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! ��1�����2 �� �"�� � ��������� �� �� ����������� �� � ���������������� ����� �������� ��� � L946 Ludodiagnóstico [recurso eletrônico] : investigação clínica através do brinquedo / Organizadora, Rosa Maria Lopes Affonso. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2012. Editado também como livro impresso em 2012. ISBN 978-85-363-2696-2 1. Psicanálise. I. Affonso, Rosa Maria Lopes. CDU 159.964.2 Catalogação na publicação: Fernanda B. Handke dos Santos – CRB 10/2107 INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 2012 Versão impressa desta obra: 2012 Ludodiagnóstico investigação clínica através do brinquedo Rosa Maria Lopes Affonso organizadora INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS © Artmed Editora Ltda., 2012 Capa Ângela Fayet Preparação do original Maria Lúcia Badejo Leitura final Gabriela W. Linck Coordenadora editorial Mônica Ballejo Canto Projeto e editoração Armazém Digital® Editoração Eletrônica – Roberto Carlos Moreira Vieira Reservados todos os direitos de publicação à ARTMED EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAÇÃO S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana 90040-340 Porto Alegre RS Fone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, foto cópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. SÃO PAULO Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 – Pavilhão 5 Cond. Espace Center – Vila Anastácio 05095-035 – São Paulo – SP Fone: (11) 3665-1100 Fax: (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 – www.grupoa.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Autores Rosa Maria Lopes Affonso (org.) Psicóloga. Mestre, doutora e pós-doc pelo Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo. Especialização em Psicoterapia. Professora de Avaliação Psicológica. Supervisora de atendi- mentos psicoterapêuticos de bebês, crianças, adultos e idosos. Aicil Franco Psicóloga e psicoterapeuta. Mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Especializada no Jogo de Areia na Suíça e nos Estados Unidos e em Psicolo- gia Social pela PUC -SP. Professora e supervi- sora no Instituto Junguiano da Bahia. Mem- bro do conselho editorial da revista Psiquê – Ciência e Vida. Claudia Anaf Psicóloga Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Dagmar Menichetti Psicóloga. Diretora Substituta da Área de Saúde do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela USP -SP. Especialização em Psicologia e Psi- coterapia da Infância e Adolescência. Elisa Marina Bourroul Villela Psicóloga Clínica. Doutora em Psicologia. Professora Adjunta da Universidade Presbi- teriana Mackenzie. Helena Rinaldi Rosa Psicóloga. Mestre e doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professora As- sistente na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis. João Augusto Figueiró Médico. Psicoterapeuta. Presidente do Insti- tuto Zero a Seis. Karina Okajima Fukumitsu Psicóloga e psicoterapeuta. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela Michigan School of Professional Psychology, Center for Humanistic Studies, EUA. Especialis- ta em Psicopedagogia pela PUC -SP e em Gestalt -Terapia pela Sedes Sapientiae, SP. Professora do Curso de Psicologia da Uni- versidade Presbiteriana Mackenzie. Profes- sora Convidada do Curso de Especialização em Gestalt -Terapia do Instituto Sedes Sa- pientiae. Katia Wanderley Doutora em Psicologia Clínica pela USP. Chefe da Seção de Psicologia do Hospital do Servidor Público Estadual. Professora e Supervisora do Curso de Psicologia das Fa- culdades Metropolitanas Unidas. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Kayoko Yamamoto Doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Departamento de Psicologia Clínica do Ins- tituto de Psicologia da USP. Curso de Especia- lização em Psicoterapia Psicanalítica do De- partamento de Psicologia Clínica do IPUSP. Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo Psicóloga. Mestre. Doutora em Psicologia Clínica e Livre Docência em Psicopatologia pela Universidade de São Paulo. Professo- ra Associada da Universidade de São Pau- lo. Coordenadora do Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do IPUSP. Maria Leonor Espinosa Enéas Doutora em Psicologia pela Pontifícia Uni- versidade Católica de Campinas. Professora e supervisora de Psicoterapia Breve de Adul- tos na Universidade Presbiteriana Macken- zie. Marisa Cintra Bortoletto Mestre em Psicologia Clínica PUCSP. Espe- cialista em Psicoterapia Psicanalítica pela USP. Diretora da Verbo Clínica Psicológica. Roberto Evangelista Doutor e Mestre em Psicologia Clínica pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar e Forense pelo CRPSP Trabalho, Ministério Público do Estado de São Paulo e FMU- -Faculdade de Psicologia. Ryad Simon Professor Titular do Departamento de Psi- cologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. Orientador Acadêmico do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalí- tica do IPUSP. Coordenador do Curso Pós- -Graduação lato sensu: Psicoterapia Breve Operacionalizada do UNIP. Sandra R. de Almeida Lopes Psicóloga Clínica e Hospitalar. Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Ciên- cias Médicas da Santa Casa de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Professora, Supervi- sora e Pesquisadora nas áreas de Psicologia Hospitalar, Psicologia da Saúde e Psicotera- pia do Adolescente no Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sonia Maria B. A. Parente Psicóloga. Psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, SP. Psicopedagoga pelo CRP/SP. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Coordenadora do Espaço de Pes- quisa em Criatividade, Desenvolvimento e Aprendizagem (EPCCO). Walter Trinca Professor Titular no Instituto de Psicologia da USP e Psicanalista. Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da International Psychoanalytical Association. Yvette Piha Lehman Professora Titular no Departamento de Psico- logia Social e do Trabalho do Instituto de Psi- cologia da USP. Membro Associada da Socie- dade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. vi Autores INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS É com imensa satisfação que apresento esta obra que reúne várias contribuições teó ricas e técnicas enfocando o ludodiag- nóstico e o brincar; como o título indica. O jogo é fundamental no psicodiagnós- tico compreensivo e interventivo e no trata- mento psicoterápico de crianças, sendo es- ses aspectos aqui apresentados e discutidos. Sua relevância e abrangência ultrapassam os limites da clínica com crianças. O jogo, assim, está presente em todas as atividades humanas, e, como afirma Huizinga, até nos animais. O livro está dividido em sete partes, cada uma com um tema relacionado a Lú- dico e cada uma delas com seus diversos capítulos. A obra tem como primeira parte os fundamentos teóricos do ludodiagnóstico, sendo constituída por quatro capítulos. Essa parte traz as relações entre o brincar e a psi- canálise; a atitude lúdica com a expansão da consciência. Os aspectos da representação e da significação são também abordados, e um capítulo amplo traz considerações a respeito das bases neurofisiológicas do brincar e da importância do brincar no desenvolvimento cerebral do ser humano. Vale destacar os au- tores dessa parte. Temos a ilustre presença de mestres da Psicologia Clínica e da Psica- nálise em nosso país que nos brindam com seus capítulos: Ryad Simon e Walter Trinca. Os pioneiros da Psicologia são acompanha- dos por João Augusto Figueiró, médico ilus- tre que vem atuando e “batalhando” pela infância em nosso país e no mundo, e por Rosa Maria Lopes Affonso, a organizadora desta obra,que é a principal pesquisadora e conhecedora do ludodiagnóstico em nosso meio. Testemunhas do conhecimento e da experiência dessa grande psicóloga clínica são a segunda e a terceira partes do livro, inteiramente da autoria de Rosa Maria Lo- pes Affonso. A segunda parte, composta por quatro capítulos, aborda a técnica ludo- diagnóstica. A autora discute a história do ludodiagnóstico, as relações com as técnicas projetivas expressivas, a descrição do pro- cedimento ludodiagnóstico e a evolução do brinquedo com os significados que pode ter em cada fase do desenvolvimento. A terceira parte é totalmente dedi- cada à análise do ludodiagnóstico. Rosa Maria Lopes Affonso trata assim o sintoma no diagnóstico infantil e as relações com o ludodiagnóstico. Ela aborda a análise do procedimento segundo o referencial da Psi- canálise e do desenvolvimento psicológico, e conclui a terceira parte com ilustrações clínicas que atestam a experiência clínica da principal autora deste livro. Três capítulos compõem a quarta par- te, que trata do ludodiagnóstico e as rela- ções com os testes e técnicas psicológicas. O primeiro e terceiro capítulos, da autoria de Rosa Maria Lopes Affonso, discutem ins- trumentos para o processo diagnóstico e/ou Prefácio LeiLA sALomão de LA PLAtA Cury tArdivo INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS viii PrefáCio intervenção e a avaliação lúdica na psicote- rapia infantil, respectivamente. As relações entre o ludodiagnóstico e uso de testes, da autoria de Helena Rinaldi Rosa, e o último com algumas concepções de minha autoria sobre as relações entre o brinquedo e o de- senho no diagnóstico e na intervenção. Evidenciando a abrangência do lúdico, a quinta parte aborda os contextos sociais, ou seja, os diversos campos onde o lúdico tem sua relevância. Katia da Silva Wander- ley e Sandra R. de Almeida Lopes trazem toda sua experiência de atuação no contexto hospitalar. Ainda na área da saúde, Marisa Cintra Bortoletto traz sua contribuição so- bre o uso do ludodiagnóstico no consultório. O lúdico também se faz presente na área ju- rídica, como mostra o capítulo de Claudia Anaf, Dagmar Menichetti e Roberto Evan- gelista. E, na área da aprendizagem, Sonia Maria B. A. Parente enfoca especificamente a tendência antissocial. Finalizando essa discussão do ludodiagnóstico em diversos contextos, está o capítulo de Elisa Marina Bourroul Villela sobre o ludodiagnóstico e a deficiência visual. Essa parte evidencia a importância e a aplicação do jogo nesses di- versos contextos. Evidenciando a abrangência da téc- nica lúdica, a sexta parte é constituída por dois capítulos que enfocam a técnica lúdica a partir de outras abordagens. Assim, Karina Okajima Fukumitsu trata a técnica do lúdi- co na abordagem da Gestalt. E Aicil Franco expõe seu conhecimento e vasta experiência apresentando o jogo de areia no Brasil. Completa a obra a sétima e última par- te que trata do lúdico e do desenvolvimento. Dessa forma, temos as relevantes contribui- ções de Yvette Piha Lehman, que apresenta o lúdico na adolescência a partir da psica- nálise winnicottiana que evidencia os fun- damentos da relevância do brincar na atua- lidade. E finalmente Maria Leonor Espinosa Enéas expõe reflexões sobre os aspectos lú- dicos no tratamento do adulto, enfocando a psicoterapia como metáfora. Fica evidente, pela breve descrição que acima fiz, porque iniciei esta apresentação salientando a satisfação de poder apresentar este livro e inclusive ser uma das colabora- doras. A obra foi muito bem pensada, tratan- do dos aspectos básicos teóricos e práticos do ludodiagnóstico e do brincar. A autora principal e organizadora do livro, a Dra. Rosa Maria Lopes Affonso, vem atuando, in- vestigando, ensinando há anos o Psicodiag- nóstico, a Psicoterapia e a Psicologia Clíni- ca, dedicando -se de forma mais detida ao Ludodiagnóstico, escrevendo, organizando eventos; enfim, divulgando esse importante procedimento em todas as suas vertentes. Este livro só pôde ser feito e agora chega às nossas mãos por seu empenho, sua dedica- ção e competência. O leitor, tanto o profissional expe- riente como o estudante e o profissional em início de carreira, tem neste livro uma relevante contribuição para sua atuação e conhecimento. Certamente estes capítulos poderão e deverão inspirar a todos que se interes- sem pelo ludodiagnóstco, pelo brincar, pela criança, pelo adolescente e adulto nos mais diversos contextos a conhecer, compreen- der, atuar e se encontrar mais e melhor com o ser humano. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Sumário Prefácio .................................................................................................................................... vii Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo Apresentação ...........................................................................................................................11 Rosa Maria Lopes Affonso PArte i Fundamentos teóricos do ludodiagnóstico 1 o brincar e a psicanálise: subsídios à técnica ...............................................................14 Ryad Simon, Kayoko Yamamoto 2 Atitude lúdica e expansão da consciência .....................................................................19 Walter Trinca 3 As bases neurofisiológicas do brincar ...........................................................................26 João Augusto Figueiró 4 Brincar, significação e representação ............................................................................38 Rosa Maria Lopes Affonso PArte ii A técnica ludodiagnóstica 5 Breve histórico da técnica ..............................................................................................58 Rosa Maria Lopes Affonso 6 O ludodiagnóstico e as técnicas projetivas expressivas ................................................64 Rosa Maria Lopes Affonso 7 O procedimento ludodiagnóstico ....................................................................................69 Rosa Maria Lopes Affonso 8 O brinquedo, sua evolução e seus possíveis significados .............................................78 Rosa Maria Lopes Affonso PArte iii Análise do ludodiagnóstico 9 O sintoma no diagnóstico infantil .................................................................................102 Rosa Maria Lopes Affonso 10 A análise do procedimento ludodiagnóstico segundo o referencial teórico psicanalítico .................................................................107 Rosa Maria Lopes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 10 sumário 11 Casos clínicos ..............................................................................................................110 Rosa Maria Lopes Affonso PArte iv Ludodiagnóstico e os testes e as técnicas psicológicas 12 Instrumentos para o processo diagnóstico e/ou intervenção. ......................................138 Rosa Maria Lopes Affonso 13 Compreendendo o uso de testes a partir do ludodiagnóstico ......................................158 Helena Rinaldi Rosa 14 Avaliação lúdica na psicoterapia infantil.......................................................................165 Rosa Maria Lopes Affonso 15 o brinquedo e o desenho: expressão e comunicação de e com crianças – possibilidades diagnósticas e interventivas .....................................175 Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo PArte v O lúdico e os contextos psicossociais 16 o lúdico no contexto hospitalar: quando o brincar no contexto hospitalar é recreação e quando é ludoterapia .............................................192 Katia Wanderley 17 O uso do recurso gráfico como meio de interação e comunicação com crianças hospitalizadas ...............................................................200 Sandra R. de Almeida Lopes 18 O ludodiagnóstico no contexto jurídico ........................................................................207 ClaudiaAnaf, Dagmar Menichetti, Roberto Evangelista 19 O lúdico no consultório: análise do ludodiagnóstico na demanda da saúde suplementar ..................................................225 Marisa Cintra Bortoletto 20 O lúdico e a tendência antissocial na clínica da aprendizagem ...................................231 Sonia Maria B. A. Parente 21 O ludodiagnóstico e a deficiência visual ......................................................................240 Elisa Marina Bourroul Villela PArte vi A técnica lúdica e outras abordagens 22 A técnica lúdica na perspectiva gestáltica....................................................................248 Karina Okajima Fukumitsu 23 O jogo de areia no Brasil ..............................................................................................260 Aicil Franco PArte vii O lúdico e o desenvolvimento 24 o lúdico na adolescência: Winnicott e o brincar adolescente ......................................266 Yvette Piha Lehman 25 Psicoterapia e metáfora: aspectos lúdicos em tratamento de adultos .........................271 Maria Leonor Espinosa Enéas Índice .....................................................................................................................................286 INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Apresentação rosA mAriA LoPes Affonso O ludodiagnóstico é um instrumento de investigação clínica no qual, por meio da utilização de brinquedos, estruturados ou não, o profissional procura estabelecer um vínculo terapêutico com a criança, visando ao diagnóstico de sua personalidade. Tendo como fundamento as teorias do desenvolvimento e da psicopatologia infantil, o ludodiagnóstico é muito utiliza- do como uma técnica projetiva expressiva, baseada nos princípios da associação livre psicanalítica, aplicada em diagnósticos ob- tidos sem o depoimento verbal ou por meio da autoexpressão da criança, facilitada pelo contexto clínico lúdico. Parte -se do pressuposto que a técnica lúdica possibilita o diagnóstico da estrutura mental como expressão da brincadeira sim- bólica. Assim, o objetivo nesta obra é reunir os profissionais que, apoiados na estratégia clínica, utilizam esse instrumento, seja nos seus diagnósticos e tratamentos psicotera- pêuticos, seja na orientação, prevenção ou intervenção educacional dos distúrbios de aprendizagem, psicossomáticos e de socia- lização. A reunião dos trabalhos desses es- pecialistas visa à compreensão das aplica- ções do instrumento ludodiagnóstico, seus fundamentos e suas abordagens teóricas no campo da pesquisa, apresentando os ma- teriais, os registros, os procedimentos e as análises com a população infantil. A utilização dos instrumentos lúdicos ou a compreensão das manifestações lúdicas no ser humano, nos seus diferentes contex- tos sociais, podem extrapolar a preocupação clínica, levando ao estudo das manifestações e aplicações da brincadeira simbólica dentro de um contexto de estimulação e intervenção preventiva da socialização infantil. Assim, nesta obra apresentaremos algumas utiliza- ções da brincadeira simbólica, possibilitando aos profissionais: médicos, psicólogos, neu- rologistas, educadores em geral, psicopeda- gogos, terapeutas educacionais, fonoaudiólo- gos, um estudo das aplicações, limitações e interfaces no uso de materiais lúdicos. O livro está dividido em sete partes. Na primeira parte, apresentaremos os fundamentos do lúdico no ser humano: a constituição do sujeito e as bases neurofisio- lógicas do brincar, a consciência e a corpo- ralidade, inserindo a noção lúdica segundo o conceito de representação. Na segunda parte, apresentaremos a técnica lúdica: seus fundamentos psicanalíti- cos; os materiais mais utilizados e os seus pos- síveis significados a partir da teoria de desen- volvimento psicanalítica; os procedimentos utilizados para a aplicação lúdica; as análises clínicas e a formação profissional necessária. Na terceira parte será estudada a aná- lise do ludodiagnóstico, com exemplos de vários casos clínicos. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 12 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Na quarta parte apresentaremos algu- mas considerações sobre a relação do lúdico com avaliações psicológicas, testes e técni- cas de investigação clínica. Na quinta parte do livro apresenta- remos algumas aplicações da técnica ludo- diagnóstica: hospitalar, jurídica e em con- sultório. Na sexta parte discutiremos as diferen- tes abordagens da técnica lúdica. Encerraremos com a sétima parte, na qual procuramos identificar o lúdico no ado- lescente e no adulto. Portanto, neste livro procuramos reunir os estudiosos do desenvolvimento humano, da psicopatologia infantil, da avaliação psicoló- gica e da psicoterapia infantil, que, por meio da expressão lúdica, procuram colaborar nas pesquisas sobre a expressão, prevenção e elaboração do sofrimento na infância. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Parte I Fundamentos teóricos do ludodiagnóstico INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Nos primórdios da psicanálise de crian- ças, em 1923, Melanie Klein atendia uma menina de 7 anos, inibida e com mau apro- veitamento escolar. A criança não gostava da escola, faltava às aulas e começava a afastar- -se da mãe, apesar de ter anteriormente um bom relacionamento com ela. A criança não desenhava, falava muito pouco. O progresso do atendimento era quase nulo. Klein sentiu que aquela forma de atendimento não leva- ria muito longe o trabalho. Numa sessão em que a criança ficou silenciosa e retraída, a angústia de Melanie Klein deve tê -la mobi- lizado a criar algum recurso. Avisou que ia sair da sala e voltaria num instante. Como o atendimento era feito na residência, esta pegou alguns brinquedos: algumas bone- quinhas, carrinhos, cubos e um trenzinho. Colocou -os numa caixa e trouxe para a pa- cientezinha inibida. A criança interessou -se pelos objetos e começou a brincar. Por seu modo de brincar, Klein inferiu que os dois bonecos que a menina utilizou para realizar uma brincadeira poderiam re- presentar a própria paciente e um menini- nho da escola que havia sido mencionado numa sessão anterior. Parecia haver algum segredo na conduta dos dois bonecos, e que os outros bonecos eram vistos como intrusos e afastados. As atividades dos dois bonecos acabavam em catástrofes, como cair e serem atropelados. Esse brincar era repetido, e, à medida que a menina os reproduzia, iam aparecendo crescentes sinais de angústia. Até que a analista começou a intuir, pelos detalhes daquela brincadeira, que a pacien- te representava alguma atividade sexual en- tre ela e seu colega da escola. Isso levaria a criança a ter medo de ser descoberta, então ela ficava desconfiando dos outros. Klein interpretou esse significado para a paciente e mostrou -lhe que, enquanto brincava, ela se angustiava tanto a ponto de largar o brinquedo. E mais, que não esta- va mais querendo ir para a escola porque talvez a professora pudesse descobrir tudo e castigá -la. Estava sentindo esse medo principalmente com a mãe. E nesse momen- to podia estar sentindo o mesmo medo de punição com relação a Klein. O efeito dessa interpretação foi nítido: a angústia e a des- confiança da paciente inicialmente aumen- taram, mas logo foram seguidas de evidente alívio. Sua expressão facial mudou e, em- bora não admitisse nem negasse o que foi interpretado, posteriormente mostrou con- cordância ao produzir mais material corro- borando o que fora interpretado. Liberou -se mais no brincar e na verbalização. A relação com a analista tornou -se menos desconfiada e mais amistosa. Na sequência do atendimento era es- perado que a transferência se alternasse en- tre positiva e negativa, mas, a partir dessa 1 O brincar e a psicanálise Subsídios à técnica ryAd simon kAyoko yAmAmoto INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 15 sessão a análise evoluiu bem. Concomitan- temente foi melhorando o relacionamentocom a mãe e com a escola. É notável o quan- to a mudança de método favorece novos descobrimentos. Quando Freud abandonou a hipnose e passou a usar o método da asso- ciação livre com seus pacientes, teve acesso à descoberta das resistências, dos conflitos inconscientes que permanecem reprimidos, das soluções de compromisso que geram os sintomas, os sonhos e toda a trama que se passa em áreas da mente inacessíveis à abordagem direta. Do mesmo modo, quando Melanie Klein, percebendo a inibição insuperável de sua pacientezinha, teve a intuição genial de introduzir os brinquedos para favore- cer a comunicação, abriu caminho para a descoberta de áreas da mente ainda mais profundas que as obtidas pelo método de associação livre dos adultos. Na criança pe- quena o mecanismo de repressão é menos rígido, facilitando o acesso aos conteúdos inconscientes. Porém, era necessário dispor de recursos para alcançar esse universo que estava mais além da palavra. A psicoterapia psicanalítica do adulto é feita principalmen- te pelos relatos verbais dos pacientes, mas, como a verbalização da criança pequena é geralmente escassa, foi necessária uma ino- vação técnica para favorecer uma comuni- cação mais significativa. Muito se tem dito acerca do brincar como forma de psicoterapia infantil, mas gostaria de me deter sobre as diferentes formas e usos do brincar em psicoterapia. Quando eu, Ryad Simon, era recém -formado em psicologia clínica, tive a oportunidade de conhecer e a possibilidade de trabalhar junto com um conhecido psiquiatra infan- til, Dr. Haim Grünspum. Seu consultório ficava num grande sobrado, e várias salas eram usadas para ludoterapia, geralmen- te em grupo. Os brinquedos ficavam em prateleiras, alguns espalhados pelo chão, e eram usados coletivamente. Não havia brinquedo particular, o material era usado à vontade pelas crianças de várias idades, geralmente na latência e pré -adolescência. Havia um ringue onde as crianças podiam brigar entre si, recipientes com água para introduzir brinquedos ou se molhar, como quisessem. Não havia privacidade. Realizei a visita acompanhado pelo Dr. Haim. Lembro -me que quando um garoto se dirigiu a ele desafiando -o para uma luta, o terapeuta agarrou o garoto e lhe deu uma gravata, brincando e sorrindo, dando -me a ideia de que realizava psicoterapia suporti- va. Eu estava aprendendo a fazer psicote- rapia psicanalítica de crianças com Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Judith Andreuci. Virgínia, principalmente, voltando de um período de aprimoramento em Londres, jun- to ao grupo kleiniano, em 1962, fornecia as diretrizes da técnica lúdica em psicanálise infantil. Eu seguia mais ou menos automati- camente as instruções, sem muita clareza do porquê de certos procedimentos técnicos. Por exemplo: a) os brinquedos devem ser de um determi- nado tamanho, formato e variedade. Em sua monumental Psicanálise de crianças, Klein, no início do Capítulo 2, dá uma relação de brinquedos para crianças pe- quenas: “Sobre uma pequena mesa baixa estão colocados brinquedos pequenos e simples – homenzinhos e mulheres de madeira, cartas de baralho, carruagens (hoje seriam outros veículos), automó- veis, trens (hoje se acrescentam aviõe- zinhos), animais, peças de construção e casas, bem como papel, tesoura e lápis” (1932, p. 16); b) os brinquedos devem ficar guardados numa caixa de madeira, com cadeado, e a cada sessão a criança acompanha o terapeuta até o armário onde ficam guardadas as caixas lúdicas, cada uma específica para cada criança. Ao final da sessão, os brinquedos são guardados no- vamente na caixa, trancada, e a criança acompanha o terapeuta até o armário, verificando sua guarda, sempre no mes- mo lugar; c) a sala de ludoterapia deve ter chão e paredes laváveis, móveis simples, uma torneira e uma pia (ou então uma bacia com água); INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 16 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) d) a sessão começava e terminava sempre no horário combinado. Se o paciente se atrasasse, perderia o tempo de atraso; e) durante a sessão a porta da sala de ludo fica trancada, como na sessão de adul- tos; f) o contato com os pais é reduzido ao mí- nimo necessário. Para que serve tudo isso? Klein respon- de de uma maneira sintética e completa so- bre a essência do sentido do brincar: A criança expressa suas fantasias, seus desejos e experiências reais numa forma simbólica através do brincar e dos jogos. Ao assim fazê -lo, usa os mesmos modos de expressão arcaicos e filogeneticamente adquiridos, a mesma linguagem com que temos familiaridade através dos sonhos, por assim dizer; e só podemos entender completamente essa linguagem se nos aproximamos dela como Freud nos en- sinou na abordagem da linguagem dos sonhos. O simbolismo é apenas uma parte dela. Se desejamos entender o brinque- do da criança corretamente em relação à totalidade de seu comportamento durante a sessão analítica, não devemos nos contentar pinçando separadamente o significado dos símbolos no brincar, por mais impressionantes que sejam – e geralmente o são –, mas devemos fazê- -lo considerando todos os mecanismos e métodos de representação empregados no trabalho onírico, nunca perdendo de vista a relação de cada fator com a situação como um todo. (Klein, 1932 p 7-8) Voltando aos itens acima: se os brin- quedos forem muito grandes, não caberão na caixa; se forem muito complicados, não serão facilmente manipuláveis para expres- sar uma brincadeira. A variedade de brin- quedos é restrita pela mesma questão de espaço, mas também porque a imaginação da criança pode dar muitos usos a poucos brinquedos. Guardam -se os brinquedos numa caixa de madeira para permanecerem do mesmo modo que foram deixados na sessão an- terior. O cadeado existe para garantir que ninguém abra a caixa entre uma sessão e outra. A cada sessão a criança acompanha o terapeuta até o armário onde ficam guar- dadas as caixas lúdicas, cada uma específica para cada criança. Isso mostra à criança que seu material é inviolável e tem a garantia da guarda do terapeuta. Ao final da sessão, os brinquedos são guardados novamente na caixa, que é trancada, e a criança acompa- nha o terapeuta até o armário, verificando sua guarda sempre no mesmo lugar. Esse procedimento garante que a caixa só seja aberta e fechada na presença da crian- ça e que só tenham acesso a ela a criança e o terapeuta. Suponhamos que os brinque- dos que a criança “A” usa para a ludoterapia fossem manipulados por uma criança “B”, e ainda por uma criança “C”, como no exem- plo do Dr. Haim. Suponhamos que a criança “B”, usando o mesmo brinquedo, quebrasse uma parte dele, ou mesmo o destruísse tão completamente que ficasse inutilizado. Qual seria a importância disso? Admitamos que os brinquedos repre- sentem os objetos do mundo interno da criança. Suponhamos que um determinado boneco represente o “pai mau” para a crian- ça “A”, que tem muito medo desse brinque- do, e que a criança “B”, numa sessão poste- rior, manuseando esse mesmo boneco, corte sua cabeça. Qual seria a reação da criança “A”, quando, na sessão seguinte se deparasse com esse “pai mau” de cabeça cortada? Pro- vavelmente ficaria aterrorizada. Entretanto, se não foi a criança “A” que cortou a cabeça do boneco, que uso faria disso o psicotera- peuta para a compreensão dos processos inconscientes da criança “A”? A cabeça do boneco foi cortada pela criança “B”. O que a teria levado a tal ataque? Suponhamos agora que, numa outra sessão, a criança “C”, usando os mesmos brinquedos, observando o homem de cabeça cortada, resolvesse colar de volta a cabeça do boneco. Qual o efeito disso para a crian- ça “B”? E para a criança”A”? É fácil perceber que a manipulação do brinquedo por crian- ças diferentes em ocasiões diferentes criaria INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 17 tal confusão que terapeuta algum consegui- ria desfazer. O brinquedo manipulado porvárias crianças não traria problema de interpre- tação numa psicoterapia suportiva, porque nesta não há a preocupação de compreen- der os processos inconscientes do pequeno paciente, mas, numa psicoterapia psica- nalítica, em que as interpretações princi- pais se apoiam na transferência, a confu- são resultante da manipulação do mesmo brinquedo por crianças diferentes tornaria o processo um equivalente do “samba do crioulo doido”.1 Assim, a caixa individualizada e tran- cada, sendo manipulada somente pelo mes- mo paciente, garantiria a segurança de que os brinquedos – que representam os objetos internos da criança – não seriam tocados por outro, evitando interferências causadoras de confusão indecifrável. Nesse ambiente preservado e privativo será possível acom- panhar detalhadamente cada movimento do paciente, favorecendo a compreensão da transferência e das cotransferências2 com mais nitidez e segurança. Continuando o esclarecimento dos itens citados, a sala de ludoterapia deve ser de chão e parede laváveis, móveis simples, conter torneira ou bacia para permitir brin- car com água, tinta, plastilina, etc., facilitan- do a expressão de formas de agressão ou de gratificação regredidas, que a criança não conseguiria representar com palavras e são necessárias para entendimento dos impul- sos, angústias, defesas, bem como das fan- tasias concomitantes. Já a fixação do tempo ajuda a desenvolver o sentido do tempo, a responsabilidade e a consideração pelo trabalho psicoterápico. Do mesmo modo, a porta trancada garante a privacidade da relação dentro da sessão. E o contato com os pais reduzido ao mínimo necessário evita interferências na relação entre a criança e o terapeuta. Se não puder ser evitado, é prefe- rível conversar na presença da criança. Se os pais forem muito angustiados, solicitando contato frequente, deve -se marcar um horá- rio separado para esclarecer as questões. É fácil de ver que todas essas provi- dências técnicas têm o objetivo precípuo de permitir o desenvolvimento da situação analítica. Ou seja, criar uma atmosfera que permita inferir cada movimento dentro da sessão tendo significado no aqui e agora com o terapeuta. É essa condição que favorece a visão clara dos movimentos no brincar como expressão da comunicação das fantasias in- conscientes, suas associações e significados. Quando há interferências no material do brinquedo, na sala de ludoterapia, na intro- missão de outros, o ambiente fica poluído e confuso, obscurecendo a possibilidade de compressão do interjogo entre fantasias, im- pulsos, angústias e defesas. Haverá momentos em que a criança pode estar tão atemorizada que não conse- gue ficar só com o terapeuta. Neste caso, a presença temporária de um adulto garante a entrada e permanência da criança na sala de ludoterapia. E, tão logo as angústias perse- cutórias transferenciais sejam esclarecidas, o adulto pode retirar -se para a sala de espera. Essa sucinta informação sobre a técnica tem o intuito de mostrar a diferença entre ludote- rapia psicanalítica e a ludoterapia suportiva. Não há intuito de depreciar a ludotera- pia suportiva. Brincar com uma criança des- preocupadamente, dar -lhe atenção, tratá -la com carinho e respeito têm um potencial 1 O Samba do Crioulo Doido é uma paródia com- posta pelo escritor e jornalista Sérgio Porto, sob pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, em 1968, para o Teatro de Revista, em que procura ironizar a obrigatoriedade imposta às escolas de samba de retratarem nos seus sambas de enredo somente fatos históricos. A expressão do título é usada, no Brasil, para se referir a coisas sem sentido, a textos mirabolantes e sem nexo. 2 “Cotransferência” refere -se ao termo que criei para indicar as transferências colaterais, isto é, as transfe- rências que o paciente faz com pessoas significativas em seu relacionamento pessoal atual ou pretérito (Simon, R. 2004; e capítulo IV de meu livro meu livro Psicoterapia Psicanalítica – Concepção Original). A prática clínica – minha e de outros colegas – tem mostrado a importância de trabalhar a cotransfe- rência para ampliar a compreensão do paciente a respeito das interações inconscientes com pessoas significativas de seu convívio atual e pregresso. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 18 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) terapêutico inegável. Isso permite a catarse, a gratificação da necessidade de calor hu- mano, e, com a redução da angústia, algu- ma elaboração espontânea em estratos in- conscientes da personalidade. Todavia, esse alcance é limitado. Para alcançar estratos mais profundos, modificar conflitos incons- cientes que tenham potencial para causar (ou já estejam causando) distúrbios neuróti- cos ou psicóticos, a via mais apropriada é a ludoterapia psicanalítica. O desenvolvimento da técnica ludo- terápica por Melanie Klein proporcionou a ampliação da percepção e compreensão dos conflitos e mecanismos mais profundos da personalidade, abrindo caminho para o tratamento de pacientes psicóticos cuja acessibilidade era muito limitada por via da psicoterapia psicanalítica. Freud (1914) afirmava, em seu artigo sobre introdução ao narcisismo, que os pacientes que padeciam de “neuroses narcísicas” (psicóticos) eram inacessíveis ao tratamento psicanalítico por- que sua libido ficava centrada no ego, não permitindo a “transferência”, que era o prin- cipal meio de influência psicoterápica. Melanie Klein, com sua aguda intuição para compreensão dos processos incons- cientes – obtidos por meio do método da lu- doterapia – teve um vislumbre mais amplo e profundo dos primórdios do funcionamen- to e desenvolvimento mental, lançando as bases para uma abordagem compreensiva dos distúrbios mentais graves (Klein, 1935; 1932; 1946). Seus discípulos mais brilhan- tes, começando por Rosenfeld (1947), Han- na Segal (1950) e W.R. Bion (1953; 1957) aplicaram suas contribuições ao tratamento psicanalítico de psicóticos, utilizando a abor- dagem clássica: verbalização por associação livre, uso do divã, várias sessões semanais, abstenção de medicação, conseguindo algu- ma melhoria na condição de pacientes es- quizofrênicos. Isso confirma o entusiasmo de Karl Abraham, que no 8o Congresso In- ternacional de Salzburg, em 1924, afirmou que o futuro da pesquisa psicanalítica se as- senta na psicanálise de crianças. REFERênCiAS Bion, W. R. (1957). Differentiation of the psychotic from the non -psychotic personalities. In: W. R. Bion, Second thoughts: Selected papers on psycho analysis. New York: J. Aronson. (Obra original- mente publicada em 1953). Bion, W. R. (1967). Notes on the theory of schizo- phrenia. In: W. R. Bion, Second thoughts: Selected papers on psycho analysis. New York: J. Aronson. (Obra originalmente publicada em 1953). Freud, S. (1973). On narcissism: An introduction. In: S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (vol. 14). London: Hogarth. (Obra originalmente publicada em 1914). Klein, M. (1975). Notes on some schizoid mecha- nisms. In: M. Klein, The writings of Melanie Klein (vol. 3). London: Hogarth. (Obra originalmente publicada em 1932). Klein, M. (1986). The psycho -analysis of children. In: M. Klein, The writings of Melanie Klein (vol. 2). London: Hogarth. (Obra originalmente publicada em 1932). Klein, M. (1992). A contribution to the psychoge- nesis of manic -depressive states. In: M. Klein, The writings of Melanie Klein (vol. 1). London: Hogarth. (Obra originalmente publicada em 1932). Rosenfeld, H. (1947). Analysis of a schizophrenic state with depersonalization. International Journal of PsychoAnalysis, 28, 130-139. Segal, H. (1950). Some aspects of the analysis of a schizophrenic. The International Journal of Psycho analysis, 31, 268-278. Simon, R. (2004). Cotransferência e transferên- cia em psicoterapia psicanalítica de “quadros medianos”. In: R. Simon, & K. Yamamoto (Orgs), 8º Encontro do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica: Variedades de transferência na clínica psicanalítica. São Paulo: Instituto de Psicologia da USP. Simon, R. (2010). Psicoterapia psicanalítica: Con cepção original. São Paulo: Casa do Psicólogo. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS A atitude lúdica diz respeito a uma dis- posição mental considerada livre por ex- celência, tendo por paradigma o brincar da criança que frui em liberdade o prazer de se entregar a seus objetos de relaciona- mento, entretenimento e divertimento. Esta atitude tem sido associada à atitude psica- nalítica, especialmente depois que Winni- cott (1975) ressaltou que a psicanálise foi desenvolvida como uma forma altamente especializada do brincar. Antes dele, Freud havia formulado o princípio da associação livre, em correspondência com o conceito de atenção flutuante, de que Ferenczi (1966) fez uso para introduzir o que chamou de elasticidade da técnica psicanalítica. Essas são formas de atitude lúdica, assim como o são, sem dúvida, a atitude analítica sem me- mórias, sem desejos e sem necessidades de compreensões, proposta por Bion (1973), e aquela que coloca o analista nas condições de ressonância tonal aos afetos, considerada por Fedida (1986). O SER inTERiOR De meu ponto de vista, a atitude lúdica passa pelo contato com o ser interior, do qual ema- na a mobilidade psíquica. Na psicanálise, o ser interior pode ser pensado como a rea- lização no indivíduo do ser que ele é. Cada indivíduo conta com a realidade primária de ter um ser que responde por sua existência, estando na base das noções de si mesmo. Ele é um núcleo essencial e um foco originá- rio, que fundamentam a verdade interior e mais profunda do existir pessoal, pela qual esse indivíduo pode afirmar “eu sou” em sua identidade, distinguindo -se, definindo -se e qualificando -se. Desse modo, o ser interior revela -se como inteiro, indiviso, singular e específico, sendo também irrepetível, irre- plicável e incomensurável. Contudo, a característica básica pela qual podemos conceber o ser interior é sua não sensorialidade, que se expressa como fonte de vida e de movimento. Há alguma coisa que ultrapassa qualquer contingência, sendo praticamente indescritível: a fonte de vida, que se manifesta como ser, e que pode (ou não) se realizar como mobilidade, vitalidade, harmonia e organização. No mo- delo que preconizo, a atitude lúdica é uma função da mobilidade psíquica, que decorre do contato com esse ser, em que os aspectos não sensoriais vêm ocupar um lugar de des- taque na vida mental. Tenho observado que o contato reali- zado em estado consciente com o ser inte rior corresponde ao que Winnicott (1975) chamou de viver criativo, porque se liga pri- mariamente à experiência de inteireza que se expressa como experiência de viver. Para 2 Atitude lúdica e expansão de consciência WALter trinCA INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 20 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) ele, essa experiência tem por referência o espaço potencial,1 que é preenchido com o brincar da criança, com a imaginação criati- va, com a vida de sonhos, com a apercepção criativa, com a experiência cultural e com todo tipo de experiência satisfatória relacio- nada à consciência de estar vivo e de se en- contrar pessoalmente presente em si mesmo e no mundo (Davis e Wallbridge, 1982). Ao falar de espaço potencial, Winni- cott certamente se referiu à própria mobi- lidade do ser interior, cuja natureza, como mencionado, é não sensorial. As expressões desse ser ligam -se à vida, à criação, ao vi- gor, à harmonia e ao bem -estar psíquico e realizam -se desde que a pessoa tenha sufi- ciente contato consigo própria. O centro das atenções de Winnicott se concentrou na ex- periência de ser, que se efetiva pelas noções de si mesmo referidas à existência própria. A FunçãO DO COnTATO É importante sublinhar que diferencio a no- ção de ser interior da noção de self, sendo aquele, basicamente, um foco de existência e este um órgão mental de consecução dessa existência, ou seja, um meio pelo qual ela se efetiva. Assim, o ser interior exerce influên- cia em graus sobre o self, na dependência do contato que uma pessoa estabelece consigo própria (Trinca, 2007). Isso significa que o ser interior pode permanecer, em grande parte, encoberto ou invisível, e sua realiza- ção na vida mental vai depender do grau de contato alcançado nas relações com ele. A função do contato é, pois, um fator relevan- te a ser considerado, porquanto uma pessoa poderá viver uma vida inteira minimamente em contato com seu ser. Se somente o con- tato desvenda para a pessoa a natureza do ser que ela é, o estudo do distanciamento de contato constitui uma tarefa necessária e imprescindível. Temos, então, na psicanálise, uma ten- são não só entre o consciente e o inconscien- te, como também entre a invisibilidade do ser interior e a visibilidade de tudo aquilo que aparece em seu lugar. Quanto menor for a aproximação ao contato com o ser in terior, maior será a impregnação do self por fatores estranhos àquele (Trinca, 2007). Nesse caso, o self poderá ser impregnado tanto de sensorialidade quanto de fragili- dade. Isso significa que quanto maior for o grau de distanciamento de contato, maior será a saturação do self por partículas, ele- mentos e condições de um funcionamento desarmônico ou perturbado, em que a mo- bilidade psíquica diminui na razão inversa do aumento de sensorialidade ou de fragili- dade. Em outras palavras, entre nosso pró- prio ser e a consciência que temos de sua presença pode ocorrer um distanciamen- to e a medição de um fosso que temos de transpor. O ser profundo está lá, mas inter- ferem em nós situações e processos, tanto internos quanto externos, que prejudicam nossa capacidade de sintonia com ele. A MOBiLiDADE PSíquiCA No caso de uma sintonia satisfatória ou bem realizada, ocorre aquilo que Winnicott cha- mou de apercepção criativa, que não é outra coisa senão o sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. A pessoa pode experien- ciar sua vida como unidade, isto é, como ex- pressão do “eu sou eu mesmo” (Winnicott, 1975). A mobilidade psíquica origina -se justamente do contato com o ser interior, tendo repercussões e influências diretas so- bre o self. Emanada desse ser, ela pode ser descrita como uma disposição fluida e como um estado de abertura, de liberdade e de le- veza, que também compreende uma atitude experiencial solta e espontânea, incluindo, na dependência do que estiver envolvido, a flexibilidade, a plasticidade, a elasticidade, 1 Para Winnicott (1975), trata -se de um área hipo- tética que existe (mas poderia não existir) entre o bebê e o objeto (a mãe ou partes desta) durante a fase de repúdio do objeto como não eu. O conceito é estendido de modo a abranger a ocorrência de comunicação significativa nas relações interpes- soais. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 21 a maleabilidade, a flutuação e o alargamen- to na correnteza das experiências. Tudo isso vem assegurar que na base do self iluminado por influência do ser inte rior está o espaço potencial, manifestando -se por mobilidade psíquica, cujas expressões mais evidentes são o gesto espontâneo e o brincar criativo. Para Winnicott, nessa área da experiência não há dissociação entre ser e brincar, uma vez que o interesse lúdico da criança consiste na busca de si mesma. As- sim, em meus termos, da mobilidade psíqui- ca decorre imediatamente a atitude lúdica, sendo esta uma consequência direta do esta- do de maior contato com o ser profundo. A SEnSORiALiDADE E A FRAgiLiDADE DO SELF Nessa linha de considerações, pode -se pen- sar que o que impede ou anula a atitude lú- dica é o distanciamento de contato com o ser interior. Quando ele se instala, a pessoa tem pela frente uma “escolha” entre duas al- ternativas que são normalmente utilizadas: a sensorialidade ou a fragilidade do self. Se a “opção” for pela sensorialidade,há uma imensa gama de situações psíquicas que podem se manifestar, dependendo do grau de distanciamento de contato que vier a se instalar. Para cada grau de distanciamento, há determinado tipo de manifestação ligada à sensorialidade. Esta diz respeito a elemen- tos que são saturados de concretitude ou que têm as características, propriedades ou qualidades da concretitude, os quais já pre- existem ou vêm se introduzir no aparelho psíquico, determinando manifestações emo- cionais, congnitivas, imagéticas e outras, de forma tanto consciente quanto inconsciente (Trinca, 2007). Ainda que eu considere a sensorialida- de como uma variável contínua, gostaria de apresentar três exemplos de manifestações sensoriais a fim de tornar o assunto mais claro. O primeiro exemplo refere -se aos as- pectos predominantes no chamado homem moderno, que habita os grandes centros ur- banos da sociedade tecnológica e industrial. Nele, a motivação principal volta -se ao fazer, sob o exclusivismo dos interesses egocêntri- cos. Ele absolutiza a tendência de obter sa- tisfações com o sucesso, o poder, a riqueza, a fama, os objetivos materiais etc. Nutre ape- go excessivo à valorização externa, usa de modo abusivo o pensamento sistemático e tem a mente tomada por prismas, sistemas, conceitos, estruturas e valores de tipo con- cretista. Sua adaptação se faz a um mundo humano coisificado, sob a dominância dos condicionamentos psicológicos e sem maior aprofundamento nos vínculos. Outro exemplo consiste no preenchi- mento do self pela sensorialidade associa- da à sexualidade infantil, em que predo- minam conflitos inconscientes sustentados por recalcamento. O self é palco de luta e jogo de partes conflitantes, sob o comando do inconsciente, que se faz estruturante. Encontram -se normalmente conflitos infan- tis, fixações, regressões, figuras parentais dominantes etc. Trata -se de uma situação que propicia o aparecimento de neuroses dos tipos descritos por Freud. Finalmente, um exemplo relacionado às psicoses graves: aqui a sensorialidade torna -se densa, pesada, primitiva e virulen- ta por conta de um self altamente impreg- nado de concretitude, com forte tendência ao inanimado. Há acumulação de elemen- tos beta e forte presença da tela beta (Bion, 1966). Essa sensorialidade pode responder por manifestações clínicas de autismo e es- quizofrenia. A sensorialidade, quando não for nor- mal, poderá se constituir em obstáculo à atitude lúdica, porque determina modos, padrões e sistemas de funcionamento men- tal tendentes, em graus, à concretitude e ao inanimado. A fragilidade, por sua vez, quando se instala por conta do distancia- mento de contato, determina a ocorrência de enfraquecimento e de esvaziamento do self. Nela, as angústias tendem ao buraco negro, podendo se transformar em terror de passagem à inexistência. Desse modo, dependendo do grau de fragilidade, o self poderá se impregnar de inconsistências, INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 22 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) dispersões, estados de alheamento ou de engolfamento, entre outros aspectos. Nada disso combina com a mobilidade psíquica nem tampouco com a atitude lúdica que es- tou considerando. AS COnDiçõES DA ExPAnSãO Para haver atitude lúdica, é necessário ul- trapassar a esfera dos encobrimentos e da invisibilidade do ser interior à consciência, afastando -se as interferências ao contato com ele, causadoras de sensorialidade e de fragilidade. Isso quer dizer que se deve pro- porcionar a libertação das condições obstru- tivas da mente, sejam elas consideradas pa- tológicas ou não. Um dos aspectos consiste em lidar com a sensorialidade no nível da superação dos condicionamentos e das re- lações de tipo predominantemente concre- tista. Ou seja, uma desmaterialização dos vínculos, a fim de que se tornem realmente afetivos e profundos. O que nos deixa contentes e felizes é o contato significativo, relacionado ao sentido do que é vivo e encontrado nas raízes que nos ligam a nós próprios e ao universo – um contato que se assemelha à concentração em si mesmo e que se realiza tal como o brincar, que proporciona a experiência de estar só, mesmo na presença de alguém. Não se con- funde jamais com o esvaziamento. Ao con- trário, é emergência do gesto espontâneo, colocando -nos “sobre o caminho da ação pessoal espontânea, que emana do próprio ser” (Chuang -Tsé, 1985, pg. 188). O gesto espontâneo, em Winnicott, é uma expressão da ação do ser interior que, por causa de suas raízes não sensoriais, é capaz de criar verdadeiramente por inter- médio do sentido do que é vivo. Daí é pos- sível haver um intercâmbio significativo com o mundo. Esse intercâmbio acaba por constituir uma busca de sentidos originária do próprio ser. Havendo expressão genuí- na desse ser, encontramos o mundo exter- no, que terá para nós o sentido que nossa profundidade de contato consegue alcançar. Quanto maior for o contato, maior será o fluxo livre e o fluir criativo que emanam da mobilidade psíquica. A atitude lúdica corresponde, portan- to, ao estado de deixar -se ser, equivalen- te à flutuação e ao fluxo da correnteza de um rio. É preciso que a vida siga seu cur- so e que a recebamos com um mínimo de interferência dos medos, desejos e outras formas de sentir passional. Assim, podere- mos acompanhar e conhecer os movimentos e as transformações inesperadas das coisas e situações. Poderemos vir a ser espaço de acolhimento a cada ser, em sua natureza e condição, sem lhe causar nenhuma violên- cia. Essa atitude é diametralmente oposta a influenciar, moldar, controlar e manipular. Refiro -me ao contato direto e profundo, seja conosco mesmos, seja com o mundo. Como disse, é fundamental estar de posse de contato profundo conosco, que se faz em graus de sintonia, para haver encon- tro com o que há de profundo no mundo; um contato que nos coloca em condições de descoberta do mundo em dupla profundida- de: a profundidade do encontro conosco e a profundidade do encontro com o mundo. É preciso que venha de dentro, para que a relação com o que está fora tenha realmen- te sentido. O significado poderá surgir do contato direto, que nos mostra o que é sem intermediações sensoriais ou de qualquer outra natureza. Para além de nossas disposições sen- soriais, as coisas e situações revelam natu- ralmente suas fisionomias e seus sentidos, dizendo -nos o que têm a dizer. Como resso- nâncias do que existe, podemos nos deixar penetrar pela vida das coisas, acolhendo o novo e o inesperado. Essa é certamente uma reorientação da percepção e da compre- ensão, ou uma possibilidade intuitiva que estamos cada vez mais abandonando e per- dendo. Ela nos leva, em nossas atividades profissionais, a nos concentrarmos na mo- bilidade psíquica, como um processo que se dá em graus, porque é na fluidez da mente não aprisionada que a realidade vem se ma- nifestar, sendo necessário encontrar meios – e, especialmente, meios psicanalíticos – de se lidar com a sensorialidade e com a fragi- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 23 lidade. Havendo uma psicanálise voltada a esse fim, ela certamente ajudará a encontrar os estados límpidos de consciência, que são espaços abertos na mente, o mais livres pos- sível de impregnações sensoriais e de turbu- lências emocionais. Acredito que essas são as verdadeiras bases da atitude lúdica. uM MODELO gERAL A esquematização de um modelo geral po- derá ajudar a compreender essa situação. Traçando -se uma linha de base que repre- senta um eixo do contínuo de contato com o ser interior, temos um campo de variação dos graus de contato entre infinito negati- vo e infinito positivo, passando pelo ponto zero ou origem. Este ponto representa a ex- periência de inteireza. Cada ponto do con- tínuo representa um conjunto de situações psíquicas que preponderam. Entre o ponto zero e o infinito negativo, temos os graus de distanciamento de contato, quesão decres- centes. Entre o ponto zero e o infinito positi- vo, temos graus de expansão de consciência, que são crescentes (Figura 2.1). Isso significa que, a partir de nossa experiência de nos sentirmos inteiros e in- divisos, podemos, como seres humanos, tan- to nos distanciarmos em graus do contato conosco, quanto fortalecê -lo, igualmente em graus, de modo a se tornar expansão de consciência. Ou seja, tomando -se por re- ferência o estado do contato, ele pode ser muito restringido ou muito ampliado, com todas as variações intermediárias. Assim, a noção que temos de nós próprios é variável em conformidade com os graus de contato com o ser interior. Com a diminuição do contato a noção de si mesmo poderá se des- focalizar, se afastar ou se perder; com o au- mento do contato, ela poderá se tornar cla- ra e distinta, assim como proporcionar uma abertura a experiências novas e vitais. Entre o ponto zero e o infinito negativo temos o domínio da sensorialidade e da fragilidade, com todas as consequências em termos de perturbações psíquicas. Entre o ponto zero e o infinito positivo está o domínio das formas mais elaboradas de alargamento mental, en- tre as quais a experiência de imaterialidade (Figura 2.2). A mobilidade psíquica percorre em graus o eixo do contínuo de contato, acom- panhando o estado do contato. Quanto mais este se distanciar do ponto zero em direção ao infinito negativo, menor será a mobili- dade psíquica e maior será a tendência ao inanimado (por conta da sensorialidade ou da fragilidade que virão se instalar). Por ou- tro lado, quanto mais alargado, abrangente e profundo for o contato, maior será o grau de mobilidade psíquica e, portanto, maior será o grau de expansão de consciência, em que as qualidades das experiências sofrem os efeitos da não sensorialidade, iluminan- do o self. Aqui, o contato é um fator que se coloca não mais sob a óptica dos déficits, mas dos acrescentamentos à experiência de Figura 2.1 Campo de variação dos graus de contato com o ser interior, indicando áreas de distanciamento de contato e de expansão de consciência, desde a experiência de inteireza. – ∞ + ∞ ex pe riê nc ia de in te ire za Eixo do contínuo de contato graus de distanciamento de contato graus de expansão de consciência INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 24 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) inteireza. Desse modo, podemos considerar que a atitude lúdica, dependente da mobi- lidade psíquica, seja um elemento variável no eixo de contínuo de contato com o ser interior, sofrendo variações em graus entre o ponto zero e o infinito positivo (Figura 2.3). Por oposição à área de predominância da sensorialidade e da fragilidade, a área de manifestação da atitude lúdica se define por meio dos elementos da experiência de ima- terialidade (Trinca, 1999; 2006; 2008). ExPERiênCiA DE iMATERiALiDADE Como compreender essa experiência? Quan- to mais elevados forem os graus de contato, desde a experiência de inteireza, mais o self tende a sofrer a influência e a ser inundado pela luz do ser interior de natureza não sen- sorial. A experiência de imaterialidade cor- responde a graus avançados dessa influên- cia e ocorre por conta de grande abertura no plano da consciência. Em determinado grau da profundidade de contato, cessam as turbulências e os conflitos que são próprios da sensorialidade e da fragilidade, vindo a se apresentar um amplo espaço aberto na mente, despertado pelas condições não sen- soriais presentificadas no self. Emerge, por- tanto, um espaço interno vivo, em estado de espontaneidade, leveza, colorido, movimen- to, brilho, limpidez, eteridade, abrangência, entre outros aspectos. Nessa profundidade do ser, podemos descobrir nossa verdadeira natureza humana, numa condição de aber- tura, receptividade e acolhimento, com o alargamento da percepção e da compreen- são dos fatos. Como o encontro profundo com nosso ser é vivido o mais possível sem interferên- cias ou entraves, as coisas e situações ten- dem a se mostrar como verdadeiramente Figura 2.2 Campo de variação da mobilidade psíquica, indicando áreas de predominância da sensorialidade e da fra- gilidade do self, bem como da experiência de imaterialidade. – ∞ + ∞ ex pe riê nc ia de in te ire za Mobilidade psíquica graus de sensorialidade e de fragilidade do self graus da experiência de imaterialidade Figura 2.3 Campo de variação da atitude lúdica (sobreposto ao campo de variação da expansão de consciência). – ∞ + ∞ ex pe riê nc ia de in te ire za Atitude lúdica tendência ao inanimado área da atitude lúdica INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 25 são no vazio, por assim dizer, de sensoria- lidade e de fragilidade. Assim, as proprie- dades imateriais que não são separadas das realidades fenomênicas (quando existentes no plano da realidade) têm melhores condi- ções de se fazerem presentes. Um universo que não é aquele produzido por nosso fun- do de impressões sensoriais assoma à cons- ciência. O encontro do próprio ser em sua profundidade faz encontrar a profundidade do mundo. Por exemplo, se experimentamos luz interior, podemos melhor perceber a luz exterior. Se a luz interior é transfigurada, a exterior banha os objetos de uma luz preter- natural. Então, é possível descobrir verda- deiramente o mundo. A princípio, pode -se duvidar da realidade dessa percepção, mas depois se sabe que a realidade é mais pro- funda que a banal. Encontra -se o que está fora com o olho interior, e o que está fora pode ser percebido porque o que está dentro se acha preparado. O mundo exterior é en- contrado em sua fisionomia original e ines- perada por aquele que consegue ver – e o que vê é o real transfigurado. A luz interior encontra a luz exterior num nível de reali- dade mais profunda. Desse modo, dar sentido à vida é uma condição que depende do contato com o próprio ser. Os sentidos variam de acordo com os graus de contato, de sorte que é possível encontrar o espaço dos sonhos, o sentimento de presença de vida, a imagina- ção criadora, as imagens primordiais espon- tâneas, a radiância do mundo, o espaço do silêncio interior, o espaço de perplexidade e tudo o mais. COnCLuSãO A atitude lúdica não é outra coisa senão a emergência à consciência do mesmo espaço aberto na mente pela presença alargada e profunda de nosso ser. Ela consiste em aju- dar a descobrir a profundidade contida em cada ser. Diz respeito a acompanhar e aco- lher com o coração, ir a fundo no contato e receber o fundo dos abismos, o fundo da vida e o fundo do universo. Humano ou não humano, cada ser comunga com a raízes do universo, sendo composto de enigma, mis- tério e abismo. Sua face invisível tende a tomar forma de modo lúdico, porque é em liberdade e em espontaneidade que as coi- sas são criadas, a fim de serem contidas no ser e na vida que elas têm. REFERênCiAS Bion, W. R. (1973). Atenção e interpretação: Uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro: Imago. Chuang Tzu. (1985). L’Oeuvre complete de Tchou angtseu. Paris: Gallimard/Unesco. Davis, M., & Wallbridge, D. (1982). Limite e espaço: Uma introdução à obra de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago. Fédida, P. (2002). Introdução a uma metapsico- logia da contratransferência. Revista Brasileira de Psicanálise, 20(4), 613-629. Ferenczi, S. (1966). La elasticidad de la técnica psicoanalítica. In: Ferenczi, S. Problemas y métodos del psicoanálisis. Buenos Aires: Horme. Trinca, W. (1999). Psicanálise e expansão de cons ciência: Apontamentos para o novo milênio. São Paulo: Vetor. Trinca, W. (2006). Psicanálise e transfiguração: A etérea leveza da experiência. São Paulo: Vetor. Trinca, W. (2007). O ser interior na psicanálise: Fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor. Trinca, W. (2008). O espaço mental do homem novo (2. ed.). São Paulo: Vetor. Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade.Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente pu- blicada em 1953). INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 3 As bases neurofisiológicas do brincar JoAo Augusto figueiró O Dicionário Houaiss da Língua Portu guesa (2001) conceitua brincar como um verbo transitivo indireto e intransitivo e traz 13 definições para o termo, dentre os quais ressalto “distrair -se com jogos infan- tis, representando papéis fictícios, entreter- -se com um objeto ou uma atividade qual- quer; agitar -se, menear, tamborilar, mexer em algo distraidamente, por compulsão ou para passar o tempo, não falar a sério; gracejar, fazer zombaria; debochar, não de- monstrar interesse; não dar importância; não levar (algo) a sério, agir de modo exi- bido ou intrometido, agir com leviandade ou imprudência, tirar gozo, distração ou proveito; desfrutar”. Traz também algumas derivações de sentido figurado como “fazer algo sem notar, sem fazer esforço, lidar de maneira inconsequente com coisas sérias ou perigosas, fazer algo com facilidade, sem esforço, ser ágil e esperto na tomada de providências, na resolução de questões, em executar um trabalho (como em ‘fazer algo brincando’)” e apresenta como sinô- nimos “divertir -se, distrair -se, entreter -se, folgar, gracejar, zombar”. Pode -se observar nestas definições selecionadas o caráter de frivolidade, de não seriedade e mesmo pe- jorativo atribuído à atividade. Brincar é coisa séria e, como diz a psicopedagoga Dra. Sandra Kraft do Nasci- mento da Associação Brasileira de Brinque- dotecas, “o brincar é tão importante para a criança como trabalhar é para o adulto”. O brincar torna a criança ativa, criativa e lhe dá oportunidade de se relacionar com os outros; também a faz feliz e, por isso, mais propensa a ser bondosa, a amar o próximo, a ser solidária. A criança não é um adulto que ainda não cresceu. Ela tem caracterís- ticas próprias. Para alcançar o pensamento abstrato do adulto, ela precisa percorrer to- das as etapas de seu desenvolvimento físico, cognitivo, social e emocional. Seu primeiro apoio nesse desenvolvimento é a família. Posteriormente, esse grupo se amplia com os colegas de brincadeiras e a escola. Brincando, a criança desenvolve po- tencialidades; ela compara, analisa, no- meia, mede, associa, calcula, classifica, compõe, conceitua, cria, deduz, estimula e desenvolve a capacidade de concentração, favorece o equilíbrio físico e emocional, dá oportunidade de expressão, desenvolve a criatividade, a inteligência e a sociabilida- de, enriquece o número de experiências e de descobertas, melhora o relacionamento com a família, entre muitas outras coisas. Sua so- ciabilidade se desenvolve; ela se aproxima de outras crianças, dos familiares, de outros adultos e cuidadores, faz amigos, aprende a compartilhar e a respeitar o direito dos ou- tros e as normas estabelecidas pelo grupo, e a envolver -se nas atividades apenas pelo prazer de participar, sem visar recompensas nem temer castigos. Brincando, a criança estará buscando sentido para sua vida. Sua saúde física, emocional, intelectual, mental INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 27 e social depende, em grande parte, dessa atividade lúdica. Cunha (2007), presidente da Associação Brasileira de Brinquedotecas destaca, além disso, a importância dos espa- ços de brincadeira como oportunidade para a criança “mergulhar” em seu brinquedo sem cobranças de desempenho. Para a autora, “alimentar a inteligência e a criatividade da criança com a brincadeira é tão importante quanto alimentar o corpo com comida”. Os jogos e as brincadeiras podem, além disso, auxiliar na identificação de dificuldades de aprendizado, alterações do desenvolvimen- to, no diagnóstico de determinadas condi- ções comuns da criança e como auxiliar no tratamento, na melhoria da aceitação dos procedimentos médicos, da tranquilização, da qualidade de vida e prognóstico, bem como nas internações hospitalares. Durante a brincadeira, é possível observar a capaci- dade de memorização da criança, suas an- siedades e seus medos, sua forma de lidar com o erro, seu nível de atenção e seu foco nas atividades. O brincar também tem suas etapas de desenvolvimento cognitivo, emocional e social. A criança começa a brincar sozi- nha, manipulando partes do próprio corpo e objetos. Posteriormente, procurará compa- nheiros para as brincadeiras paralelas (cada um com seu brinquedo). A partir daí, de- senvolverá o conceito de grupo e descobrirá os prazeres e frustrações de brincar com os outros, crescendo emocionalmente. Brincar em grupo evita que a criança se desestimule, mesmo quando ainda não desenvolveu ple- na capacidade de brincar junto. Ela aprende a esperar sua vez e a interagir de forma mais organizada, respeitando regras e cumprindo normas. Com os grupos, ela aprende que, se não encontrarmos uma forma eficiente de cooperar uns com os outros, seremos todos prejudicados, além das vantagens da coope- ração. A vitória depende de todos. Aprende- -se a ganhar e a perder. A atividade lúdica promove entusiasmo, prazer e a alegria do compartilhamento. A criança fica alegre, vence obstáculos, desafia seus limites, des- pende energia, desenvolve a coordenação motora e o raciocínio lógico, adquire mais confiança em si e aprimora seus conheci- mentos, competências, forças, talentos e habilidades. É com este foco que iremos de- senvolver nossas ideias, trazendo algumas contribuições cientificas ao entendimento da importância do brincar no desenvolvi- mento humano e na cidadania. Sabemos, hoje, que o adolescente e o adulto resultam de sua própria natureza, das figuras parentais, da família, dos gru- pos sociais em que viveu e vive, da escola, da cultura e da sociedade com seus valo- res, crenças, normas e práticas. Ressalta- -se nesse processo o papel fundamental da primeira infância que, junto com o período gestacional, representa o principal momen- to de estruturação neuropsicológica e social do individuo e, entre as práticas, ressaltam- -se as atividades lúdicas como um dos pi- lares mais importantes do desenvolvimento infantil. O cérebro é vulnerável aos efeitos adversos do ambiente e é, igualmente, sus- ceptível aos efeitos positivos de ambientes ricos, afetivos e equilibrados de aprendiza- gem e à boas relações de cuidado. Brincar é um aspecto importante do desenvolvimento neurocomportamental, mas não sabemos ainda exatamente por quê. Está relacionado à atividade cerebral, mas não sabemos exa- tamente como, e é observado em muitas es- pécies além do Homo sapiens e não sabemos exatamente em quantas e em quais. O que é o brincar? O que ele pode pro- meter? Porque brincamos? Qual a relação entre o brincar motor e comportamental com o brincar mental (fantasia, imaginação, ensaios cognitivos)? Quais as raízes biológi- cas, evolutivas, ontogenéticas e a causa e a função do brincar? São muitas as questões que ainda precisamos pesquisar mais, escla- recer e responder. Ainda hoje, o brincar está associado a comportamento frívolo, sem importância, sem propósito específico, por vezes tomado como inútil e improdutivo, desnecessário, uma distração, uma perda de tempo desvinculado de utilidade social e produtiva. Brincar é uma atividade séria, pois é importante para o desenvolvimento social e cognitivo, da mesma forma que outras ne- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 28 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) cessidades básicas como dormir, repousar e comer. A importância do brincar para o de- senvolvimento cerebral e desenvolvimento infantil, sem dúvida, irá influenciar famílias, escolas e outras instituições sociais e corpo- rativas e reorganizará suas atitudes e priori- dades relativas ao próprio brincar, recreios, intervalos, educação física, música, jogos, arte e interações pessoais ricas entre cuida- dores e crianças. O brincar tem uma impor- tante função adaptativa. A observação das brincadeiras em animais mostra os desdo- bramentosda progressiva complexidade do brincar como parte integral do desenvolvi- mento e da aquisição de competências e ca- racterísticas como alegria, valor, liberdade, prazer, voluntariedade e urgência, livre de limites de tempo, improviso, perda da auto- consciência. Trata -se de um comportamento automotivado, não dirigido à objetivos, es- pontâneo e livre de regras estabelecidas por adultos tendo propósitos, funções evolutivas e mecanismos nos seres vivos observados. Salienta -se aqui a função do adulto como base segura no comportamento, permane- cendo fora do campo do brincar e interfe- rindo somente nos excessos. Sabemos que o brincar predomina em mamíferos carnívo- ros e primatas, mas também é encontrado em algumas aves como periquitos, corvos e gralhas, em tartarugas, lagartos e lagartixas, diversos peixes e octópodes e mesmo artró- podes. Facilitam o brincar a presença de há- bitos carnívoros, estilo de vida muito ativo, comportamento social complexo e tamanho corporal relativamente grande. Entretanto, o brincar não é tardio na evolução, prece- dendo a divisão vertebrados/invertebrados. Talvez exista em nosso planeta há mais de um bilhão de anos! Em humanos, podemos observá -lo nos movimentos expressivos e aleatórios do bebê, posteriormente na exploração livre do ambiente do engatinhante, nas ativida- des construtivas, imaginativas e simulativas do pré -escolar, nos jogos de perseguição, competitivo -cooperativo, organizados da criança em idade escolar. Todas, expressões criativas do brincar. CRiTéRiOS PARA DEFiniçãO DO BRinCAR Os critérios para se definir o brincar são ba- seados na literatura de espécies animais e humanos e contemplam diferentes orienta- ções metodológicas: fisiológicas, cognitivas, sociológicas, desenvolvimentais, etológicas, etc. São eles: 1. O comportamento expresso não é comple tamente funcional na forma e contexto no qual é expresso, isto é, inclui elementos ou é dirigido a estímulos que não con- tribuem para a sobrevivência. Este crité- rio reconhece uma importante utilidade, embora não focando diretamente na so- brevivência, como ocorre com o comer e o lutar; 2. O comportamento é espontâneo, volun- tário, intencional, prazeroso, gratificante e autotélico (feito por/para si mesmo). Somente um desses termos precisa ser aplicável. Este critério também contem- pla os concomitantes afetivos e emocio- nais do brincar, mas não o torna essen- cial para o seu reconhecimento; 3. Difere das performances “sérias” dos comportamentos etotípicos em pelo me- nos um aspecto: a incompletude (geral- mente através da inibição dos elementos finais), o exagero, por ser desajeitado, o requinte, o envolvimento com signos, a reversão de papéis, outros padrões com- portamentais com formas modificadas, sequenciamento ou objetivos. Elemento comum deste critério é que exista uma diferença estrutural e temporal com rela- ção aos comportamentos ditos “sérios”; 4. É repetidamente observado durante pelo menos uma boa parte da vida do animal ou dos humanos. Este critério também diferencia respostas transitórias aos es- tímulos ou ambientes novos do brincar que pode suceder tais comportamentos exploratórios iniciais; 5. Inicia somente quando o animal está ade- quadamente alimentado, saudável e livre de estresse (ameaça de predadores, más condições ambientais, superpopulação, INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 29 instabilidade social) ou motivações com- petitivas intensas (alimentares, reprodu- tivas, recursos, construção de ninhos). O animal ou criança precisa se encontrar em um campo relaxado ou se sentir psi- cologicamente seguro. Este critério con- textual é essencial para a ocorrência do brincar, dado que é um dos primeiros tipos de comportamento a ser extinto quando o animal ou criança é ameaçado, tem fome, é maltratado ou exposto a cli- ma desagradável. Considerando tais pressupostos, pode- mos definir o brincar como um comporta- mento repetitivo funcionalmente incomple- to, diferente estrutural, contextual e ontoge- néticamente das versões comportamentais mais funcionais, iniciado voluntariamente quando o animal está em um ambiente/ contexto relaxado e livre de estresse. Todo o brincar de uma criança deve se ajustar a este critério. Se uma criança é obrigada a brincar, esta atividade infantil deixa de ser brincar. Isso é importante, pois muitas ativi- dades altamente estruturadas têm progres- sivamente substituido o livre brincar desor- ganizado em muitos contextos hoje ofereci- do às crianças. Tradicionalmente, têm sido poucas e tardias as pesquisas sobre o brincar. Um dos pioneiros foi Freud (1920) com a des- crição das brincadeiras de for da. As pesqui- sas, de um modo geral, ainda subvalorizam as consequências da privação do brincar em crianças saturadas por agendas e tem demonstrado a complexidade das informa- ções obtidas principalmente por estudo em ratos e camundongos – refletindo a nature- za multifacetada do processo. Ressaltam a complexidade em muitas outras espécies e constantemente reafirmam a importância do brincar como uma atividade fundamen- tal para todos os que acalentam o brincar infantil e juvenil. Brincar está em nosso organismo, pa- rece estar under the skin, como afirmam os canadenses Pellis & Pellis (1987, 2005). Ra- tos criados socialmente com oportunidades normais para brincar de lutas apresentam resposta de estresse menos prolongada em situações indutoras de ansiedade do que aqueles criados em isolamento, que são in- capazes de acalmarem a si mesmos. Brown (1998) do National Institute for Play afirma: Brincar é como nós somos feitos, como nos desenvolvemos e nos ajustamos a mu- danças; permite que expressemos nossa alegria e nos conecta mais profundamente com o melhor de nós mesmos e dos ou- tros; é a forma mais pura de expressão de amor. Quando um número suficiente de pessoas elevar o brincar ao status que ele merece em nossas vidas, veremos que o mundo será um lugar melhor para viver. As pesquisas têm demostrado que cé- rebros grandes não necessariamente predi- zem a capacidade para brincar, mas permi- tem maior complexidade desde que sejam dadas as condições adequadas. Por exem- plo: uma criança que evoluir de empurrar um bloco em uma mesa a simular que é um carro está usando mais córtex, indicando o uso de maior potencial. Ratos podem brincar mais do que primatas, mas o escopo é mais limitado. As brincadeiras de luta, tão repro- vadas hoje, permanecem um tema bastante ignorado e frequentemente desencorajado, corresponde à forma dominante de brincar nas espécies, permite tornar -se competen- te com a ambiguidade social, uma função fundamental melhorando a capacidade de leitura das dicas sociais e entendimento das nuances da agressão x ludicidade e colabo- ra na organização de respostas adequadas. Essas habilidades conduzem às competências sociais, à definição de dominâncias em hu- manos e não humanos e em como ser compe- tente em ser ambíguo e explicam a posterior evolução para formas verbais de brincadeiras de lutas em humanos, a inclusão de comentá- rios “cabeludos”, a diferenciação do ambíguo na evolução para a dominância social e em navegar na ambiguidade social oferecendo um novo olhar para a agregação social. Os estudos mostram que os machos se envolvem mais em brincadeiras de lutas. Por que então as fêmeas, que lutam menos, INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 30 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) são socialmente mais competentes? Possi- velmente, o sucesso reprodutivo das fêmeas dependerá mais de competências sociais, assim seu cérebro provavelmente já contém hardware com mais competências sociais que os machos e é menos dependente da experiência para desenvolver estas habili- dades. Está bem demonstrado que o brincar favorece o desenvolvimento emocional. Por seu intermédio, mantemos sentimentos de prazer. Existem evidências anedotais de que, com brincar suficiente, nosso cérebrofunciona melhor, com fomento da criativi- dade, do prejuízo da falta do brincar na vida adulta e da importância do reconectar com a alegria experimentada em algum momento anterior de nossas vidas. Expor -se ao brin- car, permitir -se para brincar, entender que nem toda a brincadeira será divertida ou fácil, ser proativo e propor o início da brin- cadeira, encontrar locais seguros que permi- tam ficar livre de medo ou receio, nutrir e alimentar a brincadeira e encontrar outros dispostos a brincar são tarefas para todos os adultos tanto em suas próprias vidas como de suas crianças. O que vemos, em geral, são adultos sobrecarregados com suas tarefas e circunstâncias de vida que não veem o brin- car como um caminho para uma vida mais balanceada e equilibrada. Portanto, criar oportunidades de dialogar sobre o tema e de introduzi -lo nas suas vidas e nas vidas das crianças é um dos passos fundamentais para uma vida com melhor qualidade. Frost & Jacobs, em estudo publicado em 1996, mostraram que a privação de oportunidades de brincar livremente em crianças pode fa- vorecer a violência juvenil. Sabemos que as crianças tem come- tido um número rapidamente crescente de crimes cada vez mais violentos e com idades inferiores. Este aumento da violência juve- nil é um grito por segurança e pertencimen- to. As crianças necessitam compartilhar a maior parte de seu tempo com adultos com valores positivos, cooperativos, amistosos, altruístas, zelosos, doadores, compartilhan- tes, leais e apoiadores. O cuidado de adul- tos atenciosos que as ajudem a desenvolver valores positivos, que respeitem seus senti- mentos e ofereçam oportunidades ricas em ambientes livres para interações sociais e expressões criativas é uma necessidade in- fantil inalienável. O brincar sabidamente tem funções terapêuticas. O “Jogo do faz de conta” (Pia- get, 1978) oferece à criança sentimento de controle sobre as suas experiências, inclusi- ve as traumáticas, e podemos considerá -lo uma alternativa viável como um antídoto para a violência. Entende -se a violência como um grito por atenção e ajuda, força e controle. As crianças que cometem atos vio- lentos necessitam desesperadamente ser ou- vidas, saber que alguém as está ouvindo e se preo cupa. Elas não levantam um dia e sim- plesmente decidem que serão violentas ou agressivas. O que temos visto é o “bombar- deio” de muitas horas de televisão por dia, games e filmes intermináveis com conteúdos violentos, sexualmente explícitos, que escul- pem valores e comportamentos prejudiciais e que roubam das crianças a oportunidade do brincar e do jogar tradicional, além de agendas apertadas com pouco tempo para o livre brincar em crianças que perderam a liberdade de escolher onde, com quem e quando brincar. Uma das conse quências deste cenário é a violência juvenil. Quanto aos espaços físicos, a maioria dos parques públicos, escolas e playgrounds de centros infantis são perigosos e mal equi- pados, as escolas encurtaram e eliminaram recreios sob a pressão da excelência acadê- mica. Consequentemente, as crianças não podem mais rodar livremente com relativa segurança em sua vizinhança, brincar com amigos de autoescolha e interagir com adul- tos que encontram espontaneamente. Difi- cilmente encontram e experimentam as ma- ravilhas de uma fazenda e/ou da natureza, raramente tem acesso a ambientes selvagens ou naturais intocados ou mesmo playgrounds criativos e desafiadores que estimulem a imaginação, aperfeiçoe habilidades e criem sensação de admiração e maravilhamento. Além disso, precisam lidar com a paranoia de permanecer em espaços fechados com portas fechadas, sem falar com estranhos, INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 31 experimentando solidão e isolamento. Nos parques com pais, suas atividades são fre- quentemente restritas pela escassez de ou- tras crianças para brincar, pela falta de brin- quedos e de brinquedos compartilháveis e pela abundância de equipamentos inseguros e inadequados para a idade. O BRinCAR E A nEuROCiênCiA A partir de 1960, muitos cientistas concluí- ram por meio de estudos em animais e hu- manos, que a primeira infância e a infância como um todo eram períodos ótimos para o desenvolvimento cerebral e que o cérebro é mais moldável e influenciável por estimula- ção ambiental do que se imaginava anterior- mente. Em 1961, Hunt desafiou o conceito de inteligência fixa e inata, e Piaget, em toda a sua obra, comprovou e fundamentou a im- portância do meio na construção das estru- turas mentais, logo, possibilitou a afirmação de que a estimulação da criança em ambien- tes lúdicos diversos durante a infância leva- ria a um maior desenvolvimento intelectual. Frost (1996), após descrever as transmis- sões eletroquímicas e o aumento do numero de sinapses durante os três primeiros anos de vida de uma criança, concluiu que as ex- periências precoces de uma criança tem um papel crítico na determinação da arquitetu- ra cerebral, na amplitude e qualidade das habilidades intelectuais da criança. Ou seja, os caminhos que são repetidamente ativados ou usados tendem a ser protegidos e manti- dos na vida adulta. O desenvolvimento ce- rebral é, então, realmente um processo de “use ou perca” e experiências precoces de- terminam que neurônios serão utilizados e quais irão morrer e, consequentemente, se a criança será brilhante ou estúpida, confian- te, segura ou medrosa, articulada ou inibi- da. Stroufe confirmou a relação entre trans- tornos do apego e violência e mostrou que muito da violência nos Estados Unidos pode estar relacionada a falhas precoces no apego apropriado aos adultos. Negligência pelos pais, privação social, condições estressantes de vida e falta de estimulação apropriada coloca em risco o desenvolvimento cerebral precoce e pode resultar em comportamento social e emocionalmente imaturo, impulsi- vidade, violência e redução dramática na capacidade posterior de aprendizado. A relação entre o brincar e o desenvol- vimento cerebral está demonstrada. Todos os mamíferos jovens saudáveis brincam. Portanto, pais humanos devem tanto iniciar a oferecer estrutura e orientações para o brincar sabendo que sua amplitude e com- plexidade aumentam rapidamente à medida que os neurônios iniciam as interconexões estruturais em velocidades e taxas significa- tivas. Brincar programa a estrutura neuronal progressivamente mais complexa que, por sua vez, influencia e propicia brincares cada vez mais complexos. Os jogos, brincadeiras e frivolidades animais e humanas precoces os equipam com as habilidades que serão ne- cessárias futuramente na vida. Eles apreen- dem flexibilidade, inventividade, criativida- de e versatilidade, praticam habilidades mo- toras, linguagem e negociação, engajam -se em análise de tarefas socialmente e cultural- mente mediadas e na resolução de proble- mas progressivamente mais complexos du- rante suas brincadeiras. Brincar é, portanto, essencial para o desenvolvimento saudável. Experiências da primeira infância exercem um impacto dramático e preciso na estru- turação da circuitaria neuronal. Durante os primeiros anos, é a atividade lúdica, sem instruções dirigidas, isolamento, privação ou abuso que representará uma diferença positiva no desenvolvimento cerebral e fun- cionamento humano subsequente. Crianças que não brincam ou são raramente tocadas desenvolvem cérebros 20 a 30% menores do que o normal para a idade. Privação do brin- car resulta em comportamento aberrante. Brown (1998) estudou 26 assassinos sen- tenciados no Texas e observou que ou eles relatavam ausência do brincar na infância ou envolviam -se, neste período, em brincar anormal como bullying, sadismo, crueldade com animais ou no caçoar externo. Neurocientistas têm demonstrado evi- dência física, através de neuroimagens INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 32 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) funcionais, a consequência relativa da esti- mulaçãoou negligencia ambiental. Os jogos e brincadeiras infinitos que os jovens pra- ticam, na realidade, auxiliam a programar o cérebro para habilidades da linguagem, arte, música, matemática, relações inter- pessoais, motoras, cognitivas e inteligência. Brincadeiras infantis imaginativas e jogos de faz de conta são formas poderosas que viabilizam que eventos complexos e assus- tadores se tornem compreensíveis e manejá- veis. Portanto, os adultos devem prover ex- periências que preparem a estrutura neural para as habilidades que precisam ser alcan- çadas em um contexto afetivo de cuidado e apoio. Frost (1998) faz as seguintes recomen- dações: 1. Inicie cedo – na concepção, envolvendo dois adultos saudáveis; 2. Gaste muito tempo brincando com a criança – para um apego seguro e for- mação de vínculos; 3. Seja positivo, brincalhão, caloroso e nu- tridor – apoie desenvolvimento cerebral saudável; 4. Preste atenção no desenvolvimento mo- ral da criança – definindo a vez, dividin- do, ouvindo; 5. Desafie a criança, mas não além da am- plitude de suas habilidades e capacida- des – faça o brincar factível; 6. Abrace a criança – toque, acaricie, afa- gue, abrace e balance suavemente para a frente e para trás; 7. Fale com a criança – responda aos seus arrulhos e balbucios; 8. Introduza música e arte precocemente – toque música suave, calmante e clássi- ca; 9. Substitua a televisão por brincadeiras, arte, música, e passeios familiares; 10. Torne sua casa livre de drogas – modele comportamentos livres de drogas para a criança; 11. Ofereça cubos, bolinhas, areia, água, instrumentos simples, potes, baldes, pa- nelas, roupas e outros materiais simples em intervalos apropriados de tempo; 12. Proteja a criança de estresse e trauma, incluindo “pitos” agressivos; 13. Não hiperestimule a criança com brin- quedos demais e muita fala sem sentido ou significado; 14. Leia para a criança, cante com a crian- ça e brinque com jogos simples todos os dias; 15. Não aceite o padrão crescente de re- duzir ou eliminar intervalos e recreios, educação física, artes e música da edu- cação. BRinCAR, REgRAS E RESiLiênCiA O brincar e a imaginação são ferramentas importantíssimas na construção da resiliên- cia. Resiliência é a capacidade universal que permite que uma pessoa, grupo ou comu- nidade evite, minimize ou supere os efeitos danosos das adversidades. E o brincar for- nece um contexto integrativo essencial para o desenvolvimento de uma criança resilien- te. Essa atividade foca no desenvolvimento sensório motor (sensações corporais, movi- mentos, objetos e pessoas) no faz de conta (planos, papéis, transformam objetos en- quanto expressam ideias e sentimentos so- bre o mundo social) e nos jogos com regras (envolve dois ou mais lados, competição, critérios acordados para declarar um vence- dor). Vygotsky (1978) afirmou que toda a função no desenvolvimento infantil ocorre primeiro no nível social e depois individual. Portanto, o contexto no qual a criança vive e brinca é crítico para o desenvolvimento da resiliência. Como a criança desenvolve en- tendimento das regras, limites e expectati- vas elevadas são características das pessoas resilientes, pois praticamente todo brincar tem regras implícitas ou explicitas. À medi- da que o brincar se torna mais complexo, as regras se tornam mais explícitas. O brincar dramático com suas regras implícitas é o alicerce para jogos com regras mais expli- citas. As regras implícitas do jogo dramáti- co determinam papéis e comportamentos. As crianças seguem estas regras até que o INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 33 conflito se estabeleça entre os jogadores. A criança, então, irá afirmar seu ponto de vis- ta da regra que deverá governar o compor- tamento de seu personagem. Neste confron- to, aprende que suas regras são diferentes das dos outros e inicia o processo de nego- ciação. Desenvolver a capacidade de ajustar expectativas para si e para o(s) outro(s) só pode ocorrer na presença do(s) outro(s). Surge o dar e receber, cuidado e apoio, aprender a conviver com os outros, praticar amar e ser amado, brincar de cuidar e dar apoio ajuda a criança construir autoestima e a assegura que ela é amável e amada. Werner (2001), em estudos realizados en- tre 1955 e 1985, demonstrou que adultos sem maiores problemas tinham pelo menos uma pessoa que os aceitava incondicional- mente como eles eram e a criança tinha pelo menos uma habilidade que lhe dava o sen- timento de orgulho e aceitação entre seus pares. Crianças que entram na escola sem ter estes traços podem desenvolvê -los atra- vés de intervenções adequadas. Entretanto, crianças que tinham alguém que comuni- cavam expectativas elevadas, estabeleciam limites e ajudavam a aprender comporta- mentos adequados tinham maior probabili- dade de serem resilientes, favorecia o esta- belecimento de relações de cuidado, sabiam com maior facilidade que podiam amar e ser amados. A autoestima se desenvolve se as crian- ças tiverem oportunidades de brincadeiras onde elas possam receber recompensas e re- conhecimento por seus esforços, sendo pré- -condições: viver expectativas elevadas, ter relações de cuidado e participar de ativida- des que ofereçam significado. Assim, estas crianças podem “driblar” a adversidade e curar a si mesmas com muito mais facilida- de e independência. Deste modo, cuidado e apoio, expectativas elevadas e participação significativa são áreas importantes no de- senvolvimento e consolidação da resiliência. É fundamental que pelo menos uma pessoa ofereça apoio seguro no desenvolvimento positivo da criança. O apoio mais comum fora da família é o do professor, que ofere- ce orientação educacional mas também um modelo de papel de apoio positivo em ou- tras áreas da vida. Ele habitualmente tem condições de oferecer um ambiente seguro para o brincar infantil. A criança precisa saber e sentir que está protegido de forças exteriores e que um adulto a irá proteger, se necessário. Os promotores de resiliência estão alertas a qualquer sinal de bullying ou maus -tratos da criança que brinca e não permitirão que a criança seja tratada com desrespeito. Acreditam na aprendizagem coletiva e na comunidade de aprendizes onde as crianças são estimuladas a apoiar uns aos outros, ouvir efetivamente e hon- rar os pontos de vista que diferem dos seus próprios, ensinam estratégias de resolução de conflitos, estão alertas a quaisquer sinais de abuso ou negligência e procuram ativa- mente apoiar a criança se a situação exige, estabelecendo limites que a mantém segura. Isso não implica intervenção física, mas es- tabelece limites e modela comportamentos apropriados, com atenção pessoal e positiva ajuda a criança desenvolver autoestima e reforça aspectos positivos do comportamen- to infantil, ensinando a pedir ajuda quando necessário. Os adultos frequentemente pres- supõem que as crianças saibam que podem pedir ajuda e que saibam como fazê -lo. É importante ter em mente que expectativas elevadas não excluem pedir auxílio quan- do necessário. Os adultos devem modelar o pedir ajuda e praticar isso com as crianças no contexto da brincadeira e aproveitar as oportunidades emergentes para a resolução de problemas. É importante que os adultos ofereçam oportunidades para as crianças estabelecerem suas metas e decidir do que elas se orgulham e o que precisa ser reforça- do por elas mesmas. Crianças podem ser ensinadas ativa- mente a sobreviver em face da adversida- de, que elas têm forças interiores e que são resilientes. Por muito tempo sentimos pena das crianças e as tratamos como vítimas das circunstâncias. Pela explícita admiração de suas capacidades de enfrentamento, pode- mos ajudá -las a ver que são fortes e podem lidar com os problemas que surgem. Se elas INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 34 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) se percebem como vítimas, irão atuar como vítimas. O brincarpermitirá o aprendizado das expectativas para interações sociais mais efi- cazes. É a prática da autonomia moral – ser governado por si mesmo e não por outros – decidir, por si mesmo, o que é justo e injusto. Participar de uma forma que dê significado é uma necessidade humana, na ausência a criança sentirá alienação e solidão. A oferta de oportunidades significativas de participa- ção e na comunidade da brincadeira ajuda a construir resiliência. Frequentemente, a participação se restringe à atividades escola- res e aos esportes. Importante, por exemplo, participar da criação das regras da classe, incluindo suas consequências em um am- biente de brincar positivo, estruturado (mas não muito) com regras justas é um aspecto importante de um ambiente seguro. Pergun- tar o que eles fazem melhor, por exemplo, e valorizar os talentos e capacidades além dos escolares e esportivos oferecendo opor- tunidades para participar em grupos colabo- rativos. Playgrounds cooperativos bem organi- zados estimulam relações sustentadas com seus pares. O reconhecimento pelo profes- sor da importância de cada criança na brin- cadeira traz uma perspectiva única para o grupo e fomentará a resiliência estimulando todos a gerar novas ideias e auxiliando -os na resolução de problemas, reforçando o di- vidir a vez, ouvir os outros, solicitar ajuda, receber e oferecer auxílio. É também impor- tante que a criança tenha tempo para brincar sozinha, pois oferece oportunidade de brin- car sem ideias pré -concebidas sobre a forma correta. Pode ter uma experiência positiva que influencie seu autoconceito. Sentimen- to de conseguir ou conquistar determinadas metas confere orgulho de si mesmo. Brincar é um aspecto importante des- te desenvolvimento, mas nós não sabemos exatamente porque; está relacionado à ativi- dade cerebral, mas não sabemos exatamen- te como; está presente em muitas outras espécies, mas não sabemos exatamente em quantas e quais. Está presente nos mamífe- ros a ausente nos répteis. Por outro lado, as sociedades mais criativas parecem ser aque- las capazes de oferecer recursos suficientes para subpopulações com tempo livre. BRinCAR, OnTOgEniA E FiLOgEniA Hoje, sabemos que a expressão fenotípica de um padrão de comportamento resulta de epigenética complexa: interações e feed backs de vários níveis, dos genes à síntese protéica (expressão genética) à práticas com portamentais e experiências sociais, a seleção pode operar em todos estes níveis e outros, pelo menos indiretamente e o brin- car pode ter um profundo, embora sutil, papel na ontogenia e na filogenia comporta- mental que nós estamos apenas começando a entender. EVOLuçãO DO BRinCAR Condições ecológicas e fisiológicas favore- ceram o surgimento na evolução dos ver- tebrados, de modo que o brincar evoluiu independentemente em várias linhagens de peixes, tartarugas, répteis escamados, croco- dilos, aves, marsupiais e, virtualmente, em todas as famílias de mamíferos placentários. É claramente mais comum em mamíferos e pássaros, grupos com taxas metabólicas elevadas, endotermia, cuidados parentais e cérebros relativamente grandes. Brincar origina -se de padrões comportamentais ins- tintivos cujo padrão e motivação são contro- lados pelos gânglios da base do telencéfalo e estruturas do diencéfalo. A elevada taxa de alterações evolutivas nos animais endo- térmicos, principalmente os mamíferos, no tamanho do genoma, tamanho do cérebro e complexidade comportamental é significa- tiva e ainda não totalmente compreendida. O brincar pode ter sido uma das maiores in- venções nessa rápida cascata evolutiva que conduziu a elevada complexidade cognitiva. Tais evoluções podem ter ocorrido partindo de respostas lúdicas em direção a empreen- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 35 dimentos e funções mais “sérias”. Desta maneira, uma vez o comportamento lúdico tenha se transformado e fixado, ele sai do reino do brincar de acordo com os critérios definidos no inicio deste texto. A tese aqui defendida é que, após um período de reor- ganização evolutiva na ontogenia compor- tamental, acentuado pelo alongamento dos cuidados parentais, o brincar pode facilitar o rápido desenvolvimento comportamental e mental fornecendo fenótipos modificados que a seleção natural modela e elege. Brincar, combinado com a necessida- de de resolução de problemas, conduzirá a comportamentos novos e criativos como a imaginação dirigida, por exemplo, que en- volve a substituição de objetos, parceiros e contextos fantasiados por “reais” conco- mitante a comportamentos explícitos que irão promover a criatividade na criança. Entretanto, o brincar também pode refletir comportamentos deteriorados ou interrom- pidos em seu desenvolvimento como ocorre com espécies domesticadas, como cães, que mantém comportamentos infantis indefini- damente. BRinCAR E CéREBRO O brincar pode ser muito importante para o desenvolvimento cerebral, cognitivo e so- cial. Muitos estudos e revisões confirmam o papel de várias partes do cérebro e da neu- roquímica. Assim, o brincar envolve muitos sistemas neurais. A maioria dos estudos aborda o papel do cérebro em brincadei- ras de lutas em ratos. Mesmo assim, muitas afirmações inferências podem ser feitas com relativa segurança sendo possível responder algumas questões sobre o substrato neural do brincar. A maior parte das evidências implica o cérebro anterior principalmente o telencéfalo. Algumas lesões hipotalâmicas diminuem o inicio e a manutenção do brin- car e lesões talâmicas reduzem surtos de brincadeiras, mas não o seu inicio. Podemos ver que mesmo brincadeiras de luta em uma espécie simples apresentam um controle neural complexo e estágio -específico. Estudos de lesão, estimulação e neuroimagem A principal mensagem é que várias áreas do sistema nervoso estão envolvidas, variando de acordo com o tipo e diferentes aspectos de um determinado tipo de brincar, envol- vendo aspectos sensoriais, perceptivos, mo- tores, afetivos, cognitivos, comportamen- tais, etc., e objetos, parceiros sociais, o pró- prio corpo, a imaginação, etc. Deste modo, o brincar pode exagerar, estimular ou refinar outros sistemas desenvolvimentais. Lesões dos gânglios da base interferem no padrão motor e no padrão exploratório. O núcleo accumbens e putamen estão particularmente envolvido no brincar social. O sistema límbi- co está envolvido nas respostas emocionais mais positivas do que o medo e raiva (estria- to palidal) e pode modular estas respostas, está associado aos comportamentos aditivos e pode explicar o play addiction como vício em jogos, similar a dependências químicas. O brincar social, o comportamento afiliati- vo (amígdala e cíngulo), contato físico do brincar (bonding) são todos dependentes do sistema límbico. Brincar é marcado por uma sequência de comportamentos deriva- dos do repertório comportamental normal das espécies e o aprendizado é consolidado no hipocampo, que também está envolvido na orientação espacial e respostas afetivas. Ratos criados em ambientes ricos em obje- tos para interagir têm 15% mais neurônios no giro denteado que os controles, mostram melhor orientação e aprendizagem espacial e níveis mais elevados de fatores de cresci- mento neuronal no hipocampo. A atividade no córtex pré -frontal pode ser inibida pelo estresse e viver em um ambiente enrique- cido, leva a ganhos tanto no peso cerebral quanto no número de neurônios e sinapses. Isso reforça a estreita relação entre plasti- cidade cerebral e mudança comportamental e entre estas e o brincar. A mesma ação de brincar em ratos também ocorre em animais decorticados, mostrando que elementos do brincar social têm raízes tão primitivas quanto o comportamento sexual, alimentar e agressivo. Além disso, verificamos que ra- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 36 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) tos privados do brincar social mostram com- portamento sexual anormalquando adultos, e o brincar social pode refinar o comporta- mento adulto dos mesmos. O brincar social tem surtos de mo- vimentos ofensivos e defensivos e altera- ções que são muito abruptas. No cerebelo, encontra -se o controle do aprendizado mo- tor e movimentos finos, o acompanhamen- to do movimento de objetos externos e dos próprios movimentos presentes no brincar. O pico do brincar em camundongos, ratos e gatos coincide com o pico de desenvolvi- mento sináptico permanente dependente de experiência no cerebelo. O brincar está associado com um período sensível para a integração neural e a privação do brincar social em ratos no período crítico de for- mação sináptica cerebelar leva a redução da interação social no adulto. Mudanças permanentes das conexões sinápticas estão ocorrendo em muitas outras partes do cére- bro em desenvolvimento e os circuitos neu- ronais especificamente envolvidos em cada tipo de brincar ainda são pouco conhecidos e não há evidencias de circuitos limitados especificamente ao brincar. COnSiDERAçõES FinAiS Gânglios da base, área tegmental, córtex pré -frontal e sistema dopaminérgico estão especialmente envolvidos com recompen- sa, antecipação, memória, orientação para objetivos observadas nas respostas do brin- car locomotor, social e com objetos. Estes sistemas também estão envolvidos em mui- tas outras atividades, sugerindo que há so- breposição, convergência e reforço de uma variedade de sistemas comportamentais incluindo dependências e comportamentos compulsivos repetitivos. Brincar que se ori- gina em sequências comportamentais instin- tivas, nas quais performances motoras são gratificantes, pode melhorar a habilidade de uma grande diversidade de funções pela prática repetitiva em contextos diferentes e por modificações de sequências baseadas na experiência. Brincar pode ser somente uma das várias formas de aumentar a per- formance comportamental e cognitiva. Pode ser também o método preferido dos animais que estejam em boas condições em um cam- po relaxado, mas confiar neste método fa- cilmente inibido não seria muito adaptativo. Precisamos aplicar nossa imaginação e habi- lidades científicas para melhor entender as conexões entre o brincar, a imaginação e o desenvolvimento neurológico, mental, emo- cional e social. Ou seja, brincar é algo muito sério que precisa ainda de muito estudo e pesquisa. Estamos apenas começando a en- tender esta complexidade. Mas, antes disso e independentemente de tudo isso, nossas crianças poderão brincar livremente, pois elas sabem muito mais do que todos nós o que e como realizar esta maravilhosa, com- plexa e prazerosa atividade. REFERênCiAS Brown, S. (1998). Play clinical evidence and personal observations. In M. Bekoff, & J. A. By- ers, Animal play: Evolutionary, comparative, and ecological perspectives. Cambridge: Cambridge University. Cunha, N. H. S. (2007). 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Kolb, The behavior of the laboratory rat: A handbook with test rat (pp. 298-306). New York: Oxfort University. Piaget, J. (1978). La formacion du symbole chez l’enfant (6. ed.). Paris: Delachaux et Niestlé. (Obra originalmente publicada em 1946). Vygotsky, L. S. (1978). Mind in society: The develop ment of higher psychological processes. Cambridge: Harvard University. Werner, E. E., & Smith, R. S. (2011). Journeys from childhood to midlife: Risk, resilience, and recovery. Ithaca: Cornell University. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS BRinCAR Por que, na perspectiva deste livro, é impor- tante considerar significação e representação na perspectiva do brincar no contexto psico- terapêutico da situação ludodiagnóstica? Conversar com a criança; dispor de materiais para conversar; compreender as dificuldades de uma criança a partir da sua expressão por meio de brinquedos são exemplos de atitudes que pressupõem um diálogo entre um adulto – no caso clínico, o terapeuta – e uma criança, quando ela, mediada pelos brinquedos, tenta dizer quais são suas preocupações, suas dificuldades, se concorda ou não em estar ali naquele con- texto ludodiagnóstico. Enfim, trata -se de um “diálogo” em que pressupomos um tipo de linguagem. Para o adulto que interage com a criança, é uma situação difícil, pois ele deve entender a linguagem pré -verbal, além da verbal, no contexto do jogo, e neste sentido, terá que contar também com um padrão de signos sobre o brinquedo que é incluído nes- te diálogo. A criança que recebe essa con- signa pode contestar ou concordar respon- dendo verbalmente ou através dos materiais lúdicos. O psicoterapeuta vai interpretando as ações da criança através desse material lúdico, e pode -se dizer que através desse in- terjogo é que se entende o diálogo pré -verbal da criança, e também podemos verificar que algumas significações podem se impor a ele, que, por sua vez, pode ser contestado pela criança, e assim por diante. Perguntar, solicitar que se expresse e estabeleça um diálogo sobre a problemática que o levou à clínica consiste na estratégia básica de quem atende qualquer cliente, seja adulto, criança ou adolescente, mas a grande dúvida é se ao fazê -lo com uma criança não estamos deturpando as ações lúdicas desta. Ao associarmos a isso o fato de que nunca é a criança quem procura um terapeuta, ou seja, ela vem com a história clínica verbalizada pelos pais, a fragilidade diagnóstica lúdica está colocada e o tera- peuta que utilizar esse instrumento pode ser submetido a inúmeros questionamentos. No entanto, para essa fragilidade de leitura lúdica profissional temos um sécu- lo de investigações, realizadas por grandes teó ricos da teoria psicanalítica, como Freud, Klein, Bion e Winnicott. Para os mais céticos sobre essa tarefa, há algumas respostas: não temos ainda outro recurso para compreen- der a criança; ou aplicamos esses conheci- mentos ou nos recusamos a atender uma criança, com o argumento do início do sécu- lo XIX, de que uma criança não tem como se expressar ou suas significações só poderão ser compreendidas quando adquirir um dis- curso verbal, logo, só na puberdade. Temos, por outro lado, como aliadas, as teorias do desenvolvimento humano, particularmente, a teoria de Jean Piaget, que demonstra como o processo de signi- 4 Brincar, significação e representação rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 39 ficação vai sendo construído, partindo das ações práticas, do zero aos 2 anos, para um sistema representativo que vai dos 2 aos 6 anos de idade. É claro que Piaget vai se re- ferir às estruturas a partir de um ponto de vista orgânico, enquanto a teoria psicana- lítica se refere a uma estrutura construída a partir do relacionamento humano. Para alguns parece ser o mesmo, considerando que as estruturas mentais de Piaget se re- ferem também a uma construção da troca com o meio. Para outros, essa integração de teorias parece absurda, na medida em que o sujeito psicanalítico diz respeito às pulsões,às emoções, aos sentimentos, a um sujeito em particular, enquanto o sujeito de Piaget é um sujeito epistêmico, que não diz respei- to a ninguém, um sujeito da atividade, da ação mental específica com suas respectivas estruturas em cada fase. Fazemos parte de um enorme grupo, que estuda estas relações entre afeto e cog- nição, tal como Delahanty e Perrés (1994), Imbasciati (1991) e Assis (1985), que pro- curam a integração dessas teorias, mas di- fe renciando -as. Poderia dizer, ainda sob críticas, que, enquanto a teoria de Piaget diz respeito à forma, a teoria de Freud se refere a um con- teúdo, mas sabe -se o quanto Freud também esteve preocupado com a estrutura do apa- relho psíquico. Ao mesmo tempo, inúmeras publicações de Piaget mencionam a teoria psicanalítica sobre os conteúdos: A lingua gem e o Pensamento na Criança (1923); A Representação do Mundo na Criança (1926); O Nascimento da Inteligência na Criança (1936); A Formação do Símbolo na Criança (1946), entre outros. O fato é que estou pedindo licença ao leitor para ousar nessas integrações entre afeto e cognição. As justificativas para tal são as inúmeras pesquisas existentes nesta dire- ção integrativa, as quais não vou me preo- cupar de aprofundar, diante dos objetivos deste livro, mas vale citar as valiosas obras de Green (1990) e Seibert (2003). Por outro lado, é impossível não consi- derar tal integração no contexto deste livro, uma vez que estamos estudando o diálogo com uma criança através de materiais lú- dicos, e que essa criança se encontra num contexto lúdico expressando suas vivências, as quais por sua vez pressupõem as noções de espaço, tempo e causalidade pesquisadas por inúmeros pesquisadores do Laboratório de Epistemologia Genética e Reabilitação Psicossocial do Departamento de Psicolo- gia Social da Universidade de São Paulo, coordenada pela Profa. Dra. Zélia Ramozzi- -Chiarottino. Assim, temos duas razões para considerar a obra de Jean Piaget na técnica psicanalítica ludodiagnóstica: a obra piage- tiana demonstra de que forma a assimilação lúdica é construída como um dos momentos da construção representativa; a expressão das vivências do ser humano pressupõe uma estrutura demonstrada na obra A construção do real pela criança (Piaget, 1937). Logo, a representação lúdica, para ser irrefutavel- mente compreendida pelo psicoterapeuta, psicanalista ou outro estudioso do conheci- mento lúdico, pressupõe as noções de espa- ço, tempo e causalidade, demonstradas em meu trabalho com 578 crianças “normais” e de clínicas infantis, Alguns indicadores para o diagnóstico e reabilitação da construção do real (Affonso, 2006), e no trabalho Políticas avaliativas e as teorias psicogenéticas: a ava liação das vivências do ser humano (Affonso, 2007). Para a compreensão da expressão lú- dica devemos considerar como prioridade a gênese da representação, ou seja, como, a partir das significações dos reflexos, absorve- mos os signos culturais e como estes, por sua vez, se transformam em símbolos lúdicos, ou seja, como os significados se diferenciam dos significantes a partir das ações práticas do período sensório -motor e como a criança vai construindo, com a representação, os vá- rios tipos de pensamento típicos do perío do representativo: pensamento intuitivo e trans- dutivo, com suas categorias artificialistas, ani mistas, transformados em conceitos típi- cos do pensamento operatório. Por que a brincadeira lúdica é um bom recurso para se conversar com a criança e, portanto, entendê -la ou diagnosticar os seus comportamentos? INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 40 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Denominamos materiais lúdicos os ins trumentos estruturados (casinha, posto de gasolina) ou não estruturados (bloqui- nhos que possibilitam construir cenas ou si- tuações, massinhas, guache). A partir deles a criança pode construir uma brincadeira simbólica, uma linguagem. Isso é um índice importante na elaboração de um diagnósti- co. Sem a brincadeira lúdica não há como a criança expressar os conflitos ou como vi- venciar suas dificuldades. No entanto, devemos considerar as crianças que ainda não conquistaram o faz de conta, ou seja, ainda não conseguiram representar as suas vivências – e não são poucas, considerando o grande número de crianças que nos procuram e que não “fa- lam”, aquelas com um discurso caótico ou as que já vêm com quadros clínicos graves. É bom lembrar que são casos que já passaram por especialistas e avaliações “orgânicas” e que chegam ao psicoterapeuta como um dos últimos recursos. Esses são casos cada vez mais frequentes em nossas clínicas, tendo em vista a falta de trabalhos preventivos na área da saúde. Às vezes, essas queixas trazidas pelos pais estão mais voltadas para as dificul- dades de comportamento ou conduta da criança, muitas vezes não relacionadas com a linguagem. Comumente, nesses casos, a teo ria de Piaget sobre as ações práticas e a representação também deve ser considerada pelo clínico: o sujeito apresenta um compor- tamento hiperativo, agressivo ou um déficit de atenção por ainda não apresentar ações organizadas? Ou conquistou a linguagem verbal dissociada de suas ações práticas? Ou, as imagens mentais predominam sobre as suas vivências práticas. Ou há uma desor- ganização caótica nas suas ações práticas, logo representadas também caoticamente? Ou ele não foi estimulado a construir as re- presentações de suas vivências, apesar de suas ações práticas estarem expressas de maneira organizada? Todas essas investigações diagnósticas podem ser feitas por meio da técnica lúdi- ca, que possibilita avaliar como está tanto o período sensório -motor como o período representativo, embora a técnica, em si, já pressuponha a representação. Ora, se não observamos no comportamento da criança ações representativas na sua interação com os materiais, podemos investigar como está a sua interação prática, na medida em que, nestes casos, a criança também vai interagir com estes materiais, mas de maneira regre- dida. Os casos com queixas graves de socia- lização em que comumente o profissional é procurado requerem um conhecimento mui- to mais específico da construção das estru- turas mentais, bem como de todo o processo de significação, considerando que a crian- ça, mesmo no plano prático, expressa algo, ainda que sem o domínio consciente que a representação lhe oferece. O mundo da expressão sensório -mo- to ra é vasto, e as pesquisas mais recentes têm demonstrado o que os estudiosos da psicanálise e da teoria piagetiana há séculos pressupunham. São pesquisas sobre o de- senvolvimento precoce, realizadas por auto- res como Brazelton (1981, 1988), Cramer (1987, 1988, 1999), Klaus & Klaus (1989) e Spitz (1998). Na linguagem primitiva da in- teração entre a mãe e o bebê já observamos a gênese da imitação. Por exemplo, diante de um bebê de alguns dias, se abrirmos a boca a uma distância de 20 centímetros, que corresponde a distância entre o rosto da mãe e o bebê ao ser amamentado, o bebê aos poucos vai também abrindo a boca. Ora, qual a importância disso para o clínico? Se ao interagirmos, por exemplo, com uma criança de seis anos com comportamentos primários de um bebê, ou seja, com comportamentos regredidos, e não observarmos nela nem se- quer esse comportamento imitativo ou de resposta de sinais na interação humana, com certeza o grau de socialização dessa criança será analisado como bastante prejudicado. A área dos estudos dedicados ao pe- ríodo sensório -motor ou da relação afetiva primária é muito vasta e, além de ter sua aplicabilidade na prevenção precoce do de- senvolvimento humano com bebês, tem sig- nificativa contribuição tanto no diagnóstico das crianças a partir de 2 anos como de ado- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 41 lescentes e adultos. Recentemente, tenho me dedicado ao atendimento de adultos e verificado que certos quadros sensoriaisad- quiridos na primeira infância acabam por ser significativos e preponderantes na vida adulta, principalmente nos casos clínicos mais graves. Costumo dizer aos meus alunos que o que adquirimos no primeiro ano de vida, ou anterior à representação, está lá guarda- do em nossa mente, e, o que é pior, mui- tas vezes sem a possibilidade de elaboração representativa, por isso vai impregnando, de maneira primitiva, nossas conquistas no desenvolvimento. Um exemplo disso é o caso de um adulto que, aos 35 anos, não consegue morar sozinho, não tem e nem se preocupa em ter parceiros sexuais, não conseguiu terminar seus estudos do ensino fundamental, ou seja, apenas concluiu até o 7o ano, e mantém uma dependência afetiva, econômica e social dos pais. Suas atividades se restringem a limpar a casa e catar latinhas de alumínio. Após vários anos de tentativas terapêuticas insa- tisfatórias, aceitei o caso com a perspectiva de tratá -lo segundo o seu quadro sensorial primitivo: o mundo é perigoso e não me dá oportunidade de melhorar. No entan- to, ele nunca experimentou ou explorou o ambiente, ou seja, não identifiquei neste cliente a fase V do sensório -motor: a desco- berta dos meios por experimentação ativa, quando o bebê volta -se à experimentação, ao prazer das descobertas; tampouco a fase IV: a descoberta dos meios para atingir os fins. Ou seja, sua maneira de representar as suas vivências caracterizava um bebê que apenas assiste às ações do mundo sem ten- tar modificá -las, o que é típico do estágio II do sensório -motor: primeiro hábitos ad- quiridos, ou seja, há significações que ele percebe, ouve, escuta, mas sem uma coor- denação ativa; há classes – este é mau e este é bom –, mas não há atividade sobre as mesmas para tentar modificá -las. A causa- lidade neste estágio caracteriza -se também por um sentimento de eficiência. Alguns poderiam contestar se não seria a expressão de uma causalidade do estágio III, mágico- -fenomenista, pois ele atribui uma causa, mas não podemos esquecer que no estágio III do sensório -motor há o estabelecimento de uma relação a partir da ação prática e, no caso desse cliente, nem essa ação podemos observar, pois não observamos o esforço em provocar algo. A simples compreensão dessa forma de pensamento primário observada no com- portamento da criança já me tirou o peso ou as cobranças que fazia ao cliente, propor- cionando um sentimento de alívio clínico, considerando que as exigências do mundo adulto foram banidas da relação terapêutica e a continência afetiva primária foi estabele- cida. Ora, diante disso o cliente pode, além da possibilidade da representação de sua vi- vência primitiva, também, se o desejar, par- tir para outros patamares mais elaborados. Menciono esse exemplo para demons- trar o quanto uma fundamentação teórica primitiva do desenvolvimento pode ser útil a todas as faixas etárias que atendemos e tem a ver com a compreensão da estrutu- ra mental do cliente em questão. É claro que são casos com diagnósticos nosológicos característicos de uma psicopatologia gra- ve, tais como Transtorno da Personalidade Borderline e Psicose, e nos quais sempre es- tamos nos perguntando se não se trata de alguma deficiência mental ou alguma sín- drome ainda não identificada, apesar de os resultados dos exames médicos nos dizerem o contrário. A ideia de termos de utilizar esse refe- rencial precoce do desenvolvimento torna- -se mais difícil conforme aumenta a idade do cliente que nos procura, e as resistências na relação terapêutica são estabelecidas quanto menor a distância entre a compreen- são do mundo mental esperado para a idade do cliente com o mundo precoce observa- do. Tenho observado que essa resistência é maior também por parte do clínico que atende adultos do que por parte do cliente e costumo dizer que quando trabalhamos no patamar cognitivo do cliente podemos ser compreendidos, logo a psicoterapia se desenvolve. Isso não significa infantilizar ainda mais o cliente, mas sim trabalhar se- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 42 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) gundo as suas estruturas mentais possíveis. Em minha dissertação de mestrado (Affon- so, 1987), procurei demonstrar que os casos que não se desenvolviam apresentavam um pensamento mais primitivo do que a técnica que lhes estavam oferecendo, ou seja, certas técnicas psicoterápicas também pressupõem determinadas estruturas cognitivas. Por exemplo, um psicodrama pressu- põe uma capacidade de estruturação e or- ganização mental e, se não considerarmos isso em nossos encaminhamentos ou inter- venções clínicas, podemos prejudicar ain- da mais o cliente. Essa discussão sobre os pressupostos das estruturas mentais nos atendimentos dos adultos, crianças ou ado- lescentes é longa, mas o que quero enfatizar é a importância do estudo sobre o desenvol- vimento primitivo quando nos propomos a trabalhar com as dificuldades nas relações interpessoais e o fato de as significações que surgem em cada patamar de desenvol- vimento serem expressas numa dada estru- tura, não porque escolhemos esta ou aquela abordagem, e sim porque o ser humano se desenvolve dessa maneira. SigniFiCAçãO Há vários níveis de significação que podem ser identificados na expressão de uma crian- ça num contexto ludodiagnóstico e que são construídos ao longo de seu desenvolvimen- to. Rascovsky (1977) menciona a construção dessas significações já na gravidez, por volta dos 4 meses de gestação, quando, por pres- suposto, já existe um ego. Outros pesquisa- dores mais ousados mencionam a existência de significações já a partir da concepção, tal como Wilheim (1992), Klein (1926) e Bion (1953), a partir das teorias psicanalíticas, colocam a existência de um processo de sig- nificação bem precoces. Piaget, com outras preocupações que não as afetivas, também demonstra como o processo de significação tem sua gênese já no exercício dos reflexos, na fase sensório -motora, e que a criança vai dando sinais de construção de esquemas que proporcionam outras significações. No pla- no representativo, as significações vão se di- ferenciando dos significados, na medida que a socialização também vai oferecendo signos e a criança vai construindo os símbo los, os “pré -conceitos”, até a formação de conceitos, ou seja, chega à compreensão desses signos sociais na cultura em que está inserida. Uma criança pode utilizar uma colher como a caminha da boneca, ou seja, utilizar a colher com função simbólica, podendo ou não nomear ou saber o que é uma colher, dependendo de seu patamar cognitivo. Por- tanto, esse processo do desenvolvimento de significações, que será analisado num contexto ludodiagnóstico, também deve ser cuidadoso, pois faremos interpretações que pressupõem essa estruturação mental. Por exemplo: a criança ficar esfregando um cor- dãozinho durante 50 minutos numa sessão ludoterapêutica pode dar ao profissional si- nais de um comportamento regredido, que remete a fases primitivas, dando sinais de uma possível significação do vínculo mãe- -bebê, logo, de um possível conflito na se- paração ou relação simbiótica mãe -bebê. Quando o terapeuta tem a informação de que o parto da criança foi demorado e tanto a mãe como a criança sofreram ameaça de morte nesse parto, esfregar o cordão ganha maior significação para investigação clínica. Há situações em que a criança expres- sa a significação, ela conta uma história com começo, meio e fim, ela comunica a sua significação, mas, na maioria das vezes, quando trabalhamos com a linguagem pré- -verbal, impomos a ela uma significação, que tem uma fundamentação nas teorias do desenvolvimento. Damos relevância à teoria do desenvolvimento da estrutura mental de Piaget aliada aos conteúdos afetivos que po- dem existir nestas etapas e que correspon- dem em nosso pressuposto à teoria psicana- lítica; logo, serão consideradas as fixações ou relações orais, anais, fálicas ou genitais, bem como todaa influência das significa- ções que passam de geração a geração e que tão bem demonstrou a teoria junguiana. Ou seja, o terapeuta dá uma significação às ações que a criança expressa, mas ela pode não saber o seu significado. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 43 REPRESEnTAçãO Conceitualmente, representar é utilizar a expressão das vivências, é poder se repor- tar a algo que foi vivenciado no passado. Na situação ludodiagnóstica é o que a criança está fazendo que lhe possibilita simbolizar uma dada situação com os materiais, com o que representa nas ações verbais ou prá- ticas, se reportando a algo que não é mais presente. Piaget refere que a representação é caracterizada pelo fato de que os objetos não atualmente perceptíveis são assimilados aos objetos percebidos, podendo ser evoca- dos graças aos “significantes” que os tornam presentes ao pensamento na ausência de uma presença real. “A representação nasce, portanto, da união de ‘significantes’, que permite evocar os objetos ausentes com um jogo de significação que os une aos elemen- tos presentes” (Piaget, 1946/1978, p.351). Esta função nova que ultrapassa a ati- vidade sensório -motora é chamada de fun- ção simbólica, e é ela que vai tornar possível a aquisição da linguagem ou dos signos co- letivos ou sociais. Por exemplo, ao imitar a conduta da mãe ou de um adulto lavando louça, numa sessão lúdica, a criança evoca um modelo ausente – a ação real da mãe ou do adulto ao lavar a louça –, assimilando o conjunto de significantes do modelo (pratos e panelas reais, por exemplo), diferenciados na sua imagem mental dos materiais que está manipulando, mas ligados aos atuais (pratinhos e panelinhas da caixa lúdica). Enquanto, na atividade sensório -motora, só há acomodação aos dados presentes e assimilação sob forma inconsciente e prática de uma aplicação dos esquemas anteriores ao atual, a atividade represen- tativa exige, assim, um duplo jogo de as- similações e acomodações: à acomodação aos dados presentes acrescenta -se uma acomodação imitadora dos dados não per- ceptíveis (a ação dos pais lavando louça não está mais ali, só na sua mente), de maneira tal que, além da significação do objeto atual, fornecida pela assimilação perceptiva (sua ação sobre os materiais lúdicos da caixa), intervêm igualmente as significações assimiladoras ligadas aos significantes que constituem a evocação imitativa. (Piaget, 1946/1978, p. 352) A importância da representação Em minha dissertação e tese de doutorado, pesquisei alguns elementos da representa- ção no que diz respeito às noções de espaço, tempo e causalidade. Não vou aqui apresen- tar a defesa que tenho feito nos últimos 20 anos da importância de se estudar essas no- ções no diagnóstico infantil, pois este traba- lho foi publicado em livro Ludodiagnóstico: a teoria de Jean Piaget em entrevistas lúdicas para o diagnóstico infantil (Affonso, 1994). O importante é registrar que essas noções são construídas no período sensório -motor e vão tendo a sua expressão nos períodos subsequentes. O que quero ressaltar é que os psicó- logos formulam projetos de atendimento à população, fazem diagnósticos e propõem intervenções e, muitas vezes, não se ques- tionam sobre os diagnósticos e as técnicas – nossos instrumentos de trabalho. Conside- ro que esses indicadores espaço -temporais e causais podem colaborar para tal. Ou seja, avaliamos as representações de espaço, tem- po e causalidade da população atendida, utilizamos instrumentos que pressupõem determinados patamares na representação do indivíduo, mas ainda pouco sabemos da construção dessas representações. O pressuposto teórico a respeito da im- portância das construções espaço -temporais e causais desenvolvido pelas pesquisas da doutora Zélia Ramozzi -Chiarottino, através dos pesquisadores do Laboratório de Episte- mologia Genética e Reabilitação Psicossocial do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), tem procurado, a par- tir da obra piagetiana, demonstrar como o sujeito organiza sua experiência vivida e o que é necessário para viver em sociedade. Além disso, esses pesquisadores têm pro- curado esclarecer como o sujeito chega às representações e quais são suas várias mo- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 44 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) dalidades de expressão, bem como o com- prometimento dessas expressões. São pesquisas que esclarecem e contri- buem para o estudo da inserção do homem animal no mundo dos seres humanos, na medida em que mostram também como é possível a sua não socialização. Tais estudos esclarecem o profissional e contribuem para oferece -lhe alguns parâmetros para a socia- lização infantil, mas que ainda necessitam de aprofundamento, finalidade desse proje- to de pesquisa. O pressuposto da utilização da brinca- deira simbólica como expressão dos conflitos na técnica ludodiagnóstica tem uma vertente teórica que ultrapassa o campo psicanalítico. Em minhas pesquisas, considero a brincadei- ra simbólica como uma das etapas do proces- so de socialização humana, logo, ao analisar a brincadeira simbólica de uma criança num contexto lúdico diagnóstico, estou investi- gando as possibilidades de interação social desse indivíduo com o meio. Esse referencial oferece diversas vantagens, tanto na estrutu- ração e planificação dos instrumentos a se- rem utilizados como no estabelecimento do encaminhamento do caso ou na própria com- preensão do sintoma. Com uma criança que, na hora lúdica, sequer manifesta representa- ções simbólicas, não vou aplicar instrumen- tos como, por exemplo, o desenho da figura humana. Ao detectar comprometimento nas funções simbólicas, não vou propor interven- ções psicoterapêuticas que pressuponham a existência de determinadas estruturas ou funcionamento cognitivo. Há na psicanálise um significativo e expressivo grupo de pesquisadores que de- dicaram suas vidas ao estudo de como, a partir das experiências infantis, chegamos à vida adulta. Dentre eles podemos citar Ana Freud, Susan Isaacs, Hanna Segal, Bion, Winnicott, Green, Imbasciati, entre outros, mas foi, sem dúvida, Klein, através da análi- se dos primeiros anos de vida de uma crian- ça, que possibilitou o desenvolvimento dos estudos da mente arcaica infantil. Ao mes- mo tempo, vale lembrar que Freud já havia deixado todas as formulações teóricas sobre o desenvolvimento do psiquismo até a fase adulta a partir do seu nascimento, amplia- das por Klein. Freud (1914), no seu artigo sobre o narcisismo, refere -se a um autoerotismo onde não existem relações de objeto (no sentido psicanalítico). No entanto, Klein (1925) insistiu na ideia de que as “fanta- sias” inconscientes estão subjacentes a todo o processo mental, logo, mesmo num impul- so, sem objeto, há fantasias subjacentes com significado. O grande debate que se cons- truiu sobre as “fantasias” inconscientes em estágios primitivos, postuladas por Klein, foi esclarecido por Isaacs (1948), ao alegar exis- tir um conhecimento filogenético fornecido e que as sensações corporais são uma forma de “postular” em ação esse conhecimento, fazendo -se, portanto, necessária a descrição dessas “fantasias” não verbais, encontradas já no lactente. O problema é demonstrar como uma entidade biológica pode transformar -se de um mundo de gratificações e de necessida- des corporais em um mundo de gratificações com significados simbólicos. Trata -se de uma área de pesquisa que relaciona a mente e o corpo, e os atuais estudos sobre a relação mãe -bebê parecem demonstrar haver uma maior sofisticação desse mundo mental pri- mitivo kleiniano, tão criticado dentro e fora do espaço psicanalítico. Na proposta teórica das pesquisas de- senvolvidas atualmente, tem -se procurado demonstrar que o espaço que existe entre esse mundo arcaico do bebê e sua possibili- dade simbólica é muito grande e por demais complexo. Seibert (2003), em seu estudo O resgatedas funções mentais representadas pelos agrupamentos práticos e operatórios do modelo hipotético dedutivo de Piaget nas organizações afetivas em Freud, realiza um trabalho exaustivo demonstrando a sintaxe das funções mentais expressas por Piaget, subjacente nos textos que dizem respeito ao encontro do objeto e a perda do objeto em Freud. Portanto, ao analisar a expressão lúdi- ca, quero apontar para o risco de analisar o lúdico não pressupondo o comprometimento do não lúdico, ou seja, de um suposto sujeito INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 45 pré -simbólico, ou ainda em formação. Logo, ressalto a importância das teorias do desen- volvimento desse processo de socialização, demonstrado na teoria piagetiana, uma vez que considero essa teoria como aquela que colabora na especificação desse processo. Portanto, quando Klein (1926; 1929) menciona que a fantasia e a personificação são a base para a capacidade de transferên- cia infantil, minha proposta é considerar es- ses aspectos do ponto de vista da construção simbólica piagetiana, tal como demonstrou Seibert (2003) em relação à obra de Freud. A capacidade de atribuir papéis pressupõe o desenvolvimento de uma dessas etapas do funcionamento mental. A atribuição de um papel ao outro su- põe uma distinção eu/não eu, que nem sem- pre encontramos nas brincadeiras das crian- ças num contexto ludodiagnóstico. Atribuir um papel ao outro pressupõe a estruturação de um “eu” que possa “enxergar” esse outro ou ao menos idealizá -lo diferente de si mes- mo. Quero ressaltar que o termo “fantasia” pressupõe o desenvolvimento do aparelho mental. Pode -se utilizar, nos casos anteriores a esse processo, os termos pseudofantasias, protofantasias, ou, no sentido piagetiano, quadros sensoriais. Portanto, uma criança que não brinca num ludodiagnóstico não o faz porque está sob uma grande inibição de suas fantasias ou porque ainda não tem a capacidade simbólica para expressá -las? É essa a tarefa do pesquisador, formular per- guntas diante da observação lúdica. Alguns poderiam considerar tais refe- rências como uma proposta de mudança no método psicanalítico, mas, ao contrário, isso significa ampliar suas fundamentações. As- sim, os dados coletados; sobretudo nas três últimas décadas, indicam, com segurança, que a organização do que se passou e de tudo que se pode esperar supõe as relações espaço -temporais e causais, ou seja, uma construção adequada do real. Portanto, as crianças que não construíram essas noções representam caoticamente o mundo. O domínio da complexidade da situa- ção diagnóstica clínica requer observação e conceitualização rigorosas, combinadas com paciência. Devemos evitar a tentação de simplificar demasiadamente o enfoque usado, como uma defesa contra o senso de demasiada complexidade em nossa área de trabalho. Em vez de fazer com que desista- mos por desespero, entretanto, a complexi- dade do funcionamento humano deve inspi- rar o profissional a superar suas limitações (Greenspan e Greenspan, 1993, p. 25). Os pressupostos clínicos da representação na técnica ludodiagnóstica Toda a análise psicanalítica em que consi- deramos as possíveis significações dos brin- quedos no seu aspecto afetivo, mencionada no capítulo anterior, como a expressão das vivências conscientes e inconscientes da criança, pressupõe uma compreensão do funcionamento mental que, se não ficar ex- plícita, pode confundir o leitor. Neste senti- do, é importante registrar que são estudos que dizem respeito à relação da estrutura mental, tal qual entendida por Piaget, re- lacionados à teoria psicanalítica e ainda, é claro, muito pouco integrados na literatura. Não tenho o objetivo de defender a integração entre teorias, mas de expor o que tem sido pesquisado nos últimos anos, procurando demonstrar o quanto os psicólo- gos clínicos empobrecem seus diagnósticos quando não consideram a teoria de Piaget, principalmente aqueles que analisam as vi- vências da criança apenas do ponto de vista afetivo -psicanalítico. É preciso estudar as bases estruturais das vivências afetivas que analisamos em nossos clientes, bem como os fundamentos de nossas observações e dos instrumentos que estamos utilizando, além das fundamentações para a compreensão dos sintomas, ou seja, o nosso diagnóstico clínico. Defendo a pesquisa no diagnóstico clí- nico do estudo para compreender em que bases estruturais, do ponto de vista piage- tiano, estão expressas as representações ou os comportamentos do sujeito, além de também verificarem em quais os níveis pos- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 46 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) síveis dessas estruturações se encontram os instrumentos que utilizamos para a avalia- ção psicológica. O estudo da representação é um cam- po de pesquisa do psicólogo e de muitas outras áreas científicas, tanto das ciências humanas quanto das ciências biológicas e neurológicas. Ao realizar uma intervenção psicológica – diagnóstica, psicoterapêutica, de pesquisa com os testes ou mesmo de ob- servações clínicas – o psicólogo, seja na ob- servação, no uso de instrumentos ou na sua atuação terapêutica, depara -se com a neces- sidade da pesquisa no campo da representa- ção, uma vez que todos esses instrumentos pressupõem vários níveis representativos. Por exemplo: o comportamento de chupar o dedo de uma criança pode, depen- dendo da sua idade ou da situação em que ocorre, ser analisado pelo profissional como uma atitude regressiva, um mero exercício motor, uma expressão de ansiedade dian- te de conflitos emocionais ou uma condu- ta patológica de dependência, que leva à regressão introjetiva primária; um outro exemplo é quando solicitamos a uma criança que desenhe uma família de humanos e ela o faz desenhando riscos, bolinhas ou rabiscos. Ela está num patamar representativo pré- -esquemático onde há esboços de aspectos de sua realidade familiar ou as suas vivências familiares são tão traumáticas que sequer emocionalmente pode representá -las. Ao leigo, essas interpretações podem parecer assustadoras, mas ao clínico têm um emba- samento teórico do desenvolvimento huma- no analisado a partir da história de significa- ções do cliente, as quais possibilitam ao pro- fissional representá -las ou interpretá -las. No caso do psicólogo clínico, que tra- balha com as vivências do ser humano, essa necessidade está constantemente presente. Por exemplo: n O cliente que não se expressa verbalmen- te: está inibido, não tem a capacidade representativa ou apresenta algum pro- blema neurológico? n Ao aplicar um teste, como o WISC, nos perguntamos: em que medida os resulta- dos dos subtestes expressam o funciona- mento mental daquele sujeito? Que ope- rações lógicas estão presentes naquela tarefa? A compreensão verbal do sujeito pressupõe que grau de conhecimento? n Na aplicação de um teste projetivo (TAT ou CAT), ao interpretarmos o discurso do paciente, novamente nos perguntamos: em que medida aquela história repre- senta a história vivida pelo paciente? As falhas no discurso expressam o conteú- do emocional e/ou cognitivo do cliente? Que grau de complexidade está presente nesse discurso? n Nas queixas sobre distúrbios da socializa- ção do cliente, esse problema, aparente- mente de educação social, pode expres- sar um problema na representação. Por exemplo: a criança é hiperativa ou tem o funcionamento mental de uma criança do sensório -motor? Ou, a hiperatividade seria a expressão de uma falha cognitiva na representação? n Ainda no campo psicoterapêutico, mui- tas vezes nos perguntamos se aquela psi- coterapia é mesmo a mais recomendada àquele tipo de cliente, e novamente esta- mos no estudo do campo representativo: que funcionamento mental pressupõe determinadas técnicas psicoterápicas? A teoria de Piaget é a que eu venho uti- lizando nestes 25 anos como referência no estudo desse campo da psicologia, seja na investigação dosinstrumentos psicológicos, seja no diagnóstico ou tipo de intervenção psicoterapêutica a ser utilizada. Aliás, co- mecei esses estudos ao verificar que alguns casos que atendia não melhoravam ou até pioravam com minhas intervenções psica- nalíticas clássicas, das quais era uma árdua defensora corporativista, e aos poucos “tive” que avançar nos limites da psicanálise, ou melhor, compreender os fundamentos pro- postos pela técnica. Durante a realização de minha tese de doutorado, primeiramente pesquisei a rele- vância do fato de que as observações de uma criança, principalmente num contexto clíni- co diagnóstico, devem considerar a presen- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 47 ça ou não das noções adequadas de espaço, tempo e causalidade na construção do real pela criança, estudadas por Piaget (1923; 1936; 1937; 1946; 1966; 1981). A partir desse trabalho, tenho procurado ressaltar o valor do aporte inicial ou procedimento clínico através do brin quedo, tal como Abe- rastury (1962), Arfouilloux (1976), Efron e colaboradores (1974), Greenspan e Greens- pan (1981), Klein (1929; 1932; 1955), Le- bovici e Diatkine (1985), Mannoni (1965) e Soifer (1974; 1992), trabalhos que pres- supõem vários níveis do conhecimento da representação da criança. A grande questão levantada nesse estudo foi a de que crianças com esse tipo de problema cognitivo, ou seja, comprome- timento nas noções adequadas de espaço, tempo e causalidade, não se beneficiam da ludoterapia clássica para reorganizar sua vida afetiva. Esse trabalho esclareceu parte de minhas dificuldades ao atuar como psico- terapeuta em contextos assim. Apliquei várias técnicas de investiga- ção, discuti com especialistas em minha de- fesa e, durante a realização da tese, inúme- ros aspectos foram levantados em relação à contribuição da teoria de Jean Piaget ao psi- codiagnóstico, não só ao ludodiagnóstico, e que ainda hoje procuro investigar. As indaga- ções e sugestões do assessor da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) é que permitiram o estudo dessas noções nos quadros clínicos da psicose infan- til, colocando -me novamente no estudo da gênese da representação, pois estes casos ge- ram insegurança, tanto no diagnóstico quan- to na intervenção mais indicada, logo, é fun- damental um referencial consistente sobre o funcionamento mental e que possa dar uma perspectiva psicoterapêutica satisfatória. Em relação à minha tese, passei a sub- meter meu trabalho à comunidade – hos- pitais, escolas, clínicas e secretarias da Jus- tiça –, procurando desenvolver uma técnica específica com essas crianças, geralmente, diagnosticadas com difícil socialização, e uma de minhas conclusões foi a de que é pre- ciso considerar os patamares cognitivos do cliente para poder intervir no plano simbóli- co, ou seja, novamente nos deparamos com o estudo das representações, da sua gênese ou do patamar em que estamos atuando. Na pesquisa de pós -doutorado, procu- rei demonstrar a importância da investigação dessas noções espaço -temporais e causais como indicadores a serem considerados para o diagnóstico da socialização da criança em um processo psicodiagnóstico ou em qual- quer circunstância diagnóstica rea lizada pelo profissional. Em minhas pes quisas, tenho demonstrado a importância desse diagnósti- co mais específico em relação às estruturas mentais subjacentes a qualquer experiência vivida pelo sujeito. Portanto, esse trabalho consiste em dar relevância aos relatos ou re- presentações do sujeito num contexto de ex- pressão dessas experiências. O psicólogo, seja por opção, seja pela demanda em que esteja inserido, é solicita- do a avaliar, diagnosticar, encaminhar, tra- tar, investigar a partir das representações do sujeito. Logo, meu propósito é demonstrar a relevância de alguns indicadores presentes no processo de socialização do sujeito, ne- cessários, no sentido epistemológico, nesses contextos de investigação em que são uti- lizados instrumentos com representações, dando especial ênfase ao contexto de ex- pressão da técnica ludodiagnóstica. Acredito que, ao demonstrar a relevân- cia da identificação das noções de espaço, tempo e causalidade num contexto diagnós- tico, estou considerando o fato de que cer- tas crianças, diante dessa falha, apresentam uma dificuldade de representar adequada- mente o mundo, logo a pesquisa procura dar instrumentos ao psicoterapeuta para o estudo das representações infantis. Embora meu propósito até aqui tenha sido destacar alguns aspectos da represen- tação que dizem respeito às noções de es- paço, tempo e causalidade, devemos deixar claro que essas noções não abarcam toda a compreensão do pensamento representativo do sujeito. Essa compreensão é importante, pois, ao estudar uma técnica ludodiagnósti- ca, devemos compreender o funcionamento mental que está presente e em que patamar cognitivo estamos atuando ou intervindo. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 48 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Na análise evolutiva de 330 sessões lu- doterapêuticas observei que se uma criança chega a um determinado patamar cogniti- vo, ela não regride. Ela pode, inclusive, não manifestar aquela estrutura naquela sessão, mas ao retomar a sua expressão ela retoma a partir do patamar conquistado, ou melhor, construído, no desenvolvimento do processo terapêutico. Estes dados ilustram a impor- tância desse processo de desenvolvimento. Como trabalhamos fundamentalmente com representações, a compreensão de sua gêne- se é crucial ao clínico. Em minha revisão bibliográfica, ve- rifiquei que alguns pesquisadores têm se ocupado em estudar aplicações clínicas da teoria de Jean Piaget, nos âmbitos neuroló- gico, motor, social e psicológico. Tais con- tribuições referem -se à relação entre funcio- namento mental (neurológico), capacidade operatória e performances de sujeitos, e foram realizadas por Ajuriaguerra e Tissot (1966), Paunier e Doudin (1985), Schimid- -Kitsikis (1987) e Soussumi (1995; 2003). Outros autores estabelecem relações entre algumas patologias e o processo cognitivo. É o caso de Ajuriaguerra (1963), Kerr -Corrêa e Sonenreich (1988), Limongi (1992), Za- morano (1981) e Bueno Oliveira (2005). Há ainda aqueles que têm estudado as relações entre os aspectos psicodinâmicos e a teoria de Piaget: Assis (1985), que realizou estu- do sobre as relações entre os níveis opera- tórios e a avaliação de alguns aspectos da vida afetiva (imagos parentais, capacidade de reparação e controle dos afetos) e Viana (1984), que estudou as correlações entre o comportamento de apego e a aquisição da noção de permanência do objeto. O diagnóstico dos sintomas da criança e a análise das representações a partir das noções espaço ‑temporais e causais A necessidade de identificar a presença ou ausência das noções espaço -temporais e causais, para não confundirmos compor- tamentos determinados por essa falha no processo de cognição com sintomas neuróti- cos, psicóticos e hiperativos (Affonso, 1995) apontava já a importância de considerarmos essa análise em vários diagnósticos da crian- ça, ou seja, o clínico deveria considerar es- ses indicadores evitando as famosas ciladas classificatórias. Tenho constatado que certos diagnós- ticos precoces muitas vezes atrapalham o clínico quando este tem que tomar decisões a respeito de pessoas que procuram a sua ajuda, daí minha preferência por denominar essas crianças como pertencentes aos casos de difícil diagnóstico, em vez de aceitá -las imediatamente como limítrofes, deficientes mentais, psicóticas, com distúrbios de con- duta, hiperativas, agressivas, etc. Esse é um aspecto de extrema rele- vância, pois tais crianças apresentam vários diagnósticos que variam no grau de sua so- cialização, ou seja, há aquelas com uma re- presentação empobrecida, mas conseguimos identificar na sua ação prática as noções espaço -temporais e causais preservadas. Frequentemente,as queixas são de que não escrevem, não leem, recusam -se a desenhar ou não conseguem contar uma história. Há também os casos de crianças com difícil socialização, na maioria das vezes diagnosticadas também como psicóticas, mas que têm um comprometimento em to- das as noções de espaço, tempo e causali- dade. Geralmente, essas crianças são “con- vidadas” a se retirar das escolas, por não conseguirem aprender, e apresentam uma socialização difícil, por não conseguirem interagir com os colegas, ou seja, apresenta- rem um discurso caótico. Encontramos ainda aquelas crianças estimuladas no âmbito da representação verbal, mas quem ao serem solicitadas a representar a sua própria ação através de uma redação ou representação lúdica, não o conseguem. Na maioria das vezes, são crian- ças fixadas nas representações por imagem, ou seja, não lhes foi permitida a vivência prática de suas ações, daí a dificuldade na aprendizagem quando solicitadas na repre- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 49 sentação gráfica. Geralmente, esses casos são confundidos com hiperatividade funcio- nal, pois trata -se de crianças que conversam normalmente, mas não param quietas, estão em constante interação social, atrapalham a aula. Quando, por algum motivo, foram estimuladas nas suas estruturas lógicas, acabam também sendo confundidas com as crianças superdotadas. É importante ressaltar que a avaliação da estrutura lógica é outro campo de estu- do, embora esteja imbricada na sua cons- trução com as noções de espaço, tempo e causalidade, e tenha sido alvo de milhares de pesquisas, tanto na psicologia como na neurologia, etc. Aliás, este é um ponto que muitas vezes tem sido alvo de discussões em reuniões científicas, e tenho procurado es- clarecer que minha preocupação é com as estruturas cognitivas que possibilitam a or- ganização da experiência vivida do ser hu- mano e muitas vezes são denominadas de estruturas infralógicas. Piaget enfatizou em sua obra a cons- trução das estruturas lógicas, demonstran- do que, subjacentes a elas, estão presentes as noções de espaço, tempo e causalidade. Dedicou ao assunto, dentre outros livros e artigos, a obra A construção do real na crian ça (Piaget, 1937), trabalho que se tornou a grande especificidade de alguns pesquisado- res do Laboratório de Epistemologia Genéti- ca e Reabilitação Psicossocial do Instituto de Psicologia da USP desde a sua implantação, em 1968, até a presente data. O importante para esses pesquisadores é saber se as operações lógicas das quais o sujeito se utiliza estão dentro de um con- texto em que as noções espaço -temporais e causais estão atuantes, ou seja, estudamos a vivência do ser humano, a gênese da sua socialização e as condições para tal. Temos diagnosticado crianças que apresentam um resultado acima da média em testes de inte- ligência, mas que estão comprometidas em relação às noções de espaço, tempo e cau- salidade, portanto, quero demonstrar com a presente pesquisa que nem sempre os ins- trumentos utilizados fornecem parâmetros para o profissional avaliar o funcionamen- to mental do sujeito e, consequentemente, o diagnóstico ou encaminhamento podem apresentar restrições. Ainda no que diz respeito à dificulda- de dos diagnósticos, tenho verificado que certos sintomas depressivos podem estar re- lacionados com as noções de espaço, tempo e causalidade. Em 2002, realizamos um es- tudo através dos prontuários de crianças de 4 a 12 anos atendidas em psicodiagnóstico na Clínica Psicológica do Centro Universi- tário UNIFMU com queixas de retraimento social ou sintomas depressivos considerados a partir do DSM -IV -TR (2002). Todos os prontuários foram analisa- dos segundo as noções de espaço, tempo e causalidade a partir da hora lúdica das crianças. Dos 102 prontuários das crianças atendidas nos anos de 1998, 1999 e 2000, selecionaram -se os casos com sintomas de- pressivos (ou transtornos afetivos), num to- tal de 14% com retraimento social (Figura 4.1). Analisaram -se, então, esses casos se- gundo as noções de espaço, tempo e causali- dade. Em 6% encontramos a dificuldade na representação das noções, ou seja, crianças que seriam diagnosticadas com sintomas depressivos, mas que na verdade apresen- tavam um comprometimento na área da re- presentação dessas noções (Figura 4.2). A pesquisa ainda está em fase de con- clusão, mas uma das nossas constatações é que nem sempre os sintomas têm relação com causas afetivas, portanto, é necessário considerar outros aspectos. A análise das noções espaço -temporais e causais pode ofe- recer um aprofundamento em nossos diag- nósticos. Certas crianças podem apresentar sintomas depressivos por não conseguirem expressar suas ações, ou seja, falha na re- presentação. O sintoma de retraimento so- cial nada mais é do que uma “pobreza” ou “carência expressiva”, ou seja, um problema de linguagem, e não um transtorno afetivo. Parte desse trabalho foi apresentado no Simpósio da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil, em abril de 2003, no qual se discutiram os Transtornos Afetivos na Infância, ou seja, os sintomas depressivos. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 50 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Figura 4.1 Porcentagem de 102 prontuários de crianças aten- didas na Clínica Psicológica UNIFMU com sintomas depressivos. 14% 86% sintomas depressivos outros sintomas Porcentagem dos sintomas depressivos Figura 4.2 Porcentagem de 102 prontuários de crianças aten- didas na Clínica Psicológica UNIFMU com sintomas depressivos. Porcentagem dos sintomas segundo as noções espaço, tempo e causalidade 85% 9% 6% outros sintomas Comprometimento na representação das noções Comprometimento depressivo No entanto, outros pesquisadores ten- taram estudar o papel do elemento racional no processo psicoterapêutico e a contribuição específica da epistemologia genética para o psicólogo que trabalha com investigação clínica: Anthony (1966), Fernandes (1982), Delahanthy e Peres (1994), Telles (1997), Seibert (2003) e Silva Altenfelder (2005). A proposta de dar continuidade às pesquisas desenvolvidas sobre as noções de espaço, tempo e causalidade em meu estu- do de pós -doutoramento teve vários eixos a serem aprofundados, que foram colocados a partir do momento que passei a submeter os resultados de minhas pesquisas à comunida- de: hospitais, clínicas, secretarias da Justiça e escolas. Os eixos ou temas a serem apro- fundados dizem respeito ao estudo do sinto- ma no diagnóstico infantil, à intervenção ou psicoterapia a ser realizada com a criança, às técnicas e aos instrumentos diagnósticos, além do ludodiagnóstico, utilizados na ava- liação psicológica, e ao estudo sobre a repre- sentação, que engloba todos esses. O processo diagnóstico e as noções espaço ‑temporais e causais O trabalho de pesquisa que tenho realizado em relação ao ludodiagnóstico tem contri- buído significativamente para aquele profis- sional que, muitas vezes, dispõe exclusiva- mente da observação clínica como seu úni- co instrumento possível de trabalho. Nesse sentido, tenho demonstrado a importância do brinquedo como instrumento diagnósti- co, ou seja, como o profissional pode dispor de novos instrumentos de observação clínica que, se aprofundados, podem oferecer -lhe segurança nas suas orientações (Affonso, 1998; 1999; 2001). Em 1998, fui convidada para supervi- sionar um grupo de psicólogas que traba- lhavam com laudos psicológicos, indicadas pelos juízes das varas de famílias de Pouso Alegre (MG). Para uma das crianças avalia- das, tinha -se que emitir um parecer indi- cando ou não a possibilidade de passar as férias com o pai, sendo que o mesmo não admitia que a mãe, nesse período de férias, contatasse a criança. Logo, consultou -se um psicólogo que, mediante apenas duas observações lúdicas com a criança, consta- tou o comprometimento nas noções espaço- -temporais e causais, concluindo,portanto, que não era recomendável para a criança a completa ausência da mãe, tendo em vista que não dispunha das condições cognitivas para a compreensão da ausência materna, tampouco a possibilidade cognitiva para tal elaboração. Esse trabalho acabou sendo apresentado e publicado nos Anais do III Congresso Ibero -Americano de Psicologia Jurídica, em 2000. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 51 Se, de um lado, dou ênfase à obser- vação no ludodiagnóstico, imediatamente preciso lembrar que a observação lúdica não é o único e exclusivo instrumento de investigação diagnóstica. Aliás, em minhas pesquisas, tenho estabelecido alguns de seus limites como técnica de investigação clínica (Affonso, 1992), mas passei a estu- dar também de que forma em outras técni- cas de investigação, tais como o desenho e os testes projetivos, o profissional pode, sem a consideração das noções de espaço, tempo e causalidade, “direcionar” o seu raciocínio e conduta clínica. Em uma pesquisa que está sendo reali- zada com 480 crianças de 3 a 12 anos, ava- liadas durante 10 anos para serem aceitas em uma escola particular da cidade de São Paulo, verificou -se em que medida os seus desenhos e histórias forneciam informações sobre as noções de espaço, tempo e causa- lidade. Verificou -se numa amostra de 100 dessas crianças que em apenas 12% do total de desenhos e histórias encontramos a pre- sença dessas três noções, e em 37% dessas crianças não encontramos a presença de ne- nhuma dessas noções. Parte dessa pesquisa foi apresentada na reunião científica sobre avaliação psicológica no I Congresso de Ava- liação Psicológica e IX Conferência Interna- cional de Avaliação Psicológica: Formas e Contextos, realizado em Campinas em julho de 2003. Foi interessante observar que, apesar de ter sido verificada tanto em meninos quanto em meninas uma porcentagem sig- nificativa de crianças sem as noções, respec- tivamente, 40 % e 34%, as meninas apre- sentam um resultado maior em relação à presença de duas ou três noções. Enquanto nos desenhos e histórias, 15% dos meninos apresentam duas noções e 9% apresentam três noções (Figura 4.3). Na mesma análise, 42% das meninas apresentam duas noções e 14% três das noções (Figura 4.4). Essa dis- crepância já havia sido detectada em meus registros quando realizei a pesquisa para minha tese, em 1994, mas eu ainda não ti- nha uma medida quantitativa. A partir da tese, passei a investigar como em vários diagnósticos infantis faltava a consideração dessas noções que, por sua Figura 4.3 Porcentagem da análise das noções espaço ‑temporais e causais em desenhos e histórias de meninos de 3 a 12 anos. Porcentagem de meninos sem ou com uma, duas ou três das noções de espaço, tempo e causalidade sem desenho/sem noções sem desenho/Com noções Com desenho/sem noções Com desenho/Com 1 noção Com desenho/Com 2 noções Com desenho/Com 3 noções 40 31 15 9 3 2 INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 52 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) vez, dirigem o psicoterapeuta para certos diagnósticos e determinadas intervenções. A grande questão é: qual a utilidade desse tipo de avaliação diagnóstica? Em 1997, a Faculdade de Psicologia do Centro Universitário UNIFMU foi convidada a estruturar e implantar, junto com outras universidades e parceiros, um projeto de atendimento a famílias vítimas da violência urbana na cidade de São Paulo, através da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. Esse projeto en- volvia atendimentos nas áreas psicológica, social e jurídica. A Faculdade de Psicologia UNIFMU ficou responsável pela estruturação do Núcleo de Psicologia. Os núcleos Social e Jurídico ficaram respectivamente sob a res- ponsabilidade da Faculdade de Assistência Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC -SP) e da Faculdade de Direito da USP. Esses representantes se reuniam semanal- mente, juntamente com outros parceiros da sociedade civil, para estruturar o Centro de Referência e Apoio à Vítima (CRAVI). A estruturação do Núcleo de Psicolo- gia envolvia várias questões, entre elas: a) fundamentar e estruturar os atendimen- tos psicológicos oferecidos à população; b) verificar se o atendimento psicológico de famílias vítimas indiretas de latrocínio e homicídio têm uma abordagem ou técni- ca de intervenção específica a ser consi- derada pelo psicólogo no CRAVI; c) considerar o problema da interface im- plícito no projeto; d) avaliar em que medida o atendimento psicológico breve proposto no projeto era ou não o mais adequado, seus limites e seu encaminhamento, entre outras. O resultado desse trabalho foi publica- do em 2000 na Revista Psikhê, em conjun- to com os psicólogos do núcleo, quando na época o CRAVI tinha já atendido em torno de 400 famílias vítimas de latrocínio e ho- micídio na cidade de São Paulo (Affonso et al., 2000). Porcentagem de meninas sem ou com uma, duas ou três das noções de espaço, tempo e causalidade Figura 4.4 Porcentagem da análise das noções espaço ‑temporais e causais em desenhos e histórias de meninas de 3 a 12 anos. sem desenho/sem noções sem desenho/Com noções Com desenho/sem noções Com desenho/Com 1 noção Com desenho/Com 2 noções Com desenho/Com 3 noções 0 0 34 14 1042 INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 53 Nas supervisões e reuniões com os técnicos, desde perguntas, como se era ne- cessário um atendimento psicológico para essas famílias, até a estruturação da técnica e sua abordagem funcionavam como pontos de reflexão e pesquisa. Uma das propostas do Núcleo de Psicologia era oferecer à po- pulação um espaço para a elaboração, a re- presentação de uma vivência, de uma perda violenta. Quais os fundamentos teóricos e téc- nicos necessários para o psicólogo desse nú- cleo? Haveria a necessidade de uma avalia- ção psicológica? Quais os instrumentos ne- cessários para a avaliação? Seria solicitada a aquisição de testes? Quais? Que técnicas reuniriam mais condições para possibilitar a elaboração dessas famílias? Qualquer técni- ca poderia ser indicada? Que material seria necessário? Seria atendida qualquer pessoa, independentemente da gravidade do caso? Como lidar com as queixas de problemas na escolarização e socialização das crian- ças, geralmente trazidas pelas famílias? O atendimento seria individual, em grupo, fa- miliar? É claro que algumas dessas perguntas ainda estão sem resposta e ainda estão sen- do publicadas e apresentadas em congres- sos (Affonso, 1999; 2000; 2001; 2002), mas são questões que envolvem a necessidade de uma visão epistemológica da intervenção psicológica, e a teoria de Piaget, entre ou- tras, tem fornecido contribuições para a sua fundamentação (Affonso, 2004). Nesse projeto do CRAVI, afirmei (Affon- so, 2000) que não só os psicólogos deveriam considerar as condições cognitivas, estrutu- rais para a elaboração afetiva da violência sofrida, mas também todos os profissionais envolvidos no processo, considerando que a proposta é oferecer a elaboração afetiva da violência, definindo a elaboração a partir das noções espaço -temporais e causais (Affonso, 1998). Propus que o sujeito indicado para a psicoterapia breve seria aquele que tivesse as estruturas cognitivas preservadas. Para o estabelecimento da técnica de intervenção a ser eleita, definiu -se que seria aquela que possibilitasse a representação gráfica, lúdica e verbal, tomando como conceito da repre- sentação a teoria de Piaget (1932). Considerando que trabalhamos na área da saúde pública com as representa- ções dos sujeitos, um referencial sobre esse tema é fundamental. REFERênCiAS Aberastury, A. (1978). Teoria y técnica del psicoana lisis de niños (6. ed.). Buenos Aires: Paidós. 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Esse instrumento de investigação clínica é quase sempre incluído nas técnicas expressivas como uma ferramenta por meio da qual o brincar, tal como a associação li- vre, os sonhos e a atuação (acting out), per- mite ao clínico o estudo e o diagnóstico do funcionamento mental da criança. Freud descobriu a psicologia da infân- cia a partir de sua psicanálise com adultos. Ao analisar adultos, ele descobriu que as lembranças deles quase sempre estavam as- sociadas a conflitos vivenciados na infância e, a partir dessa constatação, elaborou sua teoria sobre a sexualidade infantil, publica- da em 1905. O brilhantismo de Freud estava em elaborar um modelo de funcionamento mental na infância sem ao menos ter aten- dido uma criança. Vale ressaltar que até hoje essa teo- ria se aplica, não só ao atendimento infan- til, mas também a adultos e adolescentes. Quando Freud quis conferir suas teorias, particularmente em Três ensaios sobre a teo ria da sexualidade infantil (Freud, 1905), pediu a conhecidos e colegas que coletassem observações de seus próprios filhos e filhas. Assim, após estruturar um modelo teórico, quis conferi -lo na prática, ou seja, verificar se as crianças passavam pelas etapas que havia previsto. A análise do Pequeno Hans (1909) foi uma dessas anotações, que veio a confirmar a teoria de Freud a respeito do desenvolvimento infantil. Apesar de na obra Análise da Fobia de uma Criança de Cinco Anos: Pequeno Hans (Freud, 1909) já deixar todos os pressu- postos da técnica lúdica, o pessimismo de Freud sobre trabalhar diretamente com crianças impediu muitos de pesquisar a res- peito. Após 15 anos, em seu trabalho sobre o narcisismo, Freud (1914) retoma seu in- teresse em estudar as crianças, agora para conferir suas pesquisas sobre a primeira in- fância, ou melhor, sobre o desenvolvimento do narcisismo do nascimento à idade adul- ta. Surge, então, uma tentativa de instituir uma forma de análise de crianças mais te- rapêutica. Do ponto de vista teórico, essas passa- gens na obra de Freud não são nada fáceis de compreensão, pois nesses trabalhos estão não só os pressupostos da técnica com crian- ças, mas também a compreensão da gênese das relações afetivas, esclarecidas por Freud como a expressão do funcionamento psíqui- co com uma dada estrutura, que se diferen- cia com o desenvolvimento de um mundo primitivo e fantasmático, indiferenciado, para um mundo com interações mais inte- 5 Breve histórico da técnica rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 59 gradas, onde o princípio da realidade passa a prevalecer em detrimento do princípio do prazer. A libido, diferenciada a partir das pulsões de autoconservação e parciais, ad- quire um significado específico na relação com os objetos internos ou externos. Podemos observar no desenvolvimen- to infantil que os primeiros vínculos objetais orais são permeados do prazer da dependên- cia e vão se transformando em prazer nas manipulações e controles da fase anal. O tipo de relação com o objeto da fase anal serve de modelo para o controle motor em geral, adquirindo sensações de domínio, prazer na expulsão ou na retenção. O mundo exterior, que na etapa oral era indiferenciado, agora é delimitado. As fezes são vivenciadas como conteúdos internos que são exteriorizados. O bolo fecal é vivenciado como intermediá- rio entre a criança e o mundo exterior e é o herdeiro do objeto -seio da fase precedente e, por outro lado, antecessor do pênis da fase fálica, que vem a seguir. O medo de ser deglutido, na fase oral, é substituído pelo medo de ser despojado, podendo agora representar um valor de tro- ca. A fase fálica será caracterizada pela uni- ficação dessas pulsões parciais orais e anais. O prazer não mais advém do exercício dos instintos de preservação, mas está sob o pri- mado dos órgãos genitais. Entretanto, esses novos vínculos afetivos ainda não estão to- talmente organizados, como vai ocorrer na fase genital. A criança só conhece um único órgão, o masculino. Com a descoberta da di- ferenciação dos sexos, a oposição dos sexos é a oposição fálico castrado. Encontramos, assim, uma convergência das tendências se- xuais sobre esse objeto – o falo. As descobertas da diferença anatô- mica, em princípio, são negadas, pois im- plicam a perda do narcisismo: se eu não sou igual, sou como? Ou me tornarei igual quando? A curiosidade infantil pode ser ex- pressa nas questões grande x pequeno; ho- mem x mulher; rico x pobre, que também podem estar associadas às investigações ou manipulações corporais – a masturbação. A percepção da diferença começa com a ne- gação, pois também os desejos não podem ser satisfeitos. A criança descobre que nem tudo é igual a tudo, daí a questão de qual é o seu lugar: menino x menina; o que pode e o que não pode. Com a descoberta das diferenças, ins- tau ra -se o não da consumação dos seus de- sejos, e a criança passa a experimentar a culpa pelo prazer da consumação de seus desejos, que são agora dirigidos aos pais ou aos seus cuidadores. Em resumo, este é o momento da resolução edípica, com a típica angústia de castração. No menino, o medo de perder seu pênis leva -o a renunciar aos desejos genitais, abandonando os sentimen- toshostis em relação à figura paterna. Na menina, é mais gradual e menos completo, segundo Freud: o medo de perder o amor da mãe leva -a a renunciar aos desejos pelo pai. Em ambos, menino e menina, observamos o processo de identificação, que marcará suas relações de identificação na puberdade e adolescência, preparando -os para a identi- ficação no mundo adulto. Em síntese, podemos dizer que o com- plexo de Édipo é o conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança ex- perimenta em relação aos pais. Freud consi- dera que o ser humano sente a necessidade de domesticar as vivências edípicas para po- der ter acesso a uma nova ordem, à cultura. O conhecimento científico nada mais é do que a sublimação desse prazer sexual que é inibido constitucionalmente, não no sentido de recalque, mas de uma repressão neuróti- ca, transformada, e que permeará o perío- do de latência. Ao estar vedado o acesso aos objetos primários, há uma introversão, regressão da libido e identificação com o objeto perdido. Nos primeiros estágios, oral e anal, a identificação e escolha de objeto coincidem, sendo denominada de identifi- cação primária. Com o complexo de Édipo, essa diferenciação ocorre e a identificação torna -se mais completa, ou seja, não mais sob o domínio dos instintos parciais. Ao considerar tais pressupostos teóri- cos, poderemos observar e analisar o com- portamento da criança em uma interação lúdica como a expressão desses vários tipos de vínculos afetivos, ora manifestações de INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 60 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) dependência ou de completa desorganiza- ção ou ausência de prazer na relação, ora de tendências agressivas ou de manipulação e controle, seja sobre os objetos concretos, seja na relação ou no uso dos brinquedos para interagir com o meio. Tais análises não devem necessaria- mente ocorrer num contexto terapêutico, podendo ser feitas através de algumas ho- ras observando crianças, por exemplo, num parque infantil. Em meus cursos de psicote- rapia de crianças ou de adultos, solicito que os alunos, antes de se apropriarem dos con- ceitos teóricos psicanalíticos, observem du- rante umas seis horas o comportamento de crianças, de preferência sem terem sequer informações sobre a idade destas, apenas sentando -se num parque infantil e obser- vando a criança e suas brincadeiras. Como é difícil uma criança ficar durante seis ho- ras num mesmo local, minha sugestão é que isso seja feito em dias diferentes. A própria escolha da criança a ser observada já é um indicador da relação do terapeuta com a sua criança introjetada. Tais registros desses comportamentos costumam ser muito úteis para a compreensão, discussão e análise na prática da teoria de desenvolvimento de Freud, que estará em jogo quando a psicote- rapia tiver seu início. A PRiMEiRA PSiCAnALiSTA DE CRiAnçAS Em 1908, Hermine von Hug -Hellmuth co- me çou a ser analisada por uma psicana- lista, que a apresentou a Freud. Desde en- tão, ela começou a estudar psicanálise e a aplicar os conhecimentos psicanalíticos no atendimento de crianças e adolescentes. Passou a escrever na revista Imago uma coluna intitulada “Da verdadeira essência da alma infantil”. Em 1921, apresentou um trabalho no Congresso de Haia, chamado Sobre a técnica da análise de crianças, no qual discutia a importância de conquistar a confiança da criança, evitando o uso abusi- vo das interpretações. Hug -Hellmuth reconhecia a importân- cia da comunicação da criança já na primeira sessão terapêutica e a importância do brin- car como forma de permitir a expressão da problemática da mesma. Participaram deste congresso Anna Freud e Melanie Klein, mas a tentativa de Klein de estabelecer debate foi recebida com frieza por Hermine von Hug - Hellmuth. Diretora do Centro de Orientação In- fantil em Viena, Hermine foi assassinada em 1924 por seu sobrinho de 18 anos, que ela havia criado e utilizado como matéria -prima de seus trabalhos, causando muitas críticas publicitárias na época, as quais trouxeram consequências negativas à análise infantil. Anna Freud na época recebia orientações de Hug -Hellmuth. Na análise de crianças, Hermine von Hug -Hellmuth abstinha -se de aprofundar questões envolvendo o complexo de Édipo, segundo ela, para não despertar tendências reprimidas que a criança era incapaz de assimilar. Ela achava também que o papel do analista era o de exercer uma influência educativa. Parece que Anna Freud assimilou esses pontos de vista claramente. Em 1927, Melanie Klein reconheceu o trabalho de Hermine von Hug -Hellmuth, dizendo que esta teve a honrosa distinção de ter sido a primeira pessoa a iniciar a aná- lise sistemática de crianças, mas também fez duras críticas a ela, afirmando que seu trabalho fora carregado de preconceitos ou preconcepções e que ela se limitara às descobertas e ao desenvolvimento da teoria psicanalítica, além de não analisar crianças com menos de seis anos. Essas críticas de Klein eram dirigidas também a Anna Freud, uma das pioneiras da análise de crianças, mas que, assim como Hug e outros, colocavam a psicanálise infan- til a serviço da educação. Klein, por outro lado, foi a primeira analista a tentar com crianças uma forma rigorosa de psicanáli- se, excluindo todos os elementos pedagógi- cos, muito embora seus primeiros trabalhos publicados tenham ainda essa influência (Klein, 1921; 1923). INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 61 A inFLuênCiA DE AnnA FREuD nA TéCniCA DE AnáLiSE DE CRiAnçAS A filha mais moça de Freud nasceu em 1892, em Viena, vindo a falecer em 1982. Efetuou várias contribuições importantes, como O ego e os mecanismos de defesa (1936), e, juntamente com Heinz Hartmann criou um estudo específico sobre a psicologia do ego (Hartmann apud Hinshelwood, 1992, p. 347). Entretanto, no início da década de 1920, ela e Melanie Klein iniciaram um debate ardoroso sobre a técnica de análise infantil, praticamente selado em 1927, no Simpósio Sobre a Análise Infantil, no qual Klein respondeu a críticas de vários analis- tas, particularmente as de Anna Freud. A síntese da análise infantil proposta por Anna Freud está publicada em seu tra- balho O Tratamento psicanalítico de crianças (1927) e se refere à fase preparatória, à situa- ção analítica modificada, à transferência nas crianças e ao brincar e a associação livre. A fase preparatória Anna Freud acreditava que a criança come- ça sem entendimento do processo terapêuti- co, logo, ela defendia a postura do analista engajar -se de maneira afetuosa, destinada a vincular a criança ao analista. Para Klein, não há qualquer restrição do método a ser feito com a criança; o método é o mesmo em- pregado com adultos, acreditando que esta atitude de sedução da criança vai contra o proposto pela técnica psicanalítica, mencio- nando que essa “técnica de amaciamento” proposta por Ana Freud com o cliente acaba por impedir o êxito da situação analítica que é a investigação do inconsciente. A situação analítica modificada Anna Freud acreditava que o analista de- veria se apresentar também como um edu- cador. Para ela a criança ainda estava cons- truindo suas relações objetais, logo o analis- ta tinha o papel de interferir nesse processo. Essa atitude era embasada no fato de que a transferência ainda não podia aparecer na relação com o analista na sua plenitude, tal como na análise de adultos, considerando que o ego ainda estava em formação. Para Klein, a criança está em grau maior sob a influência do inconsciente e é deste que de- vemos nos aproximar como analistas. Klein acreditava que na função de educador o trabalho se restringe a uma investigação do ego consciente e, como tal, essa investigação não se firma como suporte único da análise. Além disso, Klein afirmava que os pacien- tes desejam ver no analista uma figura de autoridade, amada ou odiada, e que só ana- lisando essa atitude pode-se obter acesso às camadas mais profundas. A transferência nas crianças De acordo com a teoria da transferência da época, Anna Freud acreditava que a crian- ça ainda se achava sob os cuidados de seus objetos primários (pai e mãe), logo não transferia afetos e impulsos a partir desses relacionamentos para formar uma neuro- se de transferência com o analista. Conse- quentemente, seus afetos e impulsos não poderiam ser interpretados. Klein, por outro lado, acreditava na evidência dos objetos primários, representados a partir dos brin- quedos e comumente apresentados ansio- samente pela criança de maneira negativa. Enquanto Anna Freud lutava para demons- trar tal atitude defendendo o uso de uma transferência positiva com a criança, Klein, ao contrário, defendia a interpretação da transferência negativa como um elemento essencial para suavizar a ansiedade mani- festa pela criança. Podemos estabelecer um contato mais rápido e seguro com o inconsciente das crianças se, agindo com a convicção de que elas são muito mais profundamente influenciadas pelo inconsciente e pelos INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 62 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) impulsos instintivos do que os adultos, encurtamos o caminho que a análise de adultos toma pelo contato com o ego e fa- zemos a ligação direta com o inconsciente da criança, fazendo uso da linguagem através das interpretações. (Klein, 927, p. 205) O brincar e a associação livre Anna Freud não acreditava que o brincar da criança fosse o equivalente à associação li- vre do adulto, na medida em que também não considerava a existência da neurose de transferência. Klein viu no brinquedo a lin- guagem de expressão da criança. Ela acredi- tava que as crianças que por alguma razão não associavam não o faziam por causa de sua incapacidade de transformar seus pen- samentos em palavras, tal como em Anna Freud, mas porque a ansiedade resiste às as- sociações verbais, e o brinquedo é um instru- mento facilitador. A representação por meio de brinquedos reveste -se de menos ansieda- de, logo, as representações indiretas têm um papel facilitador do acesso ao inconsciente. Os analistas da época encaravam o brincar como uma atividade inocente; o que, por outro lado, levou Klein a um interesse pelo estudo da natureza da simbolização. Tanto Klein como Anna, no entanto, apoiavam a ideia de Freud (1920) de que por meio do brinquedo a criança expressa e elabora sua angústia. A repetição que observamos no brincar da criança demonstra uma situação de ansiedade em que o sujeito inverte o seu papel passivo diante do trauma para um papel ativo, onde ele controla a ansiedade. Anna Freud adotou a expressão “identifica- ção com o agressor” para designar esse pro- cesso, ou seja, mudar o papel para tornar o desfecho mais agradável em vez de penoso. A diferença decisiva era que, para Klein, a externalização da fantasia por meio do brin- quedo é uma manobra defensiva, enquanto na psicanálise clássica a fantasia é utilizada para elaborar o trauma. Há ainda uma série de divergências entre as duas, como em relação à análise de crianças a partir da latência, defendida por Anna Freud e criticada por Klein (1923, 1927). Na medida em que dispomos do ma- terial lúdico como expressão da criança e também por Klein (1929) acreditar na exis- tência de objetos primários constantemente representados pela criança, mesmo naquela criança que se encontra em situação anterior ao período de latência a análise é possível. Essas divergências também acabaram por refletir em críticas sobre a investigação do complexo de Édipo precoce, analisado por Melanie Klein (1928), mas foram aos pou- cos demonstrando que haviam divergências teóricas, não só técnicas. A grande importância dessas influên- cias teóricas é que foi estabelecida uma téc- nica ludoterapêutica dirigida a crianças e, posteriormente, uma técnica de diagnóstico infantil, o ludodiagnóstico, com todos os fundamentos da psicanálise infantil, iniciada a partir de Freud, mas sistematizada e apro- fundada a partir de Klein e seus seguidores. No caso específico da técnica lúdica diag- nóstica destacam -se Aberastury, uma das precursoras da introdução da técnica como instrumento diagnóstico, principalmente na América Latina. Segundo essa autora, no primeiro encontro a criança manifesta seus conflitos e angústias e o histórico destes, ou seja, como e por que está ou ficou com difi- culdades; suas fantasias de cura, bem como as expectativas do tratamento ou do seu prognóstico (Aberastury, 1962). Este livro tem justamente a proposta de ampliar o va- lor do encontro lúdico com a criança como um instrumento de avaliação psicológica. REFERênCiAS Aberastury, A. (1978). Teoria y técnica del psicoana lisis de niños (6. ed.). Buenos Aires: Paidós. (Obra originalmente publicada em 1962). Freud, A. (1971). O tratamento psicanalítico de crianças: Preleções técnicas e ensaios. Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente publicada em 1927). Freud, S. (1973). Analisis de la fobia de un niño de cinco años. In: S. Freud, Obras completas (3. ed., INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 63 vol. 2, pp. 1365-1440). Buenos Aires: El Ateneo. (Obra originalmente publicada em 1909). Freud, S. (1973). 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Primeiras fases do complexo de Édipo. In: M. Klein, Contribuições à psicanálise (pp. 253-267). São Paulo: Mestre Jou. (Obra original- mente publicada em 1928). Klein, M. (1970). Simpósio sobre a análise infantil. In: M. Klein, Contribuições à psicanálise (pp. 193- 232). São Paulo: Mestre Jou. (Obra originalmente publicada em 1927). INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS O ludodiagnóstico é uma técnica proje- tiva, geralmente utilizada em situações de psicodiagnóstico infantil. Comumente essa técnica é utilizada pelo psicólogo no primei- ro encontro com a criança, após as entrevis- tas com os pais, no processo psicodiagnós- tico, como uma das etapas de um dos con- juntos de técnicas e testes utilizados para o diagnóstico clínico. Na literatura, a observação lúdica ou ludodiagnóstico tem como fundamentação teórica os estudos de Freud (1900; 1905; 1909; 1910; 1920; 1923) e Melanie Klein (1921; 1923; 1928; 1930; 1932; 1955), sendo esta quem sistematizou a técnica e o valor do jogo lúdico como instrumento de investigação clínica e terapêutica (Klein, 1929; 1932; 1955). Entretanto, há vários autores que, a partir daí, sistematizaram a hora lúdica. Aberastury (1962), Efron e co- laboradores (1976), Greenspan e Greenspan (1993), Soifer (1992) são slguns exemplos. Alguns profissionais utilizam apenas este instrumento como avaliação psicoló- gica da criança, como é o caso de alguns psicanalistas. Outros o utilizam como um rapport com a criança, para prepará -la para o processo de avaliação psicológica, ou seja, antes da aplicação de alguns tes- tes psicológicos. Outros ainda a utilizam dentro de um conjunto de procedimentos de avaliação que fará parte do conjunto de resultadosque permitirão as conclusões diagnósticas. As denominações utilizadas para o aporte inicial realizado com a criança den- tro de um contexto psicológico são várias, e essa variedade vai depender da sua utili- zação. 1. Hora lúdica: a denominação é utilizada por vários profissionais, como fonoau- diólogos, professores e psicopedagogos, na maioria dos casos com a função de estabelecer contato com a criança para uma observação. Geralmente brinque- dos, preparados ou não, são fornecidos à criança sem um critério de análise es- pecífico, apenas tendo como objetivo uma boa interação com a criança. Uma interação lúdica numa brinquedoteca ou numa recepção de consultório pode ser um exemplo. 2. Observação lúdica: aqui já há um objeti- vo específico, que é a análise do compor- tamento da criança. Também pode ser utilizada por outros profissionais além do psicólogo, mas, no caso da psicologia vai ter a influência da abordagem escolhida pelo profissional, como, por exemplo, a abordagem comportamental, existencial ou psicanalítica. O profissional escolhe brinquedos sem um padrão específico e observa a criança interagindo com os 6 O ludodiagnóstico e as técnicas projetivas expressivas rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 65 mesmos, analisando a posteriori alguns padrões de comportamento, indicadores ou sentimentos envolvidos naquela situa- ção. A grande diferença da observação e da entrevista é que na situação de obser- vação o profissional praticamente não intervém, e isso é combinado com a criança. Um exemplo de observação lú- dica foram as análises de Freud sobre os comportamentos do Pequeno Hans (1909), analisando como a criança, a partir de suas perguntas ou brinquedos, havia, por exemplo, ficado horrorizada com o sangue da mãe no nascimento do bebê, associando -o ao medo da castra- ção fálica, ou quando Freud, em 1920, analisa a situação da brincadeira de um bebê com um carretel que aparecia e de- saparecia. Freud apresenta como esse comportamento significava a expressão e elaboração pela criança da angústia de separação da figura materna. Estes são exemplos de análise do comportamento infantil a partir de observações. 3. Entrevista inicial com a criança: é utiliza- da para o primeiro contato com a crian- ça, visando ao contrato sobre o que será realizado. Aqui a influência psicanalítica passa a ser mais determinante, principal- mente nos trabalhos de Maud Manonni (1982). Sem uma preocupação com a sistematização da técnica, Mannoni de- senvolve a importância da investigação do significado do sintoma da criança, no lugar que este ocupa no fantasma paren- tal da família. Além disso, a entrevista inicial pode ser entendida como o pri- meiro encontro para o estabelecimento de um contrato psicoterapêutico com a criança. Aqui já há uma situação estabe- lecida, na qual há o pressuposto da “fala” da criança e do terapeuta. 4. Entrevista clínica com a criança: neste caso, os materiais lúdicos não são ne- cessariamente utilizados, mas o objetivo é uma investigação sobre o desenvolvi- mento num contexto clínico em geral, ou seja, outros profissionais podem aplicá -la. Estes contextos geralmente são encon- trados num hospital e em consultórios. O psicólogo aqui não está comprometi- do com a técnica clássica ludoterápica, ou seja, não há um padrão de contrato. Os trabalhos de Greenspan e Greenspan (1993) podem ilustrar muito bem esta denominação. 5. Ludodiagnóstico: esse instrumento de investigação psicológica é quase sempre incluído nas técnicas projetivas expressi- vas, como um procedimento de investi- gação fundamentado nos princípios da associação livre (Freud, 1900), nas quais o sujeito fica inteiramente livre na sua forma de expressão (Anzieu, 1978). Entende -se aqui por técnica a arte, a habilidade, a destreza, as regras comunicá- veis para a execução de qualquer trabalho (Ferreira, 1986) Neste sentido, trata -se de um instrumento que requer treino e habili- dade para sua aplicação. Embora a técnica consista na utilização da brincadeira infan- til, o objetivo não é brincar com a criança, e sim permitir que ela expresse através dos brinquedos as dificuldades que porventura esteja enfrentando, requerendo habilidade do profissional. Não basta, portanto, o de- sejo de brincar com a criança. Aliás, dificil- mente o profissional irá literalmente “brin- car” com a criança, considerando que a sua postura é mais de compreensão das expres- sões lúdicas. No senso comum, brincar está relacio- nado a passatempo, divertimento, entrete- nimento, agitação, gracejo, etc. (Ferreira, 1986), mas dificilmente um profissional num contexto diagnóstico utilizará a situa- ção lúdica nesse sentido. Mesmo o pro- fissional que utiliza a técnica lúdica como rapport, ou seja, para explicar à criança o que será feito nos próximos encontros, co- mumente fará uma observação do compor- tamento da criança para avaliar se o mesmo corresponde às exigências requeridas pelos testes subsequentes, a serem utilizados ou planejados. Portanto, mesmo num contexto de observação do comportamento, há um referencial, há um “olhar” que tem funda- mentos teóricos comprometidos com o de- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 66 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) senvolvimento humano, logo requer tam- bém um preparo para esse olhar diagnósti- co. Daí também a denominação de “hora de jogo diagnóstica”. Trata -se, portanto, de uma técnica projetiva. No sentido psicanalítico, pro- jeção (Laplanche, J.; Pontalis, 1977) é a operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro (pessoa ou coisa) qualidades, sentimentos, desejos e mes- mo objetos que ele desdenha ou recusa em si. Trata -se aqui de um mecanismo de defesa de origem muito arcaica e que va- mos encontrar em ação, particularmente, na paranoia, mas também em modos de pensar normais, como, por exemplo, na su- perstição. Klein, em seu trabalho Criminal tendencies in normal children [Tendências criminais em crianças normais], de 1927, (apud Hin shelwood, 1992) coloca o me- canismo de projeção como importante na externalização de conflitos no brincar com objetos externos, confirmando o que Freud já mencionara sobre a culpa inconsciente existente nos atos violentos dos adultos, em 1916, em Varios tipos de caracter descubier tos en la labor analitica: criminosos a partir de um sentimento de culpa (Freud, 1916a), ou seja, a externalização da criminalidade como um método de mitigar a violência in- terna entre os desejos e as proibições do superego. Assim, durante a aplicação da hora -lúdica, as crianças podem atuar pro- jetando no relacionamento com os brin- quedos e com o terapeuta seus conflitos ou relacionamentos internos. Klein (1927; 1928) encontrou no brin- car da criança normal graus de violência e uma luta para dominar esses impulsos agressivos. A ação externa no brincar (ou no crime real) permite que o mundo real tranquilize o ego de que a violência não é tão temível assim, permitindo que no brin- car novas fantasias apareçam e melhorem a violência interna. Klein também abordou o conceito de projeção como auxiliar no pro- cesso de formação da identidade, na medida em que considerava que o ego projeta para fora impulsos originados da pulsão de mor- te, procurando introjetar o que é bom. Anzieu (1978) descreve o uso do con- ceito de projeção nas técnicas projetivas como meio para expulsar da consciência os sentimentos repreensíveis, tendo como con- sequência o favorecimento de uma descarga emocional. No caso do ludodiagnóstico, a criança pode expressar sua raiva atribuindo à situação lúdica ou através de personifica- ções o ódio que não pode admitir no plano consciente. Ou seja, o brinquedo atua como instrumento de descarga, ao mesmo tempo favorecendo a compreensão dos aspectos in- conscientes. O ludodiagnóstico consiste em uma técnica expressiva projetiva que favorece a expressão segundoas variáveis de persona- lidade do sujeito, permitindo a compreen- são dos referenciais por este utilizados. O que ocorre na sessão psicanalítica é interpretado como a expressão dos conteú- dos do mundo interno e externo. Ao ofere- cer à criança a possibilidade de utilizar o brinquedo ou o jogo dentro desse contex- to particular do ludodiagnóstico, cria -se a possibilidade da configuração de um cam- po determinado pelas variáveis internas de personalidade da criança. Assim, a criança pode atualizar no aqui e agora um conjun- to de fantasias e de relações de objeto que serão analisadas pelo terapeuta, no sentido de compreender os motivos manifestos e latentes que determinaram os conflitos ou explicitar de que maneira a criança gostaria de ser ajudada e como está o seu funciona- mento psíquico (id ego e superego). Segundo Anzieu (1978), o método projetivo geralmente é utilizado nos diag- nósticos para a obtenção de informações indiretas, às quais o sujeito não tem acesso ou que não consegue expressar. Assim, são planejados o uso de certas técnicas e testes para proporcionar oportunidade de autoex- pressão sem depoimento verbal direto. No caso da técnica lúdica, os materiais teriam essa função indireta de expressão. Comumente utiliza -se o termo “teste” para se referir a um procedimento sistemá- tico a fim de observar e analisar o compor- tamento e descrevê -lo com ajuda de escalas numéricas ou categorias fixas. Se tomarmos INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 67 a definição literal de método e de teste, pode -se dizer que a técnica ludodiagnóstica não corresponde a um método nem a um teste, considerando que é uma técnica onde a criança fica livre para se expressar, logo não é sistemática nem contém um padrão fixo de estímulos ou de instruções, como em alguns métodos projetivos, por exemplo, o Rorschach (Anzieu, 1978). Método diz respeito a um sistema que perfaz a essência do saber científico. Sis- tema é o conteúdo e o método, o aspecto formal, é o processo racional para se che- gar a um dado conhecimento. Ao estudar a entrevista clínica com crianças, estamos tentando desenvolver instrumentos que a insiram num saber científico; tentando construir um caminho dentro de um con- junto de técnicas e processos, visando a ul- trapassar a subjetividade de quem a aplica. Este é o grande desafio do pesquisador que tem a psicanálise como referência: tornar o seu instrumento um método científico, mesmo com algumas poucas variáveis de controle – a técnica e os seus fundamentos para a análise. REFERênCiAS Aberastury, A. (1978). Teoria y técnica del psicoana lisis de niños (6. ed.). Buenos Aires: Paidós. (Obra originalmente publicada em 1962). Anzieu, D. (1978). Os métodos projetivos. Rio de Janeiro: Campus. Efron, A. M. (1976). La hora de juego diagnósti- ca. In: M. L. S. Ocampo, & M. E. G. Arzeno, Las técnicas proyectivas y el processo psicodiagnóstico (4. ed., vol. 1, pp. 195-221). Buenos Aires: Nueva Visión. Ferreira, A. B. H. (1986). Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2. ed.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Freud, S. (1910). Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. In: S. Freud, Obras completas (3. ed., vol. 2, pp. 1577-1619). Buenos Aires: El Ateneo. (Obra originalmente publicada em 1910). Freud, S. (1973). 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INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS A SALA DE ATEnDiMEnTO A sala de atendimento infantil onde se reali- za o ludodiagnóstico não deve ser a mesma dos adultos ou adolescentes, pois deve ser um local preparado para a criança se movi- mentar, utilizar os materiais, pintar a mesa ou a parede, jogar bola, molhar com água, etc. Dou estes exemplos mais drásticos porque muitos profissionais que atendem crianças fazem restrições a suas maneiras de brincar, pois o espaço em que ocorre a sessão não está convenientemente prepara- do para a ação prática ou representativa de uma criança. A sala também não pode ser muito pequena, para não restringir a mo- vimentação infantil possível. O ideal é que tenha pelo menos 9 m2. O chão e as paredes devem ser laváveis para as possíveis eventualidades e para que os descontroles das ações lúdicas não sejam vividos com angústias, tanto pelo terapeuta como pela criança. Deve ser sempre conside- rada a possibilidade de reparação, diante de um descontrole das ações da criança, daí a preocupação tanto na escolha dos materiais como na preparação da sala. Deve -se ter o cuidado de montar a sala com materiais lavá- veis e que não coloquem a criança em risco. Como o contexto ludodiagnósticoé de avaliação psicológica, sugere -se que a sala tenha janela, com acesso à luz natural. Em edifícios, a janela deve ter rede de proteção. No caso do uso de lâmpadas, é importante que elas estejam protegidas, pois podem ser atingidas com algum material e provocar acidentes. No que se refere ao mobiliário, reco- men da -se que haja uma mesa lavável, re- vestida por fórmica branca, de 1,10 m de comprimento, 70 cm de largura e 65 cm de altura. O revestimento com fórmica, além de facilitar a limpeza, impede que a criança deixe marcas na mesa, uma vez que a fór- mica dificulta riscos. Certa vez, trabalhando numa mesa de madeira, um cliente deixava sulcos irreparáveis sobre a madeira. É claro que os outros clientes acabavam utilizando esses desenhos, e os desenhos sobre as fo- lhas de papel sulfite ficavam com as marcas da madeira no papel. O branco é recomendável na mesa por ser esta uma cor neutra, logo não interfere na produção lúdica. O tamanho e a forma retangular da mesa facilitam a colocação dos materiais, pois podemos deixar um es- paço livre à frente da criança para que ela escolha o material a ser utilizado, ou seja, trata -se de uma disposição onde não dirigi- mos a escolha. A largura e o comprimento da mesa facilitam o acesso aos materiais sem ter que sair da mesa para pegar um ma- terial, e a altura é a ideal para a utilização de crianças de 2 a 12 anos. Geralmente o terapeuta senta -se num dos lados menores do retângulo, por ser menos persecutório, e, além disso, facilitar o acompanhamento das ações da criança. 7 O procedimento ludodiagnóstico rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 70 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Na sala deve haver ainda duas cadei- ras iguais, uma para a criança e outra para o terapeuta, ou seja, o terapeuta fica no mesmo plano que a criança, logo a altura do assento deve ser em torno de 35 cm. Além dessas cadeiras mantém -se uma cadeira de tamanho normal para adultos, que é dispos- ta longe da mesa e pode ser utilizada por um dos pais ou responsáveis, no caso de a criança solicitar um acompanhante durante a sessão ludodiagnóstica. Um divã, também lavável, será usado no caso de a criança preferir verbalizar ou deitar -se para alguma associação. Há tera- peutas que em vez do divã utilizam colchões com almofadas laváveis. Tal preocupação pode parecer muito rigorosa, mas deve- mos contar com a possibilidade de algumas crianças já virem preparadas para uma asso- ciação livre. No início de minha carreira não acreditava nisso e não me preocupava com a existência do divã. Meus próprios clientes foram me demonstrando essa necessidade, e a utilização do divã pode aparecer de vá- rias maneiras, seja como o lugar das asso- ciações verbais, seja como o corpo materno. Por exemplo, um dos casos em que essa significação se deu foi o de um garoto de 9 anos que praticamente permaneceu no divã por cerca de noves meses. Primeiramente, ficava deitado no divã olhando para o teto, depois passou a me olhar e, depois de várias sessões, interagia com o divã como se fosse o corpo materno: entrava debaixo, saía pe- los pés do divã com a cabeça, como se esti- vesse nascendo, lambia o divã ou mesmo o acariciava. É claro, que encontraremos tais significações em crianças muito prejudica- das, ou seja, onde a expressão de relações primárias parecem ser primordiais em suas ações lúdicas. O ARMáRiO DAS CAixAS LúDiCAS Ou BOxES Costumo dizer aos meus alunos que já traba- lhei de várias maneiras e fui compreenden- do as recomendações kleinianas aos poucos. Inicialmente, achava que uma criança ter seus materiais individualmente era desne- cessário, mas vejamos: uma dada criança utiliza um brinquedo, pinta -o ou tira -lhe uma peça significativa. Discute -se com a criança sobre essas significações nesta ses- são. Imagine que uma outra criança venha Figura 7.1 foto de uma sala de atendimento ludoterapêutico. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 71 e lave esse mesmo instrumento ou queira saber o porquê dos materiais estarem desta maneira e lhes dê outra configuração. A pri- meira criança com certeza notará a diferen- ça, podendo reclamar ou não. Até que pon- to, ao colocarmos materiais coletivos, não estamos introduzindo variáveis que podem comprometer nossa relação com a criança? Costumo perguntar: o atendimento é coletivo? Se não o é, por que tratar os mate- riais dessa maneira? A individualidade dos materiais garante o sigilo terapêutico, prin- cipalmente se nos encontramos diante de um processo psicoterapêutico. Quando não consideramos a individualidade dos mate- riais, podemos estar invadindo a privacida- de da criança, expondo os seus conflitos, e isso as próprias crianças nos demonstram. Costumo dizer àqueles que fazem críticas a isso que as próprias crianças vão demons- trando o que os especialistas estudaram há anos. Klein demonstrou que não devemos atender as crianças em seu habitat natural, que os materiais devem ser guardados em boxes e também se preocupou com os tama- nhos dos materiais, entre outros aspectos. A maneira diferente de cada profis- sional tratar o material infantil confunde, principalmente, os iniciantes, e é uma das razões pelas quais defendo a padronização. Aliás, a falta de cuidado ou os excessos com que são montadas as caixas lúdicas nas clí- nicas psicológicas em geral deixa a impres- são de que estas não são instrumentos de valor terapêutico. Voltando à questão da individualidade dos materiais, é importante que haja um ar- mário lavável dividido em boxes fechados, onde serão guardados os materiais de cada criança, ou então devem ser montadas cai- xas lúdicas individuais, guardadas em um armário fechado com prateleiras. O impor- tante é que apenas a criança atendida tenha acesso aos seus materiais, protegendo tam- bém o sigilo. O armário é dividido em prateleiras, com uma única porta, onde serão colocadas as caixas lúdicas fechadas, ou em espaços com portinholas com chaves individuais (boxes). A altura do armário é de aproxi- madamente 1,60 m e a largura, de 1,50 m, com 45 cm de profundidade. Recomendo e utilizo o segundo formato de armário, no qual deixo dois compartimentos para os lu- dodiagnósticos. Os outros compartimentos são para as crianças que estão em proces- so psicoterapêutico, caso em que o cuidado com o sigilo deve ser maior. Por exemplo, num processo psicotera- pêutico, não mexo no compartimento que foi destinado à criança. No compartimento do ludodiagnóstico já não tenho esse cuidado, pois reponho o material que porventura te- nha sido danificado na primeira sessão diag- nóstica. No contrato ludodiagnóstico não co- loco para a criança que aquele compartimen- to será só de sua utilização, como o faço na psicoterapia da criança, ou seja, o box é, de certa forma, coletivo. Como as sessões ludo- diagnósticas podem ser no máximo três, pro- curo deixar no compartimento os materiais produzidos pela criança, no caso de, já na primeira sessão, verificar que irei utilizá -los novamente no segundo ou terceiro encontro do ludodiagnóstico. Caso contrário, retiro ou reponho os materiais utilizados pela criança e o compartimento do ludodiagnóstico fica disponível para a próxima. Alguns poderiam questionar quão dis- pendioso é tal procedimento. Trabalhei em comunidades muito carentes onde as caixas lúdicas eram feitas de papelão e algumas de caixas de sapato, mas sempre mantive a preocupação de mantê -las num armário fe- chado. A existência de um armário onde se guardam as caixas lúdicas, além de demons- trar o cuidado com a relação terapêutica, garante que outras crianças não mexam nas caixas ou mesmo queiram pintá -las, como já ocorreu comigo. A CAixA LúDiCA E OS MATERiAiS No caso do profissional optar pelo uso de um armário com prateleiras, deverá tirar a caixa do mesmo a cada sessão. Logo, ela deve ser resistente e, no caso do ludodiag- nóstico, não necessita de cadeado,pelas mesmas razões já mencionadas em relação INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 72 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) à não individualidade da caixa diagnóstica. Há muitos locais que vendem as caixas lúdi- cas já prontas, feitas de madeira e revesti- das de fórmica, por ser lavável. Esse cuidado facilita a sua reutilização, uma vez que há crianças que pintam suas caixas. O tamanho ideal de uma caixa ludodiagnóstica é de 50 cm de comprimento por 35 cm de largura e 30 cm de altura. Ao longo dos anos de aten- dimento, verifiquei que as crianças que se sentem ameaçadas com a invasão de outras costumam, com mais frequência, delimitar seu espaço pintando suas caixas. Quanto aos materiais, Klein (1932) sugere que sejam pequenos, permitindo que a criança os manipule, ou seja, tenha o controle sobre os mesmos, mas não tão pe- quenos que possam pôr em risco a vida da criança, pois algumas deverão querer pô -los na boca. Além disso, os materiais estrutu- rados devem ser uma miniatura da realida- de, para que a criança possa encontrá -los e reconhecê -los como representantes de sua realidade. Logo, cada caixa deve respeitar a realidade cultural da criança em ques- tão. Não colocaremos um posto de gasolina numa caixa lúdica se formos atender uma criança indígena, por exemplo. Efron e colaboradores (1976) e Abe- rastury (1962) recomendam que sejam utili- zados materiais estruturados e não estrutu- rados. Não há ainda uma padronização para a caixa lúdica, embora se esteja estudando esta possibilidade, mas os profissionais de- vem ter alguns cuidados na escolha dos ma- teriais, observando, como já mencionado, que sejam uma miniatura da realidade, e não, por exemplo, um jacaré de cor abóbo- ra. Além disso, é recomendável que sejam manipuláveis pelas crianças, não devendo ser grandes demais, pois também podem as- sustar a criança, nem pequenos demais, pois podem pôr em risco sua manipulação. Os materiais recomendados para uma cultura urbana brasileira são: Materiais estruturados n famílias de bonecos; n famílias de animais selvagens e domésti- cos; n casinha com quarto, cozinha, sala e ba- nheiro; n posto de gasolina; n carros e caminhões ou caminhão -cegonha ou cegonheiro; n bola; n armas de brinquedo; n soldados em campo de guerra ou poli- ciais; n índios; n equipamentos de cozinha, de enferma- gem ou ferramentas; n telefone; n aeroporto; n porto com barquinhos. Materiais não estruturados n lápis preto; n caixa de lápis coloridos; n borracha; n guaches coloridos, com pelo menos cin- co cores (azul, preto, amarelo, branco e vermelho); n um pincel no 6 e outro no 12; n apontador; n cola e fita adesiva; n tesoura; n massa de modelar; n barbante; n papéis laminados coloridos; n papel sulfite; n papel espelho colorido; n blocos de madeira coloridos; n brinquedos de construção: ligue -ligue; monta -tudo ou de outros tipos de encai- xes; n panos e bacia com água. Os materiais estruturados têm a função de facilitar a expressão, permitindo um rápi- do acesso à capacidade simbólica da criança, considerando que esta é a sua forma mais comum de interagir com o mundo no seu dia a dia, logo o material lúdico estruturado teria essa finalidade facilitadora. Tenho fei- to várias críticas aos materiais estruturados que muitos profissionais utilizam, pois não obedecem a alguns cuidados. Por exemplo, é comum encontrarmos caixas com animais de diversar cores, como vaca azul e boi ver- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 73 de. Além disso, tenho verificado através de pesquisas que as caixas lúdicas muitas vezes não contêm cenas, e sim todos os materiais sem relação alguma entre si. Deve -se colocar um posto de gasolina, e não um carrinho apenas; um aeroporto, e não um avião. Como já demonstrei, a análi- se da estrutura mental das noções de espaço, tempo e causalidade (Affonso; 1994, 1998) será feita a partir da montagem ou não de cenas, que podem ser construídas através de blocos, mas numa situação diagnóstica, na qual temos pouco tempo de observação, de- vemos oferecer à criança estas cenas. Ainda em relação aos materiais estru- turados, tenho verificado que para as meni- nas é mais fácil a escolha dos materiais, e os mesmos facilitam a expressão de sua identi- ficação com a figura feminina. Na nossa cul- tura ainda é a figura feminina quem tem a responsabilidade pelos cuidados domésticos (mesmo, às vezes, essas funções ficando a cargo do homem), logo, a casinha, os bone- cos e os utensílios de cozinha servem para a expressão dessas vivências familiares, e é possível adquirir várias cenas muito utiliza- da pelas meninas no seu cotidiano natural. No caso dos meninos isso já não ocorre com tanta frequência. Comumente são ofe- recidos a estes um carrinho, um guerrilhei- ro, um bombeiro, etc., e não uma patrulha de policiais, um homem no escritório. As vivências dos papéis masculinos ficam mais distanciadas das crianças, logo, segundo mi- nhas hipóteses, a identificação masculina, principalmente para os meninos, é imagina- da sem a possibilidade de um brinquedo que facilite sua representação. Os materiais não estruturados também têm a finalidade de facilitar a expressão in- fantil, principalmente para aquelas crianças que se sentem ameaçadas com o material estruturado, além de permitir a expressão da criatividade na sua forma de construção. Alguns autores da psicanálise sugerem que, por ser esta uma técnica projetiva, se- jam utilizados somente materiais não estru- turados, apoiados no fato de que os estrutu- rados sofrem a influência cultural de quem os escolhe (Brougère, 2000). Outros, como Klein (1955) e Soifer (1974), são contrários ao uso de jogos de competição, sob a alega- ção de que levam o terapeuta a se afastar de sua atitude investigativa, ou seja, podemos não encontrar um consenso em relação à es- colha desses materiais. Portanto, a padronização dos materiais numa caixa lúdica ainda é alvo de pesquisas e é um campo complexo de estudo. O que é comum é a necessidade da utilização de ma- teriais, uma vez que permitem a observação de fenômenos que não são obtidos pela pa- lavra e podem ser observados ou analisados tanto no acontecimento lúdico quanto na maneira como a criança utiliza os materiais, estruturados ou não. Encaro o material lúdico, seja estru- turado ou não estruturado, como um ins- trumento de expressão da saúde mental infantil, que permitirá a manifestação da brincadeira simbólica e que poderá permitir a imaginação de uma realidade dolorosa ou não, ou seja, cumpre um papel da expressão de aspectos positivos ou negativos de suas vivências e que faz parte dos comportamen- tos esperados num desenvolvimento infantil sadio. Logo, a criança que não interage com os materiais ou não manifesta a brincadeira simbólica apresenta alguma problemática a ser investigada. Klein (1929) aponta os cui- dados que devemos ter com a criança que não brinca e o quanto este bloqueio está re- lacionado ao comprometimento pessoal e/ ou social. Portanto, o faz de conta permite não só a representação de uma realidade angustiante (Freud, 1920) como também a sua elaboração ou mesmo o confronto da realidade interna com a vivenciada. É essa concepção que muitas vezes está subjacente na montagem de brinque- dotecas ou na escolha dos materiais em di- versos contextos, como, por exemplo, em hospitais. Na montagem de uma brinquedo- teca hospitalar devem -se considerar espaços com instrumentos cirúrgicos, macas, utensí- lios de higiene pessoal, enfim, materiais que possam facilitar a expressão, a representa- ção da realidade vivida no contexto hospi- talar, podendo ser transformada, elaborada, confrontada na brincadeira simbólica atra- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 74 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) vés dos brinquedos, tal como fundamentou Freud (1920). Quando atendi famílias víti- mas de homicídio e latrocínio em psicote- rapia breve infantil, foram montadascaixas lúdicas específicas, pois os materiais da cai- xa devem ser alterados conforme o objetivo do atendimento, mas sempre respeitando o conteúdo de materiais estruturados e não estruturados. Nos casos de caixas lúdicas montadas apenas com material não estruturado, a in- fluência cultural também estará presente. A brincadeira simbólica manifesta pela crian- ça, independentemente do material, sofre influências educacionais, familiares ou não, e a criança apresentará os seus conflitos sob a influência da família, que, por sua vez, está inserida naquela cultura. Portanto, o profis- sional deve fazer uma análise crítica, seja na escolha dos instrumentos para aquele con- texto em que está trabalhando no momento, seja na consideração das manifestações dos instrumentos utilizados. Ainda em consideração à escolha dos materiais pelo profissional que trabalha com ludodiagnóstico, o referencial de teorias de desenvolvimento está implícito. A brinca- deira simbólica faz parte de uma das etapas do processo de socialização da criança, por isso a escolha de determinado brinquedo ou brincadeira pela criança será analisada sob este enfoque evolutivo. Logo, a caixa deve conter elementos que pressupõem esta aná- lise, não sendo, portanto, uma caixa lúdica qualquer. Para Efron (1976) e Aberastury (1962), o significado dos brinquedos tem um valor diagnóstico fundamentado na te- oria do desenvolvimento psicossexual de Freud (1905) e nas teorias de desenvolvi- mento cognitivo. É diferente uma criança que monta várias cenas com personagens interagindo em várias situações conflituosas de outra que persevera, tomando a água da bacia ou apenas afundando um carrinho na água sem parar. O profissional analisará a etapa da manifestação simbólica, podendo consi- derar, por exemplo, a capacidade simbólica da primeira criança, com vários recursos egoicos, enquanto a segunda manifesta eta- pas primárias do desenvolvimento oral, ou ainda, a primeira manifestando um tipo de brincadeira em que está implícita a brinca- deira simbólica, enquanto na segunda a pos- sibilidade de sua não construção. A escolha dos materiais tem o objetivo de possibilitar a manifestação ou expressão da criança, sofrendo as influências culturais da sociedade em questão, mas essa esco- lha obedece a critérios teóricos específicos, abordados por vários estudiosos da teoria psicanalítica, que pressupõem o estudo do desenvolvimento humano. Como mencionei acima, o diagnós- tico da problemática ou crise da criança é realizado no contexto evolutivo, no qual a investigação das etapas evolutivas da mani- festação da brincadeira simbólica e de seus significados tem um papel importante. Logo, a escolha da abordagem psicanalítica não é uma opção, uma vez que pressupõe uma teo- ria do desenvolvimento. O mesmo acontece com a abordagem piagetiana em relação ao estudo do desenvolvimento das expressões práticas do bebê para as manifestações sim- bólicas na criança, pois o diagnóstico não é do brinquedo, e sim da manifestação das re- presentações da mente infantil. A COnDuTA DO PROFiSSiOnAL nA SiTuAçãO LuDODiAgnóSTiCA Segundo a técnica, o papel do profissional é passivo, porque ele funciona como observa- dor, mas também ativo, na medida em que investiga e formula hipóteses sobre a proble- mática a ser estudada. Logo, apropriando -se das recomendações sobre os estudos de en- trevistas diagnósticas (Bleger, 1975), trata- -se de um papel de observador participante, e, para efeito dessa investigação diagnósti- ca, o profissional pode formular perguntas para esclarecer dúvidas e decidir interagir na brincadeira, se isso lhe for solicitado. Embora a recomendação seja de evitar in- terpretações, estas poderão ser utilizadas INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 75 dependendo do grau de experiência profis- sional na arte e manejo da técnica. A conduta do profissional no caso de a criança necessitar ser acompanhada é pra- ticamente a mesma, pois ele analisará por que a criança necessita dessa companhia, observará e investigará sua interação com o outro presente, sem, no entanto, disputar a atenção com este. Isso pressupõe o aco- lhimento às necessidades da criança ou do par presente na situação. Nesses casos é co- mum o profissional solicitar ao responsável presente que evite interferências, sem, no entanto, mostrar impedimentos ou recrimi- nações caso estas ocorram. Como se trata de uma situação comu- mente ansiógena para a a criança, a postura do profissional é a de ficar atento e intervir tentando diminuir possíveis reações de medo ou de angústia, evitando críticas às condu- tas expressas, sem, no entanto, colocar -se na posição de laissez faire. Arzeno (1995) lembra que não devemos permitir estragos irreparáveis, pois a angústia, ao contrário do que se pensa, pode ficar intensificada. Nesta perspectiva ansiógena, também há a possibilidade de a criança desejar sair da sala para ir ao banheiro, ou mesmo querer se retirar para reassegurar -se e ficar por um tempo na companhia dos responsáveis. Considerando que o objetivo é a in- vestigação da interação com a criança, sugere -se não anotar durante a sessão, pois esta atitude pode inibir a criança ou mes- mo impedir e dificultar o processo investi- gativo diagnóstico. Os registros são feitos a posteriori, e tal procedimento tem seus pressupostos no método clínico psicanalí- tico, onde não importa a exatidão do ma- terial expresso, e sim um relato o mais fiel possível daquela situação. Tal conduta, no entanto, requer treino e preparo. Além dis- so, parte -se do pressuposto de Freud (1914; 1920) de que há uma tendência da criança, assim como do adulto, a repetir e desejar elaborar as situações ansiógenas. Logo, caso o profissional não memorize situações num dado momento, é provável que, em outro, a criança as repita. Além disso, o mesmo pro- cedimento pode se repetir em pelo menos três outros encontros, diminuindo no profis- sional a ansiedade por registros. MAnEJO TéCniCO DA SiTuAçãO LuDODiAgnóSTiCA Segundo Aberastury (1962), os móveis po- dem fazem parte do contexto interpretati- vo a ser analisado, pois podem representar a maneira como a criança interage com o mundo externo, com os conteúdos de figu- ras de autoridade, com um adulto, etc. Por- tanto, certos cuidados com o local podem facilitar a interação e fazem parte da análise neste contexto diagnóstico. Neste sentido, é importante que o local esteja limpo, sem materiais de outras crianças expostos e faci- lite o contato e a interação com os materiais que serão usados. Antes de a criança entrar na sala, os materiais da caixa lúdica devem estar dis- postos sobre a mesa, obedecendo a critérios aleatórios, mas com uma certa ordem, pre- ferencialmente em montinhos agrupados. Por exemplo: o montinho de animais, o dos blocos de madeira ou de construção, o da casinha com os utensílios de cozinha, o do material gráfico, etc., sem preocupação excessiva com a maneira de agrupá -los, ou seja, não é necessário que todos os animais ou carrinhos estejam alinhados ou de pé; o agrupamento é no sentido de facilitar o ma- nuseio e a escolha do material. A orientação em relação à disposição dos materiais sobre a mesa tem o mesmo sen- tido facilitador expressivo, pois considera -se que certas crianças podem inibir -se diante de uma caixa com brinquedos que esteja fe- chada, ou esteja aberta, mas com todos os materiais guardados. Nestes casos, a criança não pode sequer abrir a caixa ou escolher o material que esteja circunstancialmente em sua parte superior. Segundo essa mesma perspectiva, sugere -se que os materiais se- jam apresentados fora de suas embalagens, isto é, os lápis, a massinha e outros devem ter sido retirados de suas caixas. Além dis- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 76 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) so, o profissional deve providenciar que a criança tenha acesso à água, que pode ser disposta numa bacia,caso não exista na sala uma pia com torneira. O COnTRATO DA SESSãO LuDODiAgnóSTiCA Assim que a criança entra na sala de aten- dimento, sugere -se esclarecer a ela os ob- jetivos do encontro, o porquê da presença do material, bem como o papel de cada um –criança e profissional – neste contexto. Como a situação ludodiagnóstica é realiza- da após as entrevistas com os pais ou res- ponsáveis, em geral o profissional já tomou o cuidado de saber o que foi dito à criança ou de orientar tal esclarecimento aos pais ou responsáveis, procurando evitar situa- ções fantasiosas ou de falsidade no encon- tro. Aliás, é comum que a criança, quando questionada pelo profissional sobre os moti- vos que a trouxeram ali, diga que os desco- nhece, para testar a confiabilidade daquele que a está questionando. Para a realização do ludodiagnóstico, não existe uma padronização, mas há al- guns procedimentos comumente utilizados. 1. Primeiramente, pergunta -se à criança se ela sabe os motivos que a levaram àquela situação. 2. Depois disso, são apresentados os moti- vos dos pais ou de terceiros que a leva- ram a esse encontro, tomando o cuidado de não colocá -los no papel de figuras más. Caso seja necessário mencionar os reais motivos, devem ser colocados como uma tentativa de colaboração em relação a algo que não se está conseguindo resol- ver sem uma ajuda profissional. Deve -se ter o cuidado de não causar indignação, ou mesmo sentimentos de traição na criança. 3. A apresentação dos materiais é feita de modo a explicitar que os mesmos têm a função de colaborar para o entendimen- to das situações -problema apresentadas e a finalidade de facilitar a expressão da criança. Comumente, acrescenta -se que a utilização ou não do material pela criança é facultativa. 4. Deve ser esclarecido no início de sessão que o objetivo é compreender e tentar orientar os envolvidos no problema, (pais, criança, escola, etc.) e que outros contatos foram ou serão ainda realiza- dos, ao menos com os pais. É importante o profissional considerar que, embora o ludodiagnóstico tenha seus fundamentos na técnica psicanalítica, nem sempre a sua utilização é psicanalítica, pois pode, dependendo da demanda, não estar a serviço da psicanálise, e sim da orienta- ção de pais ou de outros responsáveis. Portanto, o profissional deve considerar que nem sempre estará ali para decidir – como ocorre num contexto psicotera- pêutico psicanalítico – se a criança irá se submeter ou não ao processo psicote- rapêutico, e sim para fazer o diagnósti- co de uma dada conduta, de uma dada situação. Também há uma demanda de terceiros a ser atendida, que nem sem- pre corresponde às demandas da criança, mas que deve ser considerada. 5. Após tais esclarecimentos, aguarda -se um posicionamento sobre como a crian- ça está recebendo esta preocupação dos pais e, segundo Aberastury (1962), é o momento em que a criança pode de- monstrar, a partir dos materiais, cons- ciência ou não do problema, bem como expressar os motivos que a levaram a apresentar tais dificuldades e o que ne- cessita para saná -las. 6. Aguardam -se as manifestações da crian- ça, sejam verbais ou através da utilização dos materiais, e o examinador poderá indagar a criança, com os cuidados su- geridos nas técnicas expressivas projeti- vas. Por exemplo: conte -me algo sobre o que você está fazendo; se fosse um lugar, onde poderia ser? O que poderia estar acontecendo? Há pessoas nessa situa- ção? O que elas poderiam estar fazendo? Como elas são? Do que elas mais gostam? Do que elas não gostam? O que poderia INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 77 acontecer para tornar essas pessoas mais felizes? Conte -me uma história sobre o que você está fazendo. O que vai aconte- cer depois? Como termina esta história? 7. Essas perguntas não podem ser seguidas como um roteiro, pois poderão ser utili- zadas ou não, dependendo daquilo que a criança fizer ou desejar expressar. Logo, nem sempre é possível formular ques- tões; por outro lado, as questões serão desnecessárias se a criança apresentar facilidade na expressão. 8. Alguns minutos antes do término da sessão ludodiagnóstica, sugere -se a re- tomada do que foi esclarecido no início da sessão, explicitando quais serão os ob- jetivos seguintes, ou seja, quais e como serão os encontros seguintes, se estão previstas outras atividades ou a mesma que foi realizada. Enfim, conclui -se o contrato, explicitando o número de en- contros previstos, com os seus objetivos, duração e tempo, forma de pagamento, sigilo profissional e como se dará a fina- lização de todo o processo de avaliação. É importante esclarecer que o sigilo com os pais ou responsáveis é relativo, pois o contexto é de avaliação, e não um sigilo psicoterapêutico, logo a criança deve ser informada de que receberá os resultados do processo juntamente com os pais ou responsáveis. 9. Ao final, comumente após 50 minutos, a sessão lúdica é encerrada. Antes, porém, é solicitado que a criança guarde os ma- teriais segundo os seus critérios. Tal pro- cedimento tem como objetivo verificar como a criança lida com regras e analisar como ela consegue conter ou cuidar dos conteúdos expressos. Pode -se considerar a recusa da criança a esse procedimen- to como a expressão de dificuldades em conter ou de tolerar o que foi expresso, deixando para o examinador fazê -lo, na medida em que é ele o depositário da função de conter ou de cuidar do que se considera, supostamente, irreparável. É evidente que tais significados podem ser entendidos sob outros aspectos: difi- culdade em aceitar a separação ou inca- pacidade para guardar os materiais, ou mesmo dificuldade na aceitação das ins- truções ou do que foi vivenciado naquela sessão ludodiagnóstica. REFERênCiAS Aberastury, A. (1978). Teoria y técnica del psicoana lisis de niños (6. ed.). Buenos Aires: Paidós. (Obra originalmente publicada em 1962). Affonso, R. M. L. (1994). Da importância de se considerar, no ludodiagnóstico, as representações da criança no que concerne a espaço, tempo e causali dade na acepção de Jean Piaget. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. Affonso, R. M. L. (1998). Ludodiagnóstico: A teoria de J. Piaget em entrevistas lúdicas para o diagnóstico infantil. Taubaté: Cabral. Arzeno, M. E. G. (1995). Psicodignóstico clínico: Novas contribuições. Porto Alegre: Artmed. Brougère, G. (2000). Brinquedo e cultura (3. ed.). São Paulo: Cortez. Efron, A. M. (1976). 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Money-kyr, Novas tendências na psicanálise (2. ed., pp. 25-48). Rio de Janeiro: Zahar. (Obra originalmente publicada em 1955). Soifer, R. (1974). Estúdio de la entrevista de juego diagnóstica con niños. São Paulo. (Documento mimeografado). INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS O significado do brinquedo pode ser um tema polêmico, na medida em que nenhum psicoterapeuta ou profissional da saúde considera os significados dos brinquedos como algo estático e imutável. Alémdisso, o estudo do significado do brinquedo envol- veria necessariamente estudar a sua evolu- ção no contexto das diversas culturas, daí a grande polêmica quando ele se direciona a dar significados específicos a determinados brinquedos. Uma pesquisa sobre a significação dos jogos pode também ser feita segundo um re- ferencial evolutivo específico, como propõe Aberastury (1992), fundamentada na teoria psicanalítica, a partir de Freud e Klein e uti- lizado por inúmeros educadores e clínicos. Sobre a significação das fezes e da urina Aberastury (1992, p. 40) comenta: Entram alimentos em sua boca, pas sam através do corpo e saem transformados; os sólidos, suscetíveis de originar capacidade criadora. A criança ama e teme as subs- tâncias que saem de seu corpo. Uma vez que elas estão condenadas a desaparecer, devido às proibições do adulto, a criança busca na água, terra e areia os substitutos permitidos das fezes e da urina. Desse modo, água, terra e areia passam do es- tado de puras substâncias para adquirir aspectos selvagens, mangueiras de apagar incêndios, líquidos com poderes mágicos, etc. Mais tarde, o adulto lhe oferecerá uma substância, uma massa especial, com que poderá modelar objetos. Nesse trecho identificamos a teoria na qual Freud (1905) apresenta como o ho- mem, dentro do seu quadro evolutivo, bus- ca satisfação e estabelecimento de relações objetais a partir do exercício dos instintos parciais – no caso, a satisfação ao evacuar. Identificamos como a criança procura, ao mesmo tempo em que está estruturando e elaborando a sua psique interna, objetos substitutos para satisfazer sua libido através da manipulação de objetos não estruturados como, por exemplo, a areia ou massinha de modelar. Aberastury (1992) demonstra como os objetos concretos vão ganhando signi- ficados de satisfação libidinal ao longo do desenvolvimento. Vale ressaltar que Freud (1905), na obra dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, apresenta as várias transformações da energia psíquica nas suas relações com objeto quanto ao alvo e quanto à fonte da excitação sexual sem relacionar, é claro, com qualquer significação de objetos concretos. Podemos entender, portanto, que o exercício de defecar pode promover uma satisfação advinda da zona erógena anal, que se transforma num modelo de relação 8 O brinquedo, sua evolução e seus possíveis significados rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 79 objetal como, por exemplo, o controle ou a manipulação do outro, típicos do compor- tamento característico que encontramos em crianças que estão na etapa anal. Aberastury (1992) e Lebovici e Diatki- ne (1985) também alertam para a impor- tância da história cultural dos objetos nos estudos dos significados dos brinquedos. A fecundidade começa a interessar a criança. Aparecem os tambores, os globos, as bolas, como brinquedos prediletos que simbolizam o ventre fecundo (Aberasury, 1992, p. 40), objetos concretos escolhidos, pois estão à disposição daquela cultura em que a criança está inserida. Poderíamos também estudar os signifi- cados dos brinquedos a partir de um quadro evolutivo onde há categorias de jogos: dos funcionais, como o prazer nos rituais e re- petições, para aqueles onde a disciplina e a regra se impõem, como, por exemplo, um jogo de futebol. Neste aspecto poderíamos, apoiados na teoria piagetiana, estudar o significado dos brinquedos a partir do exer- cício dos esquemas práticos, os esquemas representativos ou o exercício dos esquemas lógico -concretos. Neste caso, o estudo so- bre a significação pode adquirir a qualidade da estruturação do conhecimento humano tal como o fez Piaget (1946) em sua obra A Formação do Símbolo na Criança, onde minuciosamente vai demonstrando como a atividade lúdica tem a sua gênese a partir da inteligência sensório -motora. Piaget carac- teriza os jogos de exercício passando para a inteligência representativa o que irá carac- terizar a atividade lúdica, que por sua vez será sucedida pela inteligência operatória, o que caracteriza os jogos de regras. Essa pas- sagem, segundo Piaget, é complexa e longa, envolvendo os primeiros anos de vida até os 12 anos de idade, e faz parte do processo de diferenciação eu/não eu. Sem tais pretensões científicas, reuni aqui o que tenho exercitado em minha expe- riência clínica e de observação de crianças. Essa necessidade de estudar o significado dos brinquedos surgiu, por outro lado, a partir de minhas convicções da importân- cia histórico -cultural do brinquedo e de minhas inquietações de observar em várias crianças esses mesmos significados. Essa pesquisa mais ampla, porém, não foi feita e, é claro, tais significados devem ser consi- derados na sua relatividade, logo, também devem ser criticados e questionados o seu uso unilateral. Podemos entender que qualquer obje- to pode apresentar uma significação com- pletamente adversa do que se espera que ele signifique. O vaivém de uma bola pode representar o prazer dos toques nas pa- redes, ou querer ver como se sucedem os deslocamentos ou ainda nada mais do que um simples vaivém. Logo, ao considerarmos os significados dos brinquedos temos que considerá -los sempre num contexto, e nun- ca pensá -los isoladamente. Mesmo assim, as possíveis significa- ções devem ser cuidadosamente observa- das inúmeras vezes no comportamento da criança, para que sejam interpretadas ou consideradas numa intervenção qualquer, seja educacional ou clínica. Pode -se, porém, questionar o porquê mencionar os seus sig- nificados se não os utilizarmos em sua ple- nitude num contexto diagnóstico infantil. Comumente, utilizo este material de signi- ficados lúdicos para demonstrar o quanto a criança pode atribuir significação, as mais adversas possíveis, expressando aspectos do seu desenvolvimento. As interpretações lú- dicas, porém, são consideradas em conjunto com as informações sobre o histórico do de- senvolvimento obtidos nas entrevistas com os pais ou com profissionais, portanto, num contexto clínico que exige uma habilidade técnica específica. O seu uso por todos os profisionais, no entanto, pode ser no sentido da observação lúdica como possíveis indica- dores do desenvolvimento infantil, como propõe Aberastury. Este capítulo tem também o objetivo de contribuir principalmente com os profis- sionais que atendem crianças que não se co- municam verbalmente, fornecendo alguns subsídios para serem utilizados na interven- ção e possíveis hipóteses diagnósticas. Portanto, antes de me reportar à aná- lise do ludodiagnóstico, apresentarei aqui o INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 80 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) que tenho recolhido ao longo dos anos de atendimento clínico, educacional e de pes- quisa sobre os possíveis significados dos brinquedos no ludodiagnóstico. Abordarei o significado do brinque- do com base nas diversas manifestações da criança em atendimentos psicoterapêuticos e nas sessões de ludodiagnóstico e em ob- servações de comportamentos de crianças. É importante ressaltar que são possíveis sig- nificações, nem sempre constatadas pelo te- rapeuta em todas as crianças, considerando que cada uma delas tem a sua história es- pecífica de significações, além da influência cultural e social do brinquedo, já descritas. No entanto, estas possíveis significações po- dem auxiliar na análise do brinquedo, logo, podem ser utilizadas ou não como indicado res na análise da sessão lúdica, que deverão ser complementados com outros instrumen- tos de investigação, ou seja, outros testes, ou com o relato da própria história da crian- ça, fornecida por seus responsáveis. Antes de abordar os brinquedos, ve- jamos alguns possíveis significados da sala de atendimento, na qual todo esse processo será desenvolvido. A sala de atendimento é o espaço onde o terapeuta deve propiciar à criança um ambiente favorável à manifesta- ção de sua afetividade,seus conflitos e suas angústias. As paredes da sala de atendimento podem significar o corpo do terapeuta e de quem cuida da criança, logo, também o corpo materno, que tanto pode ser pro- tetor como ameaçador, ou, ainda, alvo de pesquisa. Por volta dos 2 anos, período que corresponde à fase anal, é comum observar que a criança gosta de deixar suas marcas pelas paredes, porque elas marcam o corpo ou o espaço do lugar que a contém, no caso, simbolicamente representado pelas paredes, que remetem ao corpo materno. É comum no atendimento terapêuti- co as crianças deixarem materiais colados nas paredes, podendo isso significar que a criança quer deixar o seu produto colado no corpo do outro. Isso pode estar relacionado a como este outro a recebe, no caso a figura materna, representada pela família e o te- rapeuta, ou ainda, ser fonte de exibição ou demarcação de território. Geralmente, neste período de desenvolvimento do treino dos esfíncteres a mãe tenta orientar a criança delimitando um espaço para riscar ou colar coisas, mas é comum a criança contrariá -la rabiscando a parede. Quando isso ocorre no ambiente terapêutico, tal reação pode deno- tar que a criança quer comunicar a sua ne- cessidade de contato físico ou de contrariar as regras. Certa vez, atendi uma criança que aos 9 anos não falava e apresentava um compor- tamento muito regredido. Ela manteve du- rante meses uma relação com as paredes do consultório muito comum em casos de diag- nóstico grave. Em princípio, ficava deitada no divã tocando a parede da sala, como que imersa no contato sensorial com a mesma. Após alguns meses, passou a tirar casquinhas da parede e comê -las, como que incorporan- do simbolicamente o contato afetivo com a figura materna. Foi interessante observar que, depois de algumas sessões, ela passou a querer manter um contato de toque com meu corpo, na região dos meus seios, em que reproduzia, mas já não tão absorto, aquele movimento de contato com a parede. É nessas crianças com comportamen- tos tão regredidos que podemos observar a intensidade dessas significações. Aliás, entendo que, se não nos basearmos nelas, praticamente não temos outros instrumen- tos para trabalhar, na medida em que são crianças com pouca aderência a interven- ções. As significações observadas comumen- te correspondem a fases muito precoces do desenvolvimento infantil, aos primeiros me- ses, quando sequer existe o brinquedo como intermediário no contato. Daí a importância de consideramos essas significações dentro de uma perspectiva do desenvolvimento infantil como um todo. O contato com as paredes, nesses casos, corresponde a signi- ficações orais em que a noção de eu/não eu ainda está fundida, e a criança expressa esse comportamento na relação com o terapeuta. Trata -se, a meu ver, do campo da invasão da sensorialialidade, tal como descrito no Capítulo 3. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 81 Isso não significa que o contato com a parede corresponde sempre a fases primi- tivas do desenvolvimento, oral (no contato direto com o corpo simbólico) ou anal (no contato de deixar simbolicamente os seus produtos). Uma criança de 4 anos, por exem- plo, pode utilizar as paredes como expressão de suas angústias edípicas, tentando deixar marcas nas paredes para exibir aos outros clientes o quanto ela é inteligente, capaz, ou até mesmo para provocar os terceiros das supostas relações do terapeuta. Neste caso já temos que considerar um comportamento mais amadurecido e que pode corresponder a relações de exibicionismo e ciúmes, típicos da fase edípica. Também se poderiam discu- tir as relações primitivas do complexo edí- pico, segundo a contribuição kleiniana, mas meu propósito não é a discussão teórica, e sim as possíveis significações que, depen- dendo da abordagem terapêutica, podem ser consideradas. Afirmar que dependendo do terapeuta as significações podem ou não ser considera- das é um problema teórico que, no meu pon- to de vista, requer uma compreensão episte- mológica da teoria psicanalítica e que requer um capítulo na teoria das ciências psicoló- gicas. Segundo autores da teoria piagetiana, as significações são construídas a partir da troca com o meio e já a partir dos reflexos. Tais significações vão ser integradas a símbo- los, signos significantes e que contribuíram na construção dos conceitos. Não vou me de- dicar a tal discussão, dada a complexidade e a necessidade de integrar, por exemplo, os significados particulares e gerais dos símbo- los descritos por Jung (1977). Para meu propósito, a própria noção do conceito de simbólico deve ser também estudada, principalmente quando trabalha- mos com crianças com comportamentos tão primários, em contraposição a um concei- to de simbólico ou de campo lúdico (como descrito no Capítulo 3), que pressupõe já um amadurecimento egoico, com represen- tações simbólicas já evoluídas, sequer ainda consideradas nestes casos tão primitivos do funcionamento mental. Portanto, neste mo- mento é importante considerar as várias con- tribuições psicanalíticas no processo de com- preensão das significações da criança ou de outra contribuição teórica, resguardando, é claro, o perigo do ecletismo sem sentido. O teto da sala pode estar relaciona- do à proteção que a criança espera receber do terapeuta e a capacidade de reflexão da mesma. Nos desenhos projetivos, o telhado está associado ao pensamento ou às fanta- sias da criança. Podemos verificar isso nos desenhos feitos num Teste Projetivo HTP, no qual algumas crianças podem, inclusive, manifestar indicadores de lesões cerebrais ao desenhar o telhado da casa. Por isso, tan- to as paredes como a sala como um todo po- dem ter este mesmo significado de proteção ou de um espaço ansioso, dependendo da vivência da criança. O chão da sala pode apresentar diver- sos significados. Geralmente está associado ao contato com a realidade, é o que dá base, sustentação. Além disso, pode estar rela- cionado à produção dos alimentos, à terra (mãe -terra). A terra está relacionada aos símbolos femininos, assim como o chão. Por exemplo, quando a criança pega o carrinho e anda pelas ruas, o que ela está fazendo? O carrinho é comumente um símbolo fálico, logo, pode significar que anda pelas ruas, em busca do conheci mento ou do contato com o corpo feminino. Um outro significado para chão é de um comportamento regressivo ou de regres- são. Na sala de atendimento é importante que o terapeuta coloque uma mesa para trabalhar com a criança, mas, se ela o cha- mar para fazer a atividade no chão, não há problemas. O convite deve sempre partir da criança e não do terapeuta, para que este não estimule a regressão na criança. Tanto a criança quanto o bebê usam o chão para brincar. Geralmente na sala de atendimento de bebês utiliza -se um tapete para trabalhar com eles. A partir dos 2 anos, o terapeuta deve colocar mesa e cadeira pequenos, de acordo com o tamanho da criança, ou seja, em respeito ao seu desenvolvimento, mas não estimular a utilização do chão. Consi- derando o desenvolvimento infantil, inicial- mente a criança começa engatinhando, ou INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 82 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) seja, podendo significar a pesquisa ao corpo feminino. O significado da regressão, na es- colha do chão, a este estado precoce pode se relacionar ao apego afetivo da criança ao corpo materno. Se colocarmos em contraposição o teto e o chão da sala, veremos que, enquanto o teto se relaciona com o destacamento da realidade, o chão significa o contato com a mesma. Portanto, podemos encontrar com- portamentos de onipotência e de extrema fantasia no ato da criança que pega um aviãozinho e fica andando com ele acima dela pela sala ou daquele que insiste em an- dar com um avião num aeroporto, demons- trando com isso a sua necessidade de apoio aos seus pensamentos ou fantasias. Todo esse conjunto de significadosnas obras psicanalíticas pode ser também estu- dado pela abordagem junguiana, existencial ou gestáltica. Uma obra muito conhecida de Jung é O homem e seus símbolos, que demonstra essa significação do ponto de vista filogenético e ontogenético. Baseado na teoria gestáltica, Oaklander (1980), em Descobrindo crianças, ressalta o uso da cai- xa de areia com seus diversos significados. Geralmente, a caixa de areia é colocada no chão da sala de psicoterapia e é utilizada para fazer diagnóstico. A areia, assim como a terra, contém a significação do apoio, da continência e produtividade afetiva. Em Axline (1972, 1980), numa abordagem mais existencialista, observamos que uma crian- ça guardava com frequência os seus mate- riais, escondidos ou protegidos, na caixa de areia. Em algumas sessões, verificamos tal ato como uma necessidade de averiguação do quanto a terapeuta cuida ou não de seus materiais. Em ambas as autoras, a areia ou caixa de areia é utilizada como um material não estruturado, dando a liberdade de estru- turação, sem a indução de instruções, sem mobilizar frustrações, pois não necessita de habilidades para o seu manuseio, possuindo qualidades táteis cinestésicas tranquilizado- ras. A escolha de materiais estruturados ou não estruturados também tem relações em facilitar, no caso das primeiras, ou que sejam constituídos os próprios materiais, no caso dos segundos. Vale ressaltar que os profissionais que trabalham essencialmente com materiais não estruturados são os que mais evitam tais significações dos brinquedos. Para a utilização da caixa de areia, é necessário especialização, pois o seu ma- nuseio requer cuidados técnicos e funda- mentação teórica específica. Além disso, o uso com crianças muito comprometidas emocionalmente pode induzir a frustrações ou angústias de difícil manuseio técnico- -terapêutico. Certa vez, ao utilizar uma cai- xa de areia, uma criança fazia questão de molhar a areia com sua própria urina, e em algumas sessões queria comer os bolinhos feitos da areia misturada com urina. Outras vezes espalhava a areia pela sala e deitava- -se sobre ela. De acordo com o que já mencionei an- teriormente, esse movimento tinha uma sig- nificação primária, mas o grande problema era o tempo exigido para que eu limpasse a sala, pois, obviamente, essas crianças ainda não têm a função continente estruturada, logo não podemos esperar que guardem, limpem, etc. Além disso, tomar a sua própria urina não era o problema, mas sim ingeri -la misturada com a areia, pondo em risco a sua saúde. Alguns poderiam questionar se não era o caso de colocar limites, mas sabemos o quanto as crianças costumam ser rápidas em suas ações, impedindo que possamos cuidar delas como esperam ou necessitam. No atendimento a outras crianças, ve- rifiquei que ficavam muito agitadas ao espa- lhar a areia pela sala e passavam a evitar en- trar nela. Deixar o atendimento com a sala desarrumada desestabiliza emocionalmente a criança. Pode ter o significado de ter des- truído a figura de proteção, ou a destruição projetada no terapeuta pode voltar -se contra ela, daí a importância de deixarmos claro no contrato com a criança que devemos deixar a sala tal qual encontramos, mas, nesses casos difíceis, somos nós, terapeutas, que temos que exercer tal função daquele que resguarda, cuida, valoriza e respeita o mate- rial e os conteúdos vivenciados pela criança INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 83 através dos materiais, evitando esse sentido de que a figura de proteção foi atacada, daí a dificuldade e todos os cuidados com o ma- nuseio do material lúdico pelo terapeuta. Ao mesmo tempo, devemos deixar cla- ro, nos casos em que a criança se coloca em risco, que não admitiremos ser machucados ou agredidos, os móveis da sala não deverão ser danificados, como também não deixare- mos que a criança se machuque. Certa vez uma criança entrou na sala com um pacoti- nho que eu não conseguia ver o que era. Fi- cou de costas para mim expressando o pra- zer em esconder -me as suas ações. Quando percebi, ela tinha colocado cinco gomas de mascar (chicletes) em sua boca. Imediata- mente arranquei -lhe da boca as gomas, pois estava se sufocando. A utilização de areia, argila ou de tor- neiras com fácil acesso à água requer habi- lidades técnicas, pois estamos lidando com materiais com significações primitivas. Em absoluto, isso significa que não devemos oferecer tais materiais. Ao contrário, algu- mas crianças muitas vezes só utilizam tais materiais, mas, ao fazê -lo, devemos cuidar para que seja garantido o espaço ou aliança terapêutica, e para que o uso não se trans- forme num transtorno para ambas as partes. Nesses casos, uma bacia com água ou mas- sa de modelar podem colaborar da mesma forma com essa necessidade primária da criança, facilitando ao terapeuta o exercício do cuidar, também necessário como modelo para o desenvolvimento psíquico. As cadeiras e a mesa da sala são os con- teúdos simbólicos do corpo materno, onde a criança pode ou não se relacionar com eles mostrando significações com esses ele- mentos. Existem crianças que ao entrar na sala de atendimento têm a necessidade de desarrumá -la para depois iniciarem suas ati- vidades ou interagir com os materiais da cai- xa lúdica, demonstrando com isso a necessi- dade de criar a sua identidade para poder ter mobilidade ou capacidade de construção. Às vezes isso pode ter um significado de prazer ou de pesquisa dos conteú dos maternos ou do terapeuta, em outras, pode ganhar uma significação agressiva ou invejosa. Um garoto costumava insistentemente jogar uma bola, que tinha que passar por entre as pernas de minha cadeira. Em ou- tros momentos ficava minutos debaixo do divã olhando ou mexendo nele. Tratava -se de uma criança com 8 anos, com queixa nas trocas de letras, com uma angústia in- tensa em relação à curiosidade sexual pelas mulheres. A investigação do corpo femini- no ameaçava -o na troca de papéis, papel feminino e papel masculino, daí a troca de letras. Havia um desejo intenso do conheci- mento do corpo feminino, tornando a equa- ção simbólica homem -mulher uma ameaça. Outra criança, uma menina de 6 anos, de- monstrava no seu desarranjo constante da mesa e das cadeiras da sala a sua agressivi- dade invejosa das capacidades do terapeuta e de suas vivências, também invejosas, da capacidade da figura materna, que, por sua vez, refletiam na relação ansiosa com a sua professora, levando -a a um comportamento fóbico escolar. O espaço da sala deve ser sempre or- ganizado pelo terapeuta ou profissional em geral e mantido na mesma disposição. Quando houver modificações, a criança deve ser informada. Além disso, os lugares da criança e do terapeuta devem ser por este previamente estabelecidos. As modificações, comumente solicitadas pela criança, podem ser atendidas, mas devem ser consideradas no contexto afetivo da criança. Mesmos os educadores sabem o quanto é importante o lugar para uma criança, principalmente aquela que ainda está em fase de constru- ção ou de conflito com sua identidade. Nes- se sentido a troca de lugar pode significar a necessidade da criança de experimentar e conhecer papéis adultos, masculinos, femi- ninos, ou tentar ocupar ou diminuir a fun- ção do terapeuta. O brinquedo é a linguagem da criança, por isso é importante que o terapeuta saiba quais são esses códigos gerais da linguagem manifestada por ela. Por exemplo, quando a criança deixa marcas nos objetos do tera- peuta (mesa ou cadeira suja) ou nas paredes da sala, ou ainda deixa massinha grudada em algum local, ela está tentando transmitir INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 84 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) mensagens, e estas devem ser decodificadas e interpretadas pelo terapeuta. O armário significa simbolicamente os conteúdos femininos, a feminilidade, repre- sentando o modelo da figura materna. É o objeto que serve paraguardar e proteger os materiais da criança, logo também é consi- derado como o símbolo do útero materno. As colmeias usadas nas escolas podem representar os continentes que se dispõem para que as crianças depositem ou cuidem de suas produções, posses ou conteúdos. Os educadores sabem da importância que cada um desses espaços tem para cada criança e o quanto as crianças ficam ansiosas diante de alterações que não sejam as feitas por elas. E é nesse sentido que se recomenda na psicoterapia, e não no ludodiagnóstico, que cada criança tenha o seu espaço para guar- dar os seus materiais, no caso um armário. Recomenda -se, inclusive, que os psicotera- peutas tenham um armário equivalente a essas colmeias que observamos nas escolas, mas cada uma delas com porta e com uma chave correspondente, cada criança tendo acesso ao seu compartimento. Os materiais ficam guardados e quando a criança chega ao local o terapeuta dá a chave à criança, e é ela quem abre ou não a sua colmeia ou box. Esses cuidados em relação ao armário têm o sentido de guardar e proteger os mate- riais, respeitando a individualidade de cada criança. No caso do ludodiagnóstico, esse sentido pode ainda não estar estabelecido, mas procuro manter o mesmo box quando faço uma segunda hora lúdica diagnóstica e recomendo que as crianças utilizem a mes- ma caixa lúdica, na falta do armário. Esse cuidado se justifica porque, ao interagir com os materiais, a criança expressa suas vivên- cias, logo, chegar numa segunda hora lúdi- ca com outros materiais ou com materiais quebrados por outras crianças pode ter um sentido de invasão, desrespeito e falta de cuidados na relação afetiva. Quando iniciei meus atendimentos clínicos não tinha esse cuidado, ou melhor, considerava que outras abordagens, como a de Axline (1980), ao contrário, eram mais flexíveis neste aspecto e achava que essas li- nhas teóricas davam maior importância à re- lação do que aos materiais. Além de reduzir os custos financeiros com os materiais, essas abordagens, no meu entender, permitiam às crianças compartilhar os brinquedos, afinal as crianças têm essas vivências no seu dia a dia, seja na escola ou nas suas brincadei- ras coletivas. Considerava, inclusive, muito rígida essa posição de individualidade em relação aos armários. Aos poucos fui percebendo não só a importância da caixa lúdica individual, como também do armário e do armário individual ou com boxes. Já trabalhei com prateleiras coletivas, com caixas lúdicas nas prateleiras, com um armário para guardar as caixas lúdicas e hoje trabalho com um ar- mário com esses boxes, sendo que reservo dois deles somente para o ludodiagnóstico. Os outros compartimentos são reservados para a psicoterapia infantil. No ludodiagnóstico, sugerimos que seja a criança quem deve guardar no box que estiver aberto os materiais que encon- trou sobre a mesa ao chegar. No uso das pra- teleiras com brinquedos coletivos, a criança pode quebrar um material com o qual outra havia interagido anteriormente, com outras significações, expondo o espaço e a relação terapêutica a compreensões negativas. Cos- tumo dizer que não usar boxes ou caixas lúdicas é o mesmo que deixarmos nossas transcrições terapêuticas de um cliente para um outro lê -las, ou seja, é o mesmo que tor- nar público um material clínico. Acrescen- to ainda que estamos tratando de vivências pessoais, e não coletivas, de cada criança, com angústias e histórias particulares, daí todo esse cuidado e respeito com o clien- te infantil. Portanto, oferecer à criança um armário em que se guardam suas coisas ou uma caixa lúdica tem este sentido de cuida- do e respeito ao que foi vivenciado ali. Depois de discorrer sobre os itens da sala de atendimento e seus significados, abordarei os brinquedos contidos na caixa lúdica, esclarecendo o possível uso que a criança faz desses materiais e o significado destes. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 85 A caixa lúdica é o lugar no qual são guardados os materiais e brinquedos e pode representar o lugar, o continente onde estão os conteúdos do eu da criança. Crianças psi- cóticas não suportam guardar os materiais na caixa, talvez porque o eu ainda não esteja totalmente estruturado. Quando o terapeuta convida essas crianças a guardar os brinque- dos, elas não conseguem, se negam a fazê- -lo e podem até se retirar da sala. Isto pode ocorrer porque as crianças psicóticas ou mui- to prejudicadas têm dificuldades em conter seus conteúdos internos, pois não possuem ainda esta capacidade desenvol vida. A criança desenvolve o eu por volta dos 6 meses a 1 ano (idade emocional e não cronológica). A diferenciação eu/não eu se desenvolve no período entre 1 ano e meio a 2 anos de idade. Pode ocorrer de uma crian- ça com idade superior a 2 anos não ter o eu formado, o que será identificado através do diagnóstico e da observação do terapeuta, verificando como a criança expressa esses conteúdos na sessão lúdica. Este procedi- mento está relacionado à teoria do desen- volvimento afetivo e cognitivo da criança (Piaget, 1937; Spitz, 1978). Certa vez, atendi uma criança que a cada sessão arrebentava a caixa lúdica (vale ressaltar que a caixa era de madeira), até que entendi que ela estava me dizendo que não havia distinções ali. Ficou tranquila quando apenas coloquei alguns materiais e a água, sem caixa. Às vezes utilizava o meu colo para guardar os materiais, ficando quase a sessão inteira observando o que eu fazia com eles. Assustava -se, com expressão de pânico, e gritava se, porventura, os obje- tos caíam de meu colo. Tratava -se de uma criança de 7 anos, com difícil socialização, e que durante a gravidez fora rejeitada, so- frendo várias tentativas de aborto. Podemos também interpretar a caixa lúdica como a estrutura psíquica da crian- ça com os seus conteúdos egoicos, ou ainda como o representante dos conteúdos egoi- cos, a estrutura que está em contato com o mundo externo. Diante disso, também cos- tumo dizer que a maneira em que se encon- tra a caixa lúdica é a maneira como a crian- ça está cuidando de si mesma. Caixas muito confusas e destruídas podem expressar um mundo mental confuso e desestruturado. Muitas vezes temos que ajudar a cuidar desse espaço, não permitindo que a criança “ata- que” os outros, representados pelas outras caixas lúdicas ou boxes. Além disso, temos que cuidar de evitar a escolha de materiais Figura 8.1 foto de uma sala de atendimento com armário box e divã. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 86 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) que possam entrar em estado de putrefação, atingindo outras caixas lúdicas, ou seja, de- vemos resguardar o espaço terapêutico. Certa vez uma menina, que gostava muito de dar banho nas bonecas, deixou- -as molhadas na caixa. Vale lembrar que eu havia colocado bonecas de pano feitas com macela, que, ao ser molhada, criou bichos. Ao voltarmos das férias, quando peguei a caixa lúdica (ainda não trabalhava com os boxes), senti que algo se mexeu dentro. Avisei -a, logo no início da sessão, que pre- cisávamos limpar a caixa, pois devia haver algum bichinho na mesma. Ela ficou extre- mamente feliz em saber dos bichinhos, e, ao abrir a caixa, encontrou quatro baratas, com as quais queria brincar. Disse -lhe que, infelizmente, tínhamos que matar as bara- tinhas, com o que se mostrou muito revol- tada. Tentei mostrar -lhe que as baratinhas tinham vindo do lixo, logo tinham que ser mortas, e, além disso, poderiam deixar ali mais sujeira, e não ficariam só na caixa. Obviamente, era esse o seu desejo: atacar a mim, como representante da figura materna, por causa de meus outros “filhos”, representado pelos outros pacientes. Aca- bei matando as baratinhas mesmo sob seus protestos. Uma outra criança, ao guardar os materiais, queria a todo custo guardar a água com um pano todo molhado no box, o que provocaria umidade. É lógico que isso tinha um sentido,mas temos que lidar tam- bém com os limites, com todos os seus signi- ficados que, obviamente, são discutidos ou compreendidos no ato ou posteriormente, durante os atendimentos subsequentes. Por outro lado, crianças que arrumam o material de forma metódica, organizada, denotam características de traços obsessi- vos, controladores. São crianças que retêm suas emoções, estando estas características relacionadas à fase anal. É importante que o terapeuta tenha a caixa lúdica para guardar os materiais e cuide dela, porque, com o decorrer do tra- tamento, a criança atribuirá diversos signifi- cados à caixa, porque esta pode representar o seu eu ou mundo interno. Quem mexe no eu da criança na psicoterapia é ela mesma, e nunca o terapeuta, portanto, quem abre a caixa lúdica é a criança, mas este não é o caso num ludodiagnóstico. Assim, podería- mos também dizer que esse significado do eu não teria sentido num atendimento ludo- diagnóstico, o que também pode ser verda- de. Entretanto, temos que estar atentos a to- das essas significações, independentemente de ser a primeira ou segunda sessão lúdica, ou mesmo as sessões do atendimento psico- terapêutico. Certa vez um garoto de 7 anos, após guardar os materiais, numa sessão lu- dodiagnóstica, virou -se e disse, apontando para a caixa: “Esse é meu lado pirado!”. Pas- sou, então, a abrir e fechar a caixa, dando gritos ao abri -la: “Aaííí! Aaíí!”. Avisou -me que não queria que eu lhe trouxesse mais o seu lado pirado. Mediante a descrição do significado da caixa lúdica, destacarei o significado dos materiais e brinquedos nela contidos. Aliás, prefiro utilizar o termo “materiais”, e não “brinquedos”, pois nós, psicólogos, não brincamos com a criança; não usamos brinquedos para brincar, e sim para con- versar, portanto, são materiais que não têm esse sentido lúdico de divertimento. São os instrumentos que favorecem a projeção da criança, daí os cuidados com eles. Outra questão sempre colocada é se podem ser usados quaisquer materiais. É claro que não! Daí a minha defesa de que a caixa lúdica siga um padrão. Aliás, em con- tato com várias clínicas, observei que há um certo padrão, mas não existe pesquisa para tal. Os materiais comumente utilizados se- guem as sugestões de Efron (1976) sem, no entanto, seguir uma padronização. A caixa deve conter de modo equiva- lente tanto materiais estruturados como não estruturados, a fim de favorecer a projeção da criança, expressa através desses mate- riais. Os não estruturados, além de facili- tarem a expressão e a criatividade, podem, para algumas crianças, não direcionar a determinados assuntos em que elas tenham dificuldade. Uma família de bonecos é um material estruturado e direciona para a ex- pressão de relações familiares, o que para uma criança que está vivenciando agressões INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 87 familiares, por exemplo, pode ser difícil con- ter. Para outra criança esse mesmo material pode facilitar a discussão com o terapeuta de sua angústia nas vivências familiares. Por outro lado, um material não es- truturado também pode ser alvo de signifi- cações intensas. Certa vez uma menina, ao entrar na sala, olhou os gizes de cera e me perguntou: “Para que isso?”. “Ora! Para você fazer o que achar melhor”, respondi -lhe. “Não quero isso aqui”, retrucou ela e, ime- diatamente, afastou os gizes de cera. Obser- vei que os gizes de cera eram semelhantes a pênis, inclusive, com a ponta e tamanhos muito parecidos, e entendi a mensagem. Tratava -se de uma menina que, aos 9 anos, dormia na cama com os pais. Para a mãe essa atitude da criança trazia alívio na sua relação conjugal, pois tinha muitas di- ficuldades na relação sexual com o marido. Portanto, entendi o porquê dessa intensa projeção sexual da criança nos gizes de cera, um material não estruturado. Nesse caso, a criança, por várias razões psicodinâmicas, provavelmente também evitava ou reprimia os seus desejos sexuais colaborando com a figura materna ao identificar -se com ela, daí sua atitude de afastamento e de surpresa em relação ao material. Costumo dizer que quanto mais nova a criança for afetivamente, mais encontrare- mos significações inconscientes primitivas. Um lápis, para uma criança emocionalmen- te regredida, pode ter esse significado fálico, mas nem sempre. Uma criança emocional- mente já no período de latência utilizará o lápis como instrumento de suas produções, de seu poder de registro. Assim, embora com o mesmo sentido fálico, o desenvolvimento da repressão constitucional na criança desta fase deverá ser considerado pelo terapeuta. Pode ser, inclusive, que o ponto a ser discutido não esteja relacionado aos instru- mentos que a criança utiliza para registrar os seus conteúdos, e sim aos registros de suas identificações, consequências da fase edípica. Portanto, devemos considerar de maneira muito cuidadosa a fase do desen- volvimento psíquico em que se encontra a criança nessas significações, pois, do contrá- rio, podemos concretizar essas significações vulgarizando a teoria subjacente a elas. Isso é muito comum quando mencio- no as possíveis significações dos materiais não estruturados, pois, é claro, para nós adultos, já supostamente distanciados das significações primárias, encontradas no comportamento das crianças, enxergar num simples apontador a significação de uma va- gina dentada, torna -se, no mínimo, irônico. No entanto, se considerarmos o quanto as meninas, por volta dos 6 anos, no período final da fase edípica, desgastam seus lápis nas escolas, tornando -os “toquinhos” de lá- pis, poderemos observar que, além de de- monstrarem um comportamento de cuidado escolar, apontam os lápis com a intensida- de inconsciente de sua fase edípica, pois veremos, mais tarde, esse comportamento desaparecer. O menino, ao contrário, nessa mesma idade, utiliza o apontador para dei- xar a ponta mais fina, fazendo questão de deixá -la mais comprida. Logo, enquanto um utiliza o apontador para desgastar o símbo- lo fálico, em resposta aos seus sentimentos invejosos, o outro o utiliza no exercício do mesmo, ambos em consequência de uma fase de amadurecimento psíquico. Os lápis, pincéis e tudo que for pontu- do têm essa significação fálica, que podem também se transformar em armas ou instru- mentos agressivos, tal como utilizar o lápis para cutucar ou agredir o terapeuta. É ma- nifestação do uso de um instrumento fálico de contato agressivo. Bacias, cestas, panelinhas e tudo que é côncavo ou que pode conter algo tem a sig- nificação do feminino ou do corpo feminino. A bacia com água é um material não estrutu- rado e, como tal, pode apresentar inúmeras significações, diferentemente dos materiais estruturados, pois neste caso as significações são mais direcionadas ao que eles represen- tam. Mergulhar na bacia pode ter o significa- do de mergulhar no inconsciente, na medida em que a água é um símbolo bem primitivo – de onde viemos (o líquido amniótico) e de onde viemos do ponto de vista filogenético. Certa vez, ao afundar um boneco na água, um garoto de 4 anos demonstrava -me INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 88 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) o quanto estava sofrendo ao entrar em con- tato com suas angústias na sessão e o quanto também tinha sofrido durante sua gestação, na medida em que sua mãe tentou abortá- -lo. Mergulhava o boneco no fundo da bacia e, ao tirá -lo, emitia um grito de sofrimento. Repetiu esse movimento durante várias ses- sões, até que eu o entendi e pudemos con- versar a respeito. Outro garoto fazia da bacia um mar onde um homem ia pegar peixes para se ali- mentar. Colocava na água um “barco” (sím- bolo de continência ou de feminilidade) com um boneco pescando com uma vara peixes que às vezes se transformavam em monstros, representados por jacarés, e que devoravam o pescador. Com isso ele me demonstrava a sua dificuldade na aprendizagem, ora positi- vae repleta de satisfação e prazer, ora amea- çadora, destruindo a sua capacidade investi- gativa. Expressava também a sua capacidade de mergulho num inconsciente produtivo e com alimento para a sua sobrevivência e, num outro, devorador e destrutivo. No início de minha formação profis- sional era muito comum, num primeiro mo- mento, desprezar essas significações. O que é interessante é que a criança repete, repete e repete suas ações e manipulações com es- sas significações, até que, ao entendermos e conversarmos a respeito, ela muda o con- teúdo de seu discurso e o que é pior para os descréditos, ela melhora nas suas angús- tias ou sintomas. Essa mudança de discurso pode indicar que a carga emocional pode ser representada, expressa, logo, ela pode dar continuidade a outros assuntos. Ainda em relação aos lápis, comumen- te utilizamos uma caixa de 12 lápis de cor, de preferência com lápis branco. O uso de cores está relacionado ao afeto, portanto, seja em relação às tintas ou aos lápis de cor, devemos ter uma concepção do significado psicológico das cores, que abordarei mais adiante. Deve -se ter como fundamentação teórica das técnicas projetivas os estudos de Pfister (apud, Heiss, 1936) e Lourenção Van Kolck (1966; 1984), lembrando que o Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister faz a análise da estrutura de personalidade dos sujeitos mediante a estruturação colorida de pirâmides (Figura 8.2). A caixa lúdica também deve incluir uma casa, com cozinha, sala, quarto e ba- nheiro. Estes itens são importantes na com- posição da caixa e não podem faltar. Alguns psicoterapeutas dispõe a casinha completa para todos os clientes, outros colocam em saquinhos cada grupo de elementos, ou seja, a casinha é apresentada em saquinhos, com quarto, sala, cozinha e banheiro, mas sem estrutura. Entendo que a estrutura da casa não é necessária e pode comprometer a expressão, na medida em que se torna cole- tiva. Ou seja, a criança saberá que está dis- cutindo os seus problemas familiares com outras crianças, podendo haver dificuldades quando o psicoterapeuta torna público con- teúdos de relações familiares (Figura 8.3). Figura 8.2 Lápis de cor, indicado para a caixa lúdica. Figura 8.3 foto de uma casinha completa para a sala lúdica (Ligia Regina Marquart, 2006). INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 89 Figura 8.4 foto da cozinha da casinha, indicado para a caixa lúdica. Figura 8.5 foto da sala da casinha, indicado para a caixa lúdica. Na cozinha podem aparecer os conteú- dos associados à relação mãe/filho, típicos da fase oral. Quando a criança tem algum distúrbio alimentar, isto poderá aparecer na dramatização, por exemplo, da mãe ali- mentando o filho de maneira agressiva ou a criança passar a maioria da sessão drama- tizando situações de alimentação. Também podem se manifestar conteúdos relaciona- dos à maneira como a família se alimenta ou processa a energia para sobreviver; é uma alimentação saudável, prazerosa e que põe em movimento o relacionamento e a dinâ- mica familiar? (Figura 8.4). Os objetos da sala podem representar as relações sociais da criança, o contato dos membros de sua família entre si, a reunião do grupo ou o contato da família com o mundo externo (Figura 8.5). No quarto podem surgir conteúdos da relação homem/mulher, sexualidade, mas- turbação e o ato sexual em si, ou mesmo INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 90 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) algumas tendências ao isolamento ou à in- trospecção (Figura 8.6). No banheiro podemos encontrar con- teúdos relacionados à fase anal. Deve -se observar como a criança lida com as regras educacionais. A partir do momento que ela adquire controle sobre as fezes e a uri- na, passa -se a educá -la sobre onde ela irá colocá -los. Quando a criança dramatiza no ludodiagnóstico as situações de controle dos esfíncteres podemos verificar e analisar como a criança internaliza as regras a partir da educação recebida pelos pais e sua rela- ção com os esfíncteres (Figura 8.7). Geralmente, na entrevista com a mãe da criança, investigamos sobre o controle Figura 8.6 foto do quarto da casinha, indicado para a caixa lúdica. Figura 8.7 foto do banheiro da casinha, indicado para a caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 91 dos esfíncteres, quando perguntamos a ela sobre alimentação, sono, educação sexual; e a criança reproduz esses conteúdos na rela- ção com o brinquedo. A família de bonecos é composta ba- sicamente pela mãe, pai, avô, avó, menino, menina e bebê. Recomenda -se o uso de bo- necos articuláveis. Existem famílias que pos- suem, além desses elementos, uma mulher grávida, empregada, cachorro e gato. Na te- rapia os elementos da família são incluídos de acordo com o número de pessoas existen- tes na casa da criança (Figura 8.8). Os bonecos da família podem represen- tar as relações familiares e homem/mulher, e é importante que existam animais, porque estes estão associados com a parte instinti- va, permitindo observar -se a maneira como a família se aproxima de seu lado instinti- vo. Os animais domésticos estão associados à parte domesticada da personalidade da criança e podemos formar pares com eles. Já os selvagens relacionam -se à parte ins- tintiva da personalidade da criança. A cerca que envolve o conjunto dos animais pode estar relacionada ao superego e ao controle dos impulsos (Figura 8.9). Insisto que não é recomendado ofere- cer a uma criança com problemas cognitivos um porco verde ou uma vaca vermelha, por- que isso pode trazer prejuízos na avaliação psicológica, por não serem essas as cores desses animais, podendo gerar confusão no pensamento da criança (Figura 8.10). Em relação aos veículos oferecidos, o caminhão -cegonha pode ser associado ao nascimento, dá a ideia de que vai até a fábri- ca buscar o filho para entregar ao seu dono. O fato de esse caminhão transportar carros relaciona -o à mãe, que carrega seus filhos, ou ao terapeuta, que carrega a criança e a contém de seus impulsos ou conteúdos que a preocupam (Figura 8.11). Deve -se observar a relação estabeleci- da entre os carrinhos e o caminhão -cegonha. É comum a criança ficar enfiando os carri- nhos na parte de trás do caminhão, atitude relacionada à pesquisa do corpo da mãe, ao ato sexual, e se a criança permanecer na parte de trás pode -se pensar numa relação homossexual ou anal. A parte superior do caminhão pode estar associada à ponte, que pode significar masturbação. O carrinho comumente é um símbolo fálico, e o encontro entre carrinhos pode significar o ato sexual. Esta brincadeira é observada principalmente nos meninos. A bola ideal para se trabalhar é a que tem o tamanho entre 15 a 20 cm de diâme- tro. Ela pode representar no lúdico o substi- tuto do útero. Há crianças que a usam como substituto do corpo feminino. O chocalho é Figura 8.8 foto dos bonecos da família, indicado para a caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 92 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) visto no livro de Aberastury como o útero que contém os bebês dentro (Aberastuty, 1992, p.28) (Figura 8.12). Na caixa de estimulação de bebês é importante que haja uma bolinha pequena, porque ela pode representar o substituto do corpo da mãe. Em nossa cultura, a bola adquiriu di- versas representações e pode significar con- tato e troca, no sentido de dar para o outro e receber de volta. Jogar bola, porém, pode ter o sentido de pesquisa do corpo feminino e de encontro associado ao ato sexual, espe- cialmente no futebol. No futebol, a bola pode se tornar um símbolo fálico. Os jogadores a disputam e o objetivo é fazer gol, mas diante do gol está presente um representante do superego, o goleiro, para impedir que isso aconteça. Quando a bola entra no gol, ocorre a satis- fação dos jogadores, ou seja, a satisfação se- xual foi alcançada. Figura 8.9 Foto de animais selvagens, indicadopara a caixa lúdica. Figura 8.10 foto de animais domésticos, indicado para caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 93 A criança brinca para expressar e elabo- rar uma angústia, e cada criança buscará elaborar suas próprias vivências que serão expressas na escolha dos materiais lúdicos. O trabalho do terapeuta será decodificar essas dificuldades e tentar ajudá -la a superá -las. A escolha do brinquedo relaciona -se à necessidade de usar um instrumento que possibilite a expressão de emoções e afetos. Segundo Melanie Klein (1955), a escolha do brinquedo contribuirá para a elaboração da fantasia e da realidade da criança e de sua angústia referente à sua própria vivência. O brincar, portanto, está relacionado aos as- pectos inconscientes da criança e compete ao clínico investigar a sua expressão, muitas vezes facilitada pela interpretação de seus possíveis significados. A vontade de explorar os objetos é de- nominada por Melanie Klein (1955) “instin- to epistemofílico” (desejo de conhecer), e se a criança não brinca e não os explora é con- siderado um comportamento “doente”, sen- do que esse instinto e o conhecimento estão comprometidos. Aí entra o trabalho do psi- cólogo para ajudar a criança. Melaine Klein (1955) descreve em detalhes como uma criança que não “brincava” no início dos atendimentos vai melhorando com a possi- bilidade de expressão de suas angústias de exploração ao corpo materno expresso nas suas ações lúdicas com choque de carrinhos ou no andar dos carrinhos através de ruas. Klein demonstra como a interpretação do terapeuta em relação à escolha lúdica da criança pode ser feita. As coleções de objetos geralmente es- tão associadas às coisas de que gostamos e que não conseguimos elaborar. Com relação aos utensílios de cozinha, temos o fogão (que pode possuir vários significados), as panelas, potes e correlatos. As panelas podem signifi- car objetos continentes e podem estar asso- ciadas aos símbolos femininos (Figura 8.13). Quando a criança brinca de fazer co- mida, outros objetos estão aliados nesta brincadeira, como os talheres, que podem significar símbolos fálicos. Aí podemos ve- rificar o significado do encontro entre os Figura 8.12 Bola, indicado para a caixa lúdica. Figura 8.13 utensílios de cozinha, indicados para a caixa lúdica. Figura 8.11 Caminhão ‑cegonha, indicado para caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 94 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) símbolos masculino e feminino, que irá produzir um alimento (ou gerar um filho). Neste tipo de brincadeira aparecem conteú- dos sobre o nascimento dos bebês, além do tema alimentação corresponder à fase oral. Os potes que guardam alimentos também podem significar objetos que possuem con- teúdos femininos. O fogão pode estar associado à energia psíquica. É a parte energética da estrutura psíquica que mobilizará a transformação, em alguns casos, utilizado de forma destrutiva. O alimento que foi produzido a partir do co- zimento dramatizado pela criança pode ser um alimento bom ou um veneno, ou ainda, ao fazer o alimento pode ser dramatizada uma situação de explosão podendo signifi- car que a energia psíquica é destrutiva. Os elementos relacionados ao petró- leo, como, por exemplo, o posto de gasoli- na onde o carro é abastecido, podem estar relacionados com a energia transformada em ação, movimento. Tanto o botijão como a gasolina irão mobilizar as transformações ou colocar em ação os conteúdos psíquicos da criança. No caso de crianças hiperativas, observa -se que, na brincadeira com posto de gasolina, ocorre a explosão do mesmo. O escorredor de macarrão é um objeto que contém, mas está vazado; pode repre- sentar aquele que não contém as coisas. Um conteúdo simbólico feminino que não con- tém pode estar associado a vários fatores: significa a mãe que aborta, a menstruação ou a própria urina, que está relacionada à fase anal ou fálica. Pode representar um conteúdo simbólico feminino rompido, des- trutivo ou negativo. Nos jogos de construção nos quais a criança usa peças de montar, como Lego, os significados vão depender da sua produção, mas podem estar relacionados a símbolos fálicos ou ao ato sexual. Considerando que são duas ou mais peças que se unem e se transformam numa terceira podem repre- sentar a concepção, ou mesmo o nascimen- to de algo, ou seja, uma representação que corresponde a conteúdos da fase edípica. No entanto, esse encontro de duas ou mais peças de encaixe pode apenas significar a origem de um objeto destrutivo (fazer uma arma) ou construtivo (construir uma casa). O encontro entre o masculino e o femi- nino pode ser visto pela criança como sim- bolicamente violento. Geralmente os jogos de construção são indicados para se verificar a criatividade da criança, porque são peças separadas que po- dem ser transformadas em um objeto novo. Com eles pode -se verificar a capacidade da criança para estabelecer relações. Copiar um objeto está associado com a cópia de modelos. Geralmente a criança está incorporando, construindo um modelo. Isto é esperado até os 4 anos de idade. A partir dessa fase ela possuirá um modelo in- ternalizado, incorporado, portanto, novo. A fase de identificação é a que corres- ponde ao período entre 4 e 6 anos de idade, quando verificamos que ela quer copiar um modelo. Significa que a criança ainda não o possui ou possui modelos assustadores para ela, por isso apoia -se nos modelos externos. Ainda no jogo de construção, o terapeu- ta deve observar as construções que caem a partir de um determinado número de peças encaixadas, ou seja, a criança tenta encai- xar peças, mas elas desmontam. Isso pode estar relacionado a problemas da criança ou com algum fato ocorrido, por exemplo, pro- Figura 8.14 Lego, brinquedo de construção indicado para a caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 95 blemas com irmãos. Pode -se observar este fato quando este tipo de brincadeira começa a se repetir. Certa vez, uma criança passou várias sessões tentando encaixar ‘pinos má- gicos’ (um tipo de brinquedo de encaixe). Somente após umas cinco sessões observei que o encaixe se quebrava na quarta peça. Lembrei -me que a criança tinha um irmão, o quarto filho, que era deficiente mental e que dava muito trabalho à mãe. Passamos, eu e a criança, a conversar sobre esse irmão, com o qual a criança se identificava e temia ter os mesmos problemas que ele. Foi interes- sante que a partir desta conversa a criança finalmente conseguiu estruturar uma mon- tagem com os pinos. No manuseio de lápis, guaches, peças de montar e outros materiais coloridos po- demos encontrar significados também para o uso das cores. Segundo Pfister (apud Jus- tos e Van Kolck, 1976), as cores se dividem em primárias e secundárias. As primárias são azul, amarelo e vermelho. No uso das cores primárias, pode -se observar que a criança está em contato com os recursos primitivos de sua personalidade. As cores secundá- rias são aquelas mais refinadas, elaboradas com a mistura de duas ou mais tintas (por exemplo, laranja, verde e violeta), podendo significar que a criança utiliza os recursos amadurecidos de sua personalidade. Existem também as cores extratensivas ou intratensivas. As primeiras podem estar relacionadas à impulsividade e são repre- sentadas pelas cores amarelo e vermelho. As intratensivas podem estar associadas à depressão, aos impulsos sem controle e que precisam ser controlados, sendo representa- das pelas cores azul, marrom e preto. É importante haver a cor branca no con- junto dos lápis de cor, porque esta pode sig- nificar distanciamento, isolamento, ou seja, não representa agressividade nem afeto, é uma cor neutra, logo, pode estar relacionada ao mecanismo de defesa da negação do con- flito ou dos problemas que afetam a criança, típicos de uma personalidade neurótica, que além de encobrir negaos afetos. O preto pode representar a destruição ou mistura de todas as cores, pode estar re- lacionado à repressão dos afetos de conflitos não resolvidos, tristeza ou depressão. As cores frias, como azul, marrom, preto e roxo, estão relacionadas ao controle dos afetos. Por outro lado, o verde, com sua característica secundária, mistura de azul e amarelo, indica uma personalidade mais amadurecida em relação ao controle dos afetos, podendo estar relacionado à sociabi- lidade e à capacidade de contato, enquanto o azul, cor primária, pode indicar um con- trole obsessivo, no sentido de seguir normas aceitas de maneira ansiosa. Também temos que observar a escolha de cores primárias e secundárias e a ausên- cia ou excesso de cores. O excesso (acima de oito cores ou tons) pode indicar comporta- mentos maníacos ou histéricos, enquanto a ausência, com o uso simplesmente do lápis preto número 2 ou de apenas uma cor, pode indicar coartação ou pobreza de emoções, ou mesmo desajustamento social. Além dis- so, temos que estar atentos a crianças que estão passando por um processo de perda ou violência e demonstram estes aspectos através do uso de cores e traços leves, mes- mo com o lápis preto, os desenhos são quase imperceptíveis no papel. Na interpretação do uso das cores te- mos que verificar a disposição das cores ou a possível relação entre elas. Por exemplo, no desenho de uma figura humana mascu- lina verificamos que as cores utilizadas são as mesmas com as quais a criança desenhou um leão feroz. No desenho de uma casa, a criança pode fazer uma parede delineando- -a em azul e por dentro pintar com a cor amarela, podendo significar que o azul pode controlar o amarelo, ou seja, a cor intraten- siva controlando a extratensividade. O teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (1976) ilustra todas as nuances das significações das cores. É um teste no qual, através da escolha das cores, analisam -se aspectos da estrutura de personalidade da criança ou adulto. Neste teste pede -se para que se faça com as peças coloridas uma pirâ- mide bonita e outra feia. Embora não seja o caso de apresentar aqui o Teste das Pirâmi- des Coloridas de Pfister, o profissional pode INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 96 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) pesquisar, a partir de seu estudo, os signifi- cados das cores de maneira mais específica e relacioná -lo com traços da personalidade, por exemplo. Ao lidar com os guaches, é muito co- mum a mistura de cores, que está relacio- nada ao significado da mistura das relações em geral, entre terapeuta e criança ou os seus relacionamentos pessoais. É comum, principalmente no início de uma relação, como é o caso da situação ludodiagnóstica, a criança perguntar: “O que vai dar mistu- rando essa cor com essa?”. Em geral, essa pergunta pode ser entendida como: “No que vai dar a minha relação com você? O que será que vai acontecer comigo neste contex- to terapêutico?”. As misturas indiscriminadas podem es- tar relacionadas à fase de manipulação, daí ser comum o sujar das crianças, típico de manifestações anais, enquanto a superpo- sição de cores pode estar relacionada a es- conder algum padrão de comportamento. É comum, nestes casos, o uso do branco para esse encobrimento de sentimentos. Na utilização de lápis ou guaches, as interpretações estão comumente associadas a desenhos e nesse processo uma bibliogra- fia enorme deve ser considerada, pois o de- senho livre, nas técnicas projetivas, tem um capítulo muito relevante e de pesquisa e é muito comum no ludodiagnóstico a criança se expressar através do desenho, logo, as interpretações estudadas nas técnicas proje- tivas gráficas devem ser consideradas pelo terapeuta, mas não vamos aqui nos aprofun- dar. Considero este capítulo da Psicologia muito complexo, por isso devemos conside- rar a evolução do desenvolvimento infantil da criança, além do aspecto evolutivo do uso das cores. Não vou me estender neste as- sunto, pois a bibliografia é vasta, mas sugiro como livro básico, além de Hammer (1989), Di Leo (1985) e Luquet (1979), do ponto de vista teórico afetivo, que, juntamente com os pressupostos do surgimento do desenho de Piaget e Inhelder (1982), fornecem uma visão da representação gráfica da criança. A criança desenha o que suas estruturas men- tais permitem. Além disso, segundo esses autores, a criança inspira -se não no modelo objetivo, mas na conjunção da sua imagem interna com a do modelo externo. O telefone pode significar querer o contato com o outro, contar as coisas a dis- tância, sem proximidade. A antena também pode ser vista como busca de contato. Com relação aos utensílios de jardi- nagem (se forem colocados na caixa), as ferramentas podem significar instrumentos fálicos que penetram na terra (pátria -mãe), e seu objetivo é torná -la mais fértil. A bandeira é a pátria -mãe, podendo estar relacionada aos conteúdos femininos ou à identidade do feminino. O avião é considerado um símbolo fá- lico, mas também pode estar associado ao destacamento da realidade, à onipotência. Como símbolo fálico está em busca de des- cobertas. Por ser um instrumento de trans- porte, pode ser usado para o conhecimen- to, conhecimento de outros países, ou seja, pode estar relacionado ao conhecimento de outras pátrias, outros símbolos femininos (Figura 8.15). Observa -se no desenho das crianças que algumas fazem os aviões atirando de cima. Isto pode significar pensamentos des- trutivos que atacam o contato com a reali- dade, fantasias destrutivas. Geralmente nos desenhos das meninas nota -se que elas colo- Figura 8.15 Avião, indicado para a caixa lúdica. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 97 cam diversas borboletas e pássaros, signifi- cando que a criança possui muitas fantasias, nas quais os pensamentos estão confusos. Tudo que representa movimento pode relacionar -se à masturbação, como brincar no escorregador, que pode significar querer mexer com o corpo, ou o vaivém insistente de um caminho. Tanto o mar quanto a água podem significar um mergulho no inconsciente. O barquinho representa o contato com a rea- lidade e o ego. Por exemplo, um pescador com uma vara de pescar que por sua vez está embaixo d’água, vai buscar alimento (no inconsciente), e às vezes existem alguns monstros lá embaixo, o que pode significar um inconsciente assustador. A água ou o mar podem representar aspectos primários associados ao líquido amniótico, ou seja, ao útero. Daí associarmos a água ou o mar ao desejo de contato com aspectos primários inconscientes. O barquinho que fica com o pescador na parte de cima pode represen- tar aquele que no contato com a realidade procura alimentar -se buscando o alimento inconsciente que necessita no contato com a realidade. O material gráfico pode significar que a criança entrou no período de latência, en- quanto a utilização do material lúdico cor- responde a uma fase pré -operacional, com a expressão de seus respectivos mitos infantis, o artificialismo ou animismo, onde o “pré- -conceito” tem o seu domínio. Na latência, os comportamentos má- gico -fenomenistas são substituídos por comportamentos racionais, e os conceitos ganham maior status no pensamento da criança, por isso costumamos dizer que a criança evita o afeto. O correto neste caso é dizer que a ordem dos afetos adquire um novo patamar, de maior controle e de ex- plicações racionais, de acordo com o real externo. É claro que se trata de um desen- volvimento afetivo que não deixou de existir para a criança, mesmo ela se encontrando na fase de latência. É segundo esse interjogo do desenvolvimento afetivo e cognitivo que pode ser interpretado o significado do uso dos lápis. Quanto menor for a criança, mais se verifica o uso de representações primitivas, logo, um lápis pode aparecer como símbolo fálico. Por outro lado, o lápis preto número 2 pode ser um indicativo de que a criança adquiriu o controledos afetos, estando asso- ciado ao desenvolvimento do superego. No período de latência, a criança ten- ta evitar ou controlar o afeto, sendo que al- gumas só desenham com lápis preto número 2, o que significa um problema, e ela pode estar demonstrando que não suporta lidar com a afetividade. No entanto, um ou ou- tro desenho só com lápis preto número 2 é esperado para esta fase, pois isso corres- ponde a evitar as relações afetivas direta- mente. O que se costuma considerar como uma estrutura de personalidade sadia no período de latência é quando a criança faz o desenho com lápis preto número 2 e em seguida o colore com os lápis de cor. A borracha pode estar associada à re- paração, mas seu uso em excesso pode sig- nificar que a criança é exigente, possui uma autocrítica exagerada e autoestima rebaixa- da, porque ao começar a produção apaga -a sucessivas vezes. O apontador pode ser um símbolo que pode estar associado à vagina dentada, ou seja, é aquele que destrói o símbolo fálico, no caso, o lápis. Os meninos costumam mais frequentemente usar o apontador para ter ponta grande, ou seja, dar ênfase ao sím- bolo fálico. Os pincéis podem ser utilizados como símbolo fálico, mas geralmente são usados em algumas produções de desenho, assim como o lápis. Para a criança, desenhar significa co- locar o seu produto no papel, sendo a folha o local onde ela registra suas produções. O pincel associado ao guache pode produzir uma pintura com aparência de “meleca”. O guache, assim como a massinha, pode de- monstrar conteúdos ligados à fase anal (Fi- gura 8.16). As produções de letras pequenas sig- nificam crianças inibidas, e o contrário dis- so é observado nos traços de crianças que não respeitam os limites das linhas, o que INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 98 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) denota dificuldade na fase anal, pois ainda não houve a elaboração do controle. Cader- no sujo e marcado significa ansiedade, com traços claros de que a criança está se distan- ciando do contato com a realidade, quer se desligar. Usar uma folha de papel sulfite pode significar a expressão do não eu, a partir do momento em que a criança pode deixar suas marcas. Significa que ela está começando a desenvolver o processo de diferenciação eu/ não eu. Com isso a criança expressa e or- ganiza sua identidade ao realizar desenhos estruturados. A folha de sulfite pode estar associa- da a significações das relações simbióticas, o que pode ser verificado nos casos em que a criança molha o pincel na água e pinta na folha dizendo que essa produção é um fan- tasma. O processo simbiótico é a relação com a mãe, na qual o bebê não percebe o que acontece fora dele, entrando em estado con- fusional, não discriminando o que é seu ou do outro. Neste caso, a água que não discri- mina, que se mistura com o sulfite, delimita um vazio. A tesoura pode ajudar na elaboração da simbiose, quando a criança faz um recor- te, destaca um pedaço da folha e cola -o em outro local. A colagem pode significar uma elaboração do processo simbiótico, espera- da em crianças a partir dos 8 anos de idade. A tesoura pode ser utilizada para elaborar, manifestar a agressividade, podendo estar relacionada à fase anal. Portanto, novamen- te nos deparamos com as possíveis signifi- cações de expressão ao utilizar um mesmo instrumento. O barbante pode representar prima- riamente o cordão umbilical, mas pode ser utilizado também para unir. Quando usado em colagem pode estar ligado ao processo de identificação, de diferenciação do eu. É a criança que, em suas produções, coloca contornos com o barbante nos desenhos, expressando a preocupação em demarcar território ou delimitar um processo de iden- tificação. A cola e a fita adesiva podem estar as- sociadas à união. A cola é vista como um elemento de reparação. Existem crianças que em suas brincadeiras usam a cola como “leite envenenado”. Isto ocorre quando a criança diz: “Eu vou fazer leitinho”, começa usando o guache branco, passando para a cola e dizendo: “Eu vou dar para o bebê”. O terapeuta deve observar no que se transforma a “comida” ou “leite”. Se a crian- ça misturar alguma substância preta, ficará um “leite estranho”; se for usada a cor ama- rela, pode passar a ser “xixi”, e ela poderá até sentir seu cheiro, mergulhando no pro- cesso primário, nos seus impulsos. As folhas coloridas estão relacionadas ao afeto. O terapeuta deve ficar atento ao que a criança irá produzir com elas, se são produções ligadas à identidade. É importan- te oferecer a ela as cores primárias, o branco e o preto. A quEM SE DESTinA O PROCEDiMEnTO LuDODiAgnóSTiCO Aberastury (1962), a partir de Klein, sugere que o procedimento ludodiagnóstico pode ser utilizado em crianças que conquistaram a capacidade simbólica, por volta dos 2 anos. Outros a utilizam em contextos mais primá- rios de expressão, ou seja, com bebês. Muitos ainda questionam se num contexto lúdico a criança tem a capacidade de apresentar suas angústias ou sua problemática ao examina- dor, mas as pesquisas têm demonstrado que este questionamento está mais relacionado com o desconhecimento, manejo técnico ou acesso ao desenvolvimento da criança. Nesse aspecto, as fundamentações teó- ricas são infindáveis, sejam elas do âmbito psicanalítico ou não. Somente no âmbito psicanalítico temos quase um século de pes- quisas, se considerarmos apenas a partir de Klein (1921). Em outras abordagens, encon- traremos Arfouilloux (1976), Greenspan e Greenspan (1993), etc. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 99 É claro que a problemática da criança pode parecer algo complexo para ser expres- so e compreendido, mas muitas vezes a do adulto também o é. A criança poder expres- sar, por exemplo, que está com dificuldades com a mãe, pois esta não permite que se re- lacione com os amigos, familiares ou o pró- prio pai. Muitas vezes essa expressão pode ser mais difícil em contextos que envolvem separações judiciais do que em um contex- to meramente de dificuldade no desenvolvi- mento emocional edípico. A grande questão é se a criança pode ser sujeito ou tem o poder de expressar suas vivências e a partir de que idade ela teria este poder de expressão. Com base nas teorias sobre o desen- volvimento infantil, pode -se dizer que apro- ximadamente a partir dos 2 anos a criança já tem a capacidade simbólica de poder ex- pressar as suas vivências. O que é preciso considerar no desenvolvimento para se ter certeza de que os dados obtidos podem ser considerados como a expressão de sua difi- culdade, sem termos o compromisso com as abordagens psicanalíticas ou crenças subje- tivas? É este saber sobre o processo evoluti- vo infantil, que pressupõe não só o domínio do manejo técnico, mas, principalmente, a condição do pesquisador sobre o desenvol- vimento humano no seu sentido amplo. REFERênCiAS Aberastury, A. 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INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS Parte III Análise do ludodiagnóstico INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS O termo “sintoma” diz respeito a um fe- nômeno que revela uma perturbação fun- cional ou algum tipo de lesão; qualquer mudança provocada no organismo por uma doença e que, descrita pelo paciente, auxi- lia, em grau maior ou menor, a estabelecer um diagnóstico; também diz respeito à apa- rência ou semelhança com algo, entre ou- tras definições. Na ciência psicológica, o estudo dos sintomas está mais relacionado a um refe- rencial psicopatológico, comumente oriun- do da medicina. No âmbito dos transtor- nos mentais, essa definição ganha maior complexidade. Segundo Kaplan e Sadock (1999), os sintomas representam variações de diferentes graus de um continuum entre saúde mental e psicopatologia. Note -se que teríamos que considerar as variações entre o que é normal e o que é patológico e, con- sequentemente, os julgamentos circunstan- ciais determinados pela cultura, pela socie- dade, pelos costumes, por uma família ou por um indivíduo. Portanto, dependendo do momento, pode -se diferir na determinação dos limites da variabilidade da saúde e da doença, fazendo com que, dependendo do ambiente, um comportamento pareça sinto- mático ou não. Poderíamos considerar algo como sin- toma quando os limites da variabilidade normal são ultrapassados, mas entraríamos na discussão do que é normal: normal em oposição a doente; normal como média es- tatística, confundindo o anormal com ano- malia; normal como ideal a realizar -se ou como processo dinâmico de adaptação que reencontra seu equilíbrio. Sem entrar na discussão do que é nor- mal, quero salientar que o referencial da saúde e do desenvolvimento humano estão presentes em meus diagnósticos, portanto, ao me referir ao diagnóstico de determina- dos sintomas, quero dizer que, diante de uma queixa ou sintoma descrito pelo clien- te, considero tanto os fenômenos psicofi- siológicos, passíveis de observação direta, de comprovação experimental e de análise quantitativa, com suas explicações causais, quanto os fenômenos psicológicos propria- mente ditos, manifestos ou não, mas que podem ser abordáveis por meio de métodos compreensíveis. A conjunção desses dois pressupostos parece ser o referencial mais utilizado atual- mente, em especial no campo da psiquiatria, com os diferentes eixos axiais do DSM -IV TR, no qual, além dos fatores orgânicos, os sintomas são identificados em transtornos analisados sob o enfoque global do desen- volvimento, bem como das influências psi- cossociais e ambientais. Marcelli (1998) considera que, no es- tudo das condutas e do equilíbrio psicoafeti- vo de uma criança, o normal e o patológico não devem ser considerados como dois es- tados distintos um do outro, nem uma fron- teira. O autor considera os dois termos in- 9 O sintoma no diagnóstico infantil rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 103 dissociáveis, pertencentes a um mesmo par antitético, onde um não pode se definir sem o outro. Acrescenta que o desenvolvimento e/ou a maturação da criança são, por si sós, fontes de conflitos, e como qualquer conflito podem levar ao aparecimento de sintomas, assim, os respectivos campos do normal e do patológico interpenetram -se. A partir dessa perspectiva teórica com- preensiva dos fenômenos expressos nos sin- tomas, meu objetivo não é compreender os quadros clínicos nosológicos segundo um único referencial, e sim sob vários: orgâni- co, descritivo, ambiental, diferencial, psico- dinâmico, preventivo, pois acredito que tal procedimento possibilita, inclusive, a espe- cificação dos sintomas ou entendimento das causas dos mesmos. Por exemplo, se esco- lhemos um único referencial de um sintoma psicossomático limitamos, inclusive, a possi- bilidade de descobrir que aquele sintoma é produto de algum comportamento cognitivo ou social. Segundo Popper (1991), para a com- preensão da doença mental há três campos: o campo físico, da área da biologia e da quí- mica, o campo das experiências psicológicas conscientes e inconscientes e o campo da linguagem e das teorias das argumentações. A atuação do psicólogo diz respeito aos dois últimos campos, sem, no entanto, deixar de levar em conta a relação corpo/mente. As- sim, a leitura do fenômeno está baseada nas informações do cliente, captadas pela leitu- ra do desenvolvimento ou da psicopatolo- gia, embasadas nas vivências e nas queixas do cliente. Em adição a essa perspectiva, atua- mos no campo da linguagem, no campo das representações do cliente, que podem não ter qualquer relação com o fenômeno, pois dizem respeito ao especificamente particu- lar daquele sujeito, ao seu sofrimento rela- cional, podendo ou não se tornar um dos elementos de compreensão da essência do sintoma ou queixa. O estudo do sintoma contempla uma complexidade que vai além do que é normal e patológico e que ultrapassa a escolha de referenciais teóricos, requerendo por parte do profissional necessariamente um con- junto de investigações e cuidados especiais para a sua análise e compreensão. A utiliza- ção do raciocínio clínico pelo psicoterapeuta pressupõe inferências clínicas complexas, e ele pode optar, dependendo do caso, entre duas, três ou mais relações causais, ou me- lhor, inferenciais. Além disso, essas concepções em rela- ção ao sintoma do cliente infantil são por demais fundamentais e muito mais especí- ficas, pois geralmente somos solicitados a examinar crianças que na maioria das vezes nada pedem, ou seja, não têm elas mesmas uma queixa, e são colocadas numa situação em que devem eliminar uma conduta, que, por sua vez, é julgada pela família ou pelo ambiente em geral. Portanto, os critérios de investigação devem extrapolar a avaliação da conduta que motivou o pedido, não de- vendo o terapeuta se apressar numa decodi- ficação sintomática. A avaliação e compreensão de um sin- toma tem sua relação com o termo diagnós- tico, que contempla uma bagagem signifi- cativa de fundamentos teóricos e técnicos. Quero ressaltar que essa compreensão do fenômeno envolve também uma necessida- de diagnóstica, considerando que o contexto no qual atuamos exige tal demanda. Um pai ou uma mãe que tem um filho em sofrimen- to quer uma ajuda, queruma solução para o problema, e a nós compete uma avaliação ou compreensão diagnóstica. O termo diagnóstico, de origem grega, significa reconhecimento (Ferreira, 1986). No caso da investigação de um sintoma ou queixa, trata -se do reconhecimento de um fenômeno ou de uma patologia em um indi- víduo supostamente em sofrimento, incapa- citado ou em estado de risco, em conflito ou não com o seu ambiente. Em crianças, o diagnóstico do sintoma é ainda mais difícil, considerando que elas se encontram em pleno estado de desenvol- vimento, logo o reconhecimento de um sin- toma patológico torna -se complexo. Alguns preferem, inclusive, a utilização do reconhe- cimento ou de diagnósticos de dificuldades ou de distúrbios do desenvolvimento, como INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 104 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) se esses termos diminuíssem o grau de pato- logia encontrado numa criança (Grunspun, 2003). O importante nesse aspecto é nova- mente o caráter compreensivo do diagnósti- co, na medida em que não basta o profissio- nal analisar o histórico do desenvolvimento da criança e do sintoma. É preciso também estudar as condições externas, sejam edu- cacionais, culturais ou sociais, que possibi- litaram o aparecimento do sintoma, preven- do ou tentando prever o curso do mesmo. Trata -se, portanto, da identificação de um distúrbio ou de um desvio, que, necessaria- mente, coloca o profissional num contexto preventivo em relação ao desenvolvimento em análise. Assim, não é por coincidência que encontramos na literatura sobre o diag- nóstico infantil capítulos abordando os vá- rios aspectos do desenvolvimento da crian- ça: afetivo, cognitivo, motor, do processo de escolarização, das suas relações sociais e fa- miliares e, em sequência, sobre os processos psicopatológicos ou causadores dos desvios desse mesmo desenvolvimento. O diagnóstico dos sintomas infantis faz parte da análise de um sujeito em cons- trução, logo, de um processo de compreen- são segundo uma visão interacionista, na qual se analisa o funcionamento da estru- tura mental e as condições necessárias para desenvolvê -la. Portanto, a análise de um sintoma pressupõe inferências clínicas com esses vá- rios referenciais teóricos sobre o desenvolvi- mento da criança, e a pesquisa pelo clínico sobre as suas inter e intrarrelações é muito comum, na medida em que tanto a ela como aos pais do cliente se colocam questões diag- nósticas. Por exemplo: de que maneira os problemas afetivos não permitem que meu filho aprenda? Será preguiça? Ele ainda não aprendeu, logo precisa de umas aulas parti- culares? Há algum problema genético? A di- ficuldade pode estar no processamento das informações? O problema de meu filho tem a ver com alguma conduta inadequada que eu tenho, como pai? Segundo essa perspectiva, é muito co- mum nos perguntarmos sobre as relações entre afeto e cognição no estudo dos sin- tomas, já apontadas por vários estudiosos da psicologia e da epistemogogia genética, como Ajuriaguerra (1963), Kerr -Corrêa e Sonenreich (1988), Anthony (1966), Fer- nandes (1982), Delahanthy e Peres (1994), Seibert (2003) e Silva Altenfelder (2005). Nesse aspecto, vale a pena retomar o que já afirmei em 1994 em minha tese: afeto e cog- nição estão imbricados nas vivências do ser humano, e só por um processo de abstração podem ser analisados separadamente. No entanto, do ponto de vista teórico, é difícil unir esses dois aspectos, e nenhuma teoria conseguiu realizar tal proeza. A ver- dade é que sabemos que afeto e cognição estão imbricados, mas não sabemos como nem por quê. Piaget refere -se à afetividade como aspecto energético e móvel do com- portamento, quase nada mais além disso. Em Freud, a lógica aparece sobretudo na racionalização, embora este nos fale da ori- gem da predicação e do juízo em seu famoso trabalho A negação (1925). Se levarmos em conta a obra de Freud (sem falar nas de seus sucessores), devere- mos reconhecer que Piaget deu importância muito pequena ao fator afetivo ao respon- der como é possível ao ser humano alcançar o conhecimento do mundo. Entretanto, ao considerar a obra de Piaget, devemos re- conhecer que Freud falou pouco ou quase nada a respeito do processo de cognição que permitiu a ele mesmo levantar hipóteses, fa- zer analogias e constituir um universo de virtualidades referentes a um sujeito univer- sal, ainda que aplicável ao sujeito psicológi- co analisado no setting, aqui e agora. Afeto e cognição estão imbricados. Como? É preciso pesquisar. Uma das linhas de pesquisa do Laboratório de Epistemolo- gia Genética da Universidade de São Paulo dedica -se a esse estudo, sob a responsabi- lidade de Zélia Ramozzi -Chiarottino, ino- vadora nas pesquisas sobre as estruturas mentais que norteiam o processo de repre- sentação do ser humano nos vários contex- tos sociais. Portanto, o pressuposto teórico deste trabalho a respeito da importância das construções espaço -temporais e causais na INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 105 organização da experiência vivida está em- basado em décadas de pesquisas que têm buscado, ao que parece, com bastante su- cesso, comprovar hipóteses relevantes para este estudo. Assim, os dados que temos coletado indicam, com segurança, que a organização do que se passou e de tudo que se pode es- perar supõe as relações espaço -temporais e causais, ou seja, uma construção adequada do real. Portanto, as crianças que não cons- truíram essas noções representam caotica- mente o mundo. As pesquisas têm demons- trado que essa representação caótica, deter- minada pelo comprometimento da constru- ção adequada dessas noções, pode originar medos, ansiedades e sentimentos de culpa. Assim, chegamos ao presumível elo entre afetividade e cognição. E qual é o conceito de real? “É o mundo dos objetos e dos acontecimentos, estrutura- do pela criança graças à aplicação (a este mundo) de seus esquemas de ação. É por intermédio desses esquemas que a criança entende as propriedades dos objetos, as re- gularidades da natureza e o alcance ou os li- mites de suas ações no seu mundo (ou seja, um mundo no qual ela age). É graças à ação que exerce sobre o meio que a criança se insere no espaço e no tempo e percebe as relações causais. Sem essa organização, a representação do mundo não será adequada (Ramozzi -Chiarottino, 1984, p. 75). No contexto do ludodiagnóstico ou da Psicologia Clínica e Social as contribuições da Dra. Zélia Ramzzi -Chiarottino vêm sen- do demonstradas em suas pesquisas e orien- tações. Em algumas dessas contribuições es- clarecemos e investigamos a possibilidade de compreensão de conceitos utilizados pelo clínico. Por exemplo: Quando Klein (1926, 1929) menciona que a fantasia e a personifi- cação são a base para a capacidade de trans- ferência infantil, nossa proposta é a de que devemos considerar estes aspectos do ponto de vista da construção simbólica piagetia- na, tal como o conceito de Real (Ramozzi- -Chiarottino, 1984, p. 75). A capacidade de atribuir papéis pressupõe o desenvolvimen- to de uma dessas etapas do funcionamento mental. A atribuição de um papel ao outro supõe uma distinção eu/não eu e que nem sempre encontramos nas brincadeiras das crianças num contexto lúdodiagnóstico. Atri- buir um papel ao outro pressupõe a estrutu- ração de um “eu” que possa “enxergar” esse outro ou ao menos idealizá -lo, diferente de si mesmo. Queremos ressaltar que o termo “fantasia” pressupõe o desenvolvimento do aparelho mental. Posso utilizar a terminolo- gia psicanalítica de pseudofantasias, proto- fantasias, ou, no sentido piagetiano, quadros sensoriais. Portanto, uma criança que não brinca num ludodiagnóstico é por que está sob uma grande inibição de suas fantasias ou por que não tem ainda esta capacidade simbólica para expressá -las? É essa a tarefa do pesquisador, formular perguntas diante da observação lúdica. REFERênCiAS Ajuriaguerra, J. (1963). Organizationpsychologique et troubles du développement du language: Étude d’un groupe d’enfants dysphasiques. Symposium de l’Association de Psychologie Scientifique de Langue Françoise: Problèmes de psycholinguistique, 109-142. Anthony, E. J. (1966). Piaget et clinicien. In: J. Pia- get, Psychologie et épistemologie génétiques: Thèmes piagetiens (pp. 338-352). Paris: Dunod. Delahanty, G., & Perrés, J. (1994). Piaget y el psicanálisis. México: Universidad Autônoma Me- tropolitana. Fernandes, M. I. A. (1982). Algumas hipóteses a respeito do papel do elemento racional no processo terapêutico. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo. Ferreira, A. B. H. (1986). 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INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS A análise do ludodiagnóstico vai depen- der da abordagem teórica do examinador ou dos objetivos para os quais foi utilizada. Caso tenha sido utilizada como rapport, a análise vai ser voltada para o estabeleci- mento do vínculo. Caso sua utilização seja para avaliação psicológica ou para o estabe- lecimento e escolha de testes, a observação será dirigida para a análise do desenvolvi- mento motor, afetivo, cognitivo ou social. Por exemplo, para verificar se o problema é motor é necessário observar como a criança utiliza os materiais, se é destra, se os mate- riais caem, se os movimentos são irruptivos, hipotônicos, hipercinéticos, etc. Outros pro- fissionais estabelecem, inclusive, análises de categorias de comportamento apoiados nas várias teorias de desenvolvimento, como por exemplo, Greenspan e Greenspan (1993). Kornblit (1976) dá ênfase à observação da sequência da interação lúdica e, entre ou- tros, sugere a identificação do momento ini- cial, do de máxima expressão lúdica, bem como do final da hora lúdica, considerando a interação em subsistemas, nos quais po- dem variar a quantidade de material utili- zado e o tipo. Aberastury (1962), ao contrário, pro- põe uma análise em que o sintoma é consi- derado no todo da sessão, verificando a sua gênese, as angústias que o desencadeiam e as fantasias de cura imaginadas. Tardivo (1985; 1997), baseado nas pesquisas de Trinca (1983; 1987) sobre o método com- preensivo, formulou uma organização de categorias que foram, por sua vez, aplicadas por Menichetti (2003) à observação lúdica, sugerindo a análise de atitudes básicas do sujeito diante da tarefa lúdica (aceitação, oposição, insegurança, identificação positiva ou negativa); identificação das figuras sig- nificativas (figura materna; paterna; frater- na); os sentimentos expressos (derivados do instinto de vida, os derivados do instinto de morte e os derivados dos conflitos); identi- ficação das tendências e desejos (regressão, necessidade de proteção, destruição ou de construção); identificação das ansiedades e dos mecanismos de defesa. Efron (1976), por outro lado, é a mais utilizada como referencial teórico -técnico no ensino da técnica ludodiagnóstica. Pro- põe para a análise oito indicadores, lem- brando que não há um roteiro padronizado, portanto, tais indicadores contribuem para uma sistematização apenas para orientar a análise com fins diagnósticos e prognósti- cos, orientados para uma classificação di- 10 A análise do procedimento ludodiagnóstico segundo o referencial teórico psicanalítico rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 108 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) nâmica do funcionamento da personalidade da criança: a) Escolha de brinquedos: está relacionada com o momento evolutivo afetivo e cog- nitivo em que se encontra a criança, logo os brinquedos ou brincadeiras devem ser analisados segundo esse ponto de vista evolutivo, classificando as condutas lúdi- cas conforme as idades correspondentes aos diferentes referenciais da psicologia do desenvolvimento. Soifer (1992) apro- fundou este aspecto, identificando, ba- seado nas fases libidinais (oral, anal, fá- lica e genital) as condutas lúdicas numa sessão. b) Modalidade de brinquedo: cada criança estrutura uma modalidade de brinque- do, baseada nas formas de manifestação simbólica de seu ego e de seus traços de funcionamento psíquico, podendo se expressar de uma maneira organizada, com uma sequência lógica, ou, ao con- trário, limitada em seus recursos egoicos de expressão, podendo apresentar desde uma rigidez expressiva até uma comple- ta ausência de resposta afetiva, observa- da principalmente nos comportamentos estereotipados ou perseverativos. c) Psicomotricidade: além dos conhecimen- tos essenciais da psicologia evolutiva, pa- rece que o profissional deve ter também alguns conhecimentos básicos de neuro- logia, fisiologia e psicomotricidade, para que possa identificar nas condutas moto- ras a adequação evolutiva da criança. d) Personificação: consiste na capacidade da criança para assumir e desempenhar papéis no brinquedo, elemento muito co- mum no processo evolutivo, através do qual a criança pode transformar os brin- quedos ou a si mesma em personagens, imaginários ou não, de acordo com a sua faixa etária, expressando os afetos, tipos de relações ou de conflitos correspon- dentes a essas idades, em sintonia com a sua realidade vivida ou imaginada. e) Criatividade: manifesta -se quando a crian ça transforma ou constrói um novo objeto, demonstrando a sua capacidade de relacionar elementos novos, de mani- pular o ambiente, resultando em novas ideias, formas ou relações. f) Capacidade simbólica: é a expressão lú- dica da criança. Essa capacidade, por sua vez, pressupõe níveis evolutivos. Po demos verificar em que medida os conteúdos conflitivos estão expressos se- gundo a idade evolutiva da criança e se os mesmos permitem a identificação do momento psicossexual da criança, por exemplo, se a criança está regredida ou fixada em um dado estágio. Além disso, verificamos se através da expressão lúdi- ca a criança expõe suas angústias, como lida com as suas dificuldades e o que es- pera do atendimento. g) Tolerância à frustração: é a aceitação ou não dos limites do contexto lúdico, da finalização da tarefa,do enfrentamento de possíveis dificuldades na atividade. h) Adequação à realidade: está relacio- nada com o indicador anterior e inclui as possibilidades de adequar -se à tare- fa, separar -se ou não dos responsáveis, compreender o contrato e as instruções, colocar -se no seu papel, compreenden- do ou não o papel do outro. Relaciona- -se ainda com a maneira como a criança inicia a tarefa e o tempo necessário para adaptar -se à mesma. Safra (1993) lembra que o estudo do fenômeno psíquico se relaciona com o psi- quismo do investigador, o que pode facilitar ou ocultar a sua elucidação. Portanto, ape- sar das várias tentativas de sistematização da técnica, trata -se de um instrumento pro- jetivo e como tal a pesquisa deve também considerar o pesquisador, mas este seria um outro capítulo envolvendo o método clínico. É importante mencionar que a arte da análi- se da técnica lúdica pressupõe sempre saber o que se investiga, com base ao menos no domínio de uma teoria, mas ao mesmo tem- po exige do pesquisador estar aberto para novas descobertas, independentemente da heresia teórica que possa cometer. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 109 REFERênCiAS Aberastury, A. (1978). Teoria y técnica del psicoana lisis de niños (6. ed.). Buenos Aires: Paidós. (Obra originalmente publicada em 1962). Efron, A. M. (1976). La hora de juego diagnóstica. In: M. L. S. Ocampo, & M. E. G. Arzeno, Las técnicas proyectivas y el processo psicodiagnóstico (4. ed., vol. 1, pp. 195-221). Buenos Aires: Nueva Visión. Greenspan, S. I., & Greenspan, N. T. (1993). Entre vista clínica com crianças. Porto Alegre: Artmed. Kornblit, A. (1976). Hacia um modelo estructural de la hora de juego diagnóstica. In: M. L. S. Ocam- po, & M. E. G. Arzeno, Las técnicas proyectivas y el processo psicodiagnóstico (4. ed., vol. 1). Buenos Aires: Nueva Visión. Menichetti, D. (2003). A observação lúdica e o psico diagnóstico compreensivo: Aplicações do referencial de análise do procedimento de desenhos estórias. Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo. Safra, G. (1993). O uso de material clínico na pes- quisa psicanalítica. In: M. E. L. Silva, Investigação e psicanálise. Campinas: Papirus. Soifer, R. (1992). Psiquiatria infantil operativa: Psicologia evolutiva e psicopatológica. (3. ed.). 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Ela frequentava o primeiro ano do ensino fundamental e o nível socioeconômi- co familiar era classe baixa. queixa A mãe procurou a clínica por solicitação da escola, pois a menina apresentava dificul- dades de aprendizagem e comportamento agitado no ambiente escolar. Além disso, a mãe relatou que Berenice não obedecia às suas ordens, corria o tempo todo, era mal- criada, respondona e só falava gritando, comportando -se de maneira oposta à da irmã. Berenice tem uma irmã gêmea a quem daremos o nome de Bárbara. Síntese da anamnese A mãe não se lembrava de quando esse com- portamento havia começado, mas afirmava que até uns 3 anos de idade Berenice era um amor, calma e apresentava -se como uma criança normal. Atualmente, quando contrariada, colo- cava os dedos na boca. A mãe relatou que quando a criança apresentava esse com- portamento não conseguia ter paciência, começava a gritar com ela e às vezes batia nela. Aos 5 anos de idade, a mãe levou -a a uma psicóloga, a pedido da escola, e esta orientou -a a conversar mais com Berenice, mas sem deixar de colocar limites. Na épo- ca, a mãe admitiu que não sabia dizer “não” para suas filhas. A mãe relatou que a psicóloga enca- minhara Berenice ao neurologista e ao fo- noaudiólogo, pois a menina apresentava dificuldades para decifrar as cores, contar os números e acompanhar as atividades na escola. O exame neurológico demonstrou atividade irritativa generalizada, o que jus- tificava a sua agitação. Segundo a mãe, o neurologista receitou um medicamento para que Berenice pudesse ficar “mais calma, me- nos elétrica e agitada”. Na escola, a diretora propôs que a menina mudasse de sala, pois não estava conseguindo acompanhar as atividades da turma. Na época a mãe concordara com a sugestão, mas Berenice reclamava por não ter atividades para fazer e só ficar brincan- do com massinha. A mãe constantemente comparava Berenice com a irmã, dizendo: “A irmã faz tudo direitinho, os brinquedos 11 Casos clínicos rosA mAriA LoPes Affonso INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 111 são arrumadinhos, enquanto a ‘outra’ aca- ba mais rápido com as bonecas, são todas riscadas, sem braços. As roupas e os sapatos acabam primeiro que os da irmã”. A mãe fazia esse tipo de comparação na frente de Berenice, mas dizia que esta não demons- trava ligar para as comparações. Afirmava não aguentar mais o comportamento da fi- lha, frisando que, se esta continuasse assim, iria enlouquecer. Berenice apresentava dores nas pernas e na cabeça, e diante destes sintomas os pais demonstravam grande preocupação, porém os exames médicos nada acusavam. Segun- do a mãe, a menina dizia que sentia a dor quando encostavam na cabeça dela, e a mãe acreditava que o couro cabeludo da filha era solto, por isso as dores na cabeça. A mãe de Berenice trabalhava há 17 anos como empregada doméstica e o pai es- tava desempregado, mas trabalhava fazendo “bicos” como pintor. A relação entre ambos era bastante conflituosa. Brigavam na frente das crianças e não demonstravam respeito um pelo outro. A mãe comentou que não conseguia ficar calada e que gritava e dizia coisas desagradáveis ou palavrões quando brigavam. Os motivos das brigas eram rela- cionados com a educação das crianças e as responsabilidades financeiras. Diante das brigas, as crianças ficavam quietas no canto, vendo tudo. A mãe men- cionou que, quando Berenice tinha apenas 4 anos, presenciara uma briga muito feia en- tre eles: o marido pediu para ela bater em seu rosto, tendo ela lhe dado um tapa, e na, sequência, ele deu -lhe um soco, que a derru- bou no chão. Diante dessa cena, as crianças começaram a gritar, mas a mãe acreditava que elas já não se lembravam desse fato. Segundo o pai, diante dos comporta- mentos da filha ele procurava chamar a aten- ção dela, pedindo constantemente para que ficasse quieta. Já a mãe deixava as crianças fazerem o que quisessem dela, frisando que elas a faziam de “gato e sapato”. Comentou que às vezes a mãe estava atrasada para le- var as meninas à escola, mas se elas pediam para pentear o cabelo dela, ela deixava, e com isso se atrasava mais ainda. O pai di- zia que a mãe não conseguia estabelecer alguns limites e que, quando saíam juntas, se as meninas quisessem salgadinhos ela comprava, e se passassem em uma barraca de cachorro -quente ela comprava, mesmo já tendo comprado o salgadinho; se passasse em outra barraca de cachorro -quente e as meninas quisessem jogar fora o que haviam comprado, ela comprava outro. Relatou que, quando Berenice chegava da escola, ia tirando a roupa no meio da casa e ia para o banheiro tomar banho. Acrescen- tou que, se a mãe comprasse um batom paraBerenice e ela o destruísse, no outro dia a mãe já aparecia com outro, não ensinando a ela que não poderia destruir o que tinha. O pai comentou que não estava de acordo com o comportamento de Bereni- ce, considerando -o inadequado. Disse que quando estava em casa conseguia colocar limites, pedia para juntarem as coisas es- palhadas, ao que as crianças obedeciam. Afirmou que quando levava algum presente para as crianças procurava ensinar que este deveria ser conservado e que não se deve ficar desperdiçando. Em relação às discordâncias do casal, o pai afirmou que às vezes era possível que a mãe aceitasse as suas intervenções, mas na maioria das vezes ele era desvalorizado na frente das crianças. O relacionamento do casal era permeado de cobranças, e a mãe não aprovava o comportamento do pai de sair com os amigos para tomar alguma coisa e chegar tarde em casa. Com relação à casa, a mãe decidia o que era melhor e não havia conflitos sobre isso. Segundo a mãe, sua relação com as crianças era muito boa e ela tentava deixá- -las à vontade, fazendo o que quisessem dela. Mencionou que Berenice adorava mexer em seus cabelos, pelo fato de ter o cabelo “duro”. Considerava Berenice muito apegada a ela e dizia que as pessoas comen- tavam que ela a mimava muito, por isso ela se comportava assim. Em seu relato, afir- mou que Berenice exigia muito mais dela do que a irmã. A mãe ressaltou ainda que as crianças tinham mais respeito pelo pai do que por ela. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 112 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) O pai afirmava que Berenice era muito dependente da irmã e ficava todo o tempo pedindo para que esta buscasse as suas coi- sas e fizesse a sua lição, mas quando o pai estava presente evitava esse tipo de compor- tamento. Disse tentar estabelecer alguns li- mites para que ela fizesse as suas atividades sozinha e não ficasse pedindo para sua irmã fazê -las. Afirmou que costumava brincar com as crianças e elas se divertiam. A mãe levava as crianças ao pediatra uma vez por mês ou a cada dois meses. Di- zia ser uma mãe muito preocupada com as suas filhas e, sempre que podia, conversava com elas. Dizia que as filhas brigavam, mas acreditava ser coisa de criança. Comentou que Berenice não era bem vista pelas outras crianças, que ninguém a suportava e quan- do ela se aproximava, diziam: “Lá vem essa menina”. Segundo ela, Berenice preferia brincar com meninos do que com meninas e adorava o afilhado do pai, que tinha 4 anos. A mãe também afirmava que o pai das meninas era mais rigoroso com as crianças do que ela e que em situações nas quais as crianças pediam coisas ela não conseguia di- zer não. Relatou que às vezes o pai colocava as crianças de castigo, e quando ela chegava as tirava do castigo, não permitindo que o pai tivesse autoridade sobre elas. Sua vizi- nha achava que ela batia em Berenice com “pena” e dizia que a criança precisava de uma surra bem dada, pois não tinha limites. A mãe disse que preferia conversar do que bater e não conseguia ser firme com Bereni- ce; até tentava, mas depois cedia, deixando- -a fazer tudo o que quisesse. A mãe dizia ter uma vida muito corri- da e ser uma pessoa organizada, apesar de não colocar sempre as coisas no seu devido lugar, mas afirmava não poder contar com a colaboração do marido e das crianças. A fa- mília apresentava dificuldades financeiras, sendo a renda familiar de mil reais por mês. A mãe informava não ter condições de pagar o tratamento de sua filha, não possuir con- vênio médico e que seu marido estava sem trabalho, fazendo apenas “bicos”, quando apareciam. Dizia ser muito dolorido não po- der dar o que suas filhas pediam. Afirmava que Berenice compreendia quando ela não podia dar o que a menina solicitava. Em momentos de lazer, a família se reunia para ir a festas de aniversários. A mãe comentou que tomava “algumas cerve- jinhas” nos finais de semana e afirmava não deixar as crianças com ninguém para poder sair. Disse que sempre que saía elas estavam junto, e sempre que podia comemorava os aniversários das filhas. História da família e herança Na história da família de Berenice existiam casos de doenças mentais, diabetes e pes- soas com alergia. Segundo a mãe, quando a menina caía e se machucava, ficava com alergia no local, tal qual sua mãe (avó de Berenice); a mancha logo aparecia, ela não sabia por quê. Comentou também que sua mãe e mais três tios maternos tinham diabe- tes. Ela relatou que sua família era grande e tinha muitos sobrinhos, estando o mais ve- lho com 30 anos e a mais nova, com apenas 1 ano. Os avós maternos e paternos de Bere- nice moravam em Recife, e as crianças já ha- viam viajado duas vezes para a casa deles. A mãe contou que, quando morava com seus pais, sempre procurava ajudar. Dis- se sentir saudade do tempo em que morava junto com eles, do cuidado que eles tinham com ela, da união da família. Relatou ter saído de casa porque existia muita repres- são com relação à sexualidade, não se podia “transar” antes do casamento, pois seus pais não aprovavam. Retornara após um ano e meio para a casa dos pais, para visitá -los, e fora bem recebida. Fez questão de frisar que sempre ajudou muito eles. A mãe de Berenice relatou ainda ser muito parecida com sua mãe. Comentou que esta sempre cedia aos seus pedidos. Mencionou também que sua mãe era muito exigente com relação à limpeza da casa e que seu pai não ligava muito para isso. Ela se identificava com o seu pai nesse aspecto, dizendo que casa é feita para limpar e de- pois sujar. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 113 Os familiares mais próximos naquela época eram o irmão do marido, a esposa e uma tia dele. Segundo a mãe, a relação de Berenice com os familiares era boa e a menina gostava de manter contato com crianças menores e com idosos. Comentou que sua cunhada estava esperando um bebê e que Berenice estava superansiosa com a chegada dele. Berenice era então vista pela família como uma criança que havia melho- rado bastante, conseguindo até ficar senta- da, pois antes era vista como um furacão. A mãe atribuía essa mudança de comporta- mento ao fato de a criança estar tomando um medicamento que o médico receitara para acalmá -la. Os pais de Berenice haviam se conhe- cido na festa de aniversário de uma amiga e, após alguns dias, iniciaram o namoro. Namoraram durante dois anos e a decisão de morar juntos partiu dele. No início houve uma resistência por parte dela, pois morava sozinha com uma amiga, tinha a liberdade de viajar, sair para ir a forrós, e o marido não gostava. Ela lamentava não poder mais fazer o que fazia antes, pois tinha as crian- ças, o marido e a casa para cuidar. Relatou que, após seis meses morando de aluguel, haviam conseguido conquistar sua própria casa. O marido colaborava com as respon- sabilidades financeiras e também ajudava a cuidar das crianças. Antecedentes pessoais – história da criança Segundo a mãe, ela engravidara após mais ou menos um ano de união com o marido, não se lembrando exatamente quando. A gravidez fora normal, embora não tivesse sido planejada. A notícia fora recebida com um susto. No início o pai não acreditara, mas depois compreendeu, ficou contente e disse que iria ajudar. A mãe realizou o pré -natal, o acom- panhamento necessário e seguiu todas as orientações do médico, mas o pai não podia acompanhá -la nas consultas por conta da distância, pois o médico era próximo ao tra- balho dela. Ela disse que não teve nenhum problema de saúde nem enjoo durante gra- videz. Relatou que comia de tudo, dormia bem e trabalhara como doméstica até um dia antes de ganhar as crianças. Conta que na época em que estava grávida ainda es- tava estudando. Comentou ter sofrido dois abortos espontâneos antes do nascimento das filhas, que nasceram com oito meses de gestação. A escolha dos nomes foi feita por ambos os pais. O parto de Berenice precisou ser atra-vés de cesárea, pois as crianças não estavam na posição correta para nascer de parto nor- mal. A mãe afirmou ter ficado muito feliz e emocionada no momento em que as crianças nasceram. Mencionou que o pai não pôde acompanhá -la ao hospital, pois ela estava sozinha em casa quando começou a sentir as dores e resolveu ir para o hospital. Con- tou que quem nasceu primeiro foi Berenice e logo depois nasceu Bárbara. As meninas são gêmeas idênticas. Após chegar da maternidade, durante os três primeiros meses, a mãe recebeu aju- da da avó materna e da tia das crianças para cuidar delas. Berenice nasceu com 2,205 kg e Bárbara nasceu com 2,105 kg. A mãe co- mentou que as crianças eram bem pequenas e disse não se lembrar exatamente do tama- nho das duas. Afirmou que foi realizado o teste do pezinho e que estava tudo normal com as crianças. Segundo a mãe, ela ficou no hospital durante 48 horas. Berenice foi para casa e depois de um dia teve que retornar ao hos- pital por estar com icterícia. A mãe disse ter ficado arrasada e chorado bastante, mas no dia seguinte Berenice teve alta, e antes mesmo de receber a notícia ela já estava no hospital. As crianças não tiveram dificuldade em pegar o bico do seio e mamaram no peito até os 5 meses, quando a licença- -maternidade da mãe terminou. No período da amamentação foi necessária a comple- mentação com outro leite, pois a mãe não tinha leite suficiente para as duas crianças. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 114 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) A introdução de outros alimentos ocorreu a partir do quarto mês. A mãe informou que o uso de chupeta pelas meninas foi até os 2 ou 3 anos e elas pararam de usá -la quando Berenice ficou com uma infecção na boca por conta da chu- peta suja. Após esse acontecimento, as duas pararam juntas de usar chupeta. Segundo a mãe, na época da anamnese Berenice chu- pava o dedo e por mais que ela tentasse orientá -la a parar a filha não a obedecia. Em relação à alimentação, a mãe re- velou que Berenice gostava de arroz, feijão e adorava peixe. As crianças tinham horário certo para comer, almoçando às 12h e jan- tando por volta das 19h. O pai comentou que não possuía o hábito de jantar com as crian- ças, pois chegava muito tarde e elas já esta- vam dormindo. Segundo ele, no momento das refeições e nos horários de fazer as lições de casa a televisão ficava desligada. Em relação ao sono, Berenice apre- sentava medo de dormir sozinha desde os 3 anos, dizia ter medo de monstro e reclama- va de dor. A mãe comentou que fazia pouco tempo que a filha deixara de dormir com os pais. Revelou que a psicóloga a orientara a ser firme com Berenice e que esta conduta funcionou. O pai também mencionou a difi- culdade de orientação para a filha, dizendo que somente após a orientação da psicóloga Berenice passou a dormir em sua própria cama. Na época ela dormia sozinha e com a luz apagada. Segundo a mãe, no período em que Berenice dormia junto com os pais na cama eles não tinham relações sexuais. Quanto ao desenvolvimento motor, Berenice começou a andar com um 1 ano e meio e a irmã com 1 ano e quatro meses. A mãe relatou que Berenice caía muito e corria demais, apresentando constante tre- mor em sua perna direita, que parecia fraca. Comentou que as duas crianças começaram a engatinhar com seis meses, e Berenice co- meçou a sentar e a ficar “durinha” com seis meses. Segundo a mãe, Berenice escrevia com a mão direita. Em relação ao controle dos esfíncteres, Berenice parou de usar fraldas com 2 anos de idade. Para treinar as meninas, a mãe utilizava penicos de bichinhos, e as crianças adoravam. Ela contou que não ficava espe- rando as meninas pedirem para ir ao ba- nheiro, estimulava -as, sempre perguntando para elas se estavam com vontade de ir ao banheiro, até elas se acostumarem a pedir. A mãe relatou que, dois dias antes de ser levada até a clínica, Berenice fizera xixi na calcinha e, à noite, na cama. A mãe contou que Berenice gostava de se arrumar sozinha, mas não era possí- vel permitir isso, por falta de tempo, pois não podiam chegar atrasadas à escola. A casa era pequena, com apenas um banheiro para quatro pessoas se arrumarem, por isso era necessária a ajuda dela. A mãe contou ainda que Berenice começou a pedir para se cuidar sozinha desde os 4 anos e se preocu- pava com a aparência, dizendo que quando crescesse teria cabelo comprido e o pinta- ria de loiro. A mãe mencionou que Berenice se preocupava com o fato de seu cabelo ser crespo, adorava fazer penteados e já pensa- va em namorar. Quanto ao desenvolvimento da lin- guagem, a mãe contou que as duas meninas começaram a falar aos 2 anos, porém quan- do tinham em torno de oito meses falavam “dadá”, “mama”, algumas coisas, mas res- saltou que aos 2 anos é que de fato passa- ram a falar tudo. Em relação ao interesse pela sexua- lidade, segundo mãe, Berenice nunca per- guntara sobre sexo, somente Bárbara apre- sentara tal interesse. Relatou que Bárbara perguntara o que era transar, mas ela se ne- gara a responder. Após um tempo, Bárbara vira numa novela um casal dormindo junto e se beijando na boca, então dissera para a mãe que havia visto o que ela não tinha res- pondido. Berenice demonstrou interesse em sa- ber como havia nascido, e a mãe conseguiu explicar dizendo que foi após o médico ter cortado a sua barriga. Comentou que a filha acreditou e que nunca demonstrou interesse em saber como entrou na sua barriga. A mãe considerava a idade da menina inadequada para esse tipo de curiosidade e acreditava que a idade mais adequada seria após os 12 INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 115 anos. Comentou que o órgão sexual do ho- mem era chamado pelas crianças de pipiu e o órgão sexual da mulher, de xexeca. Em relação a manipulações e tiques, segundo a mãe, Berenice chupava o dedo nos momentos em que ficava irritada e quando ia dormir, e ela ameaçava a filha de colocar pimenta em seu dedo ou fazia pro- messas de dar tudo o que ela quisesse, caso ela parasse. A mãe contou que existia uma rotina em que a filha tinha atividades e fazia cinco refeições por dia na escola. Berenice dormia na escola aproximadamente duas horas, mas a mãe não sabia exatamente por quan- to tempo. Mencionou que a filha era uma criança muita agitada e elétrica e já recebe- ra vários bilhetes e reclamações da diretora e da professora. O pai não participava das reuniões es- colares das crianças, alegando que a escola ficava mais próxima do local de trabalho da mãe. Segundo o pai, a escola não demons- trava interesse no rendimento das crianças, não tinha interesse em ajudar, simplesmente sendo dito aos pais que a criança estava com problemas e não se sendo tomada uma ati- tude para mudar a situação. A mãe comen- tou que, quando a professora a chamou pela primeira vez para conversar sobre Berenice, aquela disse que sua filha precisava de aju- da, e que talvez a menina fosse doente men- tal. Relatou que quando a professora disse isso, ela demonstrou dificuldade em aceitar essa situação, procurou uma psicóloga e esta deu uma outra orientação. De acordo com a mãe, a psicóloga orientou -a para que Bere- nice fosse mais estimulada, a fim de poder acompanhar as outras crianças. Segundo a mãe, na escola anterior Berenice era mais estimulada. A mãe relatou que, pelo fato de Bere- nice ter mudado de classe, não tinha mais caderno para escrever em casa, pois sua fi- lha fazia as atividades que a escola dava lá mesmo. Em casa havia uma pasta com algu- mas atividades e um caderno de desenho. Berenice estava indo para o segundo ano e ainda não sabia escrever seu próprio nome. Também apresentava dificuldades com os números, contando só até 4 e acreditando que o próximo número era 6. O pai contou que participava e ajudava nos estudos das crianças e disse que quando Berenice ia fa- zer a lição ele pedia para ela depois mostrá- -la para ele. Afirmou que colocava limitespara a filha não brincar nesses momentos. A mãe explicou que mudara as crian- ças de escola por causa do pagamento, pois em escola de bairro era muito difícil conse- guir bolsa e nas escolas próximas ao traba- lho dela era mais fácil. Segundo ela, no mo- mento em que foi necessária a mudança, ela conversou com as crianças e elas adoraram a ideia, pois nessa nova escola elas iriam an- dar de ônibus e a mãe iria levá -las e buscá- -las todos os dias. De acordo com a mãe, as crianças adoravam a escola e não gostavam que ela chegasse mais cedo para buscá -las. A mãe contou que todo fim de mês a escola promovia uma festa de aniversário para os aniversariantes do mês, e as crianças fica- vam superfelizes. A mãe relatou que Berenice possuía amigos imaginários e vivia brincando de dar aulas, gostando de se fazer de professora ou de diretora da escola. Segundo a mãe, a filha falava algumas coisas erradas, como micro- fone, que ela insistia em pronunciar “ocofo- ne”. Aos 6 aos, a menina fora atendida por uma fonoaudióloga durante um ano. Segundo a mãe, Berenice acreditava em Papai Noel, estando certa de que era ele quem trazia os brinquedos no Natal. A mãe contou alimentar essa fantasia, reforçando para as crianças que realmente era o Papai Noel quem trazia os brinquedos. Na Páscoa elas pintavam o coelho, faziam as orelhas e acreditavam que era ele quem trazia os ovos de Páscoa. A mãe comentou que Berenice não apresentava nenhum tipo de preconceito, mas sempre que via uma pessoa um pouco gorda perguntava se estava grávida. Segun- do a mãe, ela não planejava ter mais filhos, pois estava muito feliz com suas duas filhas e dizia que educar não era fácil. Relatou ser católica, às vezes indo à missa com o marido e as crianças. De acordo com ela, Berenice ficava inquieta na igreja e sempre que ia fa- INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 116 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) zia muita bagunça. Os pais não oficializaram o casamento, embora se sentissem casados. Berenice desejava que os pais realizassem a cerimônia religiosa. Segundo a mãe, o sonho de Berenice era ser dançarina quando crescesse. A filha também dizia querer ser professora. Afir- mou que procurava orientá -la, dizendo para prestar atenção na escola, pois para con- quistar as coisas era necessário estudar. Em relação ao manejo do dinheiro, a mãe rela- tou que Berenice não tinha noção de valor, mas comentou que ela adorava gastar com besteiras, doces e qualquer coisa que visse. Na escola, Berenice praticava ginásti- ca. Segundo a mãe, antes ela fazia natação, mas como houve mudança de turma, teve que parar, e somente Bárbara continuara, porém Berenice não chegara a se queixar. Educação da criança A mãe demonstrou em seu relato ter dificul- dades educacionais, por não conseguir dizer não para filha, o que impedia o amadureci- mento da menina. Os pais não conseguiam compactuar como casal, discordando entre si o tempo todo na frente das crianças, o que impossibilitava que as filhas identificassem o certo e o errado. RESuLTADOS DOS TESTES REALizADOS Síntese do procedimento desenho ‑história A criança apresenta atitude oposicionista frente às exigências do meio externo, rea- gindo agressivamente. Representa que o seu conflito sádico está em atender as demandas da vida escolar. Os resultados dos desenhos sugerem uma defasagem na coordenação motora e intelectual; sem perspectiva de so- lução evolutiva. Observa -se essa defasagem no desenvolvimento perceptivo -motor, inte- lectual e emocional, com possível compro- metimento neurológico. Síntese do teste Columbia Os resultados da performance da criança encontram -se na média inferior em compa- ração com a amostra de padronização. Sua capacidade intelectual é compatível com a de crianças de 4 anos e 11 meses. Observa -se, desta forma, que a criança apresenta prejuízo quanto à capacidade de abstração, elabora- ção e formação de conceito. Síntese do Teste gestáltico Visomotor de Bender Os resultados encontram -se dentro do espe- rado para a idade. Análise dos cadernos As atividades propostas ainda são simples e é trabalhada a prontidão básica, estimu- lando a percepção: dentro e fora, espaços e limites. As atividades são primitivas, cor- respondendo ora ao jardim I, ora ao jardim II, portanto estão regredidas em relação à idade da criança. Pode -se observar que a criança realiza atividades de correspondên- cia e pontilhados, típicas de crianças de 4 e 5 anos. Observa -se nas atividades realizadas que não existe uma motricidade fina compa- tível. A criança rabisca desenhos, não aten- tando a detalhes. Não esboça nos desenhos livres um desenho socialmente reconhecí- vel. Não se identificaram atitudes reforça- doras para a estimulação da produção, pois não há observações da professora nas ativi- dades, e nos desenhos livres não há identifi- cação e nomeação das produções feitas pela criança. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 117 Conclui -se que as produções realiza- das são de uma criança de 4 ou 5 anos, osci- lando entre o jardim I e o jardim II, logo não apresentando condições para alfabetização. TRAnSCRiçãO DA SESSãO LuDODiAgnóSTiCA na recepção – Oi Berenice! – Ai, não, eu não quero sair daqui. Ela esconde o rosto. – Vamos lá? – Ah, não, estou com preguiça. – Berenice, eu vou te levar a uma sala para conversarmos e se quiser poderá voltar. – Tá, tudo bem... A mãe diz: – E você não vai cumprimentar? – Tá bom. A menina me dá um beijo. A mãe diz: – Berenice, cuidado por causa da perna, hein? Sabe, hoje ela acordou já com esta perna doendo e está com ela tremendo o dia todo. – Tudo bem. Tomaremos cuidado, sim. Va- mos lá, Berenice? – Vamos. Sai pulando e dá a mão para mim. Não há indícios de comprometimento no andar. na sala – Olha. Berenice para à porta e fica olhando a mesa cheia de brinquedos. Logo sai corren- do e os pega. – Um espelho! E isso aqui o que é? Aponta para o avião e o pega. – O que você acha? Você sabe por que está aqui? Vira o avião e fica em silêncio. – Ah, é um avião! – Isso mesmo. Berenice, tudo isto que está em cima da mesa são materiais que po- derão nos ajudar em nossas conversas. Estavam nesta caixa aqui e coloquei na mesa. Ao final vamos guardar juntas. – Ahã... – Berenice você sabe por que está aqui hoje? – Não. Ela pega alguns rolos de massinha, co- meça a amassar e fazer bolinhas. – O que a mamãe disse para você quando estavam vindo para cá hoje? – Que eu ia na psicóloga. – E o que é uma psicóloga? – Sei lá. – diz amassando a massinha. – Eu sei seu nome... Tia Rosa! – Isso! Berenice, a mamãe e o papai estão preocupados porque você está com difi- culdades na escola. – É isso mesmo. Amassa com força a massinha sobre a mesa. – Tia, o que é isso tudo na mesa? – São os materiais que você poderá usar en- quanto conversa comigo, para entender o que está acontecendo com você, o porquê de você estar tendo essa dificuldade. – Humm... E esta água aqui, é pra fazer o quê? – Você pode usar como achar melhor. – Oba! Ameaça jogar a bacia d’água no chão, mas olha para mim. – Vou jogar a massinha na água. Pega o barbante e começa a enrolá -lo no pescoço. – Berenice, e esta história que sua mãe con- tou da sua perna, o que é? INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 118 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) – Minha perna dói e eu caio muito. – E por que acontece isso? – Por quê? Não sei... – A mamãe também contou que você está muito agitada e as atividades na escola não saem direito. Como é isso? – É assim mesmo. Pega o papel laminado prateado, vira o lado que brilha para a mesa e coloca a mas- sinha sobre o papel. Enfileira as bolinhas que tinha feito, como se fossem um muro entre mim e ela. – O que é isso? Ela aponta para as tintas. – O que você acha? – É tinta. Aqui também tem pincel. Pega os pincéis e as tintas verde, ama- rela e azul. Conforme vai pintando, repete o nome das cores. – Estadaqui é amarelo, né? – Isso mesmo. O que é isso que você está fazendo? – Ainda não vou te falar, só quando acabar. – Tudo bem. Vejo que ela vai misturando as cores no papel. Passa cola em volta do papel e tro- ca as cores das tintas. – Percebo que você quer experimentar tudo o que está aqui. Misturar as cores, amas- sar as massinhas. Será que isso também acontece na escola? A professora dá uma atividade e você quer logo fazer, sem sa- ber ao certo o que tem que fazer? – A professora briga. Fala: “Sente -se, Be- renice, faça a sua lição e pare de con- versar”. Agora vou pintar com as cores vermelho, preto e branco. Pinta o papel com as novas cores. Tira as massinhas que formavam o muro e do- bra o papel laminado. Com o papel fechado em forma de um quadrado, faz um contorno com a cola. – Pronto, acabei este! – E o que é Berenice? – É uma casa. – Hum... e quem mora nela? – Ué, a cola e a tinta. Agora vou fazer ou- tra coisa! – E se a cola e a tinta fossem pessoas? Quem seriam? – Não sei ainda. Pega outro papel laminado prateado, abre e passa cola. Pega a tinta verde e, como estava dura, ela põe a água da bacia, mas cai tudo de uma vez, esparramando na mesa. Ela fecha o papel e passa cola nos dois la- dos dele. Espalha bastante cola, água e tinta verde com a mão. Molha a mão na água e espalha mais cola. – Pronto, acabei. – E esse aí, o que é? – É um tapete. Toma. Joga -o para mim e pego -o no ar, pois, do contrário, iria me sujar. – Vou colocar junto com a casa, tudo bem? A casa cai no chão. Ponho do lado da mesa. – Ah, tá, tudo. Pega outro papel laminado prateado. – Agora eu vou fazer uma coisa que não posso contar pra ninguém. – É, Berenice? Mas por quê? – Este não. Não posso. Abre o papel e passa bastante cola. Es- palha tudo e põe legos coloridos em cima. – Aqui são as cadeiras das meninas. Mas eu só quero as rosa. Tira os legos verdes e amarelos e enfi- leira somente cinco legos cor -de -rosa. – Que meninas são estas? – As meninas. Elas vão sentar nestas cadei- ras! Fecha o papel e passa mais cola. – Pronto, está pronto o presente. – E para quem é o presente Berenice? – Para você. – Posso abrir, então? – Não, não pode. É um presente. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 119 – Tá. Ao me entregar o presente, o papel se abre sozinho e os legos caem. – Ah, não, estragou o presente! Pega os legos, abre o papel, coloca -os novamente dentro dele e fecha -o. – Nossa, você fez as unhas, tia! Para e fica olhando a terapeuta. – Você é bonita! – Obrigada! Vou deixar o presente aqui junto com a casa e o tapete, tudo bem? – Tudo. – Acho que você está feliz de poder fazer atividades, falar sobre coisas de menina e até quis me dar um presente de tão contente. Levanta, pega papel sulfite, lápis colo- rido, giz de cera e massinha e vai em direção à cadeira de adulto que tem na sala. – Vou fazer um desenho agora, mas você não pode ver, tá? – Tudo bem. Berenice vira -se de costas para a tera- peuta, vai até uma cadeira distante da mesa e desenha em cima da cadeira. Desenha duas linhas na vertical com giz de cera e co- loca duas bolinhas de massinha em cima. – Acabei! – Qual é o nome deste desenho, Berenice? – O pintor. – Conte -me uma história sobre ele. – Era uma vez uma menina que usava um chapeuzinho vermelho, aí veio o lobo e pegou ela. Agora vou fazer outro dese- nho. Pega os lápis de cor e faz linhas colori- das e grossas. – Berenice, nosso tempo já está acabando e vamos ter que guardar todos estes ma- teriais. Você já está acabando de dese- nhar? – Ah, não! Eu não quero ir embora... Este desenho aqui pode ficar comigo? Mostra o último que tinha feito. – Você vai precisar dele? – Ahã. Mas eu vou cortar só a parte que pintei. Pega a tesoura e faz cortes pequenos no meio do desenho, depois corta em volta. – Precisamos guardar os materiais. Vamos nos encontrar outras vezes, mas vou tra- zer outras coisas. Berenice, vamos! Hoje vou te ajudar a guardar as coisas, acho que você não quer ir, mesmo. – Eu vou te ajudar. Eu gosto de ajudar. Na escola eu ajudo a tia. Na arrumação, Berenice joga na mesa o desenho que fez com giz de cera e massi- nha. Sai correndo pelo corredor e entra em todas as salinhas de atendimento. – Berenice, é por aqui, vamos lá, que a ma- mãe está esperando. Berenice pega na minha mão e chega- mos à recepção. – Ih, tia, esqueci o desenho! Quero ir lá buscar. – Então podemos voltar para pegar. Berenice sai correndo e não me espera, mas, como não lembrava do caminho da sala, para e espera. Pega o desenho, volta para a recepção e sai, dando a mão para a mãe. AnáLiSE DA SESSãO LuDODiAgnóSTiCA Escolha dos brinquedos Verifica -se que o contato inicialmente é feito com restrições, típico de uma criança dessa idade diante de alguém desconhecido. En- tretanto, diante da visão dos materiais, já na sala, a menina fica surpresa e sua rea- ção é de impulsividade, como se os mate- riais representassem o lado prazeroso de sua infância. O primeiro material que utiliza é o espelho, podendo representar a busca de sua identidade. Imediatamente quer sa- ber o que é o avião. Aliás, ela sabe o que é o avião, mas neste momento expressa sua INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 120 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) confusão mental, indicando que precisa se diferenciar. Não consegue dar continuidade à sua pesquisa e passa a amassar a massinha. Se considerarmos estas primeiras escolhas de materiais, e equiparando -as às associações livres da criança, é como se ela nos disses- se: meu problema está na busca de quem eu sou, de outro que me permita diferenciar- -me, mas não consigo, regrido a um está- gio anterior, ou seja, de uma etapa edípica retorno a uma etapa anal, de exploração e manuseio prático. Esse manuseio regressi- vo, no entanto, a faz entrar em contato com seus impulsos agressivos, que não quer que a terapeuta conheça. Ao reconhecer que a terapeuta pode “se conter”, permitindo a sua agressividade, novamente se depara com a possibilidade de descontrole: ameaça jogar a água. Ao reconhecer este seu lado destruti- vo, volta -se para si, na tentativa de se pu- nir. Isso fica claro ao enrolar o barbante no pescoço. Aqui podemos entender o quanto a criança, diante da possibilidade de manu- sear e pesquisar os materiais, de expressar sua agressividade, rompe com a realidade, desiste de sua exploração e enrola um bar- bante no seu pescoço, ou seja, em vez de ex- pressar seus sentimentos ataca -se inibindo sua ação de exploração. Possivelmente, as dores na cabeça e na perna representam sintomas psicossomáti- cos, ou seja, através das dores pode receber atenção ou encobrir a sua agressividade. As bolinhas de massinha ficam em cima de um papel laminado cujo brilho fica escondido. O que aparece? É o seu lado regredido, onde o interesse é apenas expresso na manipula- ção, ora com as tintas, ora com a massinha. A cola representa sua necessidade de afeição e de simbiose, sua necessidade de ser aceita como uma menina “desconjunta- da”, “atrapalhada”. Entrega para a terapeu- ta um conjunto de legos que representam meninas. Quais meninas? As várias meninas que sente dentro de si, mas que ela não quer que sejam conhecidas. Diante da impulsividade da expressão de seus impulsos agressivos, verifica que é possível pesquisar os conteúdos femininos, mas o faz com angústia e persecutoriedade. Seus desejos femininos podem, novamente, colocá -la numa situação de perigo. Lembra- -se da história da Chapeuzinho Vermelho, que é comida pelo Lobo Mau. Não há a pos- sibilidade de reparação dos impulsos agres- sivos, e novamente ela reproduz o seu histó- rico de repressão, demonstrando o quanto não consegue crescer. Quem sabe as suas dificuldades esco- lares, tal como descritas por Klein (1930; 1931), estejam relacionadas ao impedimen- to destas descobertas típicas da fase fálica. Modalidade de brinquedo As manifestações simbólicas da menina de-monstram um ego pobre na expressão, onde os impulsos parecem prevalecer sobre a ca- pacidade expressiva representativa. As ações da criança demonstram um interesse na ma- nipulação, que, por sua vez, surge para im- pedir a capacidade simbólica edípica. No relato da mãe, nas sessões que precederam o primeiro encontro com a te- rapeuta, fora mencionado que a criança, ao saber do atendimento psicológico, ficara ansiosa e fizera xixi na cama, coisa que há muito tempo não fazia. Ao se apresentar à terapeuta na recepção, ela diz que não quer ir para a sala. A mãe menciona que naquele dia a criança está com a perna doendo e tre- mendo. São dados que revelam a ansiedade da criança diante da situação de avaliação. É contraditória, porém, sua atitude impulsi- va ao chegar na sala, sugerindo falta de ade- quação evolutiva no seu comportamento. Entretanto, o aspecto motor já fora avaliado com o médico, o que nos leva a uma possível hipótese (associada à sua an- siedade) de que há um aspecto de natureza psicossomática. Essa hipótese fica mais clara se considerarmos que esse comportamento impulsivo diminui com o decorrer da sessão. Ora, o que justificaria, então, a ansiedade persecutória da criança? Verifica -se que, ao conversar sobre as dificuldades escolares, a manipulação da INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 121 massinha também demonstra ansiedade. Provavelmente o seu medo é de ser aniqui- lada e não aceita pela mãe, que, por sua vez, a compara com a irmã. Há ataques a essa falta de aceitação de sua dificuldade que ela deseja expressar, mas procura evitar. Verifica -se tal atitude de repressão de seus impulsos quando ela tenta evitar jogar a massinha na água, ou seja, identificamos a presença de uma crí- tica superegoica no seu comportamento, esperado para uma criança de sua idade. Seu bloqueio na ação de atirar a massa na água é evitado, mas o que faz em seguida? Envolve o barbante no pescoço, sugerindo uma autoagressão, típica de sintomas psi- cossomáticos. No desenrolar da sessão, verifica -se que a modalidade do jogo vai adquirindo aspec- tos do que é esperado em sua idade, ou seja, mistura cores, faz um tapete para a casa, es- boça uma história para o seu desenho. No encadeamento de suas ações, iden- tificamos uma sequência desorganizada, apesar de haver uma lógica quando a in- terpretamos. Por exemplo, quando usa as tintas, ela demonstra que sabe as cores, faz uma casa onde moram a cola e a tinta, o que representa a união e a identidade. Pro- vavelmente, o seu grande problema é este: o conhecimento está impossibilitado pela dificuldade na identificação. Em seguida, ela faz com os papéis um tapete da casa, que joga para a terapeuta. O que pode significar um tapete? O apoio, a segurança, que não encontra no ambiente familiar. Logo, quem deverá cuidar disso é a terapeuta, daí jogar o tapete para esta. Ou seja, o que podemos verificar é uma expressão carregada de ansiedade, daí a desorganização, mas se trata de uma de- sorganização com uma lógica significativa. Psicomotricidade A criança desenha, faz colagens, apresenta preensão manual adequada, faz recortes, re- conhece quando a atitude não corresponde ao esperado – por exemplo, quando os legos caem no chão. Do ponto de vista evolutivo gráfico, os desenhos ainda estão numa fase pré -esquemática, ou seja, não correspon- dem à realidade, sugerindo uma regressão nos conteúdos. Além disso, a alternância das atividades também não é a esperada para uma criança de 7 anos. Discutindo esses indicativos, foi indicada uma avaliação neurológica, que acusou foco irritativo. Este resultado, porém, foi associado ao comportamento impulsivo, e não a uma impossibilidade intelectual. Se considerarmos o resultado do Testes Gestáltico Visomotor de Bender como nor- mal, é provável que com estimulação ade- quada na representação de suas ações práti- cas este atraso na expressão possa melhorar. Personificação Trata -se de uma criança que interage com a terapeuta, há diálogos. Ela realiza ativi- dades e presenteia a terapeuta, ou seja, há uma relação intensa e que poderíamos de- finir como uma personificação primária, ou seja, o faz de conta com personagens é ain- da correspondente a uma criança de 3 anos. Ela associa os legos a meninas, que têm uma cor feminina (cor -de -rosa). Novamente, identificamos uma ne- cessidade de diferenciação. Essa personifi- cação, ainda tão regredida para a idade de 7 anos, nos faz entender que o processo de identificação apresenta dificuldades, com a figura masculina adquirindo sinais de per- secutoriedade. Essas falhas na identificação podem fazer emergir comportamentos es- tereotipados, o que pode sugerir o agrava- mento do quadro regressivo. Tal aspecto pode ser observado primei- ramente quando a criança entrega os legos para a terapeuta dizendo que são as cadei- ras das meninas. Quem poderiam represen- tar essas meninas? Ela e a irmã? Ao entregar o presente, ela se depara com as unhas da terapeuta e fica observando -as. Ora, nesta idade a criança fica interessada nos aspectos femininos, bem como no comportamento dos adultos, e verificamos isso quando ela INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 122 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) vai em direção à cadeira do adulto. O que acontece em seguida? Ela faz um desenho que a terapeuta não pode ver. O que esta não pode ver? O pintor. O que pode representar o pintor? O aspecto masculino proibido. Em seguida aparece a história estere- otipada: a menina que usava um chapeuzi- nho vermelho, “aí veio o lobo e pegou ela”. O interesse na figura masculina se transfor- ma em algo ameaçador. Além disso, usar o chapéu vermelho faz com que o lobo pegue a menina. Aqui está a grande confusão “psi- cótica” desta criança: se consideramos que ela foi utilizada pela mãe como motivo do impedimento da sexualidade conjugal, o comprometimento na identificação torna -se ainda maior. O que resta a esta criança? A solução que dá ao conflito é resolver o seu proces- so de identificação primária. A expansão da história do chapeuzinho vermelho é inibida, e a criança retorna ao uso dos recortes, ou seja, novamente regride, indicando que a sua dificuldade está neste processo de dife- renciação materna. Criatividade A criança manipula os materiais dentro do esperado, usa os legos como cadeiras, faz recortes coloridos representando um tapete, mas sem verificarmos relações inusitadas, ou seja, a criatividade está dentro do espe- rado. Se considerarmos que se trata de uma criança de 7 anos, podemos dizer que as suas ações são muito primárias, uma vez que ela mistura desenho com massinha, ao fazer o pintor. Evidentemente, ao analisar- mos o conteúdo da situação percebemos o quanto a sua capacidade criativa fica inibida diante da sua impossibilidade, que não lhe é favorável ao crescimento. Capacidade simbólica Verifica -se que a criança expressa as suas dificuldades relacionadas a sua impossibili- dade de lidar com os conflitos edípicos apre- sentando um comportamento com fixações anais. Na medida em que suas ações são permeadas de exploração e manipulação (ou seja, pinta, recorta, desenha), mas, ao tentar estruturar um comportamento mais elaborado, como a casa ou a história sobre as duas bolinhas que compõem o seu dese- nho do pintor, a criança não vai além disso, não consegue representar verbalmente uma hitória sobre suas ações. A ansiedade per- secutória parece impedir o seu crescimento, logo, a faz regredir ao comportamento de manipulação. A criança demonstra com isso uma fra- gilidade egoica, e as defesas preponderantes são de repressão, deslocamento e, em alguns momentos de maior conflito, aparecem os mecanismos de cisão. Por outro lado, ela expressa suas di- ficuldades, o porquê das dificuldades de aprendizagem e de agitação, e expressa tam- bém a sua fantasia de cura. Suas dificulda- des na aprendizagem perecem estar associa- das a uma impossibilidadede conhecimento de si mesma e do processo de diferenciação. Nossa hipótese é de que essas dificuldades foram impedidas com a não aceitação de seu interesse pelo aspecto feminino. A fan- tasia de cura parece associada ao processo de identificação primária, na medida em que há ataques à figura materna e que, na fantasia inconsciente da criança, as dificul- dades só podem ser vivenciadas através de seu sintoma de deficiente mental ou de não aprendizagem. Ainda em relação à expressão da sua dificuldade de aprendizagem, podem -se questionar todos estes significados e dizer que o comprometimento desta criança é neurológico, logo, deveríamos centralizar nossa preocupação no aspecto cognitivo ou intelectual, dando um outro direcionamento ao caso – por exemplo, sugerir um trabalho neuropsicomotor. Esse procedimento também pode ser utilizado se formos rigorosos na análise do seu comportamento, tão regredido para uma criança de 7 anos. No entanto, de que adianta todo um processo de estimulação INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS LudodiAgnóstiCo 123 dissociado das “possíveis” significações das vivências de um ser humano? Este impasse é algo que o psicoterapeuta terá que decidir mediante o conjunto das suas avaliações. Tolerância à frustração A criança aceita os limites impostos pela atividade lúdica, embora suas ações sejam quase sempre exploratórias, com esboços de construções. No que diz respeito à separa- ção, verifica -se que essa foi a sua maior difi- culdade, expressa diante do limite do térmi- no da sessão. Diante do inevitável término da sessão, começa a ficar agressiva, atirando o desenho no chão e deixando a sala ansiosa e agitada. Por outro lado, suas ações agressivas são permeadas de reparação. Por exemplo, joga o desenho ao chão, mas precisa retor- nar à sala, admitindo não poder ficar sem o desenho. Adequação à realidade A criança compreendeu os papéis de cada um na situação lúdica, utilizou os materiais de acordo com as sua funções e, apesar das dificuldades diante dos limites impostos pelo tempo da sessão, demonstrou compre- ensão do contrato e das instruções, ou seja, apresentou um comportamento adequado à sua faixa etária. Síntese do ludodiagnóstico Verifica -se que a criança expressa as suas dificuldades relacionadas a sua impossi- bilidade de lidar com os conflitos edípicos apresentando um comportamento com fi- xações anais. A angústia preponderante é a persecutória, que parece permear e impedir as manifestações de seus recursos, desen- cadeando comportamentos regressivos de manipulação. A criança demonstra com isso uma fragilidade egoica, e as defesas preponde- rantes são de repressão e regressão, e em momentos de maior conflito aparecem os mecanismos de cisão e tentativas de desin- tegração. As dificuldades na aprendizagem estão associadas a uma impossibilidade de conhe- cimento de si mesma e do processo de dife- renciação. Essas dificuldades de exploração e pesquisa parecem estar associadas a sua não aceitação dos seus aspectos femininos. A fantasia de cura parece associada à ela- boração do processo de identificação primá- ria, na medida em que há representações de ataques à figura materna que, na fantasia inconsciente da criança, só podem ser vi- venciadas através do seu sintoma escolar ou psicossomático. CASO CARLOS Identificação Trata -se de um pré -adolescente de 12 anos do sexo masculino, a quem darei o nome de Carlos. Carlos foi levado à clínica encaminha- do pela escola, pois, frequentando o sexto ano do ensino fundamental, recusava -se a fazer os deveres de casa. Além disso, seu comportamento era agressivo, tanto em casa como na escola. Respondia para os professores que não iria fazer os deveres. Com os colegas ficava enfurecido quando lhe chamavam de baixinho. Segundo a mãe, quando o menino ia ao banheiro sentia -se inferiorizado, uma vez que seu pênis era pe- queno. A mãe já o levara ao endocrinologis- ta, mas não havia problemas. O pai, em função das várias reclama- ções da escola, procurara dar mais atenção ao menino e entendia que ele estava mais calmo. Também acreditava que a mãe dizia muito para Carlos obedecer, e ela mesma admitia que acabava por se descontrolar, gritando com Carlos. Segundo os pais, o me- nino resistia às regras educacionais, nunca obedecendo na primeira solicitação. Com o pai a obediência era mais frequente. INDEX BOOKS GROUPS INDEX BOOKS GROUPS 124 rosA mAriA LoPes Affonso (org.) Síntese da anamnese Carlos era o filho caçula e temporão. Os pais tinham mais duas filhas, uma de 24 anos e outra de 22. Os pais acreditavam que Carlos sempre fora “mimado” por todos da casa, em função de ser o caçula, e sempre fizera o que queria desde pequeno. Quando o menino tinha 6 anos, come- çou a praticar kung -fu; segundo os pais, para dar vazão à sua agressividade, pois já naque- la época havia queixas da escola. Algumas mães chegaram a conversar com a mãe de Carlos, pois ele já batia nas crianças. Carlos sempre conviveu com adultos, pois o local onde a família morava não per- mitia o convívio com outras crianças, ou seja, a sua socialização se restringia à esco- la. Apesar de ter um quarto para ele, todas as noites ele ia para o da irmã mais velha. Ainda naquela época havia dias em que acordava e ia para a cama da irmã. O meni- no alegava ter medo do escuro e dizia que quando assistia a filmes de terror acabava tendo pesadelos. Os professores afirmavam que Carlos não podia fazer trabalhos em grupo, pois brincava e fazia bagunça. Antecedentes pessoais: história da criança A gravidez de Carlos não foi planejada e, ao 7 meses de gestação, houve a ameaça de nascimento prematuro. Isto teria se dado em razão de um susto que a mãe levara en- quanto estava dirigindo, durante uma via- gem, quando o carro derrapou. O bebê nas- ceu sentado e teria girado devido ao susto. Porém, não houve outras consequências, e o nascimento foi aos 9 meses. Segundo a mãe, a gravidez foi boa, com enjoos até o quarto mês, como nas duas gestações anteriores. O parto foi através de cesárea, pelo fato de o bebê estar sentado. Carlos nasceu com 3,6 kg e com 48 cm. O me- nino mamou ao seio até os 10 meses, e a mãe retirou a amamentação aos poucos, como a médica lhe recomendara. A mamadeira foi usada até até os 5 ou 6 anos, quando Carlos deixou -a por iniciativa própria, pois haviam descoberto na escola que ele usava mama- deira. Usou chupeta até os 4 anos, tendo esta lhe sido retirada pelos pais. O controle dos esfíncteres teve início com 1 ano e 2 meses, e as fraldas foram re- tiradas aos 2 anos. A mãe deixava -o horas no urinol, e as irmãs mais velhas é que o limpavam quando se sujava. Com 10 meses, Carlos começou a en- gatinhar, mas pouco, pois com 1 ano já pas- sou a andar. Começou a dizer frases com 4 anos. Aos 2 anos falava somente palavras bem curtas. Chamava sua irmã mais velha de Onca, em vez de Mônica, e a irmã mais nova de Lu, em vez de Lucélia. Com 5 anos, o menino entrou na pré- -escola. Com 6 anos iniciou o primeiro ano do ensino fundamental. Começou então a ler e escrever, porém muito pouco, sendo tal fato atribuído a sua falta de paciência. Quando tinha 9 anos, já no quarto ano, co- meçou a ter explosões de raiva. Carlos gostava de frequentar a escola, mas não gostava de levantar cedo, o que gerava dificuldades para levá -lo às aulas. Na época, seu rendimento escolar era bom. Tinha bom desempenho em matemática, ciên cias e artes e não ia muito bem em geo- grafia, inglês e português. Não gostava de história, pois não gostava de ‘decorar’. Ti- rava notas altas, como, por exemplo, 9 em matemática, no entanto, não era essa a nota que constava em seu boletim, devido ao seu mau comportamento. Ainda assim, atingia a média sem problemas. Carlos era ajudado nas lições pelo pai, rejeitando a ajuda da mãe. A irmã mais velha ajudava -o eventualmente. O espaço onde Carlos fazia suas lições era uma mesa no