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Indaial – 2020 Bioética e educação em Saúde Prof.ª Denise da Hora Ferreira 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2020 Elaboração: Prof.ª Denise da Hora Ferreira Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: F383b Ferreira, Denise da Hora Bioética e educação em saúde. / Denise da Hora Ferreira. – Indaial: UNIASSELVI, 2020. 179 p.; il. ISBN 978-65-5663-007-6 ISBN Digital 978-65-5663-008-3 1. Bioética. - Brasil. 2. Ética médica. – Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 174.2 III apreSentação Prezado acadêmico, durante a formação do profissional de saúde, diversos conhecimentos técnicos devem ser trabalhados para que, ao fim do curso, você esteja apto para entrar no mercado de trabalho e preparado para os desafios de sua profissão. No decorrer de seu desenvolvimento, alguns conhecimentos são essenciais e dão suporte para que você possa, de forma criativa, resolver problemas. Neste Livro Didático de Bioética e Educação em Saúde você terá a oportunidade de conhecer áreas que a princípio podem parecer distintas (bioética, bioestatística e educação em saúde), porém, são inter-relacionadas e complementares, além de valiosas para ultrapassar os obstáculos que você encontrará na prática. No decorrer da leitura, você entenderá sobre a construção histórica e social das disciplinas, bem como entenderá conceitos, metodologias e terá exemplos para inspirar suas ações futuras. Além disso, oportunizaremos que você trabalhe sua criatividade e aperfeiçoe a sua habilidade de planejamento por meio de atividades complementares. Com o objetivo de promover a reflexão do profissional de saúde sobre o seu papel na proteção de vulneráveis, respeito às diferenças e fortalecimento do SUS, a Unidade 1 traz algumas bases conceituais da ética e suas correntes filosóficas, apresenta o panorama da bioética em âmbito mundial e nacional, contextualiza os desafios e debates da atualidade, discute sobre conflitos bioéticos em diversos cenários e seus impactos para profissionais e usuários, e, por fim, trata sobre as questões éticas e técnicas da pesquisa envolvendo seres humanos. Na Unidade 2, trataremos sobre a Bioestatística e suas possibilidades na pesquisa científica, prática clínica e gestão. Serão apresentados os elementos da descrição e análise de dados por meio da probabilidade, inferência, medidas de tendência central e o uso da estatística para o entendimento da propagação de doenças. Fechando a unidade, serão discutidas as alternativas para apresentação de dados, por meio de gráficos e sua interpretação apropriada, conhecimento básico ao profissional de saúde, seja na leitura de artigos científicos ou no acompanhamento de indicadores gerenciais. A educação como ferramenta transformadora será discutida na Unidade 3, na qual você terá acesso sobre o conceito de saúde, seus aspectos socioeconômicos e estratégias de promoção através da participação coletiva. Debateremos ainda o legado do patrono da educação brasileira, o filósofo e educador Paulo Freire, que, por anos, aprendeu e ensinou sobre o poder da pedagogia que traz consigo liberdade, autonomia, reflexão e esperança para uma comunidade, fortalecendo os pressupostos da genuína educação IV Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA em saúde e sendo base para as metodologias ativas. Ao fim do estudo desta unidade você estará apto a construir ações de educação que mobilizem e produzam mudanças positivas em sua sociedade, melhorando a qualidade de vida dos usuários dos serviços de saúde. Desejamos que o estudo deste livro possa trazer as ferramentas necessárias para você se tornar um profissional competente e que anseia melhorar a vida das pessoas, sejam elas profissionais ou usuários, contribuindo na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Bons estudos! Profᵃ. Denise da Hora V Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer teu conhecimento, construímos, além do livro que está em tuas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela terás contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar teu crescimento. Acesse o QR Code, que te levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para teu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nessa caminhada! LEMBRETE VIII IX UNIDADE 1 – BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL .........................................................1 TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À BIOÉTICA..........................................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................3 2 BASES CONCEITUAIS DA ÉTICA ...................................................................................................3 3 BREVE HISTÓRICO DA ÉTICA E BIOÉTICA ................................................................................5 4 CORRENTES BIOÉTICAS ....................................................................................................................8 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................12 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................13 TÓPICO 2 – PANORAMA ATUAL DA BIOÉTICA: QUAIS OS DESAFIOS DAS INSTITUIÇÕES E PROFISSIONAIS? ..........................................................................15 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................15 2 PANORAMA MUNDIAL DA BIOÉTICA ......................................................................................153 PANORAMA NACIONAL DA BIOÉTICA ....................................................................................17 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................19 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................20 TÓPICO 3 – CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE ........................................................21 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................21 2 O PROFISSIONAL DE SAÚDE FRENTE A CONFLITOS BIOÉTICOS ...................................21 3 DA FORMAÇÃO EMBRIONÁRIA À ASSISTÊNCIA PALIATIVA: PROBLEMATIZANDO OS CONFLITOS BIOÉTICOS ............................................................................................................24 3.1 DESAFIOS DO ACESSO À ATENÇÃO BÁSICA E ASSISTÊNCIA HOSPITALAR ...............25 3.2 OS NOVOS DESAFIOS BIOÉTICOS ADVINDOS DO PROJETO GENOMA .......................26 3.3 OS DIREITOS INALIENÁVEIS DOS PORTADORES DE TRANSTORNO MENTAL ..........27 3.4 BIOÉTICA E A SAÚDE DA MULHER: DAMOS DE FATO AUTONOMIA? ........................29 3.5 A BIOÉTICA NO CONTEXTO DA TERMINALIDADE ...........................................................30 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................38 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................39 TÓPICO 4 – PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS .....................................................41 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................41 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................51 RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................54 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................55 UNIDADE 2 – BIOESTATÍSTICA ........................................................................................................57 TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À BIOESTATÍSTICA .........................................................................59 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................59 2 BIOESTATÍSTICA E A PRÁTICA CLÍNICA ..................................................................................62 3 ELEMENTOS DA BIOESTATÍSTICAS E NOÇÕES DE PROBABILIDADE ...........................63 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................66 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................67 Sumário X TÓPICO 2 – BIOESTATÍSTICA DESCRITIVA E INFERENCIAL .................................................69 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................69 2 BIOESTATÍSTICA DESCRITIVA .....................................................................................................69 2.1 MÉDIA ARITMÉTICA ...................................................................................................................69 2.2 MEDIANA ........................................................................................................................................70 2.3 MODA ...............................................................................................................................................71 2.4 VARIÂNCIA E COEFICIENTE DE VARIAÇÃO .......................................................................72 2.5 TAXAS E PROPORÇÕES ...............................................................................................................73 2.6 DESVIO PADRÃO ..........................................................................................................................74 3 ESTATÍSTICA INFERENCIAL ..........................................................................................................75 3.1 MEDIDAS DE DISPERSÃO ...........................................................................................................75 3.2 CORRELAÇÃO ...............................................................................................................................76 3.3 INTERVALO DE CONFIANÇA E MARGEM DE ERRO ..........................................................78 3.4 INTERVALO DE CONFIANÇA PARA PROPORÇÕES ...........................................................79 3.5 INCIDÊNCIA E PREVALÊNCIA ..................................................................................................80 3.6 TESTE DE HIPÓTESE .....................................................................................................................82 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................87 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................88 TÓPICO 3 – POPULAÇÕES E AMOSTRAGEM ...............................................................................89 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................89 2 TAMANHO AMOSTRAL ...................................................................................................................90 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................94 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................95 TÓPICO 4 – ANÁLISE E APRESENTAÇÃO DE DADOS ...............................................................97 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................97 2 TABELAS E GRÁFICOS ......................................................................................................................97 2.1 GRÁFICOS .......................................................................................................................................99 2.1.1 Gráfico de Pizza .....................................................................................................................99 2.1.2 Gráfico de Barras...................................................................................................................100 2.1.3 Gráfico de linha .....................................................................................................................101 2.1.4 Diagrama de Pareto ..............................................................................................................101 2.1.5 Histograma ............................................................................................................................102 2.1.6 Diagrama de caixas ...............................................................................................................103 2.1.7 Diagrama de dispersão ........................................................................................................104 3 PRÁTICA BASEADA EM EVIDÊNCIAS ......................................................................................106LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................108 RESUMO DO TÓPICO 4......................................................................................................................112 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................113 UNIDADE 3 – EDUCAÇÃO EM SAÚDE .........................................................................................117 TÓPICO 1 – BASES CONCEITUAIS DA PROMOÇÃO DA SAÚDE ........................................119 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................119 2 POLÍTICA NACIONAL DE PROMOÇÃO DA SAÚDE E A PARTICIPAÇÃO SOCIAL .................................................................................................................................................121 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................124 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................125 XI TÓPICO 2 – EDUCAÇÃO EM SAÚDE E A METODOLOGIA FREIREANA ...........................127 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................127 2 A EDUCAÇÃO TRADICIONAL E SUAS LIMITAÇÕES ..........................................................127 2.1 PERSPECTIVA FREIRIANA NAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS: SIMULTANEIDADE DO ENSINAR E APRENDER ......................................................................................................135 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................138 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................139 TÓPICO 3 – EDUCAÇÃO NA SAÚDE: INTEGRAÇÃO, ENSINO E SERVIÇO NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL ....................................................................................141 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................141 2 DESAFIOS DE ENSINAR E APRENDER AS METODOLOGIAS ATIVAS ..........................143 3 APLICABILIDADE DAS METODOLOGIAS ATIVAS PELO PROFISSIONAL DE SAÚDE ..................................................................................................................................................145 3.1 GAMIFICAÇÃO ............................................................................................................................146 3.2 APRENDIZAGEM BASEADA EM PROJETOS ........................................................................147 3.3 SALA DE AULA INVERTIDA ....................................................................................................148 3.4 APRENDIZAGEM BASEADA EM PROBLEMAS ....................................................................149 3.5 PEER INSTRUCTION ...................................................................................................................150 3.6 SIMULAÇÕES ...............................................................................................................................151 4 EDUCAÇÃO PERMANENTE E ESTÁGIO SUPERVISIONADO: EDUCAÇÃO NO TRABALHO E PARA O TRABALHO ...............................................................................................152 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................156 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................160 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................161 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................163 XII 1 UNIDADE 1 BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir dos estudos desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer as correntes filosóficas nas quais se baseiam a bioética; • entender o panorama atual na bioética no Brasil e no mundo; • refletir sobre as interfaces da bioética no exercício profissional; • reconhecer os órgãos de controle para pesquisas envolvendo seres humanos; • compreender os requisitos essenciais para o desenvolvimento de uma pesquisa com seres humanos no Brasil. Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO À BIOÉTICA TÓPICO 2 – PANORAMA ATUAL DA BIOÉTICA: QUAIS OS DESAFIOS DAS INSTITUIÇÕES E PROFISSIONAIS? TÓPICO 3 – CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE TÓPICO 4 – PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS Preparado para ampliar teus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverás melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO À BIOÉTICA 1 INTRODUÇÃO A integralidade e universalidade enquanto princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) garantem que qualquer cidadão, independente de sua raça, credo, situação econômica ou social, possa ser atendido desde a atenção básica até a alta complexidade. Apesar de ter reconhecimento em âmbito mundial por se configurar como instrumento de justiça social, o SUS ainda luta pela sobrevivência, e seus trabalhadores lidam todos os dias com desafios a serem vencidos, pois, se de um lado temos a saúde como direito de todos e dever do estado, do outro cabe aos seus gestores administrar recursos, por vezes insuficientes, para atender às demandas da população. Este é apenas um exemplo dos dilemas encontrados por profissionais da saúde durante sua atuação na saúde pública. Objetivando preparar você para essas situações, este tópico busca refletir os princípios da bioética e seus impactos individuais e coletivos. O Tópico 1 faz um levantamento histórico e conceitual sobre a ética e seus pensadores clássicos, além de discutir as correntes filosóficas propostas e suas contradições. 2 BASES CONCEITUAIS DA ÉTICA Com o objetivo de formar profissionais reflexivos, críticos e munidos de competências e habilidades para o cuidado individualizado e humanista, no ano de 2001 houve uma atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação na área da Saúde. Neste contexto, a Bioética, enquanto disciplina acadêmica, se tornou indispensável para a formação de um profissional que atenda às demandas sociais (FIGUEIREDO; GARRAFA; PORTILLO, 2008; BRASIL, 2001). A bioética entra nas discussões a respeito da forma mais apropriada de manter e criar relações sociais saudáveis para a comunidade e indivíduo. Enquanto as ciências naturais se encarregam de descrever de forma lógica como o nosso mundo se comporta, variando basicamente em verdadeiro ou falso, a bioética ocupa-se em discutir os significados subjetivos dos sujeitos que trabalham com a vida, além de refletir sobre suas ações através do prisma de valores estabelecidos pela comunidade ou pelo que se acredita ser um conjunto básico de virtudes, ou seja, de forma muito simplista podemos definir a bioética como uma ética aplicada UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 4 a ciências da saúde, porém, só se torna possível o aprofundamento neste conceito quando se percebe esta disciplina de forma holística, além de compreender sua construção por meio do levantamento histórico e teórico (PRUDENTE, 2018). Para o devido estudo do tema a ser discutidonesta unidade, é primordial o conhecimento acerca de alguns termos. Rego, Palácios e Siqueira-Batista (2009) conceituam esses fenômenos de forma clara e objetiva: • Ética: conforme o senso comum, pode ser entendida como um conjunto de regras as quais norteiam os indivíduos na prevenção ou resolução de problemas entre os membros de uma sociedade. Sob a ótica do conhecimento técnico, é considerada um braço da filosofia que se ocupa em refletir sobre as regras morais estabelecidas de forma a justificar comportamentos. • Moral: objeto de estudo da ética por se tratar de uma coleção de deveres e virtudes de um grupo. • Religião: culto a uma divindade na qual é possível a reflexão sobre conceitos divinos que estão além do mundo material. • Direito: normas estabelecidas para a regulamentação da convivência entre um grupo de indivíduos. • Ciência: conjunto de conhecimentos que, por meio de reflexão racional e crítica, se autovalidam. Antes de prosseguirmos, é importante esclarecer que os termos ética e moral por vezes se confundem no imaginário das pessoas, porém, apresentam significados diferentes no contexto filosófico. Enquanto a ética está inserida no debate sobre a constituição do caráter, a moral determina as regras cotidianas utilizadas por cada indivíduo, orientando a vida em sociedade, ou seja, os seus deveres frente aos demais (DIAS, 2017). Apesar do campo da bioética sempre levar em consideração as questões racionais e filosóficas, a religião eventualmente atribui a fatores divinos as decisões a serem tomadas, inclusive no contexto da saúde-doença e vida-morte, o que pode levar em alguns momentos a um conflito de ideias sobre o que seria moralmente aceito. Por muitos anos, a ética médica e a religiosa caminhavam de forma independente e isolada, porém as novas demandas sociais e culturais transformaram esse paradigma de forma a se trazer as ideias baseadas na fé para a discussão sobre a postura desejável dos profissionais de saúde, em especial na pesquisa em seres humanos (DURAND, 2007). Na discussão a respeito da relação do direito com as questões éticas da área de saúde, Clotet (2001) destaca que a aproximação das disciplinas é orientada pela moral. Nesta perspectiva, o Poder Legislativo pode tornar palpável os valores e princípios de uma comunidade, os quais são a base para uma convivência social harmônica. TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À BIOÉTICA 5 Essas transformações metodológicas possibilitam a crítica e a reconstrução de certos conceitos fundamentais do Direito, abrindo espaço, por igual, à construção do Biodireito, termo que indica a disciplina, ainda nascente, que visa a determinar os limites de licitude do progresso científico, notadamente da biomedicina, não do ponto de vista das “exigências máximas” da fundação e da aplicação dos valores morais na práxis biomédica – isto é, a busca do que se “deve” fazer para atuar o “bem” – mas do ponto de vista da exigência ética “mínima” de estabelecer normas para a convivência social (CLOTET, 2001, p. 72). As ideias e os conceitos que uma sociedade tem sobre qualquer temática estão diretamente relacionados ao momento histórico e cultural vigente. Através dos anos, diversos pensadores propuseram correntes filosóficas que discutiam sobre a ética e seus impactos na vida das populações. Entendendo as bases do pensamento destes autores, conseguimos fazer uma leitura do nosso próprio momento histórico, refletindo e enriquecendo as discussões sobre a relação entre a ética e a promoção da saúde. 3 BREVE HISTÓRICO DA ÉTICA E BIOÉTICA Um dos primeiros registros sobre a conduta do profissional de saúde remonta é de 1700 a.C. e é denominado código de Hamurabi, o qual defendia ideias a respeito da prestação de serviços do médico, bem como suas remunerações e punições. Essa coleção de normas basicamente discutia a relação médico-paciente em termos econômicos, enquanto as ideias hipocráticas se concentravam nos aspectos comportamentais desejáveis, que até hoje fazem parte do juramento solene dos profissionais de saúde (REGO; PALÁCIOS; SIQUEIRA-BATISTA, 2009). No Século XVI, estudiosos como Galileu acreditavam que através de suas descobertas poderiam trazer avanços que impactariam positivamente na vida das pessoas partindo sempre de um pensamento eticamente neutro. Nos séculos seguintes, Max Weber levanta as ideias sobre o poder que a ciência tem de solucionar problemas emergentes na vida de uma sociedade mesmo que quebrando paradigmas embasados fortemente no cristianismo, como no caso de André Vesalio, que iniciou seus estudos sobre a anatomia humana por meio de cadáveres, o que antes era apenas realizado em animais por ser considerado pela Igreja Católica um sacrilégio (KOTTOW, 2008). No decorrer da história da humanidade, diversos fatos podem ser levantados como catalisadores de discussões sobre novos pressupostos éticos no campo da experimentação, porém é difícil eleger um único evento como o marco inicial da bioética, pois assim como outros fenômenos sociais a sua construção se deu por meio de diversas demandas sociais e biotecnológicas (DURAND, 2007). Entretanto, alguns eventos fortaleceram a discussão da disciplina como a publicação do artigo Eles decidem quem vive, quem morre pela revista Life em 1962, no qual descreve a constituição do Comitê de Ética Hospitalar em Washington, UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 6 composto basicamente por um grupo de pessoas não médicas, em que se discutia o destino dos recursos de saúde. Uma de suas primeiras deliberações foi a seleção de pacientes renais crônicos para o serviço de diálise, em um contexto onde a demanda de usuários excedia o número de vagas disponíveis para o atendimento (DINIZ; GUILHEM, 2017). O Comitê de Ética Hospitalar em Washington No início da década de 1960, o nefrologista Belding H. Scribner desenvolveu a primeira máquina de hemodiálise criando a possibilidade de tratamento a longo prazo para portadores de doença renal crônica. No entanto, logo após a descoberta verificou-se que o número de pacientes elegíveis terapia era superior ao número de máquinas. Para a tomada de decisão foi formado o Comitê de Ética Hospitalar em Washington ou Comitê de Seatle, composto por sete membros da comunidade: um clérigo, um advogado, uma dona de casa, um executivo, um líder trabalhista e dois médicos não nefrologistas. Também conhecido como esquadrão de Deus, esse comitê criou os critérios que decidiriam quais pacientes deveriam receber o tratamento. Esses fatores eram: idade, raça, estado civil, número de dependentes, renda, grau de instrução, serviços prévios à comunidade e potencialidades futuras. Entretanto, após a publicação do artigo Eles decidem quem vive, quem morre da revista Life, a sociedade civil iniciou a discussão sobre os aspectos éticos da escolha do comitê. NOTA Ainda na década de 1960, o médico americano Henry Beecher compilou relatos metodológicos de diversos artigos de revistas científicas de grande expressão que desrespeitavam os participantes de maneiras tão cruéis quanto os casos julgados no Tribunal de Nuremberg. No trabalho em questão, Beecher descreveu que os sujeitos das pesquisas compiladas eram pessoas que não autorizavam de forma livre e esclarecida a sua cooperação, entre elas, pacientes de hospitais filantrópicos, portadores de distúrbios mentais (adultos e crianças), idosos, recém-nascidos e presidiários. Nessa obra há a descrição de diversos experimentos antiéticos como inoculação de células cancerígenas em pacientes idosos hospitalizados para análise das respostas imunológicas. Neste contexto, é perceptível o discurso que “os benefícios e as descobertas da ciência são superiores aos interesses de um grupo restrito de pessoas” (DINIZ, 1999, p. 333). TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À BIOÉTICA 7 Tribunal de Nuremberg: conjunto de tribunais militares promovidos pelos Aliados após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de julgar oficiais nazistas peloscrimes de guerra cometidos nos campos de concentração. A partir deste evento foi construído o Código de Nuremberg, que defende os princípios éticos nos quais se baseiam a pesquisa com seres humanos. NOTA FIGURA 1 – IMAGEM DOS JULGAMENTOS DE NUREMBERG FONTE: <https://3.bp.blogspot.com/-TGCGe6VTGDY/VdyMiYugvyI/AAAAAAAAAHM/ qSdfQT33kPw/s1600/Tribunal-de-Nuremberg.jpg>. Acesso em: 27 fev. 2020. As inadequações das pesquisas científicas descritas anteriormente se devem a uma visão equivocada dos pesquisadores sobre a aplicabilidade das discussões e tratados relacionados aos direitos humanos e defesa dos vulneráveis. Esse pensamento fica claro quando considerado o Caso Tuskegeen, em que o Sistema de Saúde Pública Americano por cerca de 40 anos acompanhou o desenvolvimento da sífilis em 400 pessoas afrodescendentes, sem que estes tivessem qualquer conhecimento sobre sua participação no estudo e uso de placebo no lugar de penicilina (DINIZ; GUILHEM, 2017). O marco inicial para a utilização do termo bioética (grego: bios, vida + ethos, relativo à ética) ocorreu na década de 1970 em um artigo intitulado Bioethics, the Science of Survival do oncologista Van Resselaer Potter. Ele entendia a bioética como uma ponte entre o exercício da ciência e os valores humanos, sendo necessária uma reflexão sobre o desenvolvimento científico e as responsabilidades junto ao indivíduo enquanto disciplina acadêmica e movimento social (DURAND, 2007). UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 8 No Brasil, a consolidação da disciplina se deu através da Constituição de 1988 no período de redemocratização do país, fortalecido pelo nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e Conselho Nacional de Saúde (CNS), os quais davam luz a questões bioéticas, em especial à pesquisa envolvendo seres humanos regulamentada primeiramente pela Resolução 196/96 da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (CONEP). Todos esses movimentos colaboraram para a reflexão crítica da sociedade brasileira sobre os limites éticos a serem estabelecidos (REGO; PALÁCIOS; SIQUEIRA-BATISTA, 2009). Acadêmico, para saber mais sobre as pesquisas envolvendo seres humanos, acesse o site do Conselho Nacional de Saúde (CONEP) no link: http://conselho.saude.gov. br/comissoes-cns/conep. DICAS Indicamos, também, o artigo Bioética para iniciantes do Centro de Bioética do CREMESP, no link: http://www.bioetica.org.br/?siteAcao=BioeticaParaIniciantes. DICAS 4 CORRENTES BIOÉTICAS Diferentes visões podem ser utilizadas para analisar um conflito bioético, elas se denominam correntes bioéticas e apresentam conceitos diversos. A seguir, discutiremos sobre quatro dessas correntes, levantando suas bases, controvérsias e contribuição para as reflexões críticas dos profissionais de saúde. • Principialismo: após a Segunda Guerra Mundial emergiu a necessidade de construção de bases teóricas e princípios éticos, especialmente no âmbito da pesquisa. Mesmo após as experiências negativas do que cerne o respeito à dignidade humana nos campos de concentração, surgiram anos depois diversas denúncias e escândalos a respeito da infração dos direitos humanos em estudos científicos nos Estados Unidos, o que culminou na publicação do Relatório de Belmont (1978) pela National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research que, devido à complexidade do tema, TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À BIOÉTICA 9 demorou aproximadamente quatro anos para entregar seu relatório final, que objetivava declarar os princípios bioéticos a serem seguidos nas pesquisas comportamentais e biomédicas (FERREIRA; SILVA JUNIOR; BATISTA, 2015). Díniz e Guilhem (2009) afirmam que o principialismo é considerado um marco histórico na prática da bioética, que possibilitou sua consolidação enquanto disciplina e seu fortalecimento em centros acadêmicos, além da modernização das práticas de saúde. Dentro dessa perspectiva, o médico não é mais visto como o único detentor do conhecimento técnico e decisões éticas, entretanto, outros atores sociais podem e devem estar inseridos nessas discussões. Esta corrente aponta quatro princípios harmônicos e codependentes básicos, estes são: • Respeito pelas pessoas: esse princípio também chamado de autonomia é regido pela ideia de que os indivíduos são seres autônomos e que aqueles que são socialmente vulneráveis devem ser protegidos de qualquer abuso. Isso pode ser traduzido de forma prática como o consentimento para participação em pesquisas, através da compreensão clara de todos os impactos positivos e negativos acarretados dessa decisão. • Beneficência: caracterizada pelo comprometimento do pesquisador em prover o bem-estar dos indivíduos inseridos no estudo, ou seja, não causar dano e maximizar as vantagens previstas, atentando sempre para a relação risco/ benefício. • Não maleficência: foca na redução ao mínimo aceitável de efeitos indesejáveis durante o cuidado de saúde, em que se tem por obrigação não infligir dano intencional. • Justiça: apresenta relação direta com a equidade, pois promove o tratamento a cada pessoa conforme o que é moralmente correto e de forma individualizada, através da imparcialidade com foco nas necessidades específicas e interesses iguais. A teoria principialista é usada até os dias atuais como base filosófica para conflitos bioéticos e gestão de novas tecnologias. Por conta de sua simplicidade, aproximou os profissionais de saúde e juristas da reflexão sobre ética biomédica e os norteou para as tomadas de decisão mais justas. Entretanto, a ausência de hierarquização de seus princípios ou sua aplicação isolada pode levar a confusões, em especial por ter uma fraca concepção antropológica para fundamentar a sua prática (IMMIG, 2010). O principialismo é apenas uma das correntes filosóficas disponíveis para resolução de conflitos éticos, porém por ter se mantido hegemônica durante duas décadas pode causar confusão em algumas pessoas, pelo fato de entenderem que a bioética é regida única e exclusivamente pelo que cerne suas ideias. ATENCAO UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 10 • Utilitarismo: o ex-presidente da Associação Internacional de Bioética, e controverso autor Peter Singer, foi um importante defensor desta linha teórica. Em suas obras podem ser encontradas discussões sobre eutanásia, infanticídio e suicídio assistido, o que leva a discussões muitas vezes acaloradas sobre os limites da autonomia individual versus o maior benefício para um maior número de pessoas (FERREIRA; SILVA JUNIOR; BATISTA, 2015). Essa corrente parte do conceito de utilidade para o bem-estar geral e da autonomia. Os utilitaristas não estão necessariamente preocupados com os aspectos bondosos e justos, mas envolvidos com a mensuração do quanto uma decisão ética traz de benefício ao coletivo. Nesta visão, o mais importante é redução do sofrimento e aumento da felicidade, o que muitas vezes esbarra em conceitos morais defendidos especialmente por algumas comunidades religiosas pautadas na heteronomia. Heteronomia é caracterizada pelo estabelecimento de normas baseadas em valores morais externos a pessoas, ou seja, ausência de autonomia. NOTA O utilitarismo justifica suas decisões na maximização do bem-estar e minimização do sofrimento, em que o bem se traduz como uma felicidade imediata para o maior número de indivíduos e que se mostra mais benéfica socialmente. Essa linha de pensamento pode ser interessante especialmente para as discussões a respeito da saúde pública, de forma a atender os interesses individuais e coletivos (IMMIG, 2010). Com base no utilitarismo, podemos afirmar que sempre os interesses do Estado são superiores aos individuais? Na verdade, não é isso que se propõe, pois assim estaria de acordo com o abuso de poder político frente aos anseios de seus cidadãos. Na verdade, os teóricos dessa linha filosófica acreditam que o ponto de vista para analisar conflitos éticos não podem apenas levar emconsideração os seres humanos, mas as suas consequências para o meio ambiente e outros seres vivos, buscando sempre a maior felicidade possível para o maior número de pessoas (DIAS, 2017) (REGO; PALÁCIOS; SIQUEIRA-BATISTA, 2009). • Contratualismo: nesta concepção, os acordos entre indivíduos de uma comunidade são dados por meio de consensos racionais, em que o profissional de saúde não ocupa o lugar de poder, porém ele é compartilhado com o usuário, família ou comunidade através de uma decisão multilateral (IMMIG, 2010). TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO À BIOÉTICA 11 As relações sociais são formadas por diversos aspectos que denotam complexidade, em particular na área de saúde, no qual é indispensável ao profissional o convívio harmônico com o paciente e a comunidade, e o neocontratualismo, derivado do contratualismo clássico, tem um enfoque predominantemente deontológico, tendo como principal expoente o filósofo Hugo Tristram Engelhardt (LIMA et al., 2014). Segundo Immig (2010), Engelhardt acreditava que controvérsias éticas poderiam ser resolvidas mesmo quando os atores não fossem amigos ou não compartilhassem do mesmo ponto de vista sobre moral e ética. Esse preceito suscitava a ideia de que pessoas diferentes e com ideias divergentes permitissem ou negassem ações moralmente impositivas com base na tolerância. Para o teórico, quatro características são cruciais nestes indivíduos: autoconsciência, racionalidade, sentido moral e liberdade. • Personalista: em todas as correntes apresentadas anteriormente é possível perceber um ponto central de discussão, o que não é diferente da bioética personalista. Essa corrente filosófica se baseia no fato que independente da fase do desenvolvimento, do estado de saúde ou do contexto social, a dignidade é inerente a pessoa (IMMIG, 2010). O modelo personalista surgiu na Itália baseada na obra de Elio Sgreccia e fundamenta-se na ideia de que todas as decisões bioéticas têm como valor de referência a vida humana, a qual é vista como única, plena e com diversas dimensões (física, psíquica, espiritual, social e moral), resultando na formação de um corpo com espírito. Entende-se ainda que, no momento da resolução de qualquer conflito bioético, deve ser avaliada a pessoa humana, reconhecendo sua identidade e essência, antes de olhar para as normas estabelecidas na sociedade (RAMOS; LUCATO, 2010). Sgreccia entendia que o indivíduo não precisa manifestar comportamentos para ser entendido e respeitado como pessoa. Partindo desse pressuposto, em qualquer fase de manifestação da vida, seja embrião, feto, criança, idoso ou paciente terminal, é inegociável a consideração e respeito da pessoa (IMMIG, 2010). No decorrer deste tópico, foram apresentadas as concepções histórico- filosóficas nas quais a bioética está fundamentada, porém, por vezes o leitor pode não entender como poderia ser aceitável que em um passado não muito distante tantas pessoas tenham sido desrespeitadas e prejudicadas em nome da ciência. Entretanto, é valido refletir que as “encruzilhadas éticas” se adequam ao contexto histórico e cultural da sociedade que está inserida. As questões éticas têm impacto direto na prática do enfermeiro através de diversas questões, independente do cenário que ele atua, sendo primordial estar preparado para lidar com esses desafios. 12 Neste tópico, você aprendeu que: • Com base no entendimento filosófico, a bioética é uma disciplina que permite a reflexão sobre as consequências de atos com a vida do indivíduo e sociedade. • O contexto histórico e cultural de uma sociedade pode influenciar na visão sobre o que é ético e moral. • O principialismo, contratualismo, personalismo e o utilitarismo são correntes filosóficas que podem dar base científica para a resolução de conflitos bioéticos. RESUMO DO TÓPICO 1 13 1 Analise o trecho do texto de autoria de Ferreira, Silva Junior e Batista (2015, p. 481), e, considerando as correntes filosóficas exploradas no Tópico 1, responda: qual deve ser a decisão do profissional de saúde? Não esqueça de justificar sua resposta. O Sr. João é um homem casado de 57 anos.... Mora com a esposa, que é do lar, com a sogra de 85 anos, que sofre de doença de Alzheimer avançada, e tem quatro filhos, sendo que três filhos adolescentes moram com eles. O Sr. João é um morador antigo na localidade, uma liderança local, muito respeitado pela comunidade. A família é muito religiosa, sendo que todos frequentam uma igreja evangélica do bairro, exceto a esposa, que nos últimos anos vem cuidando exclusivamente da mãe enferma... após a mudança da sogra para a sua residência, devido ao adoecimento, há quatro anos, foi notável a mudança de seu humor. Mas, há seis meses, durante uma consulta de rotina, ele solicitou ao médico de família e comunidade que o acompanhava, de maneira bem- humorada como era usual, a possibilidade de ser prescrito Viagra® para ele. Após verificar as questões clínicas, o médico realizou a prescrição... Após alguns dias, o Sr. João retorna, com uma feição bem diferente da última vez, transparecendo nervosismo e preocupação. Começou a conversar com o médico com a voz baixa, dizendo que confiava muito nele devido a todos aqueles anos de convivência e que precisava confessar algo. Disse que “sumiu” do posto porque descobriu que estava com uma doença grave e ficou com vergonha do médico... Diz que, uns seis meses atrás, começou a ter um relacionamento extraconjungal com uma senhora da igreja que frequentava, que era viúva… Porém, logo após as primeiras relações sexuais com ela, que faz questão de afirmar que foram poucas e demoraram a acontecer, apareceu uma ferida em seu pênis, que, na verdade, foi notada e comentada pela esposa dele quando ele estava saindo do banho. Nesse momento, diz que ficou muito preocupado e dali já arranjou uma desculpa para sair de casa e foi direto a um pronto atendimento. Diz que aí, sim, foi vergonhoso ter que mostrar suas “partes” para uma jovem médica plantonista e ouvir dela que aquilo estava parecendo uma lesão de sífilis! Então, ele conta que quase “morreu do coração” nessa hora. No dia seguinte, fez o exame que confirmou o diagnóstico e iniciou o tratamento com as injeções na policlínica no centro da cidade, pois estava com muita vergonha de vir ao posto. Porém, ele se refere que está com muito medo de ter passado essa “desgraceira” para a esposa, mas não sabe como fazer para descobrir isso e queria uma ajuda do médico. Ele comenta que sabia que a esposa iria fazer o exame preventivo nos próximos dias e queria saber se tem como ver se ela está infectada por este exame e implorou que, caso fosse positivo, o médico não contasse para ela, tratasse o problema dizendo que era outra coisa, mas não contasse... caso essa história venha à tona agora, poderá acabar com a família dele... AUTOATIVIDADE 14 2 Referente aos estudos do Tópico 1, analise e indique V para as sentenças VERDADEIRAS e F para as FALSAS. ( ) A bioética permite que o profissional de saúde mantenha relações mais saudáveis com o usuário de seu cuidado. ( ) Apesar de respeitar as crenças individuais, a bioética não entende que seja necessário discutir os preceitos morais de uma sociedade com a religião, afinal as decisões devem ser tomadas apenas com o auxílio da racionalidade. ( ) O marco inicial de estudo da bioética foi a publicação do código de Hamurabi, o qual discutia a relação do médico e paciente. ( ) O utilitarismo se configura como uma corrente filosófica que acredita que as decisões bioéticas devem focar na maximização do bem-estar e minimização do sofrimento. Agora, assinale a alternativa que contenha a sequência CORRETA: a) ( ) V – V – F – V. b) ( ) V – F – F – V. c) ( ) F – F – F – F. d) ( ) V – V – V – F. 3 Sobre o episódio do Comitê de Ética Hospitalar de Washington e sua composição inicial, você acredita que as decisões sobre a alocação de recursos na saúde devem ser feitasapenas por profissionais de saúde ou por membros da comunidade? Na sua opinião, como deveria ser montado esse comitê e por quê? 4 Ao chegar em um serviço de emergência, uma pessoa fala com a recepcionista, se identifica como irmão do médico de plantão e solicita que ela avise que está esperando por ele na recepção. Pensando se tratar de alguma questão pessoal, a recepcionista telefona e logo o plantonista aparece na porta. Após uma breve conversa em particular, o médico pede para que seja feita a ficha do seu familiar e o coloque como o próximo da fila a ser chamado, apesar de estarem aguardando para atendimento muitas pessoas com problemas mais urgentes. Analisando esse episódio, você diria que ele fere os preceitos da ética ou da moral? Justifique sua resposta. 15 TÓPICO 2 PANORAMA ATUAL DA BIOÉTICA: QUAIS OS DESAFIOS DAS INSTITUIÇÕES E PROFISSIONAIS? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO A bioética enquanto disciplina começou a se estruturar a partir das publicações de Potter e sua corrente principialista, até então dominada pelas ciências biológicas. Nas décadas seguintes, suas ideias se disseminaram pelo mundo, mesmo que, por vezes, de forma reduzida e simplista em relação às proposições originais do autor. Apenas por volta dos anos 2000, com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, foi possível delinear de forma mais clara as nuances globais (CUNHA; LORENZO, 2014). Segundo Fortes (2011), neste contexto de expansão, alguns fatores como as condições de vida heterogêneas das sociedades, marcada pelas diferenças econômicas e de distribuição de renda, além de mudanças do perfil epidemiológico e ambiental, suscitam por si só a responsabilização individual e a necessidade de remodelamento das políticas públicas para a realidade desejada. O autor descreve ainda qual o foco a ser dado no momento atual: Considerando essas transformações com as quais convivemos, somos favoráveis a uma bioética que se oriente pelo respeito e incentivo à liberdade individual de tomada de decisão, adicionada dos princípios da solidariedade, da justiça, da equidade e da responsabilidade na reflexão bioética, reforçando a necessidade de proteção dos mais desfavorecidos, vulneráveis, vulnerados ou frágeis (FORTES, 2011, p. 323). Com passar dos anos, a discussão dos profissionais de saúde sobre a bioética foi se aprofundando ao passo que foram surgindo inovações tecnológicas. Além desse contexto, as discussões em âmbitos mundiais têm se concentrado nas desigualdades sociais e em questões capitalistas, na qual, quem tem condições paga pelo tratamento mais caro, enquanto aqueles que estão abaixo da linha da pobreza não têm o mínimo acesso à atenção básica à saúde. 2 PANORAMA MUNDIAL DA BIOÉTICA O advento da globalização proporcionou uma comunicação e uma relação mais estreita entre os países, marcado pela conexão entre ideias e culturas, rediscutindo o protagonismo do estado e fortalecendo o capitalismo. Esse movimento interfere diretamente na cadeia de produção, na qual nem sempre as UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 16 pessoas com menos recursos terão acesso as suas vantagens, mas pelo contrário, estarão mais vulneráveis aos seus malefícios (FORTES, 2011). Existem diversas peculiaridades no contexto mundial, especialmente quando se leva em consideração as desigualdades econômicas, gerando a necessidade de fortalecimento da responsabilidade ética internacional, pois o nosso planeta é um sistema vivo e único e seu destino deve ser compartilhado com as gerações atuais e futuras (CUNHA; LORENZO, 2014). Buscando um discurso mais coeso e pertinente aos problemas atuais, o desenvolvimento das discussões entre diversos países e cultura no campo da bioética tem se baseado na promoção de congressos e encontros internacionais, espaço onde ocorre troca de conhecimentos e experiências, aproximação de temas eminentes trazidos pelo progresso da ciência, como as descobertas relacionadas ao genoma humano e foco na redução das desigualdades, pois no mundo contemporâneo, a população pobre é sempre a mais prejudicada (CUNHA; LORENZO, 2014). Um avanço importante dentro das diretrizes da bioética mundial foi a proclamação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos durante a 33ª Conferência Geral da Unesco, em 2005. Esse documento é um marco para a história da bioética, ao passo que redireciona o foco das discussões que até então se baseavam nos desdobramentos das ciências e tecnologia, para os aspectos políticos, sociais, legais e ambientais. Um grande mérito deste manuscrito se deve ao estabelecimento de princípios e procedimentos para nortear os países a formularem instrumentos de controle e evolução coesa do estudo da bioética (RIPPEL; MEDEIROS; MALUF, 2016). FIGURA 2 – CONFERÊNCIA GERAL DA UNESCO FONTE: <https://www.mppm-palestina.org/sites/default/files/field/image/palestina_admitida_ na_unesco.jpg>. Acesso em: 28 fev. 2020. TÓPICO 2 | PANORAMA ATUAL DA BIOÉTICA: QUAIS OS DESAFIOS DAS INSTITUIÇÕES E PROFISSIONAIS? 17 3 PANORAMA NACIONAL DA BIOÉTICA Algumas características da bioética brasileira se diferenciam das experiências na Europa e Estados Unidos, pois suas discussões foram profundamente fortalecidas dentro do campo da saúde pública, em que muitos dos pesquisadores da disciplina atuam, além do envolvimento com diversos movimentos de direitos sociais e civis, fortalecidos pelo processo de redemocratização da nação ao fim do regime militar. Ao se considerar o contexto da América Latina, destaca-se ainda um envolvimento multidisciplinar na produção científica (RAMOS et al., 2019). Todavia, ainda existem fronteiras a serem transpostas para o fortalecimento das reflexões bioéticas no Brasil. O primeiro aspecto a ser considerado se refere ao número tímido de publicações brasileiras em periódicos internacionais, além das discussões e debates restritos à academia e cenários diretamente relacionados à saúde. Destaca-se ainda os desafios relativos à falta de representatividade do tema na agenda política, falta de leis que melhor delimitem a criação e atividades dos comitês de ética, ofertas reduzidas de vagas para pós-graduação stricto sensu e o baixo investimento em pesquisadores (RAMOS et al., 2019). Van Resselaer Potter já nos anos 1970 defendia que para a manutenção da sobrevivência humana, a bioética deveria ser exercida de forma mais ampla, protegendo não apenas nossa espécie, mas o meio ambiente e outros animais, através da agregação de conhecimentos biológicos e valores humanos. O reflexo deste pensamento foi marcado juridicamente em nossa sociedade pela Lei n° 6.638/1979, que apesar de não apresentar penalidades aos cientistas infratores, discorria sobre uma série de recomendações na pesquisa em animais, porém restrito apenas à prática de dissecação (DINIZ; GUILHEM, 2017) (BRASIL, 1979). Acadêmico, para saber os detalhes da Lei n° 6.638/1979, acesse o site do Planalto, no link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1970-1979/L6638.htm. DICAS No ano de 2008, a Lei n° 6.638/1979 foi revogada pela Lei n° 11.794, que estabelece o uso científico de animais além de definir as punições cabíveis no caso de violação. Foi instituído a partir de então o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal, responsável pela publicação de resoluções e análise de supostas infrações. Essa regulamentação determinou também a obrigatoriedade das instituições que utilizavam animais em pesquisas de manterem uma Comissão de Ética no Uso de Animais com composição multidisciplinar (BRASIL, 2008). UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL 18 Ao analisar o conhecimento dos alunos que tinham contato com animais por meio de aulas da graduação ou pesquisa, Dittrich et al. (2019) afirmam que a legislação em questão ainda apresenta um alcance insuficiente entre os discentes, sugerindo o oferecimento de minicursos para os graduandos de iniciação científica, divulgação das universidades nomeio on-line através de postagem em redes sociais, artigos e e-books. Por fim, os autores concluem que ainda tem um longo caminho de discussão sobre o tema e o envolvimento de todos os atores desse processo é primordial para maiores avanços neste campo: “a Lei n° 11.794/2008 só vai se tornar plenamente efetiva quando todos aqueles que manipulam animais em suas investigações – pesquisadores, técnicos de laboratório, bioteristas, e, especialmente, estudantes – estiverem cientes de suas obrigações e de como executar seu trabalho adequadamente” (BRASIL, 2008). Apesar dos desafios levantados, Ramos et al. (2019) apresentam algumas sugestões sobre quais melhorias poderiam ser feitas com o intuito de fortalecer conhecimento social acerca da bioética, dentre elas está a criação do Conselho Nacional de Bioética, proposta que tem marcado a luta atual dos pesquisadores na área. Esse órgão seria responsável não apenas pelas fundamentações jurídicas, econômica e científica, mas seria um catalisador de debates coletivos para a consolidação da democracia e justiça social. A aplicabilidade dos princípios éticos nem sempre é uma tarefa fácil em uma sociedade capitalista, em especial quando se considera os princípios de justiça e equidade, porém, é primordial que a discussão avance também para fora dos muros das universidades e o profissional de saúde tem por obrigação levantar essas discussões independente do espaço que atua, pois é essencial que a comunidade esteja incluída no processo de fortalecimento da democracia e direitos humanos (FORTES, 2011). Para a criação de um debate social rico, é primordial considerar as transformações políticas, sociais e culturais além de ter claro os significados, abrangência e limites da bioética. Temos um longo caminho de problematização pela frente, pois apesar dos grandes avanços nas questões individuais, especialmente os ligados ao nascer e morrer, os desafios coletivos precisam ser melhor explorados (FORTES, 2011). 19 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • As diferenças socioeconômicas têm impacto direto nas discussões da bioética no âmbito mundial, dessa forma, os países buscam a proteção dos mais pobres e vulneráveis. • A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos possibilitou um discurso mais coeso entre as nações do globo sobre o fortalecimento das políticas bioéticas, em especial para a defesa dos mais vulneráveis. • No Brasil, os principais desafios para o avanço da bioética é a tímida discussão política e o baixo investimento para pesquisa e formação na área. 20 1 Classifique V para as sentenças VERDADEIRAS e F para as FALSAS com relação ao estudo do Tópico 2. ( ) A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos foi um importante documento de construção coletiva publicada nos anos 2000, que deu uma ideia mais concreta sobre as discussões em âmbitos mundiais relacionados à bioética. ( ) No Brasil, é possível destacar alguns desafios relacionados ao fortalecimento da bioética, entre eles se destaca a atuação modesta em pesquisa de outros profissionais de saúde além dos médicos. ( ) A globalização trouxe uma importante influência no processo de consumo e produção, o que pode aumentar o abismo entre mais ricos e mais pobres, sendo necessária a proteção dos vulneráveis. ( ) A Lei n° 11.794/2008 que trata sobre a pesquisa em seres humanos determina que os centros de pesquisa estabeleçam Comissões de Ética de caráter multidisciplinar. ( ) As políticas públicas de saúde devem estar alinhadas para a redução das desigualdades, porém sem esquecer o respeito à individualidade. ( ) O desenvolvimento da bioética mundial tem se concentrado na promoção de encontros e congresso para a articulação e trocas de experiências, além de suscitar o debate sobre as novas tecnologias. ( ) No Brasil, o debate acerca da bioética tem aumentado notoriamente para fora das universidades e hospitais. ( ) A aplicabilidade dos princípios éticos é um desafio nas sociedades capitalistas Agora, assinale a alternativa que contenha a sequência CORRETA: a) ( ) V, V, F, V, F, F, V, F. b) ( ) F, V, V, F, V, V, V, V. c) ( ) V, F, V, F, V, V, F; V. d) ( ) V, V, F, F, F, F, F, V. AUTOATIVIDADE 21 TÓPICO 3 CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO O reconhecimento da pluralidade e suas nuances morais dentro dos conflitos existentes é uma das questões centrais da Bioética. Existe então a necessidade de um acordo mínimo no sistema ético de uma sociedade para a resolução de um conflito, mesmo diante de concepções morais diferentes entre os atores (HOGEMANN, 2013). Nas complexas sociedades atuais, a comunicação pode ser uma importante arma para a resolução de conflitos e impasses éticos. Neste momento, o segredo para uma solução racional é promover a “inclusão moral” por meio da negociação, chegando a uma resolução minimamente razoável. No entanto, não existe uma decisão equânime, pois dos dois lados existe uma forte base de argumentação, que nos leva a entender que o fato de uma ideia ser legítima não impossibilita que a outra também seja (SCHRAMM; PALÁCIOS; REGO, 2008). 2 O PROFISSIONAL DE SAÚDE FRENTE A CONFLITOS BIOÉTICOS Imagine-se em um passeio por uma bela savana africana com campos verdejantes, céu azul e um clima agradável. No entanto, durante a sua caminhada, você consegue ver ao longe as longas folhas da vegetação balançando ao mesmo tempo que surge um enorme leão faminto que cruza o olhar com o seu. Ao ser tomado pelo desespero, você percebe uma grande árvore próxima a um lago e opta por subi-la, pensando ser a melhor opção para se livrar do felino. À medida que consegue se equilibrar nos galhos, uma cobra está à espreita, impedindo a sua chegada ao topo, rapidamente lhe vem à mente a possibilidade de pular no lago, entretanto, um jacaré observando toda a cena espera conseguir um saboroso almoço o mais breve possível. O que você faria para sair vivo desse desafio? Após essa breve história, é possível entender metaforicamente que, muitas vezes, nos sentimos encurralados na hora de tomar decisões em nossa vida pessoal, porém se faz necessário refletir sobre essas provocações na perspectiva profissional, em especial o enfermeiro, por ser um indivíduo que trabalha diretamente com o cuidado a pessoas, que são diversas em suas histórias, culturas e percepções do mundo. 22 UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL Raymundo (2011) esclarece que a interseção de diversos fatores pode levar uma pessoa a adoecer, essa circunstância sofre influência direta de suas condições socioeconômico-culturais, entendendo-se que não existe apenas uma única maneira de adoecer. Esse processo se dá de forma complexa, bem como os indivíduos que apresentam diferentes formas de entender e lidar com as doenças. Torna-se muito importante que o enfermeiro ao perceber este contexto se relacione de forma dialogada e equitativa, atento às demandas a serem supridas. Por sempre se manter alerta às solicitações e condições dos seus clientes, profissionais de saúde tem como um importante objeto de estudo a assistência à saúde. Considerando a pluralidade dos perfis profissionais, é observável graus diferentes de comprometimento, que serão modelados pelos seus interesses pessoais, conflitos de valores e modo de pensar. O estudo da bioética propicia ao prestador de cuidados a reflexão sobre seus atos, culminando diretamente na qualidade do atendimento e satisfação do usuário (CECERE et al., 2010). Se imaginarmos a trajetória de um profissional de saúde, como o enfermeiro, mesmo que ele considere a individualidade do paciente como importante na prestação do cuidado, há sempre o risco que sua opinião vença de forma unilateral no momento da tomada de decisão, pois o profissional pode vir a considerar que o seu domínio do saber técnico científico atribui mais peso as suas ideias, ao passo que acredita que seu conhecimento estáacima do outro, impedindo o intercâmbio de concepções e o protagonismo daquele que está sendo cuidado (RAYMUNDO, 2011). O desejo das pessoas envolvidas, por vezes, também dificulta a busca pela melhor decisão ética, pois cada participante pode ter crenças e ideias muito particulares. Podemos exemplificar essa ideia através de um cenário onde o paciente manifestou o desejo de morrer naturalmente na ocorrência de uma doença terminal e a família deseja que todo investimento possível seja feito para mantê-lo vivo. Ao conhecer as crenças e desejos do paciente, o profissional de saúde pode mudar completamente a sua ideia frente ao processo decisório (GOLDIM, 2006) (SIQUEIRA, 2012). Entretanto, ainda no meio acadêmico não está totalmente claro o limite entre o respeito às estruturas simbólicas culturais, por vezes milenares, e a defesa do indivíduo pela proteção ao sofrimento. Podemos pegar como exemplo uma prática comum entre alguns grupos indígenas, na qual a coitarca de todas as meninas da tribo é realizada obrigatoriamente pelo pajé sem qualquer proteção contra doenças sexualmente transmissíveis, onde se tem conhecimento da ocorrência de contaminação pelo vírus HIV na comunidade. Mesmo interferindo em prol da pessoa e com a ideia de promover o bem, o impedimento desta manifestação pode gerar dissolução social de um grupo que já tem sua existência ameaçada (MARQUES et al., 2012). TÓPICO 3 | CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE 23 Frente à necessidade de reflexão bioética, a abordagem interdisciplinar pode auxiliar na solução de problemas, pois realiza a integração de profissionais de diversos campos do saber. Desta forma, é possível trocar conhecimento com foco em um objetivo comum, considerando que os atores apresentam necessidades e concepções por vezes distintas entre si, sendo necessário o respeito às diferenças (GOLDIM, 2006). Dentro da equipe multiprofissional é corriqueira a prática da preceptoria, especialmente quando uma instituição abre as portas para o desenvolvimento prático dos alunos em formação. Isso não se restringe aos profissionais da mesma classe, mas não é incomum, por exemplo, um fisioterapeuta auxiliar um aluno de enfermagem no entendimento sobre o uso do respirador ou um fonoaudiólogo conversar com acadêmicos de nutrição sobre a consistência da dieta a ser introduzida. Mediante esse relacionamento, por vezes diário, vemos mais uma oportunidade de fortalecimento da bioética, pois, no decorrer de sua rotina, é possível utilizar a pedagogia do exemplo para inspirar os novos profissionais e colegas de trabalho, além da promoção de ações de educação permanente com vistas ao aprimoramento e melhoria da qualidade do atendimento (ZOBOLI; SOARES, 2012). De acordo com Maciel e Nogaro (2019), dentre os principais conflitos bioéticos vivenciados por enfermeiros, por exemplo, destacam-se a falta de leito, problemas de comunicação da equipe, quebra de sigilo, infração ao direito de informação, negligência, rompimento da autonomia e distanásia. Todos os dias, mesmo que não seja sempre perceptível, o enfermeiro, de forma recorrente, necessita tomar decisões morais, um exemplo corriqueiro é a priorização de atividades, quando decidimos dentre as várias demandas dos pacientes qual atenderemos primeiro. Nesse momento, o profissional pode seguir dois caminhos: embasa suas decisões em suas crenças e valores ou age com base no que outrem determina e espera dele, mesmo isso contrariando seus princípios. A confidencialidade das informações é um ponto crucial na relação do profissional-paciente, pois em um espaço sem julgamentos e despido do medo de ser exposto, o doente confia ao profissional de saúde informações que podem ser determinantes no seu tratamento e cuidado. O direito ao sigilo é retratado na Carta de Direito dos Usuários da Saúde do Brasil e sua salvaguarda se mantém irrefutável mesmo após a morte (LÜTZ; CARVALHO; BONAMIGO, 2019) (BRASIL, 2011). Com a proposição de ter maior representatividade dentro das instituições, o Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM n° 2.152/2016) e o Conselho Federal de Enfermagem (Resolução COFEN n° 593/2018) normatizaram a criação e o funcionamento das Comissões de Ética Médica e de Enfermagem, instâncias imparciais e autônoma com a função de educar, deliberar e apurar denúncias a respeito de atos antiéticos no exercício profissional. Sobre a relação esperada entre o Comissão de Ética de Enfermagem e a categoria, Torres, Oliveira e Abud (2017, p. 2) destacam: 24 UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL Assim, os profissionais devem ser estimulados a conhecer profundamente o seu Código de Ética para que possam adotar uma conduta profissional adequada. A existência de uma CEEnf auxilia os profissionais a conhecerem o Código, a esclarecer dúvidas e a conduzir suas ações de acordo com deontologia da enfermagem. A postura ética frente à prestação de cuidado vai muito além dos pressupostos racionais, ela abrange um envolvimento pessoal onde o profissional se abre para novos diálogos por meio de uma contínua reflexão e permite ser tocado por aquele que cuida em um empenho constante da defesa de seus direitos enquanto ser humano (CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2008) (RAMOS; Ó, 2009). Desde o início de sua concepção teórica, a bioética tem se destacado por trazer à tona a discussão sobre os conflitos culturais. O conceito individual sobre início e fim da vida tem impacto direto nas ideias e posicionamentos sobre aborto, doação de órgãos, ortotanásia, entre outros. Fato que pode facilitar ou dificultar o diálogo com o profissional de saúde no momento da tomada de decisão (ALBUQUERQUE, 2015) (CORRÊA, 2002) (BARBOSA; BOEMER, 2009). 3 DA FORMAÇÃO EMBRIONÁRIA À ASSISTÊNCIA PALIATIVA: PROBLEMATIZANDO OS CONFLITOS BIOÉTICOS Neste subtópico, discutiremos alguns conflitos bioéticos comuns na vivência do profissional de saúde, o maior objetivo aqui é muito mais do que dar respostas exatas ou impor o que deve ser feito frente a esses desafios, mas de desenvolver no aluno o pensamento crítico sobre temas controversos, porém comuns em nossa prática. Para a promoção de saúde junto a uma população, o profissional de saúde, além de todo seu arcabouço teórico, precisa considerar a realidade social, que podem levar a dois modelos de pensamento bioético. Um no qual ele reflete sobre a condições de saúde de modo a considerar um conjunto amplo de usuários (comunidade) e outro que se concentra na busca do aumento da qualidade de vida individual, ambos baseados nas ideias de responsabilidade e autonomia. A forma como o conceito de promoção de saúde é construída pode levar à limitação da liberdade da pessoa, motivado pela ideia de melhoria dos padrões de saúde de comunidade (VERDI; CAPONI, 2005). Confirmando este pensamento, Gaudenzi e Schramm (2010) problematizam sobre o caminho a ser seguido para equilibrar as disparidades entre justiça social e autonomia individual: TÓPICO 3 | CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE 25 Tal discussão tem grande relevância bioética, pois o que está em jogo – por trás desta responsabilização frente aos recursos finitos e escassos – é a tensão entre dois princípios morais: o da justiça social e o da autonomia individual, considerados no contexto de uma “topologia administrativa” consistente em procedimentos que se destinam, em última instância, a finalizar a conduta humana de acordo com um paradigma econômico que controla o comportamento dos humanos e tenha em vista o difícil equacionamento entre competição e cooperação. No início do século XXI, o Estado, que até então tinha a responsabilidade de reduzir as desigualdades de renda e melhorar as condições de higiene da população, se torna um coadjuvante neste processo à medida que a responsabilidade pelo cuidado com a saúde cabe a cada indivíduo que, diante das informações médicas, deve ser capaz de mudar seus hábitos de vida (VAZ; BRUNO, 2002). A saúde e a doença passam, portanto, a sercompreendidas como resultado do comportamento, e não mais como efeitos das condições de vida; e o indivíduo – agora supostamente informado – passa a ser o único responsável pelo cuidado com sua saúde, cabendo ao Estado o controle para que esta responsabilização seja efetiva O cenário delimitado no parágrafo anterior questiona o papel do profissional de saúde enquanto agente moral, tendo em vista que o dinamismo de nossa sociedade é regido por forças políticas e disputas entre interesses individuais e coletivos. Portanto, a ideia de promoção de saúde deve ser voltada para políticas públicas que busquem a redução das iniquidades, permitindo o acesso a condições básicas para a saúde e suprindo as carências individuais e coletivas refletidas pela fome, pobreza e exclusão social (VERDI; CAPONI, 2005). 3.1 DESAFIOS DO ACESSO À ATENÇÃO BÁSICA E ASSISTÊNCIA HOSPITALAR O uso de novas tecnologias, em especial no contexto hospitalar, suscita numerosas expectativas nas indústrias, órgãos reguladores, administradores, profissionais de saúde e, por fim, nos pacientes. Além da avaliação acerca da qualidade e efetividade dessas inovações, é imprescindível o comprometimento com as questões morais que envolvem o seu uso, como a verificação se o produto de fato cumpre os requisitos de beneficência e não maleficência (SCHRAMM; ESCOSTEGUY, 2000) Ainda nesse debate, debruça-se também sobre o acesso às novas tecnologias de forma justa para todos, considerando ainda um cenário de recursos cada vez mais escasso e de grandes desigualdades sociais. Seria ético que apenas as pessoas mais abastadas tivessem as melhores oportunidades de diagnóstico e tratamento? Como equiparar essa balança sem prejuízo ao Estado e ao usuário? Como julgar essa questão de forma a promover a equidade que nos é garantida através de nossa Constituição? (SCHRAMM; ESCOSTEGUY, 2000). 26 UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL Para o usuário do SUS, que tem a ideia de que a atenção à saúde deve ser oferecida de forma irrestrita, muitas vezes não fica claro que existe um racionamento de recursos, o qual é preestabelecido por meio de orçamentos definidos pelos Poderes Executivos e Legislativos. A maneira que esses recursos serão alocados fica por conta do Ministério e Secretarias de saúde, contando com o aval dos Conselhos de Saúde e órgãos de controle social (FORTES, 2008). Para designar o destino dos investimentos na área de saúde são consideradas as ideias de base utilitaristas, apoiando a premissa de maximização do bem-estar, elegendo a proposta que garanta a maior felicidade para o maior número possível de pessoas. Essa ideia pode ser exemplificada através da vacinação em massa para a erradicação de doenças transmissíveis. Para que, de fato, os recursos sejam alocados de modo a maximizar a saúde de um maior número de pessoas, é primordial o controle social efetivo sobre essas decisões, nem sempre há uma completa concordância sobre os desejos da sociedade, porém essa é a medida que tem uma maior probabilidade de responder aos anseios dos cidadãos (FORTES, 2008). 3.2 OS NOVOS DESAFIOS BIOÉTICOS ADVINDOS DO PROJETO GENOMA Em 1990, ocorreu um marco conceitual da genética moderna denominado Projeto Genoma. Esse movimento contou com a colaboração de diversos países desenvolvidos para mapeamento do código genético humano, que diferente de outras pesquisas, disponibilizou seus achados para os pesquisadores do mundo inteiro os seus dados parciais e totais rapidamente por via eletrônica, ajudando assim o desenvolvimento de outras pesquisas ao redor do mundo. Os avanços relacionados à fertilização in vitro trouxeram consigo novas possibilidades e implicações éticas sobre a pesquisa genética e manipulação de células-tronco. A perspectiva de se criar seres humanos mais resistentes ao ambiente, com aparência física desejada pelos pais entre outras demandas, apresenta-se como algo que poderia melhor a estadia do homem no planeta. No campo da saúde, a possibilidade de aplicações terapêuticas também gera otimismo pela prevenção de doenças e tratamentos mais assertivos com base na composição genética individual (CORRÊA, 2002). A manipulação genética pode envolver riscos a longo prazo até agora não conhecidos, não se tem claro ainda se as ações desenvolvidas na atualidade podem prejudicar de alguma forma as gerações após a nossa. Por conta dos enormes riscos iatrogênicos, é necessário cautela, além de pautar as tomadas de decisão nessa área sob os princípios da beneficência e autonomia (CLOTET, 2000). Ao se imaginar a possibilidade de escolha dos traços genéticos entra em debate algumas questões éticas, como o medo do surgimento de uma ideia moderna de eugenismo baseada em conceitos racistas e discriminatórios. Se assim TÓPICO 3 | CONFLITOS BIOÉTICOS E A PLURALIDADE 27 seguir, corremos o risco que os aspectos físicos, intelectuais e de beleza possam ser padronizados como um quesito básico do que é ser um humano de sucesso, tudo através da manipulação do genoma (CORRÊA, 2002). Eugenismo é um termo que significa bem-nascido. Uma falsa ciência que defendia ser necessário realizar uma seleção natural onde “raças superiores” deveriam dominar e melhorar uma sociedade. No Brasil, o movimento eugenista foi institucionalizado no início do século XX e buscou embranquecer a população, de modo a afastar e diminuir as pessoas negras, por acreditar que só assim seria possível elevar o país a melhores patamares de desenvolvimento e riqueza. NOTA Acadêmico, indicamos a leitura do artigo Reflexões sobre raça e eugenia no Brasil a partir do documentário Homo sapiens 1900 de autoria de Lilian de Lucca Torres e disponível no link: https://journals.openedition.org/pontourbe/1914. DICAS Mais uma vez caímos na discussão sobre acesso à tecnologia e seus desdobramentos. Seriam os avanços genéticos de impacto direto sobre a saúde disponíveis irrestritamente a toda população? Considerando o histórico discriminatório em nossa sociedade, como se dará as relações sociais dos que não obedecem aos padrões? Seria possível o surgimento de um apartheid genético ou uma biocracia? Como as questões religiosas impactarão nos debates sobre a manipulação genética? 3.3 OS DIREITOS INALIENÁVEIS DOS PORTADORES DE TRANSTORNO MENTAL A concepção de loucura e os cuidados aplicados aos portadores de transtornos mentais mudou conforme a época vivida. Passamos da ideia estabelecida no século XVII que enclausuramento e afastamento social dos mentalmente afligidos, marcado pela internação compulsória em manicômios e hospitais, é o melhor caminho para o cuidado ao portador de distúrbios mentais. Ressaltamos que, neste momento histórico, todos aqueles que se afastavam do 28 UNIDADE 1 | BIOÉTICA NO EXERCÍCIO PROFISSIONAL que a sociedade encarava como normal (miseráveis, bandidos ou vagabundos) eram entendidos como “loucos” e encarcerados (BRAZ; SCHRAMM, 2011). Com a chegada do século XIX, por não se encaixarem nos padrões da sociedade burguesa, em especial pela sua “incapacidade para o trabalho”, novas modalidades de manejo foram concebidas e a ideia “loucura” se solidificou na concepção de que não havia problema no tratamento desumano, através de ameaças, violências físicas e aprisionamento em calabouços, o que mudou anos mais tarde pelo advento da reforma psiquiátrica (BRAZ; SCHRAMM, 2011). Como pode se constatar por esse breve histórico, os portadores de doenças mentais estão entre os mais sujeitos à violação de direitos humanos, refutando toda e qualquer forma de dignidade. Por vezes, a perda da autonomia desses indivíduos se deve a sua condição clínica, não sendo incomum o uso da força física na contenção, muito mais apoiado no que é mais vantajoso para o que está em posição de poder (em muitos casos o profissional de saúde) do que de fato na escolha do que é melhor para o indivíduo. O código de Nuremberg versava sobre a participação deste perfil de pacientes em pesquisas,
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