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Indaial – 2019 Teoria das relações inTernacionais Prof. Anderson de Miranda Gomes 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2019 Elaboração: Prof. Anderson de Miranda Gomes Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: G633t Gomes, Anderson de Miranda Teoria das relações internacionais. / Anderson de Miranda Gomes. – Indaial: UNIASSELVI, 2019. 195 p.; il. ISBN 978-85-515-0346-1 1. Relações internacionais. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 327 III apresenTação Caro acadêmico! Seja bem-vindo à disciplina Teoria das Relações Internacionais! As Teorias das Relações Internacionais correspondem ao conjunto de uma disciplina relativamente recente, que teve sua maior importância e difusão depois das Guerras Mundiais e desenvolvimento durante a época de Guerra Fria. As Teorias de Relações Internacionais desempenham o papel de instrumentos teórico-conceituais capazes de entender e explicar os fenômenos relativos à ação humana que transcende o espaço interno dos Estados (países). Em outras palavras, esse conjunto teórico nos ajuda a compreender a interação dos diferentes atores no cenário internacional. A primeira unidade trata dos conceitos e os pontos de análise da disciplina. São abordados alguns pontos-chave, necessários para se pensar o relacionamento dos Estados e outros atores internacionais. Também é apresentada uma série de nomenclaturas próprias da disciplina, necessárias para se entender as teorias de Relações Internacionais. Ainda, o ambiente internacional direcionado às diferentes hierarquias de interações é apresentado nessa unidade. Outro ponto imprescindível para se entender essas teorias é conhecer os níveis de análise segundo atores e área de atuação nas relações internacionais. A compreensão da Ordem Internacional e da Ordem Mundial propiciará o melhor entendimento das divisões que existem dentro das arenas domésticas e internacionais dos Estados. Além disso, permite compreender o papel nessa interação entre os outros atores como as Organizações Internacionais, Organizações Não-governamentais Internacionais, empresas transnacionais etc. A Unidade 2 corresponde a uma síntese das principais teorias de relações internacionais em sua configuração clássica e moderna. O Tópico 1 trabalha o primeiro debate teórico das Relações Internacionais, o Realismo vs Idealismo. Nesse contexto, temos o Realismo e o Idealismo Clássico, como os pensamentos introdutórios da Teoria de Relações Internacionais. Apesar de se apropriar de outras disciplinas como as ciências sociais e filosóficas para construir um campo próprio de estudos, percebe-se a necessidade de se pensar um campo próprio das Relações Internacionais. Posteriormente, o Idealismo e o Realismo Moderno irão trazer um amadurecimento das relações internacionais como ciência. No Tópico 2 dessa unidade, as correntes teóricas trabalhadas são o Liberalismo, o Marxismo e a Escola Inglesa. Estas correntes teóricas trazem novos pontos de vista para a disciplina de RI, abordando visões diversas no entendimento da relação entre Estados. No Tópico 3, tem-se o segundo grande debate das Relações Internacionais, o do Neoliberalismo vs Neorrealismo. Essa seção traz uma preparação para IV se entender as organizações internacionais, os processos de integração internacional e o fenômeno da Globalização. A Unidade 3 está dividida na perspectiva de propiciar um entendimento de fenômenos recentes nas Relações Internacionais. Essa unidade tem a intenção de tornar o mundo mais compreensível para seus interlocutores, e em alguns casos de explicar e desenvolver possíveis previsões para o futuro. As Organizações Internacionais apresentam uma nova face das Relações Transnacionais, preocupada no aumento da cooperação e minimização dos conflitos no Sistema Internacional. A integração regional representa outro fenômeno recente que atribui uma nova configuração dos Estados, propiciando uma maior fluidez das fronteiras nacionais de algumas regiões. Por fim, continuando o pensamento neoliberal, a Globalização corresponde a uma realidade mundial, sendo a versão mais contemporânea do capitalismo. As relações entre os Estados têm se tornado cada vez mais fluidas e amplamente facilitadas pelas inovações tecnológicas e de comunicação. Dessa forma, propomos uma reflexão inicial e abrangente das Teorias de Relações Internacionais como forma de capacitar os acadêmicos a compreender essa temática recente, mas densa das ciências políticas. Destarte, tal disciplina representa uma importante ferramenta para sua capacitação profissional e ampliação do seu campo de atuação. Bons estudos! Prof. Anderson de Miranda Gomes V Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos! UNI VI VII UNIDADE 1 – GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .................................................................................................... 1 TÓPICO 1 – A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .... 3 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3 2 O ESTUDO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ...................................................................... 8 3 OS NÍVEIS DE ANÁLISE SEGUNDO ATORES E ÁREA DE ATUAÇÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ............................................................................................................................ 11 4 A ORDEM INTERNACIONAL E ORDEM MUNDIAL ............................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 17 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 19 TÓPICO2 – O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ........... 21 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 21 2.1 OS PARTIDOS POLÍTICOS ............................................................................................................ 28 2.2 OS GRUPOS DE INTERESSE E A OPINIÃO PÚBLICA NACIONAL E INTERNACIONAL .......................................................................................................................... 30 3 OS ESTADOS E OS RECURSOS DE PODER ................................................................................. 32 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 38 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 40 TÓPICO 3 – OS ATORES NÃO ESTATAIS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................ 41 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 41 2 AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS (OIS) .................. 42 2.1 ALGUMAS CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................................................................................................... 43 2.2 FUNÇÕES E ATUAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ................................ 44 2.3 PRINCIPAIS OBJETIVOS DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ............................... 46 2.4 ALGUMAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS ................................................................. 46 3 AS ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS INTERNACIONAIS (OINGs) .............. 47 4 EMPRESAS TRANSNACIONAIS (ETNs) ...................................................................................... 49 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 51 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 55 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 56 UNIDADE 2 – SÍNTESE DAS TEORIAS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ........................ 57 TÓPICO 1 – REALISMO E IDEALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .................... 59 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 59 2 REALISMO CLÁSSICO ...................................................................................................................... 62 2.1 TUCÍDIDES (471 a.C. - 400 a.C.) .................................................................................................... 62 2.2 MAQUIAVEL (1469-1527) .............................................................................................................. 65 2.3 THOMAS HOBBES (1588-1679) ..................................................................................................... 67 3 IDEALISMO CLÁSSICO .................................................................................................................... 69 sumário VIII 3.1 MARSÍLIO DE PÁDUA (1275-80-1342-43) .................................................................................. 69 3.2 THOMAS MORE (1478-1535) ........................................................................................................ 70 3.3 ABADE DE SAINT-PIERRE (1658-1743) ...................................................................................... 71 3.4 HUGO GROTIUS (1285-1343) ........................................................................................................ 72 3.5 JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1722-1778) ................................................................................... 73 4 IDEALISMO MODERNO ................................................................................................................... 73 5 REALISMO MODERNO ..................................................................................................................... 77 5.1 EDWARD H. CARR (1892-1982) .................................................................................................... 78 5.2 HANS MORGENTHAU (1904-1980) ............................................................................................ 80 5.3 CARL VON CLAUSEWITZ (1780-1831) E RAYMOND ARON (1905-1983) ........................... 85 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 87 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 88 TÓPICO 2 – LIBERALISMO, MARXISMO E ESCOLA INGLESA 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 89 2 LIBERALISMO ..................................................................................................................................... 91 2.1 LIBERALISMO PACIFÍSTA ............................................................................................................ 91 2.2 LIBERALISMO IMPERIALISTA .................................................................................................... 92 2.3 LIBERALISMO INTERNACIONALISTA..................................................................................... 92 3 MARXISMO .......................................................................................................................................... 93 3.1 A IMPORTÂNCIA DO MANIFESTO COMUNISTA PARA AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................................................................................................... 93 3.2 O IMPERIALISMO DE LENIN E BUKHARIN ........................................................................... 95 4 ESCOLA INGLESA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ....................................................... 97 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 103 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 104 TÓPICO 3 – O DEBATE DO NEORREALISMO E NEOLIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ........................................................................................................ 105 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 105 2 NEORREALISMO ................................................................................................................................ 106 3 NEOLIBERALISMO INSTITUCIONAL .......................................................................................... 109 4 O DEBATE NEORREALISMO VERSUS NEOLIBERALISMO ................................................... 115 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 119 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 120 UNIDADE 3 – GLOBALIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO REGIONAL E TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .................................................................................................... 121 TÓPICO 1 – GLOBALIZAÇÃO ............................................................................................................ 123 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................123 2 O MUNDO GLOBALIZANTE ........................................................................................................... 127 3 GLOBALIZAÇÃO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................................................................ 130 RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 137 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 138 TÓPICO 2 – TEORIAS DE INTEGRAÇÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................ 139 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 139 RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 155 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 156 IX TÓPICO 3 – TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................. 157 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 157 2 A CRISE MULTIDIMENSIONAL NA CONTEMPORANEIDADE .......................................... 160 3 TEMAS E EVENTOS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS CONTEMPORÂNEAS .......... 163 3.1 ATAQUES TERRORISTAS AOS EUA ........................................................................................... 164 3.2 O CASO DA COREIA DO NORTE ............................................................................................... 167 3.3 OS BRICS E A FORÇA DOS EMERGENTES ............................................................................... 169 3.4 A CRISE DA VENEZUELA ............................................................................................................ 171 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 179 RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 183 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 184 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 185 X 1 UNIDADE 1 GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • adquirir uma visão sistêmica do estudo das Relações Internacionais como um campo específico dentro das Ciências Políticas; • compreender o objeto, campo de estudo, gênese e desenvolvimento da área de Relações Internacionais; • compreender como se dá a ordem dos atores internacionais dentro do sis- tema e sociedade internacional. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS TÓPICO 2 – O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS TÓPICO 3 – OUTROS ATORES NÃO ESTATAIS E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 1 INTRODUÇÃO O que é a ciência das Relações Internacionais? Qual seu campo de abrangência e como estudá-lo? De que maneira as principais teorias do saber internacional se apresentam ao sujeito como síntese dogmática? Tais perguntas são o cerne e o desafio de introduzir a você, acadêmico, uma parte das ciências políticas que muitas vezes é negligenciada, não por sua falta de importância, mas pela complexidade e amplitude do campo teórico. As relações internacionais se materializam na forma de contatos, articulações e interações constantes e recorrentes entre os diversos atores (estatais, não estatais e individuais), em negociações (fechadas ou abertas) e em diversas formas de interlocução (pacíficas ou belicosas). As relações internacionais reúnem diversas forças dinâmicas que sintetizam e distribuem capitais de força-poder-interesse em tempo real e em diversas escalas (níveis de análises) (CASTRO, 2012). A busca pelo conhecimento sempre motivou estudiosos a questionar os problemas percebidos em determinado tempo e espaço, não sendo diferente no campo de estudo das relações internacionais. Tais questionamentos instigam a tentativa de compreender como se organizam as sociedades, seus costumes e suas formas de governo. Por meio de instrumentos teórico-conceituais buscou-se compreender e explicar os fenômenos relativos à ação humana que transcendem o espaço interno de determinado território. Percebeu-se assim a necessidade de se pensar o ambiente externo dos diferentes grupos e sociedades por meio de suas interações (SALDANHA, 2005). Para ajudar na compreensão da leitura deste material, alguns conceitos atrelados às Teorias de Relações Internacionais são indispensáveis. Tais conceitos serão melhor explicados no decorrer das unidades. Essas ferramentas conceituais foram retiradas do quadro conceitual de Castro (2012, p. 76). QUADRO 1 – QUADRO CONCEITUAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS • Estado – Entidade político-jurídica que representa a engrenagem central das relações internacionais dotada de população permanente, de território reconhecido, de governo aceito e de exercício de soberania estatal no plano interno e externo, perfazendo, assim, seu jus dominium (direito de governar). Em decorrência disso, possui capacidade de autogoverno, poder de polícia e organização institucional. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4 • Soberania estatal – conceito derivado do latim summa potestas. A soberania é prerrogativa exclusiva do exercício da capacidade de mando do Estado nacional reconhecido. Em sua vertente interna, diz respeito ao exercício de autogoverno, de poder de polícia e capacidade de organização político- administrativa, enquanto que em sua esfera externa diz respeito a sua presença reconhecida, à prerrogativa jurídica e à articulação internacional com base no jus in bellum (direito de decretar guerra e celebrar a paz com outros Estados), jus tractum (direito de negociar, assinar, ratificar e denunciar tratados) e jus legationis (direito de legação em sua dimensão ativa e passiva; sendo a dimensão ativa a capacidade de receber, enquanto que na passiva diz respeito ao recebimento de agentes consulares e diplomáticos), jus petitionis (direito de solicitar a prestação jurisdicional em tribunais internacionais quando aceitar a juris dire (poder de dizer do Direito) de várias Cortes, podendo, para tanto, ser parte ativa ou passiva em processos judiciais) e jus representationis (direito de representar e fazer-se representar em organismos internacionais, agências multilaterais e programas com direito a voz, voto e determinação de agenda). • Estatocentrismo (Sistema estatocêntrico internacional) – Sistema internacional criado e reconhecido após o Tratado de Westphalia de 1648, que tem no Estado nacional com sua summa potestas (poder supremo; poder soberano) a base fundamental de engrenagens endógenas e exógenas internacionais. Sistema de uniformização estatal e de prevalência de seus institutos soberanos. • Hegemonia – Exercício de hiperpoder multidimensional por um ou mais Estados em escala global. O exercício hegemônico pressupõe reconhecimento de tal capacidade por parte dos demais Estados. É escalonada na forma de consolidação, primeiramente, da liderança, posteriormente, da supremacia em determinadas áreas. Dessa forma, hegemonia representa a materialização plena e internacionalmente reconhecida de supremacia em todas asvariáveis do poder internacional. A hegemonia é atingida pela concentração cratológica do(s) Estado(s). • Poder – Capacidade de alterar o comportamento de outros atores internacionais por meio de exercício de dominação e controle com finalidades determinadas. Integra os KFPI. Em nossa visão, o poder internacional de um Estado (PI) é expresso pelo somatório de poderes político-diplomático, econômico-financeiro, cultural, militar e geodemográfico. • Polaridade – Quantidade de polos ou de centros hegemônicos (hiperpoderio ou hiperpolo) no cenário internacional, limitados, geograficamente, pelo conceito de sistemia (macro, meso ou microssistemia). Representa acumulação expressiva de capitais de força-poder-interesse (KFPI) em um ator internacional. A polaridade refere-se também à morfologia de distribuição desigual e de relacionamento entre os atores internacionais, gerando a estratificação cratológica na forma de pirâmide dos Estados. TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 5 • Lateralidade – Quantidade de Estados ou outros atores internacionais envolvidos em um determinado processo jurídico-negocial. Quantidade de entes partícipes em determinada conjuntura de interação diplomática. Indica também o número de participantes em um conjunto de diálogos normativos internacionais, concebidos por meio dos Padrões de Dissuasão-Normas- Valores (PDNV). • Capitais de força-poder-interesse (KFPI) – Base triangular fundamental e indissociável de explicação e previsão dos fenômenos da política internacional com suas engrenagens. O trinômio força-poder-interesse se expressa como capitais (KFPI) não uniformemente distribuídos entre os Estados e demais atores internacionais. A capitalização de força-poder-interesse se justifica pelo fato de que o mesmo pode ser utilizado como moeda de troca na forma de favor e influência, representando a alavanca motriz das RI. Os KFPI são considerados como a tese do comportamento externo. • Padrões de Dissuasão-Normas-Valores (PDNV) – Os padrões representam o contraponto dos capitais de força-poder-interesse, revelando a forma de contenção do impulso motriz dos KFPI. Os padrões de dissuasão-norma- valores são a antítese do comportamento externo manifestado pelos KFPI, gerando a síntese posterior da lógica da interação externa. • Constrangimentos (Constraints) – Limitações fáticas ou barreiras endógenas ou exógenas ao uso dos KFPI disponíveis dos atores internacionais em determinados contextos. Os constrangimentos podem ser de natureza material ou imaterial. • Balança de poder – Regra geral de pesos e contrapesos ao exercício dos KFPI em conjunto com os PDNV no âmbito das relações dos Estados, dotando-os de capacidade de manter um certo (e frágil) equilíbrio sistêmico. Balança de poder tem proximidade com dois outros conceitos importantes: teoria do poder gravitacional e esferas de influência. • Teoria do poder gravitacional (TPG) – Originando-se das ciências físicas, a TPG é o conjunto de esferas de influência bem marcadas em razão da força de atração de polos/eixos de maior densidade de poder aos Estados menores vizinhos. A gravitação de poder gera Estados satélites de acordo com a órbita dos polos de poder com maior densidade de KFPI. • Ordem Mundial – Recorte temporal de longa duração com determinação da governança entre os Estados por meio da junção do exercício de poder (cratologia) hegemônico em parceria com seus valores, princípios e ideais exportados e aceitos pela maioria dos demais Estados. A Ordem Mundial é posta, de forma impositiva, sob a égide do status quo aos demais pelo(s) país(es) hegemônico(s). A Ordem Mundial é um sinônimo de governança mundial (GM). • Dilemas de segurança – Situação de contradição causal entre o exercício da soberania estatal que pode ser fonte de segurança para os cidadãos e, ao mesmo tempo, pode oferecer pontuais riscos e ameaças internas e externas a outros Estados. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 6 • Lealdade – Capacidade de aderir a determinados padrões, regras e condutas no plano interno ou internacional de acordo com o jogo dos capitais de força- poder-interesse disponíveis e padrões dissuasão-normas-valores no contexto específico. Sua moeda de troca é o favor e os ganhos residuais. Lealdade difere muito da subjugação pelo fato de que a lealdade, na política internacional, possui elementos de espontaneidade por conveniência, por coerção ou por convicção, enquanto a subjugação pressupõe relação assimétrica de imposição, demandando comportamentos de submissão involuntária. • Controlabilidade – Diante da incapacidade relativa de Estados, organismos multilaterais e agências manterem o efetivo domínio sobre os fluxos transacionais (resultando em baixa controlabilidade), desenvolve-se aqui a relação entre as lealdades de vários atores não estatais internacionais do segundo setor para concretização de ganhos no sentido amplo. Controlabilidade não deve ser confundida com anarquia externa. Tem proximidade ao sentido de regimes internacionais. FONTE: Castro (2012, p. 76) NOTANOTA A Cratologia é a Ciência para pesquisar o poder em todas as manifestações conscienciais. Nesse caso, a concentração cratológica se refere à concentração de todos os poderes de um Estado. Esses conceitos serão retomados no decorrer das unidades. Porém foi preci- so sua prévia apresentação para continuar a explanação das relações internacionais como ciência. Não obstante, o que se tem que primar é que as relações internacio- nais se dão por meio de uma complexa rede de atores num espaço transnacional. Tal interação é construída em uma arena além das fronteiras políticas e geográficas caracterizada por um estado de anarquia. Ou seja, não havendo (pelo menos legal- mente) um poder ou autoridade global, busca-se a tentativa de entender os acon- tecimentos e fenômenos que não respeitavam uma delimitação fronteiriça tanto na sua formação quanto nos seus efeitos. Em outras palavras, a disciplina de Rela- ções Internacionais anseia a compreensão da evolução dos relacionamentos entre diferentes territórios (além-fronteiras), a ampliação da esfera internacional com o surgimento de diferentes atores internacionais e as capacidades de poder que são construídas dentro do sistema internacional (SARFATI, 2005). Desta forma, as Relações Internacionais, como objeto e disciplina, surgem pela necessidade de as sociedades compreenderem suas realidades internas e ex- ternas aos seus limites territoriais. O objeto de estudo das Relações Internacionais são os “atores, os acontecimentos e fenômenos que existem e interagem no sis- tema internacional, ou seja, além das fronteiras domésticas das sociedades” (PE- TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 7 NOTA A Paz de Westfália foi o resultado da assinatura de uma série de tratados que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos, em 1648. Esta garantiu o direito de cada Estado manter a religião escolhida por seu príncipe, bem como sua organização política, sem interferências externas. Inaugurou-se assim o sistema laico de relações internacionais, reconhecendo uma sociedade de Estados fundada nos princípios da soberania territorial e da não intervenção de cada um desses Estados nos assuntos internos dos demais. FONTE:<http://www.ojs.ufpi.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/1954/1383>. Acesso em: 21 jun. 2019. CEQUILO, 2010, p. 14, grifo nosso). Por sua vez, como disciplina, esta encontra-se no agrupamento das Ciências Sociais, pois é por meio do estudo das sociedades que a investigação teórica se desenvolve. Também pode ser considerada dentro da área de Ciências Humanas, se pensarmos que a menor unidade dentro de uma sociedade ou grupo sempre será o indivíduo (humano). As Teorias das Relações Internacionais almejam tornar o mundo mais compreensível para seus interlocutores, trazendo em alguns momentos a propos- ta de previsibilidadedos diversos atores do ambiente internacional. Nas relações internacionais existe uma dualidade de pensamento e autores que trabalham seu objeto de estudo (seja qual for a amplitude de seu nível de análise). Existem os que trabalham com as teorias positivistas, os quais acreditam em verdades uni- versais e científicas, e os que abordam as teorias pós-positivistas, ou seja, aquelas que duvidam da legitimidade do conhecimento científico e contestam as bases epistemológicas, metodológicas e teóricas dos discursos dominantes. Indepen- dentemente de qual perspectiva teórica que se adote, as relações internacionais possuem origens e fontes históricas, geográficas e socioculturais vastas e distin- tas, que irão pautar as observações no comportamento humano em sociedade. O saber internacional, como objeto categórico analítico, é antiquíssimo e remonta à investigação positiva, normativa e descritiva do enigmático fenômeno humano em suas múltiplas teias de relacionamento interativo social e em vários compartimentos. O ser humano é meio e fim das entranhas das Relações Internacionais. Sendo o destinatário primaz de tais estudos, o ser humano com suas encruzilhadas e seus labirintos representa, portanto, o foco da ciência política internacional (CASTRO, 2012, p. 52). As relações internacionais sempre foram estudadas, principalmente com a formação do sistema europeu de Estados, após a Paz de Westfália. Nesta ocasião, os diversos interesses dos Estados europeus foram estudados. Propiciou a percepção da expansão naval da Grã-Bretanha no processo de equilíbrio do poder marítimo holandês e a investida de contenção do expansionismo francês. “Percebeu-se a ascensão da Rússia como potência expansionista no Leste; a competição da Áustria e Prússia pelo domínio do fragmentado espaço alemão” (MAGNOLI, 2008, p. 99). UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 8 O debate intelectual adveio com o fim da Primeira Guerra Mundial e a transformação tecnológica e estrutural do cenário mundial. Houve comoção internacional sobre os efeitos deste conflito coletivo de dimensão global (para a época). O rastro de devastação nunca vislumbrado foi narrado com precisão contabilizando não somente as perdas materiais, mas principalmente humanas. Com o fim do conflito, os líderes das potências vencedoras sofreram pressão de suas populações para criarem mecanismos que evitassem a repetição de um acontecimento tão traumático. A capacidade bélica por meio dos avanços tecnológicos, o fortalecimento do capitalismo e o socialismo da revolução russa promoveram os estudos das relações internacionais de maneira mais organizada e sistematizada. Houve, assim, a necessidade de se explicar a realidade internacional e a criação de um campo de estudos específico. Diferentemente das Ciências Exatas e Biológicas, em que a investigação do objeto de estudo se dá por meio de métodos científicos baseados em modelos mais concretos, nas relações internacionais tem-se a tradição da interpretação e o subjetivismo. Trata-se de um campo de estudos considerado recente, nascido na época de Guerra Fria e desenvolvido basicamente a partir da década de setenta. É uma construção teórica condicionada por uma participação racional, empírica e crítica do sujeito e dependente do paradigma e instrumentos analisados. Em outras palavras, as relações internacionais podem ser conceituadas de diferentes formas a partir de suas perspectivas teóricas. Nos próximos tópicos serão vistas diferentes visões e paradigmas de seu arcabouço teórico (SALDANHA, 2005). NOTA A Guerra Fria, iniciada após a Segunda Guerra Mundial (1945), durou até a extinção da União Soviética (1991). Esta é a designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, disputando a hegemonia política, econômica e militar no mundo. Tem esse nome pois, apesar de um estágio de tensão entre os dois blocos políticos (Capitalismo – EUA e Socialismo – URSS), os dois países nunca se confrontaram belicamente de forma direta. 2 O ESTUDO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS As Relações Internacionais como ciência tiveram sua formação baseada na influência da filosofia durante o século XVIII. Grandes filósofos, como Espinoza, Rousseau e Kant, tiveram importante papel no processo de examinar as relações entre os Estados, baseados em sua força e poder. No entanto, como visto anteriormente, no período das grandes guerras essa ciência se desenvolveu e passou a ser estudada nas principais universidades anglo-saxônicas. A ciência primeiramente se orientou na explicação da política externa desses Estados, nas suas relações de conflito e cooperação nos campos político e econômico. TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 9 A expressão "relações internacionais" remete a uma ambiguidade de entendimento, ou pelo menos uma imprecisão conceitual. No Brasil, as relações internacionais estão ainda muito direcionadas à interação estabelecida entre as unidades políticas (Estados Nacionais), se confundindo com a área de política internacional (diplomacia e questões de segurança militar). No entanto, as relações que os países mantêm entre si perpassam não somente a arena política, sendo essas afetadas por diversas outras áreas. “As relações econômicas, jurídicas, geográficas, linguísticas, históricas, religiosas, ambientais – todas elas têm sua 'autonomia', isto é, sua dinâmica própria, e não são redutíveis à política internacional” (LACERDA, 2006, p. 57). Nesse contexto, as relações internacionais podem ser definidas “como o conjunto de relações e comunicações suscetíveis de ter dimensões política, econômica, social e cultural, estabelecidas entre grupos sociais, atravessando as respectivas fronteiras” (BRAILLARD; DJALILI, 1988, p. 11). Durante o século XX, as relações internacionais passaram a ter papel de visibilidade na vida cotidiana devido às trocas internacionais, a conexão e o crescimento sem precedentes da revolução industrial e tecnológica. A divisão internacional do trabalho e a constituição de um mercado mundial conduziram uma série de inter-relações de conflito e cooperação entre os Estados e demais atores internacionais. A necessidade de garantir a soberania dos Estados e paralelamente o seu desenvolvimento econômico orientou novos sistemas de armamento e consequente busca pelo entendimento da dinâmica na ordem internacional. Assim, a nova disciplina de Relações Internacionais é a consequência do desejo fortemente sentido nos Estados Unidos no clima do pós-Primeira Guerra Mundial de compreender as origens de um tal conflito e de construir uma sociedade internacional pacífica (RODRIGUES, 2004; CARR, 1964). Percebe-se uma multiplicidade de interpretações nas relações dos diferentes atores (Estados, organizações institucionais, indivíduos, empresas multinacionais etc.) dentro do cenário internacional. Tal cenário antes era abordado e entendido exclusivamente por outras disciplinas, como História, Economia ou pelo Direito Internacional. A primeira abordagem das relações internacionais sustentou-se sobre a prerrogativa da existência de um ordenamento moral. Tratava-se da discussão de pressupostos abstratos e universalmente válidos no ambiente internacional. Pensava-se no possível processo de desenvolvimento das instituições da sociedade como uma evolução do ordenamento internacional (MORGENTHAU, 2003). Nessa perspectiva, havia uma despreocupação com a sustentabilidade desse desenvolvimento, na confiança de que o senso de humanidade seria um processo evolutivo natural e capaz de superar a instabilidade da ordem internacional. Supunha-se que os objetivos da sociedade internacional seriam coordenados pelas recém-criadas organizações internacionais na metade do século XX. Não obstante, a natureza humana, dotada de imperfeições, resultou UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS10 em interesses contrários aos pressupostos dos princípios morais no ordenamento internacional (DUTRA, 2015). Destarte, o desenvolvimento progressivo do ambiente internacional fora frustrado, experimentando equilíbrios temporários devido a soluções precárias dos conflitos no ordenamento internacional, ou seja, a natureza conflituosa das sociedades no ambiente internacional sempre retornava após esses equilíbrios temporários (MORGENTHAU, 2003). A variável “poder” dominou a discussão sobre o espaço ambiental, tanto que no início, o termo “política de poder” foi muito utilizado como sinônimo de política internacional. Nesse contexto, as relações internacionais eram entendidas como a capacidade de um ator internacional interferir nas ações de outros, impondo sua vontade aos demais (ARON, 2002). Na metade do século XX, outras variáveis se tornaram o cerne da discussão das relações internacionais. Essa discussão passou a ser pautada nas relações do homem dentro da sociedade em detrimento do entendimento da natureza do homem como fator absoluto. Buscou-se assim uma conexão entre o indivíduo e o agrupamento a que este pertencia. Da mesma maneira, buscou-se entender o comportamento do homem, do Estado e de um sistema de Estados para entender o ambiente internacional (DUTRA, 2015). Assim, a evolução da ciência das relações internacionais passou a discorrer sobre um ambiente ainda mais complexo, no entendimento da atuação dos Estados no cenário internacional. Buscava-se assim a explicação dos interesses comuns das comunidades no sistema internacional (WIGHT, 2002). Então, as relações internacionais passam a ser percebidas como um campo de estudo complexo, que por um lado tem a percepção de um cenário internacional complexo que interfere e constrange as ações dos Estados em suas políticas externas. De outra perspectiva, tem-se uma maior inter-relação entre os atores (Estados, indivíduos políticos, organizações institucionais supranacionais, ONGs, empresas transnacionais etc.) no cenário internacional. “Tais perspectivas originam um debate internacional que passou a considerar novos padrões da existência internacional. Inaugurando no último quarto do século XX um campo original de ideias sobre novos paradigmas aceitos pela política internacional” (DUTRA, 2015, p. 113). Destarte, as relações internacionais, tanto como ciência autônoma quanto como práxis atrelada aos atos e fatos gerados pelos sujeitos (atores internacionais), irão se materializar na forma de contatos, articulações e interação constante em diversas formas de interlocução (pacíficas ou belicosas). Essas dinâmicas de força- poder-interesse se dão em diferentes escalas (níveis de análises), sendo necessário entender qual a abrangência em que se irá estudar essas relações. TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 11 3 OS NÍVEIS DE ANÁLISE SEGUNDO ATORES E ÁREA DE ATUAÇÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A importância do estudo das relações internacionais é autoevidente, porque estão em toda parte, fazem parte do nosso cotidiano, quer queiramos ou não. O saber internacional perpassa nossas vidas, amplia nossas visões, redefine quem somos como cidadãos e disseca a forma de analisar e tratar o outro. Sua força questiona e transforma o Estado, seu papel e suas atribuições, (re)equacionando a lógica de poder entre cidadãos, empresas, unidades subnacionais, sociedade civil e organismos multilaterais (CASTRO, 2012). Quando não havia os institutos acadêmicos de Relações Internacionais, os eventos e fatos vinculados a essa área temática eram tratados pela ótica do Direito Internacional, da diplomacia e da História (SALDANHA, 2005). Com a necessidade de explicar as novas questões internacionais, tais como o comércio exterior, a economia internacional e o surgimento de novas potências, a disciplina de Relações Internacionais foi objetivada sob a perspectiva da realidade e da soberania estatal. No processo de unificação nacional dos Estados, este conceito de soberania ganhou duas faces: no ambiente interno, configurou a concentração do poder político nas mãos do rei e a submissão dos indivíduos ao ordenamento jurídico estatal; no ambiente externo, trouxe a possibilidade de que os Estados mantivessem relações econômicas e políticas entre si, mesmo em estado de guerra. Nesse sentido, para se discutir as relações internacionais, o estudioso precisa escolher um nível de análise e os protagonistas (atores mais importantes) para se pautar nos debates. As teorias de Relações Internacionais consideram os seguintes atores: • Indivíduos: Donald Trump; Nicolás Maduro; Ângela Merkel; Kim Jong-un etc. • Órgãos burocráticos governamentais: Ministério das Relações Exteriores; Departamento de Defesa; Câmara dos Deputados etc. • Estados: Brasil; Estados Unidos da América; Alemanha; República da Coreia; Arábia Saudita; China; Nigéria; Austrália etc. • Organizações intergovernamentais internacionais: ONU; OEA; UA; OTAN; Liga Árabe etc. • Organizações não governamentais: WWF; Cruz Vermelha; Anistia Internacional; Green Peace; Médicos Sem Fronteira etc. • Outros atores: Empresas transnacionais; grupos terroristas; Igreja; grupos com conhecimento específico (comunidades epistêmicas) etc. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 12 Por sua vez, a análise se dá do nível mais micro (o indivíduo) ao mais macro (Sistema Internacional). Esta representação pode ser observada na Figura 1: FIGURA 1 – NÍVEIS DE ANÁLISE EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS FONTE: Sarfati (2005, p. 31) O nível individual de análise concentra-se sobre a natureza dos homens em sua explicação. Por meio dessa natureza, objetiva-se explicar a causa das guerras e de todas as outras interações segundo a racionalidade dos líderes dos Estados e detentores de poder político. Pode-se pensar, por exemplo, a postura de um presidente frente a outro em diferentes mandatos políticos. Um líder político atual pode estar mais inclinado às questões militares e de segurança do que seu antecessor. O nível societal está associado a quando se analisa os grupos de interesse e os diferentes setores da burocracia estatal. Continuando o exemplo da guerra, o interesse de diferentes grupos, como a indústria bélica, os articuladores do Ministério da Defesa podem direcionar as ações de maior ou menor propensão aos conflitos ou corrida armamentista. A análise pelo nível estatal concentra-se no comportamento desta unidade (Estado, país) como o cerne dos acontecimentos e interação internacional. A guerra seria explicada, por exemplo, como a maneira de garantir a segurança e a integridade do Estado, promovendo assim sua soberania e integridade. O nível supraestatal de análise foca na explicação das relações internacionais por meio dos atores intragovernamentais, como a ONU e outros (Estrutura do) Sistema Internacional Supraestatal Estado Sociedade Indivíduos TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 13 atores não estatais, como as ONGs internacionais e as empresas transnacionais. Ainda com a questão das guerras, o Conselho de Segurança da ONU seria o cerne da análise de como as relações de paz entre os atores estatais tendem a ser conduzidas. O último nível de análise é o do Sistema Internacional. Trata-se no nível macro das relações internacionais, englobando todas as ações dentro de um sistema e suas relações com o seu meio ambiente. Em relações internacionais, o Sistema Internacional engloba todas as relações entre os atores internacionais. Uma explicação sistêmica da guerra seria embasada na natureza anárquica das relações internacionais. Ou seja, não há uma estrutura hierárquica internacional capaz de coordenar as unidades (Estados) e suas ações de demonstração de poder (guerra). Não se tem (pelo menos eficiente e suficientemente capaz) um organismo ou poder supranacional capaz de “ditar as regras de convívio” ou “balancear” as estruturasde poder dos atores estatais. Para revisarmos esses pontos até agora estudados, pega-se como exemplo o conflito entre Síria e Estados Unidos da América. Os atores são os protagonistas e o nível de análise seria o foco da explicação do conflito. Ao considerar o nível sistêmico de análise, temos a anarquia como a explicação do conflito. Porém, os Estados Unidos, a Síria, as forças beligerantes e até a ONU correspondem aos atores deste evento. NOTA O adjetivo beligerante vem da raiz latina “bellum” e significa guerra. As forças beligerantes então são as forças ou indivíduos relacionados à guerra, ou seja, são atitudes agressivas ou bélicas em que um exército enfrenta o outro com determinação (CONCEITOS. COM, 2018). No entanto, se o nível de análise for o indivíduo, os protagonistas seriam os Estados e o foco da explicação estaria na natureza humana agressiva. Faz-se necessário também chamar a atenção de que a escolha de análise se dará ao modelo teórico escolhido e que uma variedade destes modelos será vista na próxima unidade. Independentemente do modelo teórico escolhido, tem-se que entender que os Estados sempre foram os principais atores das relações internacionais. Não se descarta a importância das empresas transnacionais ou as organizações internacionais estatais e não governamentais, mas é fato o eminente papel do ator estatal. Mas por que os Estados são considerados como os principais atores das relações internacionais? Trata-se de um questionamento de difícil explicação, sendo que há muitos estudiosos que rejeitam essa máxima. No entanto, tem- UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 14 se uma resposta “tradicional” no estudo da política internacional que sinaliza a legitimidade da supremacia destes atores nas inter-relações do ambiente internacional. Como antes mencionado, com o Acordo de Westfália, de 1648, os Estados surgem como dotados de soberania sobre determinada porção territorial. Nestes territórios foi convencionado um estado de liberdade intrínseca, não sofrendo intervenção de outras entidades soberanas estrangeiras. Em outras palavras, dentro destas porções territoriais, os governantes têm o direito de ação porque os outros agentes externos às fronteiras consideram legítima a soberania dentro da região. Na contemporaneidade, outros atores internacionais, além dos Estados, passaram a ser considerados de alta relevância nas relações internacionais. Isso se dá porque as dinâmicas que outrora aconteciam respeitando a tradicional visão de territorialidade agora se tornaram fluidas, de caráter transnacional (não estando ligadas aos territórios nacionais de forma estática). Neste contexto, aumentam o número e a intervenção dos Organismos Burocráticos Internacionais (OIs), Organizações Internacionais Não governamentais (OINGs), Empresas Transnacionais (ETNs) etc. Esses atores não poderiam ser contidos nas fronteiras territoriais estatais, passando a cumprir ou exercer algumas funções antes delegadas exclusivamente aos Estados. Tendo essa breve introdução apresentada, passa-se a entender o ambiente internacional onde os atores internacionais estabelecem suas relações. Como se dá a Ordem Mundial dentro de um sistema de relações denominado Sistema Internacional. 4 A ORDEM INTERNACIONAL E ORDEM MUNDIAL A ordem internacional “refere-se a um padrão de atividades que sustenta os objetivos elementares ou primários da sociedade dos estados, ou sociedade internacional” (BULL, 2002, p. 13). O autor discute a existência dessa “ordem” na interpretação de alguns conceitos como “Estados”, “Sistemas de Estados” e “Sociedade de Estados”, também chamada de Sociedade Internacional. Por ordem internacional ou Ordem Mundial, entende-se uma função à estrutura de poder das relações internacionais em um determinado período histórico, com sua governança estabelecida pela polaridade (multipolar, bipolar ou unipolar). Nesses determinados períodos se estabelece um conjunto dos valores sociais, morais, intelectuais e filosóficos de um determinado grupo hegemônico aos demais Estados. Assim, a Ordem Mundial dita e forma os padrões comportamentais e os alinhamentos dos demais países aos centros hegemônicos daquele período. Neste contexto, por meio da governança mundial se tem o estabelecimento do relacionamento internacional entre os atores no complexo cenário internacional. TÓPICO 1 | A DISCIPLINA, CAMPO E OBJETO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 15 Governo e governança são termos diferentes. O governo representa a concessão de poderes do povo para uma representação política doméstica. No contexto internacional, por sua vez, não há um governo mundial, daí a diferença do uso dos termos governo e governança. ATENCAO Em toda a história da humanidade nunca houve um único sistema político que abrangesse todos os Estados ou unidades territoriais anteriores a estes. Assim, a sociedade humana até a segunda metade do século XIX era representada por uma Ordem Mundial que nada mais era do que a soma dos vários sistemas políticos que impunham ordem a diferentes partes do globo. No entanto, a partir do fim do século XIX e do princípio do século XX, houve o surgimento de um sistema político caracteristicamente global. A ordem em escala local passa para escala mundial com a soma da ordem existente dentro dos Estados da Europa e da América; nos Impérios Otomano, Chinês e Japonês e nos Sultanatos e Principados do Saara à Ásia, e dentro dos sistemas políticos primitivos na África e na Oceania. Trata-se de um sistema político que funcionava em todo o mundo, ligando todas essas unidades (BULL, 2002). A transformação dessa nova realidade de uma recente ordem internacional foi a expansão do sistema de estados europeu por todo o globo, propiciando a sua transformação em um sistema de estados de dimensão global. Essa transformação permitiu certo grau de interação entre os sistemas políticos em todo o mundo, abrangendo todos os continentes. A primeira fase deste processo começou com os descobrimentos portugueses e espanhóis no século XV, até a partilha da África, no século XIX. A segunda fase na transformação da Ordem Mundial sobrepôs em determinado período a primeira, quando algumas regiões dominadas se livraram do controle europeu, assumindo seus lugares como estados membros da sociedade internacional. Trata-se de um período que se iniciou com a Revolução Americana e desencadeou a revolução anticolonialista da África e da Ásia. NOTA A Revolução Americana também é conhecida como a Guerra da Independência dos Estados Unidos ou ainda Revolução Americana de 1776, teve suas raízes na assinatura do Tratado de Paris, que, em 1763, finalizou a Guerra dos Sete Anos. Trata-se do evento revolucionário que levou a primeira colônia na história da expansão europeia a tornar- se independente. Tal evento influenciou a Revolução Francesa (1789) e as subsequentes revoluções na Europa e América do Sul (HOFFMANN; PETER, 1981). UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 16 Um ponto interessante e que deve ser questionado é: a Ordem Internacional significa o mesmo que a Ordem Mundial? De maneira direta e sintética, a diferença entre estes dois conceitos é que “a ordem no conjunto da humanidade é mais abrangente do que a ordem entre os estados: algo mais fundamental e primordial, e que moralmente a precede” (BULL, 2002, p. 29). Assim, podemos dizer que a Ordem Mundial é mais ampla do que a ordem internacional, porque “para descrevê-la precisamos tratar não só da ordem entre os estados, mas também da ordem em escala interna ou local, existente dentro de cada Estado, assim como da ordem dentro do sistema político mundial mais amplo, em que o sistema de estados é apenas um componente” (BULL, 2002, p. 30). Entende-se dessa forma que a Ordem Mundial é mais fundamental e importante do que a ordem internacional, porque as unidades primárias da sociedade internacional não seriam os estados,mas sim os seres humanos individuais, que são os elementos indissociáveis em qualquer estrutura política ou social do mundo. Não obstante, para se verificar o valor da ordem no conjunto da sociedade humana (valor maior), precisa-se da instrumentação orientada pela ferramenta macro das relações internacionais, a da ordem dos Estados. Neste contexto, verifica-se no próximo tópico uma investigação do ator mais relevante das relações internacionais: o Estado. 17 Neste tópico, você aprendeu que: • As Relações Internacionais reúnem diversas forças dinâmicas que sintetizam e distribuem capitais de força-poder-interesse em tempo real e em diversas escalas (níveis de análises). • Os questionamentos sobre as relações internacionais instigam a busca por entender como se organizam as sociedades, seus costumes e suas formas de governo. • Há fenômenos relativos à ação humana que transcendem o espaço interno de determinado território. • Alguns conceitos que são comumente usados no estudo de Relações Internacionais, como: Estado, Soberania estatal, Estatocentrismo (Sistema estatocêntrico internacional), Hegemonia, Poder, Polaridade, Lateralidade, Capitais de força-poder-interesse (KFPI), Padrões de Dissuasão-Normas- Valores (PDNV), Constrangimentos (Constraints), Balança de poder, Teoria do poder gravitacional (TPG), Ordem Mundial, Dilemas de segurança, Lealdade e Controlabilidade. • As Relações Internacionais, como objeto e disciplina, surgem pela necessidade de as sociedades compreenderem suas realidades internas e externas aos seus limites territoriais. • A variável “poder” dominou a discussão sobre o espaço ambiental, tanto que no início o termo “política de poder” foi muito utilizado como sinônimo de política internacional. • A evolução da ciência das relações internacionais passou a discorrer sobre um ambiente mais complexo, no entendimento da atuação dos Estados no cenário internacional. Buscava-se assim a explicação dos interesses comuns das comunidades no sistema internacional. • As teorias de Relações Internacionais consideram os seguintes atores: Indivíduos; Órgãos Burocráticos Governamentais; Estados; Organizações Intergovernamentais Internacionais; Organizações Não Governamentais; e outros. RESUMO DO TÓPICO 1 18 • A análise das relações internacionais se dá do nível mais micro (o indivíduo) ao mais macro (Sistema Internacional): indivíduos; sociedades; Estados; Supraestatal; e Sistema Internacional. • A ordem internacional refere-se a um padrão de atividades que sustenta os objetivos elementares ou primários da sociedade dos estados, ou sociedade internacional. 19 1 Sobre a soberania estatal, assinale V para as assertivas verdadeiras e F para as falsas. ( ) Conceito derivado do latim summa potestas, a soberania é prerrogativa do exercício da obediência do Estado nacional aos seus cidadãos. ( ) Em sua vertente externa, a soberania diz respeito ao exercício de autogoverno, de poder de polícia e capacidade de organização político- administrativa. ( ) Na sua esfera interna, a soberania diz respeito à sua presença reconhecida, à prerrogativa jurídica e à articulação internacional com base no jus in bellum (direito de decretar guerra e celebrar a paz com outros Estados). ( ) A articulação com base no jus tractum, o Estado tem direito de negociar, assinar, ratificar e denunciar tratados. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) V – V – F – F. b) ( ) F – F – V – V. c) ( ) V – F – V – F. d) ( ) F – F – F – V. e) ( ) V – V – V – V. 2 Quanto aos atores das Relações Internacionais, associe os itens a seguir: I- Indivíduos II- Órgãos Burocráticos Governamentais III- Estados IV- Organizações Intergovernamentais Internacionais V- Organizações Não Governamentais VI- Outros atores a) ( ) OMS b) ( ) Anistia Internacional c) ( ) Kim Jung-un d) ( ) Coca-Cola f) ( ) Jamahiria Árabe Popular Socialista da Líbia e) ( ) Itamaraty AUTOATIVIDADE 20 21 TÓPICO 2 O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO O conceito de Estado mais elucidativo refere-se a sua complexidade institucional que confere a unidade e o reconhecimento de suas atribuições e ações tanto no cenário doméstico (interior) quanto internacional. Esta configuração é aceita pela sociedade civil e pelos demais atores internacionais, caracterizando a legitimidade de ser representado sob diferentes aspectos na política internacional. Assim, esse conceito pode ser sintetizado como: Estado é um corpo político-jurídico-diplomático complexo dotado de unidade territorial, governo reconhecido interna e externamente, regido por um sistema jurídico-administrativo, tendo centralidade no plano da articulação na arena internacional e comportando uma determinada sociedade civil (CASTRO, 2012, p. 110). Como dito no capítulo anterior, os Estados representam os atores mais importantes das relações internacionais, sendo o ponto de partida da inter-relação das dinâmicas além das fronteiras territoriais. Estes representam comunidades políticas independentes, possuindo governos próprios que afirmam sua soberania através de seu povo e território. Os Estados, até o século XX, foram como os únicos atores internacionais no cenário internacional. Apesar da entrada de novos atores nas dinâmicas do ambiente internacional, a autonomia dos Estados continua sendo indiscutível e indissolúvel, mesmo frente às novas dinâmicas de mercado e do fluxo tecnológico. O que irá se diferenciar entre os Estados é a importância relativa entre um e outro, baseada nas suas capacidades de poder e negociação, ou seja, suas possibilidades internas e externas que definiram suas condições de soberania. Com o fim da Guerra de 30 anos e o acordo de Westfália, a determinação do território e o reconhecimento dos outros Estados em fazer valer a soberania foram ratificados. Neste momento, tais atores têm sua origem jurídica no Direito Internacional lhes garantindo a plena autonomia de ação e decisão dentro das suas fronteiras. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 22 O Estado fundamenta-se em três aspectos materiais: o território, a população e o governo. O Estado, personalidade originária de direito internacional público, ostenta três elementos conjugados: uma base territorial, uma comunidade humana estabelecida sobre essa área, e uma forma de governo não subordinada a qualquer autoridade exterior (REZEK, 2005, p. 161). A apreciação desses três aspectos materiais é detalhada no quadro a seguir segundo Pecequilo: QUADRO 2 – TRÊS ASPECTOS MATERIAIS DO ESTADO • Território: Este aspecto está relacionado ao espaço geográfico de cada Estado, tendo as fronteiras delimitadas e reconhecidas por outros Estados. Nesta unidade política individual existem a soberania e a autonomia política. Ou seja, dentro desta arena, o Estado tem poder total sobre sua população, realizando ações de acordo com seus interesses domésticos (internos). Esses interesses têm uma racionalização que vislumbra os custos e benefícios de todas suas ações, nas quais os outros Estados não podem interferir (pelo menos diretamente) nos fluxos internos. Assim, o reconhecimento do poder do Estado é soberano e supremo dentro das suas fronteiras. Trata-se do princípio da territorialidade. • População: Trata-se do quadro de habitantes de um Estado que possuem uma identidade comum e estão inseridos dentro de uma unidade política, linguística, cultural, econômica e social. Existem muitos Estados formados por uma única nação, conferindo uma nacionalidade. No entanto, a maioria dos Estados modernos é formada por povos de diferentes nacionalidades, não constituindo um grupo homogêneo. O Brasil, por exemplo, é um Estado em que sua população é proveniente de diversos povos oriundos da Europa, África e Ásia. Tais povos integram-se formando um grupo que tem uma unidade cultural e linguística nacional comum, a nacionalidade brasileira. No caso do Brasil,essa interação é pacífica, o que não ocorre em muitos lugares do mundo, como aconteceu na ex-Iugoslávia. • Governo: Trata-se do terceiro elemento material do Estado representado pela centralização das autoridades dentro do território nacional. O governo representa a organização do comando político e da administração pública do Estado. Pode-se dizer que o governo seria uma das instituições que compõem o Estado, o responsável por administrar o Estado. Os governos podem mudar e apresentar diferentes formas, variando de um lugar para outro. O governo detém o monopólio da força legítima, comandando os fluxos internos de sua sociedade. Esse é aceito legal e legitimamente nas suas relações domésticas pela sua sociedade. FONTE: Pecequilo (2010, p. 43) TÓPICO 2 | O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 23 NOTA A Federação Iugoslava ou antiga Iugoslávia originou-se após a Primeira Guerra Mundial, a partir de territórios que faziam parte dos Impérios Austro-Húngaro e Turco- Otomano. Era composta por diferentes povos: croatas, eslovenos, sérvios, muçulmanos, albaneses, macedônios, entre outros. Esses povos tinham diferentes características culturais, como a língua, os hábitos e a religião, tão específicos que chegaram a entrar em conflito várias vezes no decorrer da história. Estes conflitos geraram os seguintes estados: Eslovênia, Croácia, Macedônia, Bósnia e Herzegovina, Montenegro, Sérvia e Kosovo (este último é um Estado de reconhecimento limitado, sendo que somente 111 dos 193 países que pertencem à ONU reconhecem sua independência) (SPENCER TUCKER, 2005). Nesse contexto, os Estados possuem prerrogativas privativas e inerentes às suas condições, remetendo-os como principais “engrenagens” das relações internacionais. Dentre essas prerrogativas têm-se: população permanente, território reconhecido, governo aceito e exercício de soberania interna e externa. Destarte, o sistema estatal instrumentaliza o conceito de summa potestas (soberania). A soberania reflete o exercício pleno, efetivo e de direito de poder decretar guerra e celebrar a paz com outros Estados. Também, de ter representação diplomática e consular, de celebrar tratados, de solicitar prestação jurisdicional em tribunais internacionais e de representar e ser representado em instâncias multilaterais com exercício de voto, de voz e de agenda. Em suma, O Estado é uma macroprojeção dos indivíduos, de suas instituições e seus processos internos e com relação ao exterior que estão tutelados sob sua summa potestas (CASTRO, 2012, p. 110). A Figura 2 apresenta um esquema com os quatro elementos constitutivos do Estado: População permanente adstrita ao jus dominium próprio, Reconhecimento (interna e externamente), Governo aceito e Soberania interna e externa. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 24 FIGURA 2 – ESQUEMA SINTÉTICO SOBRE OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO ESTADO FONTE: Castro (2012, p. 111) A Convenção Interamericana de Direitos e Deveres dos Estados, firmada em Montevidéu em 1933 (CONVENÇÃO DE VIENA, 1933), entende que a população de determinado Estado representa a coletividade de indivíduos, nacionais e estrangeiros, que habitam o território em determinado momento. Essa expressão demográfica, como mencionada na primeira parte do capítulo, está ligada ao seu jus dominium (direito de governar). Ou seja, dentro do território, o governo tem sua autonomia de gestão política, institucional e poder de polícia. O reconhecimento do Estado, conjuntamente ao começo das relações diplomáticas bilaterais, é de real significância para o surgimento e confirmação do Estado. Trata-se de uma concretização da aceitação da personalidade jurídica internacional não só para o Estado que reconhece, como para todos os demais no âmbito multilateral das organizações internacionais. Representa o início dos atos com fé pública do novo Estado, revelando sua existência e sua oficialidade como ator internacional. Tal ação discricionária, unilateral e soberana no reconhecimento dos Estados preexistentes aos novos, representa uma prerrogativa política de cada Estado individualmente (CASTRO, 2012). O reconhecimento do Estado pode ser explícito ou implícito, individual ou coletivo: • O reconhecimento explícito se dá por nota, declaração ou acordo diplomático do Estado já existente ao novo Estado. • O reconhecimento implícito pode ocorrer através de tratado comercial ou envio de representação diplomática mútua entre os Estados pactuantes. • O reconhecimento individual se dá através de uma relação bilateral ou unilateral de um país independente ou liberto do jugo colonial. • O reconhecimento coletivo se dá quando um grupo de novos Estados passa a ser reconhecido por uma organização internacional ou por um único Estado. Duas questões estão diretamente associadas ao reconhecimento de novos Estados: a retroatividade e a irrevogabilidade (MELLO, 2002). População permanente adstrita ao jus dominium próprio reconhecido (interna e externamente) Governo aceito Soberania interna e externa Efetiva e reconhecida Estado nacional: (Sistema de Território Westphalia) Jus tractum Jus in bellum Jus legationis Jus petitionis Jus representationis TÓPICO 2 | O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 25 • Princípio da retroatividade: o reconhecimento de um Estado é válido desde o momento em que ele surgiu e não pode ser suspenso. • Princípio da irrevogabilidade: uma vez aceito o novo Estado, não se pode mais retirar o reconhecimento desse Estado, pois isso produziria uma enorme instabilidade nas relações interestatais. A seguir tem-se um exemplo do reconhecimento do Estado Palestino com fronteiras anteriores ao ano de 1967, por parte do Estado brasileiro, que ocorreu em 3 de dezembro de 2010. Este reconhecimento foi explícito por meio de carta oficial enviada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao chefe de Estado Mahmoud Abbas (ITAMARATY, 2018): QUADRO 3 – CARTA OFICIAL Carta do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Mahmound Abbas a respeito do Reconhecimento pelo Governo Brasileiro do Estado Palestino nas Fronteiras de 1967 03/12/2010 Carta do Prezidente Luiz Inácio Lula da Silva: "À sua Excelência Mahmound Abbas Presidente da Autoridade Nacional Palestina Senhor Presidente, Li com atenção a carta de 24 de novembro, por meio da qual Vossa Excelência solicita que o Brasil reconheça o Estado palestino nas fronteiras de 1967. Como sabe Vossa Excelência, o Brasil tem defendido historicamente, e em particular durante meu Governo, a concentralização da legítima aspiração do povo palestino a um Estado coeso, seguro, democrático e economicamente viável, coexistindo em paz com Israel. Temos nos empenhado em favorecer as negociações de paz, buscar a estabilidade na regiãoe e aliviar a crise humanitária por que passa boa parte do povo palestino. Condenamos quaisquer atos terroristas, praticados sob qualquer pretexto. Nos últimos anos, o Brasil intensificou suas relações diplomáticas com todos os países da região, seja pela abertura de novos postos, inclusive um Escritório de Representação em Ramalá; por uma maiorfrequência de visitas de alto nível, de que é exemplo minha visita a Israel, Palestina e Jordânia em marco último; ou pelo aprofundamento das UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 26 relações comerciais, como mostra a série de acordos de livre comércio assinados ou em negociaçao. Nos contatos bilaterais, o Governo brasileiro notou os esforços bem sucedidos da Autoridade Nacional Palestina para dinamizar a economia da Cisjordânia, prestar serviços à sua população e melhorar as condições de segurança nos Territórios Ocupados. Por considerar que a solicitação apresentada por Vossa Excelência é justa e coerente com os princípios defendidos pelo Brasil para a Questão Palestina, o Brasil, por meio desta carta, reconhece o Estado palestino nas fronteiras de 1967.Ao fazê-lo, quero reiterar o entendimento do Governo brasileiro de que somente o diálogo e a convivência pacífica os vizinhos farão avançar verdadeiramente a causa palestina. Estou seguro de que este é também 0 pensamento de Vossa Excelência O reconhecimento do Estado palestino é parte da convicção brasileira de que um processo negociador que resulte em dois Estados convivendo pacificamente e em segurança é o melhor caminho para a paz no Oriente Médio, objetivo que interessa a toda a humanidade. O Brasil estará sempre pronto a ajudar no que for necessário. Desejo a Vossa Excelência e à Autoridade Nacional Palestina êxito na condução de um processo que leve à construção do Estado palestino democrático, próspero e pacífico a que todos aspiramos. Aproveito a ocasião para reiterar a Vossa Excelência a minha mais alta estima e consideração. O reconhecimento interno do Estado está baseado na legitimidade, em que sua população passa a reconhecer tanto o território como o governo que se instaura sobre ele. Esse tipo de reconhecimento é tão importante quanto o reconhecimento externo, pois é um fator essencial para que as atividades políticas possam se desenvolver dentro do território. Voltando ao caso da ex- Iugoslávia, verifica-se que o processo de desmantelamento do Estado se deu em função dos conflitos multidimensionais entre os povos que foram vinculados naquele território. As questões étnicas e religiosas acabaram por não permitir uma identidade comum e o não reconhecimento do Estado da Iugoslávia por sua própria população, ocasionando um sucessivo processo de desmembramento de outros Estados que queriam sua independência política. FONTE: Itamaraty (2018) TÓPICO 2 | O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 27 FIGURA 3 – MAPA DA ANTIGA IUGOSLÁVIA E A SEPARAÇÃO DE NOVOS ESTADOS FONTE: <http://bit.ly/2ZcPM77>. Acesso em: 15 jan. 2019. Outro elemento constitutivo do Estado é o Governo aceito, ou seja, a legitimidade do poder exercido pelo governo que é delegado pelo povo aos seus representantes eleitos. Este elemento está intimamente ligado ao elemento soberania. O Governo aceito representa um conjunto complexo de funcionalidades imprescindíveis para a conservação das determinações jurídicas e da administração pública (CANAL FORENSE, 2017). Existe diferença entre reconhecimento de Estado e de Governo aceito. Os governos (forma regiminis) são dinâmicos a partir de condicionantes eleitorais domésticos, espelhando a pluralidade das forças partidárias dos Estados. Por sua vez, os Estados (forma imperi), como pessoa jurídica de Direito Público, permanecem de forma perene, embora se reconheça, na doutrina do Direito Internacional, a sucessão e a extinção de Estados, bem como sua união real e pessoal, transformando substancialmente sua existência, sua continuidade e sua personalidade jurídica perante o cenário internacional (CASTRO, 2012). Assim, com essa breve introdução do principal ator internacional, o Estado e seus elementos constitutivos, passa-se a verificar no próximo capítulo importantes componentes que irão modelar as ações dos Estados dentro do Sistema Internacional. UNIDADE 1 | GÊNESE, DESENVOLVIMENTO E ATORES DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 28 2 COMPONENTES MODELADORES DO COMPORTAMENTO DOS ESTADOS Para verificar como os Estados se comportam no Sistema Internacional, não se pode estudar o Estado como um “ser” independente, pois sobre ele se insere uma variedade de necessidades e circunstâncias que irão modelar seu modo de agir e inter-relacionar. Dessa maneira, é preciso considerar as diversas forças vinculadas à governabilidade e as decorrentes transformações internacionais advindas de cada atividade política no Estado. Desta maneira, destacam-se nesse capítulo três forças principais: os Partidos Políticos, os Grupos de Interesse e a Opinião Pública nacional e internacional. 2.1 OS PARTIDOS POLÍTICOS No interior da estrutura institucional dos Estados, os partidos políticos representam elementos organizados da ação política que têm a tarefa de representar os anseios da sociedade civil. Esses partidos, por meio das eleições, disputam as vagas de poder, representando constantes e permanentes fóruns de negociação. Estes têm a capacidade de influenciar a formação de políticas públicas e tomada de decisão em dada sociedade. Os partidos políticos são os mediadores entre o poder público e a sociedade, sendo considerados como “agentes da conquista e exercício do poder político” (MERLE, 1981, p. 228). Ou seja, são fatores extrainstitucionais que estão numa posição privilegiada (PECEQUILO, 2010). Os partidos políticos têm diferentes características ideológicas e, consequentemente, prioridades almejadas. Além da força, a ação dos partidos políticos está relacionada à condição das regras do sistema partidário e do jogo de poder dentro dos Estados. Sua atuação se dá mais no ambiente doméstico, porém também atuam na agenda internacional, de acordo com os anseios da população interna, que lhes confere poder. As questões internacionais são recorrentes quando estas produzem significativo impacto dentro do Estado ou quando são úteis para o interesse da ampliação do poder de um partido. Motivados pelos grandes temas da agenda internacional na década de 1980, os partidos passaram a se interessar pelas relações internacionais brasileiras. Começa-se a buscar explicações para essa mudança comportamental dos partidos. De atores marginalizados, os partidos políticos passam a atores-chave no processo de discussão e formulação da política externa atual (MESQUITA, 2012, p. 151). Alguns exemplos de como os partidos tendem a politizar nas relações internacionais, se aproximando dos assuntos de política externa são os casos de oposição e defesa da participação do Brasil na crise de Honduras; a tentativa de atuar como mediador nas questões nucleares iranianas; o tema dos direitos humanos; as discussões englobando a expansão do Mercosul etc. (MESQUITA, 2012) TÓPICO 2 | O ESTADO – PRINCIPAL ATOR DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 29 NOTA Status quo é uma expressão do latim que significa “estado atual”. Neste sentido, quando se diz que “devemos manter o status quo”, significa que a intenção é manter o atual cenário, situação ou condição. Os partidos políticos representam grupos que são ouvidos em matérias complexas, como renegociação de dívida externa, negociações comerciais, políticas de desarmamento, questões ambientais etc. Ou seja, os partidos políticos não estão à margem da formulação e da execução das políticas externas do Estado, mas atuam como influenciadores na tomada de decisão do governo vigente e a nova postura de ações consonantes com o Congresso e o Poder Executivo. Em regimes democráticos, os partidos políticos exercem sua função de maneira a permitir que dentro do Estado ocorra uma alternância de poder, que Castro (2012, p. 132) chama de uma “oxigenação na alternância de poder do Estado”. Ou seja, os partidos políticos aglomeram iniciativas e ideários comuns sobre projetos estatais e plataformas políticas de seus interesses, e com isso, há uma possibilidade cíclica de uma renovação no exercício do poder. Em suma, todo partido político deseja conquistar o poder político e exercê-lo em consonância com seus ideais, prolongando sua permanência ao máximo no exercício de suas atribuições (DUVERGER,1970). Por outro lado, também existe uma dinâmica específica em sistemas autoritários. Esses regimes, geralmente, têm uma censura considerável que inibe o livre exercício partidário, materializando frequentemente um único partido. É compreensível que nesses sistemas autoritários haja o sufocamento da livre iniciativa de associação partidária. E ainda, quando há um direcionamento de vinculação partidária nesses regimes autoritários, essa se dá por meio de rebeliões e guerras civis visando à modificação do status quo (CASTRO, 2012). 2.2 OS GRUPOS DE INTERESSE E A OPINIÃO PÚBLICA NACIONAL
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