do mais distante para o mais recente e do tempo mais longo para o mais curto. Por exemplo: as causas da Independência do Brasil; as causas da Revolução Industrial na Inglaterra. Em ambos os casos, o evento mais recente, como o grito do Ipiranga ou a montagem da primeira fábrica, será explicado por elementos anteriores e de duração temporal maior. No primeiro caso, as crises das relações entre colônia e metrópole, as tensões internas na colônia e a conjuntura política que trouxeram a sede da monarquia portuguesa para o Brasil. No segundo caso, devem-se considerar as transformações no campo, as condições relacionadas ao acúmulo de capital e ao desenvolvimento da burguesia inglesa, às ideias sobre a produção de riqueza relacionadas ao comércio e à produção. A partir disso, se pode compreender o uso das máquinas na produção de manufaturas. Saiba mais Para conhecer o assunto mais detalhadamente, leia o livro seguinte: SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. A construção de conceitos históricos. In: Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. Para concluir, podemos dizer que a partir da noção de narrativa, o professor pode estimular o aluno a ser o narrador e, em diferentes situações, explicitar seu entendimento dos conteúdos. Caberá ao docente identificar os conceitos utilizados pelos discentes, ampliar a discussão com a classe e intervir e estimular o processo de construção dos conceitos históricos por meio de estratégias de ensino que permitam aos alunos, por diferentes narrativas veiculadas em diversos recursos e produzidas em distintas situações: • Reconhecer sua relação com os temas históricos estudados. • Identificar as fontes de informações a partir das quais possam construir narrativas, ainda que incompletas. • Perguntar ao passado e construir estratégias de busca de respostas em materiais de pesquisa. • Reconhecer e nomear agentes históricos envolvidos e seus interesses. • Reconhecer e explicitar relações entre os agentes históricos. • Reconhecer e explicitar construções sociais e hegemônicas. • Reconhecer e explicitar transformações e permanências. 97 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA • Reconhecer e identificar legados, patrimônios e heranças. • Reconhecer que a narrativa histórica construída é parte da construção de identidades (humana, de gênero, de classe, nacional, regional). • Reconhecer os nexos lógicos e os conceitos necessários para dar consistência às narrativas propostas. Do ponto de vista da produção das narrativas históricas, como lembra Raquel Glezer (1991), não é possível trabalhar com uma cronologia amarrada. Isso é impossível. Os registros documentais encontrados permitem uma construção parcial que conviva com lacunas. As relações lógicas entre as informações são dadas pela construção da narrativa a partir do que é possível no momento presente: o que historiador está vivendo, o que a sociedade lhe permite pensar, os seus instrumentos e interesses de pesquisa e seu objeto de conhecimento. No entanto, muitas vezes, os alunos perguntam detalhes justamente para complementar essas falhas, que são excelentes oportunidades para o professor reforçar a explicitação do interesse pessoal na questão levantada e convidar a uma pesquisa compartilhada na busca de informações faltantes. A didática da História se constrói para responder a desafios da sociedade a partir das perspectivas da cultura escolar, com imperativos da transposição didática e com os princípios da educação histórica. Não há então um modelo a ser lido e replicado na sala de aula. Há uma composição a ser feita entre a cultura escolar de uma instituição concreta, os recursos de transposição didática disponíveis e os princípios da educação histórica, ou seja, da construção dos conceitos pelos alunos. Os conteúdos desse material têm o objetivo de provocar lembranças, estimular reflexões, análises de vivências para compor um repertório de conhecimentos a serem mobilizados na prática de ensino. Enfatizarmos a construção de narrativas históricas como o foco do saber a ser elaborado pelos alunos a partir do qual eles podem progressivamente, por meio da mediação e da intervenção do professor, apropriarem-se do conhecimento histórico concebido conforme as considerações dos PCN (BRASIL, 1998b). Tal concepção de História e do ensino da História procura responder aos desafios da sociedade contemporânea: a superação do senso comum pela reflexividade e pela valorização das identidades que se impõem no mundo globalizado. 98 Unidade I Resumo Observamos a necessidade de perceber o processo de formação dos professores e professoras em sua historicidade, ou seja, as trajetórias que construíram a ideia de como ensinar História, suas origens no Brasil e a questão de como ensinar. Procuramos compreender como as necessidades que surgem da prática dos professores e professoras nos indicam a importância de atualizar-se em relação a conteúdos e experiências. O acesso à bibliografia recente, indicações de livros e artigos, é muito importante no processo. O contato com o livro didático coloca questões de como saber utilizar e se aproximar das informações e conceitos.Daí, ressaltarmos em diversos pontos que precisamos ir além de apenas saber a informação histórica – precisamos compreender a educação como instrução de transformação individual e social. Nossa maneira de fazer isso é construir junto aos alunos e alunas uma visão histórica e uma atitude historiadora. Dar historicidade aos processos auxilia em sua compreensão como fenômeno humano e nos ajuda a desnaturalizar ações. Ao procurar compreender a ação dos jesuítas ou a fundação do Colégio Pedro II, nos aproximamos do entendimento da construção de referências para a educação do nosso tempo presente. Há projetos de Estado que se articulam com a educação, tal como a criação do Ministério da Educação, entender isso é essencial para sair da ideia de que as situações simplesmente acontecem à revelia das intenções humanas. Observamos a importância de nos aproximarmos de documentos e também de compreender as noções de transposição didática, cultura escolar e educação histórica para poder entender as compreensões que norteiam as escolhas em sala de aula. Problematizar efemérides, celebrações, festas e eventos de celebração oficiais pode nos auxiliar a melhor construir o senso crítico, o que é importante para alunos e alunas. A questão da diversidade e velocidade das relações na contemporaneidade, a necessidade de reflexão, de debater noções de tempo e espaço superando a naturalização do mundo nos coloca o desafio de conhecer a produção contemporânea da historiografia, das áreas relacionadas à didática e ao ensino e como superar o senso comum para a construção de saberes significativos. 99 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Exercícios Questão 1. Leia os quadrinhos e avalie as afirmativas. Figura 4 Disponível em: https://bit.ly/3Fna15R. Acesso em: 11 ago. 2022. I – A pergunta da professora está de acordo com o tradicional método de ensino adotado no Brasil até o final do século XX, que tinha o objetivo formar a consciência nacional por meio de seus heróis e marcos históricos. II – No contexto de humor dos quadrinhos, a resposta de Calvin revela-se um questionamento acerca do conteúdo ensinado nas escolas. III – A proposta de ensino de História, que tem como foco os líderes nacionais e as datas de acontecimentos, como o adotado pela professora dos quadrinhos, é isenta de intencionalidade política, pois baseia-se em dados objetivos. Assinale a alternativa correta. A) Nenhuma afirmativa é correta. B) Todas as afirmativas são corretas. C) Apenas a afirmativa I é correta. D) Apenas as afirmativas II e III são corretas. E) Apenas as afirmativas I e II são corretas. Resposta correta: alternativa E. 100 Unidade I Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: até a Lei n. 5.692/1971, os conteúdos de História do Brasil tinham como objetivo formar a consciência nacional por meio de seus heróis e marcos históricos. II – Afirmativa correta. Justificativa: Calvin afirma que há outros conhecimentos, não valorizados pela escola. Com humor, aborda-se a questão da valorização de conhecimentos. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: a intencionalidade política existe, ainda que de forma implícita, em todas as propostas de ensino de História. O foco em informações aparentemente objetivas pode visar ao reforço do sentimento de nacionalidade ou ao não estímulo de uma visão crítica. Questão 2. Leia o trecho a seguir, de Walter Benjamin, e os quadrinhos. “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”. BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de História. Disponível em: https://bityli.com/iRsnLOesyw. Acesso em: 22 ago. 2022. Figura 5 Disponível em: https://bit.ly/3ULKdop. Acesso em: 22 ago. 2022. 101 DIDÁTICA ESPECÍFICA - HISTÓRIA Com base na leitura e nos seus conhecimentos, avalie as afirmativas. I – Na concepção de Walter Benjamin, escovar a História a contrapelo significa buscar outras versões além daquela que privilegia os vencedores. II – Os quadrinhos e o trecho mostram visões contrárias sobre o ensino de História, pois Benjamim valoriza a transmissão da versão dos vencedores. III – Segundo o texto, a barbárie só é vencida pela cultura e pela transmissão de documentos, à qual se opõem os materialistas históricos. Assinale a alternativa correta. A) Nenhuma afirmativa é correta. B) Todas as afirmativas são corretas. C) Apenas a afirmativa I é correta. D) Apenas a afirmativa II é correta. E) Apenas as afirmativas I e II são corretas. Resposta correta: alternativa C. Análise das afirmativas I – Afirmativa correta. Justificativa: escovar a história a contrapelo significa ir no sentido contrário, ou seja, contar a história dos vencidos. II – Afirmativa incorreta. Justificativa: o trecho e os quadrinhos opõem-se à versão única dos vencedores. Dessa forma, não apresentam visões contrárias. III – Afirmativa incorreta. Justificativa: o trecho afirma que a barbárie está presente em toda a história. A história, na visão benjaminiana, é o local privilegiado da manifestação da luta de classes.