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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE PSICOLOGIA DISCIPLINA: PSICOSSOCIOLOGIA PROFª MARIA CRISTINA CANDAL POLI ALUNA : LARISSA MARIA MATOS OLIVEIRA DRE: 121059285 AVALIAÇÃO FINAL Rio de Janeiro, 2022 A Realidade Eu penso renovar o homem usando borboletas. - Manoel de Barros Imaginar outro mundo possível é mais que um exercício de criatividade; é uma subversão, até mesmo e principalmente das próprias construções subjetivas. É um processo incômodo, sobretudo porque o primeiro passo é conhecer e analisar a realidade, o que, em si, já traz consigo um pessimismo e uma sensação de impotência que nublam a visão de horizontes possíveis e desafiam a imaginação esperançosa. A cultura ocidental se impõe às demais a partir da colonização ainda em curso (mesmo que não oficialmente), levando à naturalização de uma estrutura bem engendrada que sustenta o modelo hegemônico de sociedade. Supremacia branca, racismo, patriarcado, individualimo e a moralidade judaico-cristã são alguns dos principais pilares dessa sociedade capitalista e imperialista que há séculos atualiza seus métodos de dominação. Dessa forma, pensar um Brasil alternativo a esta norma envolve, primeiramente, desmascarar essa estrutura, para não correr o risco de, em vez de criar algo novo, apenas ser cooptado pelo que já vige. Uma das principais questões que norteiam a análise da dominação do mundo pela branquitude é a da identidade, sendo este um conceito com diversas e contraditórias definições. Em meio a tantos apagamentos e dominações, qual a identidade do povo brasileiro? Afinal, o que é identidade? O que este conceito abarca? Stuart Hall(2006) descreve um sujeito pós-moderno em crise de identidade, tomado por uma enxurrada de informações e imposições de culturas de massa que o tiram do que, em gerações anteriores, seria o núcleo de sua cultura, passada de geração a geração, determinando o que o sujeito é. De acordo com Calligaris(1993), a constituição do sujeito capitalista é, antes de tudo, individualista, único, original e autossuficiente. Mas o fato é que a formação do aparelho psíquico e, sobretudo, do narcisismo secundário, demandam a identificação com o Outro ou, na verdade, um conjunto de identificações que formam o que se chama de identidade. Por que é importante compreender isso? Autoras negras como Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez e Grada Kilomba discorrem brilhantemente sobre a experiência psíquica do sujeito negro em sociedades racistas. Em Memórias da Plantação, Grada analisa as consequências da escravização na vizão dos sujeitos negros sobre si, assim como denuncia a manutenção deste sistema escravagista nos signos e estruturas dos dias autais. Neusa e Lélia articulam psicanálise e formação social brasileira em seus escritos, descrevendo o quanto o Ideal de Eu branco (Neusa) funciona como dominação dos corpos e mentes negras através do auto-ódio; assim como falam da linguagem como instrumento de controle e naturalização da violência contra as mulheres negras sob os signos de doméstica, mulata e mãe preta (Lélia). Além disso, as interseccionalidades de raça e gênero, teorizadas por Kimberlé Crenshaw e bell hooks, colocam as mulheres negras em último lugar na estrutura social, com duplicadas opressões, estas sendo vistas como “o Outro do Outro” (Grada Kilomba). Desta forma, mesmo os movimentos antirracistas e feministas reproduzem essas opressões, incorrendo no erro que apontou Silvio Almeida de centralizar as lutas no identitarismo. Segundo Silvio, é preciso, sim, considerar as questões raciais, de gênero, sexualidade e tantas outras. No entanto, isto deve ser visto como parte de uma estrutura maior, visando uma transformação completa e não simples reformas focadas no identidarismo. Como seria essa transformação? Não há garantias ou receitas prontas. As dinâmicas sociais são complexas e, por vezes, imprevisíveis, além de envolverem interesses e relações de poder que impedem reais mudanças. No entanto, é possível imaginar outras realidades possíveis, utopias. A Utopia Por viver muitos anos dentro do mato moda ave O menino pegou um olhar de pássaro — Contraiu visão fontana. Por forma que ele enxergava as coisas por igual como os pássaros enxergam. As coisas todas inominadas. Água não era ainda a palavra água. Pedra não era ainda a palavra pedra. E tal. As palavras eram livres de gramáticas e podiam ficar em qualquer posição. Por forma que o menino podia inaugurar. Podia dar às pedras costumes de flor. Podia dar ao canto formato de sol. E, se quisesse caber em uma abelha, era só abrir a palavra abelha e entrar dentro dela. Como se fosse infância da língua. - Manoel de Barros Em um sistema tão bem elaborado e aparentemente implacável, que parece ter suas paredes espalhadas por todos os lados, penso que a fuga mais viável seja passar pelas brechas. Como diz Edson de Souza, a utopia é a contra-palavra, aquilo que não foi nomeado, que se contrapõe às formalizações da norma. Acredito que, neste ponto, a poesia, a infância, a dança e a festa têm muito a contribuir. Afinal, com tantas opressões cotidianas, como esses povos têm sobrevivido? Quais suas estratégias? Luiz Antônio Simas fala com paixão e poesia da cultura da rua, da margem, do povo. Pensar nos sujeitos e comunidades não brancas como meras vítimas passivas e imóveis nada mais é que uma outra face do racismo que quer saber de nós mais do que nós mesmos. É preciso nomear as opressões e dores, mas também perceber os novos caminhos que vêm sendo construídos. Ailton Krenak, em seu livro “Ideias para adiar o Fim do Mundo”(2019), aponta as contradições da sociedade capitalista, que se pretende desenvolvido, em contraponto à visão dos povos originários, sempre vista pela branquitude como folclórica e ultrapassada. Sem pretender, Ailton propõe um outro olhar sobre a identificação, desbancando o individualismo norte-americano e trazendo a possibilidade de uma identificação conscientemente coletiva. Isto, é claro, não é novidade para culturas centenárias/milenares que sempre pensaram o ser humano em existência coletiva e integrada à natureza. Krenak denuncia que estamos em constante queda, o que tentamos ignorar com a prática do consumismo, o que é parte da grande máquina da Mercadoria que é, justamente, o que vem nos derrubando. Apesar de ser um importante método de análise e ter uma grande importância política, a psicanálise, por si só, não dá conta (e nem se propõe a dar) de sugerir soluções ou resolver os problemas da sociedade. É preciso falar, também, de economia, política, sociologia, trabalho de base e, principalmente, esperanças. E por que não ter como fonte os saberes tradicionais quilombolas, indígenas, caiçaras e de tantos outros povos historicamente violentados e marginalizados? Afinal, apesar disso, eles vêm sobrevivendo e sustentando esferas de vida que há muito são ignoradas e sofrem ataques pela cultura hegemônica branca. Ulrich Beck(2011) teoriza a Sociedade do Risco, tese que chega a ser distópica, apesar de bem fundamentada na realidade. Como conclusão de sua teoria, Ulrich acredita na possibilidade de, diante de um fim iminente da raça humana, as nações se uniriam em uma Sociedade da Solidariedade, abolindo, por fim, a sociedade de classes. Tenho a esperança de que seja possível que essa outra sociedade seja inventada antes de chegar a este extremo, caso, desde agora, já começarmos a construir caminhos de transformação através das brechas da estrutura capitalista. Penso que a teoria de Beck pode ser enriquecida com os saberes milenares dos povos tradicionais que já sabem o que é viver dinâmicas de solidariedade. Culturalmente, a idolatria de uma suposta razão nos afasta de considerar como possibilidade o modelo político-econômico das culturas tradicionais, buscando unicamente teorias europeias ou estadunidenses como solução para nossos problemas. Neusa Santos Souza chama atenção para a necessidade da construçãode um Ideal de Eu negro, de referenciais e significantes próprios da negritude que sirvam como uma outra alternativa ao processo de subjetivação do negro, até então referenciado na branquitude. A partir disso, proponho o aquilombamento como estratégia para a construção de uma sociedade plural e realmente democrática. Iniciando pelo trabalho de base, inserção de mais representantes comunitárias negras e indígenas na política, uso de meios de comunicação de forma mais acessível e efetiva, poderíamos começar a abrir terrenos para novas construções. Não acredito que seja possível ou interessante descartar toda a construção da sociedade até aqui. Pelo contrário, é necessário utilizar as tecnologias, ciências e técnicas que temos. No entanto, como afirma Krenak, não nos cabe mais esta lógica de lucro e morte. É preciso inventar novas formas de viver que preservem a vida, acima de tudo, e não só a vida humana ou de alguns humanos. Isso envolve, do início ao fim, uma nova forma de educação, a valorização de outras filosofias (africanas, indígenas, quilombolas, ladino-americanas, etc), como investimento na construção de uma nova forma de pensar o ser humano e construir subjetividade. No poema trazido no início do tópico, Manoel de Barros fala de reinventar a linguagem, reaplicar as palavras, dar-lhes novos significados. Para a invenção de uma utopia, penso que este é o primeiro passo. A linguagem é uma das principais armas que vêm sendo usadas para o etnocídio e o assujeitamento psíquico das populações não brancas. É por meio das linguagens que os povos pretos e periféricos vêm resistindo, se comunicando, contando suas histórias. O Pretuguês, os idiomas indígenas, os pontos de terreiro, os sambas-enredo, a linguagem dos tambores (Luiz Antônio Simas, 2019) são veredas que anunciam a possibilidade do rompimento dessa compulsão à repetição que domina nossas sociedades há séculos. É preciso continuar esses caminhos. REFERÊNCIAS ADICIONAIS BECK, Ulrich. Sociedade do Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019. SIMAS, Luiz Antonio. Corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2019. -
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