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Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Olá alunos, sejam muito bem-vindos! Este material tem por objetivo apresentar para vocês qual é o significado da ciência da Antropologia e a sua importância para as pesquisas que são realizadas atualmente. Estudar o homem inserido nas variadas sociedades e a diversidade nos modos de vivências são elementos que fazem parte das pesquisas do universo antropológico. Ao longo das unidades, vamos percebendo a riqueza em se conhecer a diversidade humana! Na unidade I, entenderemos como surgiu a Antropologia. O objetivo da unidade é apresentar os primeiros questionamentos sobre “o outro” e sobre as diferenças culturais. Estudaremos ainda como o período chamado “grandes navegações”, que se intensificou no Século XVI, foi importante para os estudos antropológicos. Conhecer os principais antropólogos como Franz Boas, Bronislaw Malinowski, e Claude Lévi-Strauss também será muito importante nesta nova etapa, pois compreenderemos como eles foram fundamentais para as transformações dos estudos antropológicos. Na unidade II, estudaremos o conceito de cultura. Esse termo é muito abrangente, para se ter uma ideia possui mais de 160 definições. Serão apresentados como as diferenças culturais foram importantes para elaborar o conceito e como alguns antropólogos descreveram sua definição. Nessa parte, vamos conhecer autores como Kroeber, Clifford Geertz e rever Claude Lévi- Strauss e como seus conceitos influenciaram os estudantes de Antropologia. Por último, será apresentado como a cultura pode contribuir com os estudos da grande área de Ciências Sociais Aplicadas. Na unidade III, conheceremos alguns conceitos importantes que formam o universo antropológico. Identidade, uma palavra tão presente no nosso cotidiano, mas o que ela significa? Aprenderemos muitas coisas sobre ela e que todo mundo tem a sua, além de ser um assunto específico da Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Antropologia. Vamos estudar também o conceito de etnocentrismo, que diz respeito a todos os grupos, pois muitos de nós, em algum momento, já achamos “o outro” estranho ou esquisito. Para contrapor, vamos conhecer a relativização, que busca compreender “o outro” a partir dos seus próprios valores. Concluindo nossos estudos, na unidade IV será abordada uma das metodologias mais importantes da Antropologia: o trabalho de campo. Esse método permite a participação do pesquisador junto ao grupo pesquisado, trocando experiências, presenciando rituais, entre outros. Isso se torna muito importante para o exercício das muitas atividades profissionais. Assim, será possível conhecer uma pequena parte desse universo antropológico que tanto contribui para as reflexões sobre o homem e suas diversidades. Com isso, convido você a se aventurar nesse mundo cheio de elementos culturais: o seu, o nosso, de todos! Bons estudos! Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. UNIDADE I ANTROPOLOGIA: O SURGIMENTO E O SEU DESENVOLVIMENTO Prof. Me. Mariana Vieira Galuch OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM O objetivo desta unidade é apresentar como os questionamentos sobre “o outro” foram importantes para a constituição e o desenvolvimento da Antropologia como um campo da ciência. Com isso, busca-se compreender a existência de diferentes culturas e entender que a maneira como nos organizamos socialmente é apenas uma dentre tantas outras. Plano de estudo A unidade está dividida por meio dos seguintes tópicos: 1. O início: quem é “o outro”? 2. O período das grandes navegações. 3. Principais pensamentos antropológicos. 4. Abordagens antropológicas. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. CONVERSA INICIAL A Antropologia é uma ciência que nos traz muitas reflexões e questionamentos, isso porque a espécie humana sempre teve a necessidade de compreender o mundo que a cerca, os mistérios sobre sua origem e destino e, além disso, como podem existir culturas tão diferentes uma das outras. A partir dessas indagações, pesquisadores concentraram seus esforços em entender como os grupos humanos organizam suas vidas e também quais são suas visões de mundo. Nesse sentido, vamos compreender como o período chamado de “Grandes navegações”, com início no Século XVI, foi importante para refletir sobre o “o outro”. Agora vamos conhecer quais foram os primeiros antropólogos que registraram suas experiências em grupos sociais totalmente diferentes dos seus. Você já imaginou passar cinco anos longe do seu país com indivíduos que você nunca viu, em uma região totalmente diferente da sua e, além disso, aprender a enxergar o mundo como eles? Pois bem, foi exatamente isso que fez um dos grandes antropólogos, o Bronislaw Malinowski. A partir disso, a entrada ao campo permitiu a realização do trabalho de campo, que se tornou um dos grandes elementos da Antropologia, mudando inclusive os rumos dessa ciência. As diferentes abordagens antropológicas farão parte dos nossos estudos e com elas compreenderemos como é possível explorar a diversidade humana a partir de vários ângulos. Para finalizar os questionamentos dessa unidade, deixo a vocês um relato de uma sociedade considerada “estranha”. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 1. O INÍCIO: QUEM É “O OUTRO”? Os questionamentos sobre “o outro” sempre existiram, não é mesmo? Acredito que você já deve ter feito inúmeras perguntas sobre as diferenças culturais, físicas e comportamentais entre as pessoas. A curiosidade sobre “o outro”, que é diferente de “mim”, não é um privilégio apenas da nossa sociedade. O interesse em saber sobre como viviam outros povos existia também em sociedades como a Grécia antiga. Um exemplo disso é o caso do grande historiador grego Heródoto, que viveu de 484 a. C. até 424 a. C. na atual região da Turquia, que, em sua época, elaborou alguns questionamentos sobre o comportamento humano (PELTO, 1971). O grande imperador romano Júlio César, que viveu entre 100 a. C. e 44 a. C. em Roma, buscava registrar “o outro”, que nesse caso, especificamente, estava relacionado àqueles povos que ele considerava como inimigos. O conhecimento sobre esses inimigos, acreditava César, permitiria a elaboração de estratégias que tinham a finalidade de aumentar os mecanismos de controle sobre impostos que Roma decretava aos povos sob seu comando. Além desses documentos da antiguidade, sabemos que outros registros históricos, que também contém o interesse em conhecer mais sobre os seres humanos, podem ser encontrados em vários lugares na Ásia, na África, na América e, também, na Oceania. Observe bem a fotografia abaixo: Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Figura 1 - Pintura rupestre no Parque Nacional de Sete Cidades – PI Fonte: arquivo pessoal da autora, 2012. Você já pensou quais povos poderiam ter 06 dedos? Os pesquisadores do Parque Nacional de Sete Cidades – PI, acreditam, com base nas pinturas rupestres (foto 1) em grupos ou que o autor pintou suas mãos, que talvez houvesse alguma deformidade. Nãoé algo incomum a presença de dedos “extras” ou a ausência de algum dedo. A espécie humana é muito jovem, evolutivamente, e a presença humana no continente americano é ainda muito mais recente para que uma mudança desse tipo acontecesse em todo o grupo. O Parque está localizado entre as cidades de Piripiri e Piracuruca, no Piauí, e é considerado um dos mais importantes sítios arqueológicos do Brasil, sendo o antigo território dos índios Tabajara. A curiosidade e o interesse sobre “o outro” não ficou limitada à imaginação das pessoas. Os limites geográficos dos grupos humanos foram ultrapassados e o encontro de diferentes grupos muitas vezes resultava em conflitos. Além dos conflitos, desses encontros também surgiam espaços para a cordialidade, trocas e o estabelecimento de vários tipos de laços interpessoais. O encontro entre povos distintos é marcado pelo fluxo e troca de elementos como, por exemplo, a língua, a escrita, as crenças, os hábitos alimentares, entre outros. No percurso dessas trocas, os elementos envolvidos podem sofrer adaptações Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. quando são incorporados ao grupo e sua versão inicial pode desaparecer. Essas trocas aconteciam com povos antigos e ainda acontecem em nossos dias. É um exemplo muito comum, mas que nos faz pensar sobre o nosso próprio território: será que a população brasileira sempre teve o português como língua oficial? Evidentemente não, pois eram os indígenas que ocupavam o atual território brasileiro anteriormente à colonização e, consequentemente, suas línguas eram as mais faladas. Até então, o “pensamento do homem sobre o homem” foi considerado, em muitos casos, filosófico, teológico, mitológico, artístico, mas não científico. Refletir sobre o homem e sua diversidade, do ponto de vista científico, seria o grande impulso para o surgimento da ciência que estava se consolidando. Foi na segunda metade do Século XIX que a Antropologia surgiu enquanto disciplina, com teóricos como Morgan, Tylor e Frazer – os primeiros a discutir sobre a cultura, todos estimulados pelo livro de Darwin, A Origem das Espécies, publicado em 1859 - com objeto, método e fundamentação, no continente europeu (ROCHA, 1984). Mas antes de continuar a nossa reflexão, é preciso resgatar alguns fatos históricos que foram essenciais para a constituição da ciência chamada Antropologia. 2. O PERÍODO DAS GRANDES NAVEGAÇÕES Apesar da constituição da Antropologia ser considerada uma ciência tardia, os relatos de viajantes, escritos no período das grandes navegações1, foram essenciais para as análises antropológicas futuras. Em muitos relatos, as informações descreviam como vivam os povos que moravam muito distantes 1 Os grandes viajantes que contribuíram para pensar sobre “o outro” foram: Marco Polo (1254- 1323), que viajou pela China e o resto da Ásia entre 1271-1295 e Ibn Batuta (1304-1378), árabe, que partiu para Rússia, China, Sumatra, África, totalizando 28 anos de viagem (PELTO, 1973). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. do lugar de onde vinham os observadores e viajantes. Leia com atenção um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. [...] A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixando de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber” (ARROYO, 1971, p. 45) A Carta descreve as características que os europeus teceram sobre os índios quando chegaram à América, por volta do ano de 1500. Os teóricos europeus que primeiro escreveram sobre “o outro”, tendo como ponto de partida as diferenças culturais e físicas, não acompanhavam as expedições. Ao invés disso, esses teóricos elaboravam suas teorias a partir dos relatos realizados pelos viajantes, ou seja, eles não tinham contato direto com esses povos e a descrição era feita a partir da leitura dos viajantes. Os trabalhos realizados por intelectuais europeus a partir de relatos de viajantes foram, posteriormente, considerados os primeiros textos antropológicos e seus autores os primeiros antropólogos. Mais tarde, esses pesquisadores foram apelidados de antropólogos de gabinete, ou seja, aquele que ficava teorizando dentro de uma Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. sala e tinha pouco ou nenhum contato com o seu objeto de estudo2, prática indispensável aos antropólogos contemporâneos que fazem pesquisa de campo. A conquista da América pelos europeus possibilitou uma revolução, principalmente na reflexão sobre as diferenças culturais, elaboradas pelos intelectuais do “velho mundo”. Ao se depararem com os nativos, que eles chamaram de índios3, perceberam que havia muitas características físicas entre eles, os europeus e os nativos. Essas semelhanças eram tão visíveis que fizeram com que os navegantes europeus questionassem se aqueles seres eram humanos como eles ou não. As diferenças nos comportamentos, na vestimenta, alimentação, organização política, econômica e religiosa observadas entre os nativos distanciavam, mas ao mesmo tempo aproximavam aqueles dois povos. Eles perceberam que faziam “as mesmas coisas” de modos diferentes. Por exemplo: muito embora o idioma entre eles, suas vestimentas e a maneira de comer fossem diferentes, falar e se comunicar, usar roupas para se proteger - mas também para se enfeitar - e ter rituais específicos envolvendo a alimentação eram aspectos importante para ambos. O que poderia definir se os nativos eram ou não seres humanos, no entanto, segundo os antigos navegadores europeus que desbravaram o continente americano, não estaria nessas semelhanças, que poderiam ser observadas a olho nu, mas sim em descobrir se os nativos tinham alma ou não. A partir desses elementos e dessas reflexões que auxiliaram no desenvolvimento de uma ciência ligada às diferenças e às diversidades sobre o ser humano, surge o objeto de estudo da Antropologia e suas teorias. Considerando o distante e o longínquo, a Antropologia elege como objeto de estudo as populações que não pertencem à civilização ocidental, mais precisamente fora do contexto europeu (LAPLANTINE, 2007), e como teoria o Evolucionismo foi considerado o ponto 2 Em uma anedota, o antropólogo James Frazer, ao ser perguntado se falaria algum dia com um selvagem, respondeu taxativamente: “Deus me livre!” (ROCHA, 1984) 3 Assim como os índios, os aborígenes, povos nativos da Oceania, também passaram a ser alvo dedúvidas sobre a condição de humano, principalmente pelos viajantes ingleses que chegaram no continente ao final do Século XVIII. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. de partida para o pensamento antropológico. Nesse momento, vamos conhecer os principais pensamentos antropológicos! 3. PRINCIPAIS PENSAMENTOS ANTROPOLÓGICOS 3.1. Evolucionismo Os teóricos da Antropologia sempre fizeram esforços para compreender o verdadeiro objetivo do Evolucionismo e sua proposta de análise. O livro A origem das espécies, de Charles Darwin, contribuiu para o início do pensamento antropológico, ou seja, foi a ideia de Darwin sobre o desenvolvimento das espécies e da vida que despertou nos pesquisadores a discussão sobre o desenvolvimento dos seres humanos e suas mais variadas vertentes, como cultura, política, sociedade, entre outros. Apenas para pontuar, Darwin não tinha como principal objetivo escrever sobre seres humanos, ainda assim apresentou uma teoria sobre descendência com herança, ou seja, a transmissão de características dos antepassados aos seus descendentes. Teóricos das Ciências Sociais que interpretaram a teoria Darwinista foram considerados os “darwinistas sociais” e entendiam que a civilização branca/europeia/ocidental seria um tipo de “objetivo” ou ponto mais alto da evolução na escala humana. Com isso, alguns pesquisadores foram atraídos por essa teoria, como Spencer, Tylor, Morgan, entre outros (RAPCHAN, 2010). Abaixo, segue uma citação para exemplificar a ideia de evolução. “Apresentaram supostos estágios através dos quais teria progredido a cultura humana, partindo da criação, queda e dilúvio, seguidos da organização do homem em pequenos grupos de caçadores e coletores, da organização do pastoralismo, das invenções da agricultura e da ideia da propriedade privada, o crescimento das aldeias, a divisão do trabalho, e daí até a civilização moderna” (PELTO, 1971, p. 30). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. A ideia principal dos autores parte do princípio que o homem evolui a partir da descendência como herança e tem base na genética. A partir das ideias sobre evolução, surgem debates que sugerem a prática de comparações, mas esses mesmos debates levantavam questionamentos sobre quais aspectos deveriam ser comparados ou medidos para que fossem considerados válidos ou legítimos, segundo as regras científicas da época em que essas discussões aconteceram. Dois importantes antropólogos desse período contribuíram muito sobre os questionamentos da evolução humana, são eles Lewis Henry Morgan e Edward B. Tylor. Lewis Henry Morgan nasceu em 1818 e faleceu em 1881, nos Estados Unidos. É considerado o fundador da Antropologia Americana por ter recolhido informações sobre uma tribo de índios norte-americanos, os iroqueses. Sua pesquisa foi sobre os sistemas de parentescos, para tanto ele buscou informações em várias partes do mundo, considerando que o desenvolvimento dos seres humanos envolvia um tipo de evolução marcada por vários estágios diferentes, primeiramente partindo de um tipo de estágio simples até atingir um tipo de estágio último e complexo. Isso quer dizer que a ideia seria que havia modelos considerados organizados e que, para chegar até eles, os envolvidos nesse processo passariam por algumas etapas menos complexas e desorganizadas. Edward B. Tylor nasceu em 1832 e faleceu em 1917, na Inglaterra. Sua principal obra foi A origem das culturas, que descreve a história da evolução humana por meio da religião. O teórico acreditava que a religião mais antiga foi o “animismo”, ou seja, a crença de que pessoas, animais, vegetais possuiriam espíritos e almas. O motivo desta crença estava no desejo do homem de explicar racionalmente os sonhos e também a morte. Ao final do Século XIX, alguns antropólogos, como o inglês Smith e o austríaco Graebner, começaram a questionar as teorias de Morgan e Taylor, principalmente em relação ao caráter científico de suas pesquisas (PELTO, 1971). Com isso, surgiram vários questionamentos: Será que todas as Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. sociedades humanas passariam pelos mesmos estágios? As sociedades seriam determinadas por um único caminho linear que as conduziria à civilização? A partir dessas indagações, a Antropologia passou por algumas mudanças, porém não podemos esquecer a importância dos primeiros pensamentos antropológicos que foram desenvolvidos até então. Vale ressaltar que o evolucionismo, enquanto estudo, é base fundamental das teorias antropológicas contemporâneas. As ideias sobre evolução, que iniciaram com Darwin, são atualmente base para os trabalhos sobre genética, genoma e DNA, e têm ganhado lugar de destaque no universo científico. 3.2. Difusionismo Você sabia que o primeiro antropólogo que elaborou teorias e ideias que resultaram em uma revolução na Antropologia foi Franz Boas? Ele nasceu em 1858, na Alemanha, e faleceu em 1942 nos Estados Unidos (ROCHA, 1984). Boas percebia a importância de estudar as culturas humanas em suas particularidades, a partir dos seus próprios costumes, comportamentos, condições históricas e climáticas, entre outros. Sua grande experiência foi a convivência com os esquimós, em 1883, no Canadá. Em um dos seus registros de bordo, também conhecido como diário de campo, havia informações e reflexões de uma maneira diferente de como eram feitas anteriormente. “Frequentemente me pergunto que vantagens nossa ‘boa sociedade’ possui sobre aquela dos ‘selvagens’ e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito de olhá-los de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui?... Nós, ‘pessoas altamente educadas’, somos muito piores, relativamente falando. ... Creio que, se esta viagem tem para mim (como pensante) uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação [Bilding], e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, reside na formação do coração [herzensbilding], que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós” (HERBERT, 1983 apud BOAS, 2004, p.9). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Bem, a partir dessa citação, você deve ter percebido uma grande diferença entre Franz Boas e os primeiros antropólogos. A troca de experiência, o convívio com o grupo pesquisado, além de viver e caçar como o grupo que observava, foram práticas metodológicas importantes que o antropólogo adotou e que possibilitou significativas mudanças na Antropologia. Segundo Boas, para interpretar e decifrar as diferenças visíveis entre populações que viviam em ambientes diferentes e que possuíam uma história social e cultural muito particular era fundamental considerar fatores como meio ambiente, condições sociais e históricas, eliminando qualquer análise sobre diferenças “raciais”. Esse antropólogo também questionava a validade científica dos testes de inteligência que eram utilizados para medir a inferioridade das pessoas “de cor” em relação aos brancos. Todos nós sabemos que esse fato está diretamente ligado ao sistema de escravidão. O nome de Franz Boas ficou ligado a uma escola de pensamento conhecida como Difusionismo ou Escola Americana. Seus estudos e pesquisas influenciaram um grande número de alunos que desenvolveram muitos trabalhos a partir de suas análises e teorias. Nesse caso, não podemos nos esquecer de Gilberto Freyre, autor do livro Casa-grande e senzala (1933), aluno de Boasno início da década de 1920. Na introdução de seu livro, Freyre relata que seu professor o auxiliou a pensar sobre um dos grandes problemas nacionais brasileiros: a questão da miscigenação, ou seja, da mistura entre raças. (ROCHA, 1984). 3.3. Funcionalismo Lembra-se do pesquisador que passou cinco anos em um grupo social totalmente diferente do seu de origem? Pois bem, foi Bronislaw Kasper Malinowski, que nasceu na Polônia em 1884 e faleceu nos Estados Unidos em 1942. O intelectual começou seus estudos na London School of Economics, escola famosa por incentivar o trabalho de campo em regiões exóticas. Assim Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. como Boas, Malinowski também se aventura e parte para um mundo totalmente diferente do seu e do nosso! Você já ouviu falar em Ilhas Trobriand? Foi nesse lugar, situado no Oceano Pacífico, que Malinowski permaneceu entre os anos de 1915 a 1918 (período da 1° Guerra Mundial na Europa) para realizar seus estudos com os trobriandeses. Quando voltou para a Europa, logo depois do término da guerra, ele escreveu Os argonautas4 do Pacífico Ocidental, sendo considerado um clássico para a história da Antropologia. A importância dessa grande obra está, principalmente, nos relatos descritos por Malinowski, que possibilitaram a construção daquele que viria a ser um dos pilares de sustentação da Antropologia: o “trabalho de campo”. A citação a seguir nos demonstra como um pesquisador que se propõe a descrever o encontro entre duas culturas diferentes, procurando sempre rejeitar as ideias de hierarquias e preconceitos, e tenta adotar um ponto de vista distanciado e treinado metodológica e cientificamente: “Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco – negociante ou missionário – você nada tem para fazer a não ser iniciar imediatamente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar – pois o homem branco está temporariamente ausente, ou, então, não se dispõe a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas; do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para a minha pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quando então me entregava à leitura de um romance qualquer, exatamente como um homem 4 Um argonauta era um tripulante de Argo, uma nave mitológica grega. Ainda assim, é um nome que se atribui a qualquer navegador ousado (ROCHA, 1984). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. que, numa crise de depressão e tédio tropical, se entrega à bebida” (MALINOWSKI, 1984, p.19). A passagem que acabamos de ler transmite um pouco dos sentimentos que o autor, por exemplo, viveu em Trobriand. Aos poucos, ele se adaptou ao lugar e passou a participar de todas as atividades sem esquecer-se da postura que um pesquisador deve ter enquanto estiver desenvolvendo pesquisa no campo e em contato com o seu objeto de estudo. Antes de Malinowski, não há registro de nenhum outro pesquisador que tenha adentrado ou tenha penetrado na mentalidade do povo que esteja estudando com a intenção de compreender seus rituais, sua cultura e seus comportamentos. Essa realidade possibilitou um entendimento mais profundo dos povos pesquisados e também a quebra com alguns preconceitos. Isso significa que quando nos deparamos com pessoas de outros países ou até mesmo assistimos documentários retratando a cultura de alguns povos, nós estranhamos muito a comida, as roupas, a língua, pois desconhecemos todo aquele ambiente. Podemos, ainda, dizer que a Antropologia nos faz entender a realidade e, por consequência, superar algumas barreiras, dentre elas a do preconceito. Nessa citação, percebemos como o pesquisador descreve alguns aspectos, mas em seu livro ele vai além, descrevendo elementos tais como casamento, organização familiar, política, poder, magia, visões de mundo, economia, comércio, necessidades humanas e estéticas, entre outros. Malinoswski, em contato com os trobriandeses, pôde participar de um momento muito importante, o Kula, ou seja, um ritual realizado pelos homens trobriandeses que consiste na troca de braceletes - feito de conchas brancas - e colares - de conchas vermelhas - entre os parceiros, contendo um grande valor simbólico, repleto de significados. A construção de canoas é considerada uma importante atividade para a manutenção do circuito do Kula e a organização matrilinear estruturada pelos trobriandeses. O autor dedicou várias páginas descrevendo o complexo de conhecimento que vem a representar a importância do trabalho de campo. Talvez se Malinowski não tivesse ido até o local onde viviam e estado entre eles durante muito tempo, não teria percebido o “universo Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. altamente complexo e multifacetado em si mesmo” daquele grupo chamado na época de “primitivo” (ERIKSEN; NIELSEN, 2001, p.57). A obra de Malinowski contribuiu em vários aspectos para as próximas produções de conhecimento sobre outros grupos humanos dentro da Antropologia. Pensando nisso, podemos pensar na “observação participante”, ou seja, o modo de conhecimento do ‘outro’ em profundidade, por meio de uma observação em loco, acompanhando de perto a dinâmica do grupo. Essa metodologia passou a ser uma ferramenta de pesquisa muito importante, contribuindo com outras áreas do conhecimento que utilizam a pesquisa de campo em seus estudos. Desse modo, “o trabalho de campo” foi um grande trunfo para a Antropologia. O autor envolvido com esse tipo de trabalho de observação e descrição dos fatos contribuía para o entendimento sobre o “outro” a partir de sua própria realidade, ou seja, do entendimento que o nativo tem de sua própria cultura ou a partir daquilo que faz sentido para ele de forma interna. A postura teórica do antropólogo era multifacetada e enxergava que as práticas e instituições sociais do grupo eram funcionais, pois ajustava as relações e propiciava a manutenção das regras sociais. Com isso, esse formato de pesquisa ou essa maneira de se produzir conhecimento levou o nome de Funcionalismo. De acordo com Laplantine (1988, p. 81): “O indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de satisfazer à sua maneira essas necessidades fundamentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas, políticas, jurídicas, educativas...), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas necessidades.” Dessa maneira, Malinowski, considerado um dos fundadores da Antropologia Social, também foi quem fundou a escola funcionalista e tornou-se um dos grandes antropólogos, influenciando vários pesquisadores posteriores do Século XX. Sua obra rompeu com o método comparativo entre as sociedades a Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. partir das características individuais e dos grupos. Sendo assim, a explicaçãoantropológica passou a relevar as qualidades essenciais e as inter-relações presentes em cada sociedade (ERIKSEN; NIELSEN, 2001). Bem, Boas e Malinowski foram considerados os grandes antropólogos do início do Século XX, mesma época na qual a Antropologia passava por uma nova reestruturação. Além deles, não podemos deixar de apresentar brevemente outros dois grandes antropólogos, da mesma forma muito importantes para a antropologia: Radcliffe-brown e Marcel Mauss. Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) nasceu na Inglaterra e pertencia à geração de Malinowski, sendo de origem da classe operária inglesa. Realizou seu trabalho de campo entre 1906 e 1908, nas Ilhas Andaman, situadas ao leste da Índia, publicando um relatório de campo muito bem desenvolvido. Também de grande relevância, seu trabalho foi realizado na Austrália ocidental, onde estudou os sistemas de parentesco e a organização familiar dos povos aborígines. Viajou para vários países como acadêmico, o que possibilitou o desenvolvimento de centros antropológicos importantes, como os de Sidney, Cidade do Cabo e Chicago (ERIKSEN; NIELSEN, 2001). O francês Marcel Mauss (1872-1950), considerado o pai da Antropologia Francesa, foi professor de Religião Primitiva na École Pratique dês Hautes Études, em Paris, e dividiu o estudo antropológico em três níveis de pesquisa. Primeiramente, Mauss conceituou a etnografia como sendo o estudo detalhado de costumes, das crenças e da vida social; também conceituou a etnologia, que seria o estudo ligado a comparações regionais; e, finalmente, conceituou a Antropologia como sendo o esforço teórico de sintetizar as principais questões sobre a humanidade e a sociedade, por meio das descobertas dos dois estudos anteriores (ERIKSEN; NIELSEN, 2001). Além disso, Mauss era sobrinho de Emile Durkheim (Sociólogo), com o qual estudou junto e foi seu assistente. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 3.4. Estruturalismo É impossível falar de Antropologia e não falar do antropólogo Claude Lévi- Strauss (1908-2009)! Ele nasceu na Bélgica, mas seus estudos foram realizados na França. Estudou Filosofia e Direito em Paris no início de 1930 e seus estudos foram essenciais para o desenvolvimento da Antropologia Contemporânea. Em 1935, partiu para o Brasil, onde trabalhou como professor na Universidade de São Paulo até 1939. Estando em território latino- americano, realizou viagens de campo para o interior do país e, principalmente, entre os vários povos da região amazônica e no Mato Grosso do Sul, período em que desenvolveu seu primeiro estudo de campo. Trabalhou em Nova York e concluiu seu doutorado em Paris, em 1947. Sua forma de pensar e a constituição de seus estudos foram consideradas importantes para a teoria e prática antropológicas que ficaram conhecidas como o Estruturalismo, porque Lévi-Strauss entendia as culturas como um sistema de signos partilhados, ou seja, estruturas formadas conforme princípios íntimos dos indivíduos, às quais a teoria é definida pela noção de estruturas. Tais estruturas são produtos da lógica humana, expressas por meio de complexos sistemas de transformações conscientes dos homens (LÉVI- STRAUSS, 1996). Uma das grandes contribuições da obra de Lévi-Strauss foram, sem dúvida, os estudos sobre sistemas de parentescos, linguística e mitos, assuntos abordados em sua grande obra O pensamento selvagem. Para o pesquisador, o sistema de parentesco é um sistema que contém diversos significados, consistindo em relações familiares e também do processo hierárquico no interior das famílias. Com isso: “[...] o parentesco não era principalmente um modo de organização social, mas um sistema significativo, um sistema de relações, e a principal relação não era o laço ‘natural’ de sangue (pai-filho), mas o laço construído socialmente entre marido e mulher. “ (ERIKSEN; NIELSEN, 2001, p. 129). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Foi no Brasil que encontrou a porta de entrada para seus grandes estudos antropológicos. Esse fato fica evidente em seu livro Tristes Trópicos, livro autobiográfico publicado em 1955, no qual Lévi-Strauss faz um relato sobre a sua vocação como antropólogo, que surgiu durante as expedições pelo interior do país, inclusive no Paraná, próximo à região de Londrina (LÉVI-STRAUSS, 1996). Dessa maneira, suas experiências com tribos indígenas no Mato Grosso, Amazônia e em outras várias localidades do continente europeu permitiram que ele aprofundasse suas reflexões sobre os seres humanos. Para o antropólogo, as características físicas e mentais dos homens são as mesmas e enfatiza que a mente humana daqueles que eram considerados como sendo “primitivos” aos olhos dos europeus é exatamente igual à mente dos europeus, considerada “civilizada”. Além disso, ele defende que qualquer conhecimento científico ou tribal surge a partir do sentimento de curiosidade dos seres humanos. Sendo assim, a curiosidade é uma característica inata à espécie humana (LÉVI-STRAUSS, 1997), Em 2005, Lévi-Strauss recebeu o 17° Prêmio Internacional Catalunha, na Espanha, aos 97 anos. Seu discurso foi curto, mas intenso. Ele disse: “Fico emocionado, porque estou na idade em que não se recebem nem se dão prêmios, pois sou muito velho para fazer parte de um corpo de jurados. Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele - isso é algo que sempre deveríamos ter presente". Lévi-Strauss faleceu em Paris, no dia 30 de outubro de 2009, aos 100 anos. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Fique por dentro O ELO PERDIDO Lançamento:2005 Dirigido por: Régis Wargnier Com: Joseph Fiennes, Kristin Scott Thomas, Iain Glen Gênero: Drama, Histórico Nacionalidade: Reino Unido, África do Sul e França Sinopse: África central, 1870. Acompanhado por um grupo de caçadores indígenas, o antropólogo escocês Jamie Dodd atravessa a floresta tropical à procura de uma nova espécie. Ao encontrar uma tribo de pigmeus, Jamie acredita ter achado o “elo perdido” que faria a ponte revolucionária entre o homem e o primata. Ele captura dois pigmeus chamados Toko e Likola para apresentá-los na Academia de Ciência de Edimburgo. A amizade que surge entre os três termina colocando em risco a carreira do cientista. Fonte: ADOROCINEMA, 2017 O ÚLTIMO DOS MOICANOS Lançamento: 1992 Dirigido por: Michael Mann Com: Daniel Day-Lewis, Madeleine Stowe, Wes Studi Gênero: Ação Nacionalidade: EUA Sinopse: Em meio à guerra entre ingleses e franceses no Século XVIII, Hawkeye, um ocidental criado por índios, luta por justiça e pelos valores de seu povo. Cora Munro é filha de um oficial britânico. Eles se apaixonam e juntos enfrentam a ira do cruel e vingativo, Magua. Fonte: ADOROCINEMA, 2017 Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. 4. ABORDAGENS ANTROPOLÓGICAS Ao longo do seu desenvolvimento, a Antropologia teve seus desdobramentos pautados a partir de vários campos nos quais as pesquisas podem ser realizadas e exploradas. Essas diferentes linhas de pesquisas antropológicas serão abordadas ao longo do capítulo. A Antropologia Biológica, considerada a Antropologia Física logo no início da disciplina, tem como objetivo estudar as variações das características biológicas dos seres humanos no espaço e no tempo. As pesquisas investigam as relações entre o patrimônio genético e o meio – geográfico, ecológico e social -, analisando as características morfológicase fisiológicas dos indivíduos. Nessa linha de pensamento, Laplantine (1997) aponta uma reflexão: por que o desenvolvimento psicomotor da criança africana é mais adiantado do que o da criança europeia? A Antropologia Física também se preocupou com as variações das características biológicas, desenvolvendo práticas de medir o cérebro, ou seja, a caixa craniana, e as relações de tamanho entre olhos, narizes, bocas e orelhas. Essas medidas buscavam determinar características intelectuais e neuropsicológicas, o que possibilitou uma interpretação preconceituosa e perigosa que ainda se mostra presente na maneira das pessoas se enxergarem, por exemplo: o tamanho da cabeça em relação ao tamanho dos olhos e do nariz pode determinar se a pessoa é um assassino e estuprador, no entanto essas análises em relação ao tamanho estavam relacionadas às pessoas de ascendência africana. Terrível, não? A Antropologia Pré-histórica consiste em estudar o homem por meio dos vestígios materiais enterrados no solo, como ossadas e objetos que foram criados pelos humanos. Os estudos têm afinidade com a área da arqueologia, que, por sua vez, busca reconstituir sociedades desaparecidas reestruturando técnicas e organizações sociais, tanto nas esferas culturais e artísticas quanto em relação às características morfológicas e biológicas. No Brasil, existe um Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. importante sítio arqueológico, o Parque Nacional Serra da Capivara, situado no estado do Piauí, em que já foram encontrados diversos objetos arqueológicos, como facas e machados, com cerca de 48 mil anos de existência. O grupo de antropólogos, historicistas, arqueólogos, entre outros, que intensificaram seus trabalhos na região foi dirigido por Niéde Guidon, arqueóloga brasileira. Outra área dentro da antropologia é chamada de Antropologia linguística. Essa área de conhecimento busca compreender como os indivíduos se expressam na sociedade. Além do mais, a língua é parte do patrimônio cultural de uma sociedade, por meio dela é possível identificar como as pessoas pensam e o que sentem, além de observar as diferentes maneiras de expressar as ideias sobre o universo e a vida social por meio de elementos da literatura, escrita e tradição oral. Por fim, a Antropologia Social e Cultural, ou Antropologia Sociocultural, a mais utilizada em pesquisas e estudos nas Ciências Sociais, busca investigar os elementos que constituem uma sociedade: organizações políticas, jurídicas, sistema de parentesco, formas de conhecimento, modos de produção, crenças religiosas, meios comunicativos, produções artísticas, enfim, os vários elementos que compõem a sociedade. A Antropologia Sociocultural é considerada a área da antropologia com mais estudos investigados nas Ciências Sociais relacionados à vida social e cultural dos seres humanos (LAPLANTINE, 1997). Aqueles que foram considerados os primeiros objetos de estudo da Antropologia - “o outro”, como vimos no início, ou seja, os povos que viviam em sociedades consideradas longínquas pelos europeus - a partir das transformações nas perspectivas antropológicas, deixaram de ser considerados exóticos, diferentes ou, ainda, “primitivos”. O principal objeto investigado por meio dos procedimentos metodológicos da Antropologia Sociocultural tornou-se o “estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas” (LAPLANTINE, 1997, p. 16). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Indicação de leitura APRENDER ANTROPOLOGIA Autor: François Laplantine Idioma: Português Editora: Brasiliense Assunto: Ciências Sociais - Antropologia Edição: 1ª Ano: 2009 Resumo: Em Aprender Antropologia, o antropólogo François Laplantine oferece um completo panorama desde as origens até a contemporaneidade dos estudos antropológicos, além de uma análise aprofundada do papel dessa ciência na compreensão de mundo e da realidade humana, sendo uma leitura interessante e indispensável para aqueles que buscam compreender as formas de vida humana. Fonte: elaborado pela autora. ANTROPOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO Autores: Marina de Andrade Marconi Idioma: Português Editora: Atlas Assunto: Ciências Sociais - Antropologia Edição: 7ª Ano: 2008 Resumo: Antropologia: uma introdução busca oferecer aos estudantes das áreas das Ciências Humanas e Sociais os conhecimentos básicos da ciência antropológica considerados indispensáveis ao entendimento desse campo do conhecimento. Trata-se de um trabalho de longa pesquisa, baseado nos principais autores clássicos e contemporâneos, que demonstra o estágio atual em que se encontra a Antropologia e a forma como é discutida e/ou vista atualmente pelos autores em outros países e no Brasil. Fonte: elaborado pela autora. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. CONCLUSÃO Nesta unidade, estudamos como a Antropologia se tornou uma ciência e também a sua contribuição na reflexão sobre o homem. A descoberta que o eu faz do outro é um assunto que interessa a todos nós, sem exceção. Os relatos dos viajantes foram essenciais à medida que foram apresentadas percepções e características sobre “o outro”, ou seja, como organizavam suas vidas, como enxergavam o mundo. A riqueza desses estudos permite entender que a nossa própria organização social é uma possível entre milhares existentes, mas não a única. Vimos também como alguns antropólogos foram fundamentais para a mudança na disciplina, principalmente a partir do trabalho de campo, e com isso estudamos também a diversidade dos estudos antropológicos. Para finalizar essa unidade, convido você a fazer a leitura sobre os “Nacirema”, grupo humano considerado estranho, mas que permite realizar várias reflexões. Reflita Em seu livro “Mein Kampf” (Minha Luta), Hitler defendia a hegemonia e a superioridade da raça ariana com base nas características físicas. Além disso, judeus e negros deveriam ser executados, como aconteceu em vários campos de concentração na Alemanha e defendia o extermínio de testemunhas de Jeová, homossexuais e comunistas. "Ritos corporais entre os Nacirema", in: Romney, A.K. & De Vore, P.L. (eds.) You and others. Readings in: Introductory Anthropology - Cambridge: Winthrop Publishers, 1973, pp. 72- 76. Trad. Selma Erlich. O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que os diferentes povos apresentam em situações semelhantes que é incapaz de surpreender-se, mesmo em face dos costumes mais exóticos. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. De fato, embora nem todas as combinações de comportamento logicamente possíveis tenham sido descobertas em alguma parte do mundo, o antropólogo pode suspeitar que elas devam existir em alguma tribo ainda não descoberta. Este aspecto foi expresso com relação à organização clânica, por Murdock (1949: 71). Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-las como um exemplo dos extremos que pode atingir o comportamento humano. Foi o professor Linton (1936: 326) o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o ritual dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente compreendida até hoje. Trata-se de um grupo norte- americano que vive no território entre os Cree, do Canadá, os Yaqui e Tarahumare do México e os Carib e Arwak das Antilhas. Pouco se sabe sobre a sua origem, embora a tradição relate que vieram do Leste.Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua nação; por outro lado, ele é conhecido por suas façanhas de força, como ter atirado um colar de conchas usado pelos Nacirema como dinheiro no rio Po- To-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residia o Espírito da Verdade. A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evoluiu em um rico habitat natural. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são despendidos em atividades de rituais. O foco dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde assomam como o interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a ele associada são singulares. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas características através do uso das poderosas influências do ritual do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários destinados a esse Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. propósito e os indivíduos mais poderosos dessa sociedade têm muitos santuários em suas casas, de forma que a alusão à opulência de uma casa muito frequentemente é feita em razão do número de tais centros para rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmaras de culto têm as mais ricas paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas aplicando placas de cerâmica às paredes do seu santuário. Embora cada família tenha pelo menos um santuário, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas cerimônias privadas e secretas. Normalmente os ritos são discutidos apenas com as crianças e, nesse caso, tão somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar esses santuários e obter descrições dos rituais. O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Nesse cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem as quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Estes preparados são conseguidos através de uma série de profissionais especializados, os mais poderosos, chamados de médicos-feiticeiros, cujo auxílio deve ser recompensado com dádivas substanciais, contudo eles não fornecem aos seus clientes exatamente quais são as poções de cura, só decidem quais devem ser seus ingredientes e então os escrevem em uma linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dádiva, providenciam o encantamento necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento após o seu uso, mas colocam-no em uma caixa de encantamentos do santuário doméstico. Como estas substâncias mágicas são específicas para certas doenças do povo, que são muitas (reais ou imaginárias), a caixa de encantamentos geralmente está a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são as suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto, só podemos concluir que o que os leva a conservar todas as velhas substâncias é a idéia de que sua Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. presença na caixa de encantamentos, em frente à qual são efetuados os ritos corporais, de alguma forma protegerá o adorador. Abaixo da caixa de encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias, cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina sua fronte ante à caixa de encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de abdução. As águas sagradas vêm do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro. Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros, no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas, cuja designação pode ser traduzida por "sagrados-homens-da-boca". Os Nacirema têm um horror quase patológico, e ao mesmo tempo uma fascinação, em relação à cavidade bucal, cujo estado acreditam ter uma influência sobrenatural em todas as relações sociais. Para eles, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas se contrairiam, seus amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: existe, por exemplo, uma abdução ritual da boca para as crianças, em que se supõe aprimoramento da fibra moral. O ritual do corpo executado por cada Nacirema diariamente inclui o rito bucal. Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, esse rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-la como revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós-mágicos, e então em movimentá-lo em uma série de gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote- da-boca uma ou duas vezes ao ano, os quais têm uma impressionante coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadoras, sondas e agulhões. O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando dos instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que a Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. degeneração possa ter produzido nos dentes. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas para que uma substância sobrenatural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é tolher a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem a degenerar. Esperamos que, quando for realizado um estudo completo dos Nacirema, haja inquérito cuidadoso sobre a estrutura das personalidades dessas pessoas. Basta observar o furor nos olhos de um sacerdote-da-boca quando ele enfia um furador no nervo exposto para se suspeitar que este rito envolve uma certa dose de sadismo. Se isso pudesse ser comprovado, teríamos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas. O prof. Linton se referiu a essas tendências na discussão de uma parte específica do rito corporal que é desempenhada apenas por homens, a qual envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos. Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente ou "latipsoh" em cada comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito doentes, só podem ser executadas nessetemplo. Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos, se movimentam serenamente pelas câmaras do templo. As cerimônias do "latipsoh" são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recuperam. Sabe-se que crianças pequenas, com uma doutrinação ainda incompleta, Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. resistem às tentativas de levá-las ao templo porque "é lá que se vai para morrer", apesar disso, passam por prolongados rituais de purificação quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou qual seja a emergência, os guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter-se conseguido a admissão e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao neófito abandonar o local se ele não fizer ainda outra doação. O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida quotidiana, o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais e as atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no "latipsoh" podem resultar traumas psicológicos. Um homem cuja própria esposa nunca o viu em um ato excretor acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal enquanto executa suas funções naturais em um recipiente sagrado. Esse tipo de tratamento cerimonial é necessário porque os excrementos são usados por um adivinho para averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, à manipulação e às agulhadas dos médicos-feiticeiros. Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias envolvem, tal como os ritos dos sacerdotes-da-boca, desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor, enquanto executam abluções com os movimentos formais em que estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem curativas. De tempos em tempos, o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar e possam até matar o neófito não diminui, de forma alguma, a fé das pessoas no médico-feiticeiro. Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Resta ainda um outro tipo de profissional conhecido como "ouvinte". Esse doutor-bruxo tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos: particularmente, teme-se que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os ritos corporais secretos. A contra- mágica do doutor-bruxo é inusitada por sua carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus problemas e temores, principiando pelas dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Nacirema nessas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado, e uns poucos indivíduos reportam a origem de seus problemas aos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento. Como conclusão, devem-se fazer referências a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão perversa ao corpo natural e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos, e torná-los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato da forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres dotadas com um desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos. Já fizemos referências ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu enquanto assunto e programado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual em certas fases da lua e a concepção é, na realidade, pouco frequente. Quando grávidas, as mulheres vestem-se de modo a esconder seu estado, o parto tem lugar em Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos. Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser este povo dominado pela crença na magia, sendo difícil compreender como conseguiram sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impuseram a si mesmos. Mas até costumes tão exóticos quanto esses aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski quando escreveu (1948,p. 70): “Olhando de longe e de cima, de nossos altos postos de segurança na civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem seu poder e orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o fez, suas dificuldades práticas, nem poderia o homem ter avançado aos estádios mais altos da civilização. ” Sendo assim, existem aspectos da cultura Nacirema que lhe geraram estranheza ou repulsa? Existem semelhanças entre os Nacirema e nós? Quem são os Nacirema? No geral, a Antropologia é considerada uma ciência interpretativa que tem o objetivo de entender os caminhos e significados que do ser humano, tanto na sociedade do “eu” como na sociedade do “outro”, das diferentes maneiras de viver em grupos humanos que existem e são encontradas pelo mundo hoje em dia. Para refletir sobre isso, Rocha (1984) contribui com o seguinte pensamento: “O mundo muda: destrói sociedades, cria outras. Aniquila experiências sociais e propõe novos projetos de viver. A Antropologia, ao contrário, fixa de maneira recuperável as existências que se esvaem, as formas de experimentar a riqueza da vida que amanhã podem não estar mais disponíveis. Numa palavra: procura colocar ao alcance do ser humano as respostas existenciais que deram os vários ‘outros’ pelo mundo afora” (ROCHA, 1984, p.87). Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Pensar sobre o ser humano por meio da Antropologia nos permite enxergar a importância e a aptidão inesgotável dos seres humanos para inventar diferentes modos de vida e organizações sociais nas mais variadas localidades ao redor do mundo. Você já parou para pensar em quantas línguas, dialetos, fonemas, etc., existem no mundo? Quantos lugares tão diferentes entre si - alguns mais quentes enquanto outros mais frios, ou marcados por florestas ou por desertos, etc. - são habitados por pessoas e são ambientes, muitas vezes, tão hostis que você poderia imaginar que jamais conseguiria sobreviver em tais situações? Já imaginou quantostipos de comida são consideradas “exóticas ou diferentes” por alguns enquanto são, ao mesmo tempo, a base da alimentação diária de várias sociedades? Pois bem, essa pluralidade de cores, formas, hábitos, sons, crenças, ou melhor, essa variedade nas diferentes maneiras de viver tão ricas e incríveis do universo humano, é o grande patrimônio da humanidade, a verdadeira riqueza, e é exatamente essa pluralidade entre as pessoas e suas sociedades que nos faz verdadeiramente humanos. Com isso, podemos concluir que a igualdade entre os seres humanos está na sua capacidade de diferenciar-se uns dos outros e, na próxima unidade, vamos aprofundar nossos estudos na teoria da cultura, essa palavra tão presente no nosso vocabulário e que tem mais de 160 definições! Bem, não vamos estudar todas, somente as principais, até a próxima! Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. REFERÊNCIAS ARROYO, Leonardo. A Carta de Pêro Vaz Caminha: Ensaio de Informação à Procura de Constantes Válidas de Método. São Paulo: Melhoramentos, 1971. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Tradução de Celso Castro. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. ERIKSEN, Thomas H; NIELSEN, Finn S. História da Antropologia. Tradução de Euclides Luiz Calloni. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. KUPER, Adam. Antropólogos e Antropologia. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 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Ano 16, n.33, p. 227-266, Porto Alegre, jan/jun. 2010. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/ha/v16n33/12.pdf> Acesso em junho de 2013. ROCHA, Everardo, P. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984. http://www.scielo.br/pdf/ha/v16n33/12.pdf
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