Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ANÁLISE DA PRÁTICA DE HISTÓRIA V/ ESTÁGIO EM HISTÓRIA V PROF. HELI SABINO ARTHUR BARRA JOSEANE JUSTI MARCELA HENRIQUES VICTOR ARCANJO RESENHA FÍLMICA “NENHUM A MENOS” BELO HORIZONTE DEZEMBRO DE 2022 FICHA TÉCNICA Título original: Yi Ge Dou Bu Neng Shao Título traduzido: Nenhum a Menos Ano de produção: 1999 Direção: Zhang Yimou Estreia: 7 de setembro de 1999 Duração: 106 minutos Gênero: Drama País de origem: China Premiações: Festival de Veneza, de São Paulo, de Xangai e Beijing 1999. Sinopse: Quando o professor da escola primária de uma pequena aldeia rural em Shuiquan tem que se afastar do trabalho por um mês, a única pessoa que pode substituí-lo é Wei (Wei Minzhi), uma tímida jovem de 13 anos sem experiência alguma na arte de lecionar. Ela recebe a estrita ordem de que deve manter todos os alunos na escola e não deixar nenhum partir. Teimosa, ela fará de tudo para cumprir o plano, algo prova ser mais difícil do que parece quando o pequeno Zhang (Zhang Huike) é obrigado a deixar a aldeia e ir para cidade a fim de arrumar um trabalho. Contando com o apoio de seus alunos, a determinada professora vai a pé atrás de seu aluno perdido e não vai desistir até trazê-lo de volta. RESENHA CRÍTICA De acordo com o historiador Marc Ferro1, pode-se enxergar na produção fílmica grande potencial documental, que envolve a leitura do dito e do não-dito, levando-nos ao que o autor nomeia como contra análise da sociedade. É nesse sentido que é construído o enredo de Nenhum a menos, que busca causar uma reflexão sobre as condições da educação chinesa na zona rural do país, a partir da história de uma jovem que é desafiada a mudar uma realidade de evasão escolar e superar os limites de uma educação precária e limitada em uma escola da aldeia chamada Shuiquan. A trama tem seu início marcado com a designação de Wei Minzhi como professora, uma garota de treze anos de idade, pelo prefeito do vilarejo, para substituir o professor titular, Gao, que precisava se ausentar para cuidar de sua mãe, que estava à beira da morte. Devido às precárias condições de trabalho, nenhum professor havia aceito a vaga, e Wei é “contratada” 1 FERRO, Marc. O Filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: Novos Objetos. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 199-215. pelo valor de somente 15 yuans, que seriam pagos no final do mês de trabalho, caso a garota não permitisse que nenhum dos 28 alunos deixassem a escola. As precárias condições de vida são demonstradas durante todo o enredo, a começar pelas miséria e fome da aldeia e pelo cenário principal, a escola, que além de sua função educativa, era também a morada do professor e dos alunos. Além disso, Gao havia deixado uma orientação expressa sobre a escassez do material escolar, que se limitava ao uso de um palito de giz por dia, para que a caixa pudesse durar até o final do mês. Assim, em paralelo à trama, a direção de Yimou colocou como “não-dito” a deficiente educação chinesa com a falta de reconhecimento, incentivo e investimento do poder público. Wei, assim como Gao, deveria além de passar lições, preparar a comida para seus alunos e cuidar deles fora do ambiente da sala de aula. Pouco mais velha do que seus alunos, que tinham entre quatro e onze anos de idade, inicialmente a menina não é reconhecida como professora, e tem de enfrentar diversas situações de indisciplina e desrespeito. Com pouco conhecimento para transmitir, pois só tinha o ensino primário, Wei se limitava a copiar lições na lousa e mandar que os alunos as copiassem e resolvessem, os deixando presos na sala de aula até que terminassem, sentada ao lado de fora da porta. Sem o despertar do interesse, o resultado era a falta de atenção dos alunos e uma bagunça generalizada. Ao longo desse primeiro momento do filme, o enredo se resume na construção da relação professora-alunos entre Wei e as crianças. Inicialmente, a garota se limita a impedir que os alunos abandonassem a escola. A exemplo tem-se a cena em que uma de suas alunas, que percorria dezenas de quilômetros por dia, é oferecida para a escola de esportes pelo prefeito da aldeia e Wei corre desesperadamente, e de forma frustrante, atrás do carro para tentar impedir que a menina fosse levada. Posteriormente, a trama procura retratar que pequenas mudanças de atitude podem influenciar toda a realidade; como quando os alunos ensinam a professora a valorizar a profissão, na cena que se desenrola quando os gizes caem no chão e se quebram e, na sequência, quando o aluno Zhang Huike pega o diário da monitora da sala sem autorização e lê as páginas em que a aluna revela sua indignação com a falta de cuidado da professora Wei, que não tinha o mesmo zelo do professor Gao pelos gizes. A partir de então, o comportamento de Wei passa a se modificar. Entretanto, antes de nos aprofundarmos na segunda metade da obra, é interessante a análise das simbólicas tensões entre Wei e o aluno Zhang Huike. Assim, quando a jovem é escolhida pelo prefeito para assumir a turma, a primeira interação de ambos se torna prenúncio de um caminho muito percorrido no desenrolar da narrativa: a questão da identidade docente. “Ela é só a irmã de Wei Chunzhi” é a primeira fala do garoto ao se referir a Wei que, se recusando a atribuir à ela a função de professora, desafia a figura e a autoridade da garota. Mimetizando o professor Gao, que na cena anterior questiona a capacidade de Wei em assumir a responsabilidade em dar aulas diante dos alunos, Zhang Huike cumpre o papel, nesse primeiro momento, de desafiar a competência da nova mentora. Dessa maneira, apesar de estar dentro do ambiente escolar, Wei não se torna naturalmente uma professora e enfrenta oposições em reconhecer a legitimidade de sua autoridade. Praticando uma pedagogia cínica, resumida em repetições e reproduções de lições básicas, os alunos não conseguem ver sentido no ensino de Wei e, logo, duvidam de sua suficiência. E nesse constante tensionamento, a figura de Zhang Huike, progressivamente, se torna um obstáculo para a manutenção de uma harmonia em sala de aula. Desafiador, o garoto é apresentado como um agente de desordem e de disputa naquele espaço. Em certo momento, quando Zhang estava fazendo bagunça, uma aluna apresenta uma queixa a Wei, que responde repetidas vezes: “Não posso fazer nada”. Em outra situação, somos interpelados por uma cena que transmite, através de uma alegoria, a principal ideia do filme. Em uma de suas práticas de desobediência, o garoto foge de sala e, muito determinado, corre da professora que, no mesmo grau de persistência, persegue o garoto até conseguir alcançá-lo. A imagem que é retratada, pode ser utilizada como uma metáfora que sintetiza o cerne dos sentimentos mobilizados no filme - ilustra essa tentativa incansável do docente em não deixar o aluno escapar da escola, de não permitir nenhum a menos. O que acontece na sequência, também gira em torno de Zhang Huike - que parece estar envolvido em todos os acontecimentos daquela aldeia. Após a cena sobre os gizes, já apresentada, temos início o segundo segmento do filme. Isto posto, ao chegar na escola e iniciar sua aula como de costume, Wei faz a chamada e percebe que o aluno não está mais presente em sala, que havia ido embora. Saindo, portanto, da primeira parte, onde as cenas do filme se concentram na escola da zona rural da China, a segunda parte vai ter no cenário, ambientes diametralmente opostos, como a o universo tumultuado e opulento da cidade. Buscando entender o que aconteceu para a evasão de Zhang Huike, Wei vai iniciar uma missão para trazê-lo de volta. E, em primeiro lugar, vai à sua casa e descobre que o menino havia ido para a cidade, junto a outras crianças da região, para procurar emprego e ajudar a família endividada e a mãe doente. A superação do quadro de uma pedagogia cínica para aconstrução de outras perspectivas de ensino se dá na medida em que há uma virada de chave na conjuntura em que se estabelecem as relações entre professora e alunos. O desinteresse é superado pela motivação articuladora, quando o desaparecimento do aluno Zhang possibilita uma ação conjunta, o trabalho em equipe o qual evidencia que a construção de saber não se dá somente de forma hierarquizada, do professor para o aluno, mas que se faz partindo de um ponto em comum. Essa perspectiva desenhada pela narrativa fílmica parece corroborar com as reflexões de Bernard Charlot2, segundo as quais o processo de ensino-aprendizagem deve ter como sujeito um agente que se movimenta no mundo social, que o coloca como elemento ativo nos trânsitos entre o saber e o aprender. Ainda segundo Charlot3, a posição ativa do sujeito manifesta-se a partir do desejo que ele tem sobre o que é aprendido e o sentido que ele atribui a aquele conhecimento. Ou seja, a forma como os indivíduos veem o mundo contribui para a maneira como eles vão dar valor às coisas que os rodeiam. Assim, o desejo só pode ser despertado quando ele está dotado de sentido. Isso acontece quando Zhang evade a escola para sustentar sua família. O ambiente escolar, que se fez hostil à presença do aluno indisciplinado, encontra nessa situação uma pedagogia ativa. A professora assume o compromisso de resgatar o aluno, inicialmente pensando na sua remuneração, mas, aos poucos atribui outros sentidos emancipatórios nesse ato. Assim, articula-se a turma para arrecadar fundos para comprar as passagens para a cidade, constroem pensamento matemático sobre os valores das passagens, sobre os valores que precisam ser levantados, e pensam alternativas para conseguir a quantia. Os alunos se reconheceram como sujeitos do conhecimento e se apropriaram do sentido que aquele processo possuía nas suas vidas e na vida da comunidade escolar. Reuniram-se para juntar tijolos e para cobrar o dono da fábrica os valores referentes ao serviço. Sem romantizar a precarização do ensino e da pobreza que coloca uma pré adolescente na condição de professora, sem preparação e idade para assumir tal cargo, o fato é que Wei só é reconhecida como professora na medida em que ela também passa a atribuir sentido para a sua função. Nesse aspecto, ocorre um processo duplo de reconhecimento do posto por parte dos alunos, enquanto ela também começa agir de acordo importância do seu cargo, a partir dos processos de ensino-aprendizagem e da relação professora-alunos que o contexto da evasão de Zhang permite. A narrativa fílmica, nesse ponto, além de evidenciar a necessidade dos sujeitos ativos na construção do saber, salienta também para a formação do profissional professor. Assim, a figura do professor não é uma entidade que entra em sala de aula pronta, 3 Idem. 2 CHARLOT, Bernard. “O filho do homem”: obrigado aprender para ser (Uma perspectiva antropológica). In: CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber. São Paulo: Artmed, 2000, 51-58. moldada em formas pré fabricadas e finalizadas em si. Isso significa que ser professor é estar em constante formação, articulando novas formas de ensinar, e, com isso, de aprender em conjunto. Nesse aspecto, a própria identidade profissional se constitui na medida em que há esses processos de troca em sala de aula, no ambiente escolar, com os alunos e colegas. A cena simbólica que reforça essa mudança de reconhecimento de Wei enquanto professora é quando o grupo de alunos, junto a professora, resolve entrar em um estabelecimento e comprar duas latas de refrigerante Coca-Cola com saldo do dinheiro recolhido. Como a quantidade de bebida era insatisfatória para todos, uma das crianças disse: “É pouco pra todo mundo (...) Deixem a professora tomar”. Essa cena evidencia o reconhecimento de Wei enquanto professora em um momento específico que é a compra de um refrigerante que parece soar como crítica ao governo chinês. Por outro lado, alude também ao contexto em que se encontram os profissionais da educação, principalmente aqueles condicionados às realidades periféricas e rurais, que estão circundadas da escassez e da precarização. Entre a romantização e a espetacularização da realidade, o que ocorre é que o cálculo dos valores para a passagem foram equivocados, e Wei precisou ir a pé na busca de Zhang, o que alude ainda mais aos sacrifícios com os quais os professores precisam lidar. A partir da chegada da jovem Wei no centro urbano, o filme passa a evidenciar os desafios da professora na busca por Zhang, bem como as dificuldades de sobrevivência do mesmo na cidade populosa e movimentada. Nesse momento são acentuadas situações precárias como a fome, falta de alojamento, na qual ambos enfrentaram frente à nova realidade, diferente da que viviam na vila. A reviravolta acontece quando a professora Wei tenta de todas as formas entrar em contato com o diretor de uma emissora de televisão, passando horas a fio a esperar na porta pelo diretor da empresa, perguntando a cada cidadão que passava se era ou não o diretor da dita emissora. Seus investimentos na busca pelo aluno perdido tiveram frutos a partir do momento em que chegaram aos ouvidos do diretor que havia uma mulher a mais de um dia na porta da emissora em busca de ajuda. Com isso, o diretor manda chamá-la e após alguns minutos de conversa na qual ela explicou a situação, o responsável pela rede televisiva permite que ela conceda uma entrevista a um de seus programas em que o tema seria a experiência na vida rural. A entrevista começa com algumas perguntas, respondidas pelo silêncio enlutado da professora e algumas lágrimas que lhe escorrem pelo rosto. Após esse momento de silêncio, parte marcante do filme, a jovem Wei faz um apelo em rede nacional para que seu aluno retornasse. A entrevista e o apelo são assistidos por várias localidades, permitindo que Zhang também pudesse assistir e ir de encontro a sua professora. Diante do reencontro, da história comovente que levou a professora em busca de seu aluno e da situação de precariedade em que a vila foi apresentada, a emissora propôs a fazer uma matéria na comunidade. No caminho de volta pra casa perguntaram ao aluno que retornava qual foi o momento mais difícil que enfrentou na cidade e ele disse com olhos tristes ter sido a fome. Com o apoio da emissora a escola do vilarejo recebeu uma série de benefícios, entre eles várias caixas de giz colorido, situação diferente da demonstrada no início do filme quando haviam poucos gizes e somente na cor branca. A cena final da obra cinematográfica acontece na sala de aula da escola no momento em que os alunos pedem para que a professora escrevesse algo no quadro com os novos gizes, e ela se recusa dizendo ser melhor deixá-los para o professor Gao, o que mostra uma mudança de comportamento da professora frente aos intrumento de trabalho antes escasso. Após a insistência dos alunos Wei pega um giz e escreve uma palavra no quadro, depois permite que cada um pegasse um de cores diferentes e escrevessem uma palavra também, em forma de comemoração das dificuldades enfrentadas. Depois de escreverem as palavras, uma aluna que ainda não sabia escrever, visto que a turma era composta de alunos em etapas variadas de conhecimento, desenha uma flor na lousa como forma de participar daquele momento simbólico. Diante do supracitado, é possível afirmar que a trajetória docente permeia caminhos que nem sempre se restringem à sala de aula e a transmissão de conhecimento. As relações estabelecidas no ambiente escolar são das mais diversas e fazem parte do ensino-aprendizagem. Não obstante, fica evidente que a formação do professor não se restringe aos saberes técnicos da formação acadêmica, mas na construção do que é ser professor a partir das experiências e das relações sociais estabelecidas entre professores, alunos, escola e comunidade, como aponta o filme. BIBLIOGRAFIA CHARLOT, Bernard. “O filho do homem”: obrigado aprender para ser (Uma perspectivaantropológica). In: CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber. São Paulo: Artmed, 2000, 51-58. FERRO, Marc. O Filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: Novos Objetos. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 199-215.
Compartilhar