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66 “cor das safiras”, rosto “da alvura dos lírios” e “loiros cabelos”, porém não consegue encontrar um guerreiro que a deseje, terminando por viver “[...] sozinha, chorando mesquinha, que sou Marabá!” (DIAS, 1968, p. 325). Essas representações da população indígena presentes nas obras literárias criam um ideal que se encaixa em um perfil de guerreiros honrados. Assim, impossibilita-se outra manifestação cultural e psicológica. Além disso, entra em cena a crença em um tipo indígena preso no passado, que não conseguiu acompanhar o desenvolvimento da civilização brasileira. 12 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL: DENÚNCIAS E CRUELDADE No ano de 1869, Joaquim Manuel Macedo publica um romance intitulado As Vítimas-Algozes: Quadros da Escravidão, uma obra de literatura que propõe uma espécie de denúncia contra a escravidão praticada no Brasil. Seu autor era um emancipacionista convicto e defende, utilizando diversos argumentos, o fim da escravidão, pois para ele “A escravidão gasta, caleja, petrifica, mata o coração do homem escravo [...]” (MACEDO, 1869, p. 53). O romance narra a história de três escravizados, todos com características que têm o objetivo de demonstrar como a sociedade era afetada pela escravidão. São eles: Simeão, o crioulo; Pai-Raiol, o feiticeiro; e Lucinda, a mucama. Apesar de ser uma obra de ficção, o autor deixa claro o seu papel de denúncia, na medida em que os textos escritos são “[...] romances sem atavios, contos sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas aos nossos olhos, e a que não poderá negar-se o vosso testemunho [...]” (MACEDO, 1869, p. 1). A construção da argumentação de Macedo (1869) é baseada na ideia de que a escravidão era um atraso econômico, uma ideia inaceitável em um país que deveria passar por um processo de modernização, deixando de ser agrícola. Além disso, o autor defende uma linha de pensamento que demonstra a crueldade desse sistema: a escravidão era um veneno e criava inimigos dentro de casa. Isso mostra que Macedo (1869) entende o escravo como o verdadeiro inimigo, pois é 67 corrompido pelo sistema e simultaneamente corrompe a sociedade. Para o autor, o Brasil deveria acabar com a escravidão, não por humanidade, mas para se livrar dos incômodos desse sistema, incluindo aí a população afrodescendente. Uma das personagens principais da obra de Macedo (1869, p. 157) é a mucama Lucinda, “Uma escrava mucama da menina que em breve ia ser moça!”. A menina chama-se Cândida e acaba de completar 11 anos de idade, ganhando como presente, uma prática comum do Brasil oitocentista, uma jovem mucama, Lucinda. No desenrolar da trama, o problema surge a partir do momento em que a mucama Lucinda, corrupta e imoral, começa a fazer parte do cotidiano da doce e angelical Cândida. O uso de adjetivos para definir os comportamentos da mucama e da menina é intencional por parte do autor; de um lado, há uma pessoa corrupta e imoral; do outro, alguém doce e angelical. O contato entre elas cria uma rachadura no comportamento que era esperado para uma moça que faria parte da sociedade. Após várias conversas, a mucama percebe que a menina é ingênua e começa a questionar seus conhecimentos sobre “ser moça” e “casamento”, maculando assim sua pureza inicial. Segundo o autor, a escrava Lucinda, que em momento algum demonstra inocência em suas atitudes, envenena a alma de Cândida com as “explicações necessariamente imorais” (MACEDO, 1869). Com essa narrativa, o autor tem por objetivo criar uma dicotomia entre as protagonistas, Cândida e Lucinda. A primeira é uma menina branca, ingênua e pura que é corrompida pela segunda, uma escrava negra e promíscua. Essa dinâmica torna a sinhazinha “escrava da sua escrava” (MACEDO, 1869), uma vez que desperta nela um desejo que não poderia ser conhecido naquele momento e que só foi possível graças à convivência degenerante. Para o autor emancipacionista, um dos piores males que a escravidão gerava era o da convivência entre inimigos naturais, ou seja, senhores e escravos. Segundo ele, “O escravo é necessariamente mal e inimigo do seu senhor. A madre- fera escravidão faz perversa, e vos cerca de inimigos [...]” (MACEDO, 1869, p. 29). Essa ideia é percebida quando, ao explicar a transgressão do caráter de Cândida por Lucinda, o autor afirma que “[...] a ideia do casamento atirada ali de mistura com 68 a de moça feita confundiu ainda mais a pobre e curiosa menina abandonada à companhia da mulher escrava [...]” (MACEDO, 1869, p. 172). Novamente, percebe- se a suposta depravação que a escravidão trazia para os brancos. Era por meio do “abandono à companhia da mulher escrava” que as sinhazinhas e a sociedade branca em geral eram corrompidas aos poucos pelos negros escravizados. Essa percepção negativa sobre as consequências que a presença dos escravizados tinha no cotidiano da população não se resumiu às escravas mucamas, estendendo-se a outro personagem de As Vítimas Algozes, Simeão, um crioulo, o qual também é afetado psicologicamente pela ação degenerativa da escravidão. O fato de o indivíduo ser um escravo alterava a sua percepção emocional: Simeão não possuía a capacidade de amar, já que a escravidão o degradava e arrancava toda e qualquer forma de sentimento puro. Veja: O escravo não amava, não amou Florinda; mas em sua mente audaz, em seus instintos escandalosos, revoltantemente ultrajadores e licenciosos, lembrou, contemplando a senhora-moça, o que lembrava aproximando-se da negra fácil, da escrava desmoralizada que lhe agradava e não fugia a seus ignóbeis afagos (MACEDO, 1869, p. 51). As denúncias da escravidão presentes na obra de Macedo (1869) também são estendidas aos escravizados, daí o título da obra, Vítimas Algozes. A ideia é que aqueles que sofrem a violência da escravidão reproduzem essa mesma violência na sociedade, tornando-se também algozes. Esse pensamento deve ser dimensionado, pois cria uma espécie de amenização da escravidão desenvolvida no Brasil, uma vez que retira parte da culpa dos próprios senhores de escravos, já que estes também se tornam vítimas do processo. Em uma perspectiva diferente, outro autor que também contesta a escravidão desenvolvida no Brasil é Machado de Assis. Ao contrário do que acontece no caso de outros autores da sua época, como o próprio Macedo (1869), as denúncias de Machado de Assis são explícitas e o caráter cruel e violento da escravidão é denunciado em suas páginas. As várias faces da escravidão são mostradas por Machado de Assis nas suas obras. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, Prudêncio, um antigo escravo do protagonista, é visto no cais do Valongo impondo sua fúria a outro 69 indivíduo, também negro, porém seu escravo. Essa violência era uma reação à condição de vida imposta ao indivíduo escravizado: Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha- lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera (ASSIS, 1881, p. 76). Outro autor que também viveu e escreveu sobre o século XIX no Brasil, enfocando o tema da escravidão, foi Castro Alves, conhecido como “o poeta dos escravos”. Ele faleceu com apenas 24 anos, sem ver a abolição da escravidão nem a publicação da sua obra máxima, Navio negreiro, de 1880. Nessa obra, ficam evidentes os horrores da escravidão e as condições desumanas do transporte marítimo dos “tumbeiros”, termo que designava popularmente os navios que transportavam os escravizados na travessia transatlântica. Como o índice de mortandade era elevado, a comparação com tumbas era evidente.A obra é dividida em partes (cantos): (1) a descrição do belo natural, a exuberância da natureza brasileira; (2) a descrição do belo humano, a valorização dos marinheiros dos diferentes países; (3) a indignação ao ver o que se passa no interior do navio, a estupefação; (4) a descrição dos horrores cometidos contra os escravos; (5) a comparação da vida pregressa dos negros com o horror do momento; e (6) a crítica ao Brasil, por se beneficiar da infame escravidão. 13 POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA Uma educação antirracista nas escolas deve contemplar a identidade e a história dos indivíduos e dos respectivos grupos que frequentam o ambiente escolar. Para que esse processo seja de fato efetivado, a escola deve repensar a sua estrutura, ampliando a definição de currículo, avaliação e material didático e as formas de ação entre corpo docente e corpo discente.