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1 Khilver Doanne Sousa Soares . . ( ) IESC VI Considera-se que a consulta na prática do médico de família e comunidade apresenta características específicas relacionadas à continuidade e à longitudinalidade do cuidado, que, de certa forma, inviabilizam uma consulta passo a passo. Pode-se dizer que a consulta é “rizomática”, pois, a partir do momento em que a pessoa e o médico fazem contato, ela pode tomar caminho diverso daquele que havia sido planejado ou esperado. Para ser centrado na pessoa, o médico precisa ser capaz de dar poder a ela, compartilhar o poder na relação, o que significa renunciar ao controle que tradicionalmente fica nas mãos dele. O MCCP tem quatro componentes: 1. Explorando a saúde, a doença e a experiência da doença. 2. Entendendo a pessoa como um todo – o indivíduo, a família e o contexto. 3. Elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas. 4. Intensificando a relação entre a pessoa e o médico. O médico habilidoso deve mover-se com empenho para frente e para trás entre os quatro componentes, seguindo as “deixas” ou “dicas” da pessoa. A técnica de “ir e vir” se tornou o conceito-chave para utilizar e ensinar o MCCP, o que requer prática e experiência. O método clínico centrado na pessoa: quatro componentes interativos. 2 Khilver Doanne Sousa Soares 1º Componente: Explorando a saúde, a doença e a experiência da doença Uma determinada doença (disease) é o que todos com essa patologia têm em comum, mas a experiência sobre a doença (illness) de cada pessoa é única. William Osler Dr. Mário recebe dona Rosa: Dr. Mário: “Entre e sente-se, dona Rosa. Em que posso ajudá-la hoje?” Dona Rosa: “Doutor, vim consultar, pois tenho me sentido muito mal, sem forças, não consigo realizar as atividades de casa. Desânimo total. Meu marido e meus filhos estão reclamando que não sou mais a mesma. Acho que é a menopausa chegando, doutor. Ou será que é algo mais grave? Minha vizinha começou assim e estava com câncer. Quem sabe preciso fazer uns exames? Não posso ficar assim.” O primeiro componente do MCCP propõe que os médicos lancem um olhar mais amplo para além da doença ao incluírem a exploração da saúde e a experiência da doença das pessoas. Dessa forma, é fundamental atentarmos para seus conceitos. O conceito de saúde é definido com vistas a abranger a percepção que as pessoas têm sobre a saúde nas suas vidas, como se sentem capazes de lidar com suas aspirações e realizar suas funções dentro de suas vidas. A doença é a avaliação objetiva de seu corpo, por meio dos exames físicos e laboratoriais; o foco é no corpo, não na pessoa. A prestação de um cuidado efetivo requer assistência tanto para as doenças que acometem a pessoa quanto para a experiência da pessoa com essas doenças e o entendimento sobre o que ela compreende por “ter” saúde. As quatro dimensões abordadas pelo acrônimo SIFE são: 1. Sentimentos da pessoa, especialmente o medo de estar doente: “Ou será que é algo mais grave? Minha vizinha começou assim e estava com câncer.” 2. Suas Ideias sobre o que está errado. “Acho que é a menopausa chegando, doutor.” 3. O efeito da doença sobre seu Funcionamento de vida. “Não consigo realizar as atividades de casa. Meu marido e meus filhos estão reclamando que não sou mais a mesma.” 4. Suas Expectativas em relação ao seu médico. “Quem sabe preciso fazer uns exames?” A chave para essa abordagem é prestar atenção em “dicas” da pessoa relacionadas a esses aspectos. O objetivo é seguir a condução de quem consulta para entender a experiência do seu ponto de vista. Isso requer habilidade do médico ao entrevistar, obtendo informações que o capacitem a “entrar no mundo de quem busca ajuda”. Sabe-se que isso não foi alcançado quando têm-se o comentário maçaneta, que nada mais é que o paciente se recordando de algo ao fim da consulta que “ia se esquecendo de falar.” Isso mostra que o médico perdeu dicas durante o início da consulta. Uma doença pode não expressar o quanto seu “peso” é considerado pelo paciente. Portanto, é importante que o médico realize ao enfermo as seguintes perguntas: a) O que mais está preocupando você? b) O quanto isso que você está sentindo afeta sua vida? c) O que você pensa sobre isso? d) Quanto você acredita que eu posso ajudar? Partindo de uma pergunta aberta e deixando a pessoa falar sem interrupções por cerca de 2 minutos, obtém-se a quase totalidade das informações necessárias para manejar o problema que a trouxe para consultar. 3 Khilver Doanne Sousa Soares Explorando a experiência da doença com base em quatro dimensões (SIFE): sentimentos, ideias, funcionamento e expectativas. 4 Khilver Doanne Sousa Soares 2o Componente: Entendendo a pessoa como um todo - o indivíduo, a família e o contexto Dr. Mário recebe dona Rosa: Dr. Mário: “Entre e sente-se, dona Rosa. Em que posso ajudá-la hoje?” Dona Rosa: “Olha, doutor, estou um pouco melhor dos sintomas da menopausa, mas sabe o que é? Não tenho dormido bem, ando esquecida, vivo suspirando.” Dr. Mário (usando o conhecimento prévio sobre dona Rosa): “Bem, dona Rosa, se a menopausa vai bem, que outras questões estão lhe tirando o sono e causando suspiros?” Dona Rosa: “Pois é, doutor, coisas da vida: filhos, marido, a violência que nos cerca.” Dr. Mário: “Então, vamos falar sobre cada uma dessas questões.” O segundo componente do MCCP é um entendimento integrado da pessoa inteira. Um acúmulo de informações ao longo do tempo: a família, o trabalho, as crenças, etc. Assim, para entender a pessoa como um todo, devem-se obter respostas para perguntas como: a) Que tipos de doenças existem na família? b) Em que ponto do ciclo vital familiar a família se encontra? c) Em que ponto do desenvolvimento individual a pessoa está? d) Quais as tarefas da família e da pessoa nessa etapa do ciclo de vida? e) Existem pendências das etapas anteriores? f) Como a doença afeta as tarefas dos integrantes da família? g) Como a família experienciou doenças? 3o Componente: Elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas Dr. Mário recebe dona Rosa: Dr. Mário: “Entre e sente-se, dona Rosa. Em que posso ajudá-la hoje?” Dona Rosa: “Bem, se lembra da nossa última conversa?” Dr. Mário: “Claro que sim, falamos das suas preocupações, e você ficou de pensar se gostaria ou não de usar alguma medicação, por algum tempo, para ficar menos ansiosa.” Dona Rosa: “Isso mesmo, e minha resposta é...” Esse terceiro componente do MCCP é o compromisso mútuo de encontrar um projeto comum para tratar dos problemas. 1. Definição do problema a ser manejado. 2. Estabelecimento das metas e prioridades do tratamento. 3. Identificação dos papéis a serem assumidos pela pessoa e pelo médico. Definição do problema a ser manejado. Com frequência, os médicos e as pessoas doentes têm pontos de vista divergentes em diversas áreas, e a busca de uma solução não envolve apenas barganha e negociação, mas também um movimento para conciliar opiniões ou achar terreno comum. Estabelecimento das metas e prioridades do tratamento. A não adesão pode ser a expressão da discordância sobre os objetivos do tratamento. As dificuldades na relação surgem quando o médico e a pessoa têm ideias diferentes sobre o problema, ou as prioridades são diferentes. É preciso estabelecer uma terapêutica com a adesão do paciente. Identificação dos papéis a serem assumidos pela pessoa e pelo médico. Ao praticar uma abordagem centrada na pessoa, o médico deve ser flexível com relação à abordagem que a 5 Khilver Doanne Sousa Soares pessoa busca ou da qual ela necessita, observando os aspectos culturais, o tipo de problema e o perfil da pessoa. 4º Componente: Intensificando a relação entre a pessoa e o médico Dr. Mário recebe dona Rosa: Dr. Mário: “Entre e sente-se, dona Rosa. Em que posso ajudá-la hoje?” Dona Rosa: “Doutor,hoje vim para conversar mais sobre a menopausa e algumas dúvidas que tenho. Sabe como são conversas de comadre, não é?” Dr. Mário: “Sei bem como são essas conversas; comadres sabem de tudo um pouco.” Dona Rosa: “Pois é, colocam um monte de ideias na cabeça da gente.” Dr. Mário: “Mas é bom que você veio falar, e vejo que trouxe uma lista com as dúvidas, o que facilita nosso trabalho. Vamos lá, por onde começamos?” O médico de família, quando vê a mesma pessoa, ao longo do tempo, com uma variedade de problemas, adquire um considerável conhecimento sobre ela e seu histórico, o que pode ser útil no manejo de problemas futuros. _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ GUSSO, Gustavo; LOPES, José Mauro Ceratti; DIAS, Lêda Chaves. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.